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O tear psicanalítico: uma pesquisa sobre as práticas da psicanálise na saúde mental

The psychoanalytic loom: investigating the psychoanalysis practices of a mental health care team

Le métier à tisser psychanalytique : enquête sur les pratiques de psychanalyse d’une équipe de santé mentale

El telar psicoanalítico: una investigación sobre las prácticas del psicoanálisis en un equipo de salud mental

Resumo

Este artigo discute as práticas da psicanálise em equipes de saúde mental pública, investigando o modo como psicanalistas atuam fora do modelo ambulatorial individualizado. A pesquisa foi realizada a partir de uma perspectiva etnográfica, por meio do acompanhamento da rotina de trabalho de dois psicanalistas em uma equipe de saúde mental. O registro detalhado das rotinas em diário de campo foi utilizado como material de análise. Em decorrência disso, propõe-se o modelo do tear psicanalítico para ilustrar o modo como a psicanálise opera em interlocução com os demais saberes que compõem a saúde mental pública.

Palavras-chave:
psicanálise; saúde mental; saúde pública; reforma psiquiátrica

Abstract

This article discusses the psychoanalysis practices employed by public mental health care teams, investigating how psychoanalysts act outside the individualized ambulatory model. An ethnographic research was carried out by monitoring the work routines of two psychoanalysts from a mental health care team. Detailed recordings of the routines in the field diary were used as material for analysis. Hence, this essay proposes the psychoanalytic loom approach to illustrate how psychoanalysis operates in dialogue with other knowledge that make up public mental health.

Keywords:
psychoanalysis; mental health; public health; psychiatric reform

Résumé

Cet article traite des pratiques de psychanalyse utilisées par les équipes publiques de santé mentale, en examinant comment les psychanalystes agissent en dehors du modèle ambulatoire individualisé. Une recherche ethnographique a été menée en suivant les routines de travail de deux psychanalystes d’une équipe de santé mentale. Les enregistrements détaillant des routines dans le journal de bord ont été utilisé comme matériel d’analyse. Cet essai propose donc l’approche du métier à tisser psychanalytique pour illustrer comment la psychanalyse opère en interaction avec les autres savoirs qui composent la santé mentale publique.

Mots-clés :
psychanalyse; santé mentale; santé publique; réforme psychiatrique

Resumen

Este artículo discute las prácticas del psicoanálisis en equipos de salud mental pública, investigando el modo de actuar de los psicoanalistas fuera del modelo ambulatorio individualizado. La investigación se realizó a partir de la perspectiva etnográfica por medio del seguimiento de la rutina de trabajo de dos psicoanalistas en un equipo de salud mental. El registro detallado de las rutinas en diario de campo se utilizó como material de análisis. Con eso, se propone el modelo del telar psicoanalítico como ilustración del modo como se opera el psicoanálisis en interlocución con los demás saberes que componen la salud mental pública.

Palabras clave:
psicoanálisis; salud mental; salud pública; reforma psiquiátrica

Não são necessários grandes esforços interpretativos para identificar o teor profético que Freud (1919/2010)Freud, S. (2010). Caminhos da terapia psicanalítica. In Obras completas: História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. Souza, Trad., Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919) concede ao texto Caminhos da Terapia Psicanalítica. Trata-se de um pronunciamento lido no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Budapeste, em 1918. Nesse texto, o autor reconhece a psicanálise como uma atividade terapêutica sem vasto alcance, uma vez que seu trabalho ainda era dedicado a classes abastadas, aptas a escolher e pagar o próprio médico. Acreditando na possibilidade futura de o Estado ofertar cuidados em saúde mental às demais camadas da população, Freud (1919/2010)Freud, S. (2010). Caminhos da terapia psicanalítica. In Obras completas: História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. Souza, Trad., Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919) profetiza a instauração de

... consultórios que empregarão médicos de formação psicanalítica, para que, mediante a análise, sejam mantidos capazes de resistência e de realização homens que de outro modo se entregariam à bebida, mulheres que ameaçam sucumbir sob a carga de privações, crianças que só tem diante de si a escolha entre a neurose e o embrutecimento. Esses tratamentos serão gratuitos. (p. 291)

Mesmo que seu projeto tenha sido construído por caminhos muito diferentes, é notória a semelhança entre o espaço imaginado por Freud (1919/2010)Freud, S. (2010). Caminhos da terapia psicanalítica. In Obras completas: História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. Souza, Trad., Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919) e aquilo que hoje entendemos por Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o principal serviço público de atenção à saúde mental da população. No entanto, o caráter profético vai além quando o autor, destacando a realidade do serviço hipotetizado, intui que em tais espaços seria necessário adaptar a técnica a partir do ato de “fundir o puro ouro da análise com o cobre da sugestão direta” (Freud, 1919/2010Freud, S. (2010). Caminhos da terapia psicanalítica. In Obras completas: História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. Souza, Trad., Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919), p. 292), isto é, fundir a técnica tradicional a outros manejos clínicos e terapêuticos.

Passados 100 anos desde a publicação da conferência, deparamo-nos com uma saúde mental pública que pode abrigar psicanalistas e oferecer as especificidades de sua escuta às camadas da população que de outro modo dificilmente teriam acesso a tal especialidade. A presença da psicanálise nas instituições de saúde mental é um fato observável nas recentes produções científicas que apontam a crescente interlocução que psicanalistas têm desenvolvido nos mais distintos níveis, seja nos hospitais psiquiátricos (Pereira & Costa, 2019Pereira, L. R., & Costa, A. M. M. (2019). Contrapontos entre psicanálise e medicina no hospital oncológico. Trivium: Estudos Interdisciplinares, 11(2), 156-164. doi: 10.18379/2176-4891.2019v2p.156
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; Silva, 2017Silva, A. B. H. C. (2017). O discurso do analista como possibilidade da psicanálise aplicada no hospital. Revista da SBPH, 20(2), 166-187.; Wendling, Santos, Silva, & Moreira, 2019Wendling, M. M., Santos, F. B., Silva, T. B., & Moreira, A. S. (2019). Hospital e psicanálise: A atuação do psicólogo em um ambulatório de Pediatria. Revista da SBPH , 22(spe), 186-204.), seja nos serviços substitutivos comunitários (Amancio, 2015Amancio, V. R. (2015). A construção de uma clínica para os CAPS a partir da direção da psicanálise. Revista Fluminense de Extensão Universitária, 5(1), 5-9.; Santos, Reis, Rosário, & Kyrillos Neto, 2019Santos, D. R. G., Reis, J. K. N., Rosário, A. B., & Kyrillos, F., Neto. (2019). O paradoxo da inclusão: A relevância da escuta do sujeito nos Caps. Vínculo, 16(2), 68-87. doi: 10.32467/issn.19982-1492v16n2p68-87
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; Silva & Aguiar, 2020Silva, Y. A., & Aguiar, S. M. (2020). Adolescência e automutilação no Caps Infantojuvenil de Iguatu-CE: Um estudo psicanalítico. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 12(31), 245-268. doi: 10.5007/cbsm.v12i31.69761
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), ou na esfera da gestão e planejamento (Burgardt, 2018Burgardt, B. F. (2018). Psicanálise e gestão de saúde: Diálogos possíveis (Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul). Recuperado de https://bit.ly/3QENN2o
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; Moreira & Rocha, 2019Moreira, R. M., & Rocha, K. B. (2019). O trabalho na gestão dos serviços substitutivos de saúde mental: Aproximações entre saúde coletiva, saúde mental e psicanálise. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 29(2), 1-20. doi: 10.1590/S0103-73312019290216
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).

Todavia, o campo da saúde mental é marcado por atuações polissêmicas, e é tão vasto seu espectro de conhecimentos que se torna difícil definir suas fronteiras (Amarante, 2013Amarante, P. (2013). Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.). De acordo com Meyer (2016Meyer, G. R. (2016). A psicanálise na instituição de saúde mental. Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana, 11(22), 108-121. Recuperado em https://bit.ly/3bk0GhT
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), o mesmo trabalho multidisciplinar que torna possível o acesso da psicanálise aos espaços coletivos de ação é o gerador de parte significativa dos desafios enfrentados pelo psicanalista na saúde pública, uma vez que convoca o profissional a ocupar um lugar diferente do setting para o qual foi preparado e com o qual se habituou. Nesse novo lugar concedido à psicanálise, outras atividades diferentes da clínica individual são utilizadas no tratamento do usuário, como, por exemplo, atendimentos grupais, oficinas, visitas domiciliares e toda variedade de atividades que tome o território do sujeito como um ponto de ação (Ministério da Saúde, 2013bMinistério da Saúde. (2013b). Saúde mental (Cadernos de Atenção Básica, nº 34). Brasília, DF: Editora MS. Recuperado de https://bit.ly/3OfZECr
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). Em outras palavras, são exercidas, nos referidos espaços, práticas não ambulatoriais de atendimento em saúde mental.

Este artigo objetiva refletir e explicar como ocorrem as práticas psicanalíticas nessas modalidades de atendimento. Considerando a premissa freudiana de que nos espaços não tradicionais a psicanálise funde sua melhor essência a outros manejos, almeja-se entender de que modo técnica e ética psicanalíticas se transformam na saúde mental pública, interseccionando seus fazeres aos movimentos da reforma psiquiátrica.

Método

A pesquisa foi desenvolvida na perspectiva do método etnográfico em função deste proporcionar uma coleta de dados que coloca o pesquisador em contato direto com o campo, enfrentando e descrevendo o cotidiano ao mesmo tempo que se afeta por ele. Assim, a intenção foi, tal qual um etnógrafo, poder acompanhar o dia a dia dos psicanalistas e dessa experiência extrair um entendimento que estivesse além do semblante discursivo destes.

O campo escolhido foi um grupo de saúde mental atuante no município de Porto Alegre que tem a especificidade de contar com dois psicanalistas e uma equipe fortemente atravessada pelos princípios psicanalíticos em função das supervisões oferecidas pelos dois profissionais. Os momentos de entrada e observação do cotidiano do serviço ocorreram ao longo do segundo semestre de 2018. Cada observação foi registrada em diário de campo a fim de realizar descrições densas das situações observadas, sendo este o procedimento prínceps da perspectiva etnográfica que visa ampliar o universo discursivo em torno de uma cultura investigada (Geertz, 2005Geertz, C. (2005). La interpretación de las culturas. Barcelona, ES: Gedisa.).

Assim que concluídas as observações etnográficas, iniciou-se o procedimento de análise do diário de campo, conforme a proposta de Agrosino (2009Agrosino, M. (2009). Etnografia e observação participante. Porto Alegre, RS: Artmed.) que prevê uma etapa de análise descritiva, decompondo os fluxos dos dados para identificar padrões, regularidades e temas emergentes, e uma etapa de análise teórica, na qual foram buscados entendimentos e explicações para os conteúdos identificados na etapa anterior, objetivando a decifração dos dados. Ambas as análises resultaram nas quatro categorias apresentadas a seguir como organizadoras da etapa de discussão e resultados do artigo.

Concluída a análise descritiva, foram conduzidas entrevistas não estruturadas com os psicanalistas participantes do estudo. As entrevistas foram realizadas individualmente no local da pesquisa e cumpriram a função de explicar eventuais situações da coleta inicial que não tivessem ficado suficientemente concluídas após a etapa de análise descritiva. Na seção de resultados e discussão serão exibidos excertos do diário de campo, bem como das falas dos psicanalistas participantes. Ao final de cada fala estará indicado se esta advém do diário de campo ou das entrevistas complementares.

Cabe destacar que o presente estudo passou pela aprovação dos devidos comitês de ética (da universidade e da Secretaria Municipal de Saúde). As entrevistas foram gravadas e transcritas com o consentimento dos psicanalistas, manifesto em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos os nomes apresentados a seguir são fictícios a fim de preservar o anonimato dos participantes.

Resultados e discussão

A materialidade do campo e as prosas cotidianas

O ponto de partida dos resultados remete à descrição da materialidade do campo, a qual engloba todos os elementos que compõem as estruturas físicas do serviço, desde a arquitetura das salas até os detalhes que as ornamentam, como mobiliário ou decorações festivas. O exercício de atentar às estruturas físicas do serviço de saúde é fundamental se considerado que no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) “as estruturas físicas e os ambientes dos pontos de atenção constituem base operacional fundamental para a garantia da qualidade do cuidado e das relações usuários-equipes-territórios” (Ministério da Saúde, 2013aMinistério da Saúde. (2013a). Manual de estrutura física dos Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento: Orientações para elaboração de projetos de construção de CAPS e de UA como lugares da atenção psicossocial nos territórios. Brasília, DF. Recuperado de https://bit.ly/2Kz28yY
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, p. 5). Não obstante, considerada a marcante arquitetura dos hospícios, entende-se que o ambiente dos serviços substitutivos cumpre também a função de superar imaginariamente as instituições asilares. Bachelard (2000Bachelard, G. (2000). A poética do espaço. São Paulo, SP: Martins Fontes.) entende que todo espaço não se resume ao dado geométrico, sendo assim dotado de virtudes próprias, verdadeiros elementos que revelam modos de habitar.

Que modos de habitar revelam as materialidades do campo pesquisado? O seguinte excerto do diário de campo pode nos dar o ponto de partida para essa questão:

A entrada para o espaço onde está alojada a equipe de saúde mental fica literalmente nos fundos de uma unidade básica de saúde ... murais ostentam cartazes que alertam para a prevenção e diagnóstico de dengue, tuberculose e AVC. Também ali é possível encontrar uma surrada estante de alumínio onde estão antigos exemplares de revistas aleatórias. Tal organização me faz lembrar dos ambientes de espera de salões de cabeleireiro, onde quase sempre se encontram revistas velhas cuja única função é ser folheada como modo de passar o tempo. (Diário de Campo)

Deste excerto, um primeiro ponto de análise possível remete ao forte atravessamento que o serviço pesquisado sofre das concepções clínicas de saúde. Tanto o fato arquitetônico de estar, literalmente, aos fundos de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), quanto sua decoração marcada pela presença de cartazes preventivos e diagnósticos, são materiais indicativos do modo como a saúde mental é permeada pela noção de saúde clínica (tradicional) - o que será detalhado posteriormente na discussão em torno das práticas e manejos dos profissionais.

Outro ponto de destaque remete ao devaneio suscitado pelo contato visual com o espaço do serviço. Não parece acaso que a estante e suas revistas velhas tenham remetido a um salão de cabeleireiros - ambiente no qual o trabalho é realizado, por excelência, de maneira individualizada, com hora marcada e atendimento personalizado. O serviço pesquisado, em oposição àquilo que se espera de um Caps, não conta com um espaço passível de ofertar aos usuários a chamada ambiência. Desse modo, a permanência dos usuários se faz de maneira mais engessada, tal qual os salões de beleza onde revistas são folheadas para que o tempo passe. Esse fato, ainda que descreva em partes a realidade do serviço, não chega a ser representativo do modo como são conduzidos o tratamento e o cuidado dos usuários, pois, como o psicanalista Otto apontou certa vez:

Tem muito Caps que não tem cara de Caps, que são verdadeiros ambulatórios, focados somente em atendimentos individuais… Aqui, mesmo sem ser um Caps, sem contar com o que esse serviço conta, a gente consegue fazer muita atividade em grupo, ações coletivas tal qual o que se espera de um Caps”. (Otto - Diário de campo)

O trabalho convida o grupo a superar suas próprias limitações físico-espaciais. Muito embora não seja um Caps, a equipe de saúde mental, como aponta Otto, busca garantir atividades não ambulatoriais aos seus usuários. De acordo com Rhéaume (2018Rhéaume, J. (2018). Reconstruir o sujeito político no trabalho: Uma visão alternativa no mundo contemporâneo do trabalho. In I. F. Ferrari & J. L. Ferreira Neto (Orgs.), Políticas públicas e clínica: Estudos em psicologia e psicanálise (pp. 21-40). Belo Horizonte, MG: PUC Minas.), o mundo contemporâneo demanda do sujeito trabalhador um exercício criativo não limitado à produção técnica. Quando criativo, o trabalhador torna-se parte de um projeto democrático que colabora com o progresso científico de sua comunidade, sendo, assim, um ator político. Nota-se que diante das limitações estruturais, passíveis de se tornarem justificativas para a ambulatorização do dispositivo terapêutico, o psicanalista posiciona-se como ator político a fim de garantir o exercício adequado de seu fazer. Desse modo, mesmo uma estrutura semelhante ao modelo clínico-individual-privado não será garantia - ou razão - de um trabalho desconectado da proposta do convívio entre usuários em espaços coletivos de ação.

A sala de equipe, por sua vez, trouxe elementos de análise vinculados ao discurso dos profissionais. A partir das prosas cotidianas foi possível apreender o modo como os psicanalistas percebiam elementos de sua prática, em especial sobre como reconhecem a psicanálise inserida na saúde mental pública. Em certa ocasião os psicanalistas conversavam na sala de equipe sobre o texto que escreveriam a convite de uma instituição psicanalítica. O escrito deveria cumprir a função de apresentar o serviço de saúde em questão, bem como o trabalho que nele desenvolvem:

Em tom anedótico, Otto me fala que ele e Virgínia poderiam escrever longamente sobre o serviço e trazer elementos políticos disso, no entanto desacredita nessa abordagem por julgá-la desinteressante aos psicanalistas daquela instituição. Conta que seu desejo era escrever um texto onde relacionaria a história de vida de uma paciente do serviço a certas práticas de tortura comuns na ditadura militar brasileira, mas que não poderia fazê-lo por falta de tempo.... Assim, ambos os psicanalistas optaram por uma apresentação mais geral de um caso clínico. (Diário de campo)

O estudo de Moscovici (1978Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) sobre a representação social da psicanálise revela importantes elementos acerca do modo como a teoria e a clínica psicanalíticas eram concebidas popularmente na França, e são vigentes muitos de seus achados, em especial aqueles que explicam a forma como psicanalistas publicizam seus saberes. Um dos pontos identificados por Moscovici (1978)Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . diz respeito à “recusa da divulgação”, entendida como a tendência de acreditar que a psicanálise, quando amplamente divulgada, corre o risco de vulgarizar seus conceitos, convertendo-os em discursos cotidianos da sociedade na qual se insere. As conclusões de Moscovici (1978)Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . alinham-se ao apontamento de Strachey (1996Strachey, J. (1996). Artigos sobre técnica - Introdução do editor inglês. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 93-96). Rio de Janeiro, RJ: Imago.) acerca da relutância de Freud em publicar materiais que pormenorizassem seu modo de atuar clinicamente, entendendo que tais estudos poderiam colaborar com as resistências de futuros pacientes que os lessem.

Sabe-se, no entanto, que a psicanálise pôde divulgar-se ao longo do tempo - contrariando os receios de Freud - a tal ponto que seu dialeto é hoje recorrente no discurso cotidiano da saúde mental (Figueiredo, 2001Figueiredo, A. C. (2001). O que faz um psicanalista na saúde mental. In M. T. Cavalcanti & A.T. Venancio (Orgs.), Saúde mental: Campo, saberes e discursos (pp. 73-81). Rio de Janeiro, RJ: Ipub.; Lerner, 2006Lerner, R. (2006). A psicanálise no discurso de agentes de saúde mental. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Sendo assim, qual a razão para que os psicanalistas não apresentassem, conforme solicitado, o serviço de saúde em que atuam? As palavras de Otto sugerem uma resposta inicial para tal questão, pois afirma que o serviço parece “desinteressante aos psicanalistas daquela instituição”. Esse fato se torna ainda mais nítido quando, em seguida, Otto revela já ter abandonado a segunda alternativa que havia cogitado para o texto a ser produzido: um debate que alinharia a clínica psicanalítica e a história do Brasil. Assim, ambas as ideias de uma produção escrita que tensionariam os preceitos psicanalíticos são adotadas em detrimento do caso clínico - modalidade textual bastante tradicional na comunidade psicanalítica.

Turriani et al. (2018Turriani, A., Dunker, C., Kyrillos, F., Neto, Lana, H., Reis, M. L., Beer, P., Lima, R. A., & Bertanha, V. (2018). O caso clínico como caso social. In V. Safatle, N. Silva Jr. & C. Dunker (Orgs.), Patologias do social: Arqueologia do sofrimento psíquico (pp. 59-79). Belo Horizonte, MG: Autêntica.) apontam que na tradição psicanalítica, o caso clínico é tomado como uma estratégia em torno da qual é possível demarcar e reconstruir estruturas teóricas. Na medida em que traz questões sociais da época em que é escrito, revelando modos de sofrimento vigentes com os quais se depara no processo terapêutico, todo caso clínico é, de acordo com os autores, um caso social. Otto e Virgínia, no entanto, abandonam duas ideias que inegavelmente fariam ecoar a noção de caso clínico como caso social, justificando-se pelo suposto desinteresse dos colegas e, em seguida, pela falta de tempo que dispunham para tal. Optar pela apresentação de um caso clínico sem dissertar sobre a realidade do campo a partir do qual falam, apresentando tão somente a matriz terapêutica que pouco varia em comparação à clínica tradicional, faz que os psicanalistas se oponham ao grande potencial do caso clínico na saúde pública que permite “construções epistemológicas que trazem o novo e o incongruente para a mesa”, construções estas que possibilitam “relações entre a práxis e o campo social” (Turriani et al., 2018Turriani, A., Dunker, C., Kyrillos, F., Neto, Lana, H., Reis, M. L., Beer, P., Lima, R. A., & Bertanha, V. (2018). O caso clínico como caso social. In V. Safatle, N. Silva Jr. & C. Dunker (Orgs.), Patologias do social: Arqueologia do sofrimento psíquico (pp. 59-79). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 78).

Entendemos que a razão para o abandono da construção de um caso clínico voltado ao campo social remete à certa atualização da “recusa da divulgação” apontada por Moscovici (1978Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), dessa vez enriquecida pelas complexidades de um campo não tradicional na comunidade psicanalítica. Isso ocorre porque quando um psicanalista, enquanto técnico da saúde mental, se põe a pensar sobre sua prática nesse campo, depara-se com a necessidade de assumir a transformação parcial daquilo que ele próprio espera da técnica e da ética psicanalíticas. Otto e Virgínia optam por desenvolver um texto que não priorize o debate acerca das dinâmicas da saúde pública e seus aspectos sócio-históricos, porque sentem a impossibilidade de se fazerem entender por um público que não compartilha da mesma condição de trabalho vivencialmente. A tarefa explícita de apresentar o próprio serviço traz, em anexo, o dever latente de revelar as transformações técnicas e éticas que são operadas no cotidiano da saúde mental; tarefa para a qual “falta tempo”.

O cotidiano, segundo Heller (1989Heller, A. (1989). O cotidiano e a história. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), diz respeito a um campo do qual emergem, paradoxalmente, transformações nas habilidades humanas e, também, em que pode ser fomentada mais facilmente a alienação do sujeito. Portanto, é na ação cotidiana - mesmo naquela exercida e explicitada nas prosas de uma sala de equipe - que as estruturas psicanalíticas podem ser transformadas ou estancadas na saúde pública. Para superar esse estancamento das transformações no cotidiano, caberá ao técnico-psicanalista buscar aquilo que Heller (1989)Heller, A. (1989). O cotidiano e a história. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. chamou de “condução da vida”, prática que “supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade” (p. 40). Veremos, na sessão a seguir, outro ponto do cotidiano que também sugere transformações e, muitas vezes, exige a imposição de uma personalidade - ou estilo - por parte do analista: o campo técnico e ético.

Técnicas e éticas nas práticas e manejos

Discutir técnica e ética é discutir o que faz um psicanalista. No mesmo sentido, analisar as formas como são operados estes dois elementos na saúde mental em ações não ambulatoriais de atendimento é também analisar o que faz um psicanalista quando inserido na saúde mental pública. Um possível caminho de análise do binômio técnica-ética poder ser trilhado a partir do relato pessoal de quem as pratica. Sendo assim, tomaremos a fala de Virgínia como nosso ponto de partida. Ao ser questionada sobre o contraste entre atividades grupais da saúde mental e clínica clássica, a psicanalista responde:

Eu entendo que na técnica tem diferenças.... Em termos de ética eu acho que não tem diferença. Tu vai tá olhando sob a mesma ética. Não se trata de tu tá dizendo o que a pessoa tem que fazer, direcionando. É questão de poder respeitar a questão do sujeito ali, do desejo também. Em termos de ética não vejo diferenças, mas da técnica tem diferenças. (Entrevista complementar)

A tese de Virgínia é explícita: no contraste entre clínica privada e práticas coletivas da saúde mental, técnica é o elemento mutável, enquanto ética passa a ser o ponto de constância. No entanto, foi possível acessar situações que contrariam a percepção da psicanalista ao ponto de desenvolvermos a ideia de que não somente ambos operadores mudam quando na saúde mental pública a ética parece transformar-se de maneira mais notável do que a técnica. Comecemos tal discussão a partir das questões que envolvem a técnica psicanalítica.

Garcia-Roza (2009Garcia-Roza, L. A. (2009). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) sugere que, em seus primórdios, a técnica psicanalítica passou por transformações que remetem diretamente ao objetivo clínico da psicanálise. Se no princípio Freud fazia uso do método catártico, desenvolvido por Breuer, a partir do qual se buscava acessar a cena traumática colocando o paciente em estado hipnótico, no transcorrer de sua prática se depara com as defesas do paciente - que mais tarde viriam a ser chamadas de recalcamento. O encontro com o recalcamento enseja um novo objetivo clínico que não mais se restringia em produzir a ab-reação, mas sim em tornar conscientes certos produtos para, posteriormente, elaborá-los. No trabalho dos psicanalistas pesquisados não foram observadas diferenças técnicas substanciais em comparação ao trabalho freudiano pós-descoberta do recalcamento. Assim, foram preservados manejos técnicos bastante semelhantes ao que se espera do setting individual. O exemplo a seguir apresenta certa atividade grupal na qual uma das participantes relata ter cuidado sozinha de sua mãe, a despeito dos irmãos, o que a faz se perceber descuidando de si mesma:

A usuária se coloca a chorar e diz “eu não quero ser igual a eles, eu não quero mais nada disso, eu vou cuidar dela, mas é só, eu quero viver a minha vida”. A psicanalista escuta com semblante acolhedor, por vezes balançando a cabeça como se quisesse concordar em gestos. Dessa forma, intervém “me parece que tu tá sofrendo por tentar fazer algo que teus irmãos não fazem. . . mas tu não é o outro”. (Diário de campo)

Fiorini (2004Fiorini, H. (2004). Teoria e técnica de psicoterapias. São Paulo, SP: Martins Fontes .) - psicanalista argentino - dedica parte de sua obra a discutir as distintas verbalizações feitas por profissionais durante o setting de tratamentos psicoterápicos. Sem tomar a interpretação do inconsciente como via única de verbalização, o autor apresenta outros tipos de intervenção verbal que, de acordo com sua pesquisa, ocorrem em todas as abordagens que se proponham ao tratamento do psiquismo. Nesse sentido, além da interpretação propriamente dita, a intervenção de Virgínia apresenta matizes daquilo que Fiorini (2004)Fiorini, H. (2004). Teoria e técnica de psicoterapias. São Paulo, SP: Martins Fontes . nomeia assinalamento. Pode ser chamada de assinalamento toda intervenção que estimule o analisando a desenvolver uma nova maneira de perceber sua própria experiência (Fiorini, 2004Fiorini, H. (2004). Teoria e técnica de psicoterapias. São Paulo, SP: Martins Fontes .). Quando Virgínia aponta para o sofrimento em exercer o cuidado que os demais não exercem, alteram-se os dados que a usuária havia trazido. A queixa expressa em não querer ser como os irmãos dá lugar à possibilidade de que seu sofrimento advenha das ações que realiza para garantir a diferença. Em outras palavras, o assinalamento garante que a queixa trazida pela usuária se transforme em questão sobre si mesma, responsabilizando-a eticamente por seu sofrimento. A interpretação, por sua vez, é a intervenção direcionada a qualquer produção do inconsciente que traga a marca do conflito defensivo, visando, assim, a apresentação do sentido latente de uma fala (Laplanche & Pontalis, 2001Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes .), podendo ser identificada no momento em que Virgínia diz à usuária que ela não é o outro.

Baseando-se na premissa freudiana de delimitação da prática psicanalítica a partir das noções de transferência e resistência, Birman (2014Birman, J. (2014). Arquivo e memória da experiência psicanalítica: Ferenczi antes de Freud, depois de Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.) delineia a ideia de que a técnica é o que há de mais variável na clínica psicanalítica; ela pode ser pensada como um ponto de grande plasticidade justamente por ser a resultante de exigências teóricas definidas pela estrutura conceitual e orientação metodológica da psicanálise. Sendo assim, toda técnica é possível no contexto de uma análise desde que se encontre compatível com as exigências fundamentais do método psicanalítico, sem perder de vista a singularidade do desejo do analisante, expresso nas marcas de sua história recriada no espaço analítico.

Notemos: afirmar a técnica como o elemento mais plástico da psicanálise não é o mesmo que dizer que entre setting privado e saúde mental pública a técnica é o elemento mutável. Se existem transformações na técnica psicanalítica quando no campo da saúde mental isso ocorre muito mais em função de algo que é imanente à psicanálise do que pelas especificidades dos espaços coletivos. Em outras palavras, a técnica é naturalmente capaz de transformar-se, logo, independentemente do campo no qual é praticada, ela apresentará divergências consigo própria. Como aponta Figueiredo (2008Figueiredo, L. C. (2008). Presença, implicação e reserva. In L. C. Figueiredo & N. Coelho Jr., Ética e técnica em psicanálise (pp. 13-54). São Paulo, SP: Escuta.), é impossível estabelecer um conjunto fechado e definitivo em torno da técnica, pois essa se constrói dialeticamente com a teoria, o que acaba por manter em contínuo estado de abertura as definições tanto dos procedimentos quanto das metas de uma análise e, por essa razão, “a ética se mantém, enquanto as técnicas podem e devem variar” (Figueiredo, 2008Figueiredo, L. C. (2008). Presença, implicação e reserva. In L. C. Figueiredo & N. Coelho Jr., Ética e técnica em psicanálise (pp. 13-54). São Paulo, SP: Escuta., p. 48). Em outras palavras, a ética seria o ponto de constância - como apontou Virgínia - no qual se baseariam as alterações técnicas.

A ética da psicanálise, por sua vez, ganha caráter conceitual a partir de Lacan (1959-1960/2008)Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . que a compreende como “a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida” (p. 366). A ideia de uma ética relacionada à tragédia é desenvolvida a partir de uma análise alegórica de Antígona, de Sófocles. Na peça teatral, Antígona luta pelo direito de sepultar o irmão Polinices, o que o então governante de Tebas, Creonte, havia vetado. Como explica Furtado (2013Furtado, D. B. (2013). Antígona e a ética da psicanálise: Notas sobre o Seminário 7. Reverso, 35(65), 31-37.), a luta mortal de Antígona em oposição à ordem de Creonte revela a dimensão de seu desejo do qual absolutamente não abre mão, um desejo que vai além da lei familiar e dos direitos do morto, um desejo levado às últimas consequências. Lacan (1959-1960/2008)Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . sugere, portanto, que assim como a protagonista de Sófocles se responsabiliza diretamente por suas ações diante do interdito de Creonte, o sujeito em psicanálise é convidado a se responsabilizar por seu desejo inconsciente.

Nesses termos, é fundada uma nova orientação ao trabalho analítico: fazer com que o analisante interrogue a si próprio em relação ao seu desejo. “Agiste conforme o desejo que te habita?” (p. 367) é a pergunta de Lacan (1959-1960/2008)Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .. Ao questionar o sujeito sobre seu desejo, a ética psicanalítica revela um compromisso: o de não decidir pelo sujeito. Nesse sentido, entendemos porque ética e técnica entrelaçam-se: a ética por si mesma se revela em atos, isto é, na prática. O manejo técnico, portanto, é o que materializa a ética.

Todavia, no contexto das práticas dos psicanalistas, foi possível deparar-se com diversas intervenções e manejos que não poderiam ser definidos como materializadores de uma ética propriamente psicanalítica, uma vez que não objetivavam fazer o sujeito interrogar-se, mas, em vez disso, atribuíam respostas prontas, superando tanto a concepção de um desejo vazio por parte do analista quanto a ideia uma postura reservada. Tomemos como exemplo o seguinte excerto do diário de campo:

A usuária Vera conta para o grupo que alguns de seus cachorros foram diagnosticados com leishmaniose, um deles chegando a morrer. Recentemente fez exames, pois tem sentido alguns sintomas que podem indicar também estar com a doença. Parece conformada, embora entristecida com o fato. Virgínia se coloca a fazer diversas questões sobre os cuidados que tem tomado e sobre a possibilidade de sua casa ter foco de mosquitos. Orienta, em seguida, que busque auxílio da vigilância sanitária do município.

Muito se diz que no campo da saúde pública há grande presença de certo paradigma ético direcionado ao cuidado. A ideia de cuidado em saúde é parte constituinte da política de humanização do SUS por meio da qual se almeja garantir práticas menos prescritivas e mais conectadas ao sofrimento e afetos do sujeito que adoece (Lopes, Rodrigues & Barros, 2012Lopes, D. D., Rodrigues, F. D., & Barros, N. D. V. M. (2012). Para além da doença: Integralidade e cuidado em saúde. Psicologia em Pesquisa, 6(1), 68-73. Recuperado de https://bit.ly/39FeUK8
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). Nesse sentido, a matriz de uma ética do cuidado se encontra na consciência de que na vida em sociedade as pessoas estão conectadas, sendo, portanto, responsáveis umas pelas outras (Zoboli, 2004Zoboli, E. L. C. P. (2004). A redescoberta da ética do cuidado: O foco e a ênfase nas relações. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 38(1), 21-27. doi: 10.1590/S0080-62342004000100003
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). De todo modo, uma ética direcionada ao cuidado, ao mesmo tempo em que visa garantir a humanização do trabalho em saúde, pode vir a entrar em conflito com o que se espera de uma ética direcionada ao desejo e ao inconsciente manifesto de um usuário.

De acordo com Costa-Rosa (2011Costa-Rosa, A. (2011). Ética e clínica na atenção psicossocial: Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan. Saúde e Sociedade, 20(3), 743-757. doi: 10.1590/S0104-12902011000300018
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), a ética do cuidado é costumeiramente apresentada no campo da saúde mental como oposição à ética manicomial. Todavia, o reconhecimento do sofrimento, alinhado à consciência de responsabilidade social e postura empática com a mazela clínica, compõem, inevitavelmente, na visão do autor, uma postura de objetificação do outro. O cuidador passará a exercer uma posição dotada de saber científico que, mesmo imbuído de compaixão, irá inclinar-se sobre o outro enquanto desprovido de saber e, por isso, demandante de um cuidado que é incapaz de exercer (Costa-Rosa, 2011Costa-Rosa, A. (2011). Ética e clínica na atenção psicossocial: Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan. Saúde e Sociedade, 20(3), 743-757. doi: 10.1590/S0104-12902011000300018
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) - fato apreensível no excerto relativo à prática de Virgínia e também presente em muitas atividades de Otto, que por vezes se valeu de seu saber científico para orientar o comportamento de usuários diabéticos, idosas com fraquezas musculares e, até mesmo, o adequado preparo de determinados alimentos.

Temos nestes casos o exercício prático daquilo que a materialidade do campo já havia revelado: o imperativo da saúde clínica que atravessa o serviço de saúde mental. O que nos havia denunciado a arquitetura do espaço físico passa a ser representativo de um elemento que extrapola as materialidades para adentrar nos exercícios clínicos. Na saúde pública o psicanalista é contratado por sua formação de base, ficando assim diante de uma cisão ética, pois se de um lado põe em prática uma ética do desejo, por outro lado também necessita responder com base em um código de ética oriundo de sua profissão. Nesse sentido, a ética do cuidado, que compõe os serviços da saúde pública, forma compromisso, isto é, alia-se à impossibilidade de haver um psicanalista plenamente voltado ao inconsciente.

Pode-se dizer, até o momento, que o psicanalista, diante das características do serviço de saúde mental, exercita a combinação de duas éticas, visto que se encontra ora direcionado ao sujeito do inconsciente, ora ao indivíduo adoecido demandante de orientações técnico-científicas. O equilíbrio e a coexistência de duas éticas é o que garantem uma clínica mais integral e conectada à premissa freudiana de uma psicanálise amalgamada a outros materiais que não apenas seu “puro ouro”. Essa ética combinada incide sobre a técnica psicanalítica que sempre foi destinada a se transformar. No entanto, a partir das práticas psicanalíticas observadas foi possível delinear a existência de uma terceira ética: a ética da intersubjetividade.

O tear psicanalítico e a ética da intersubjetividade

No contexto das atividades grupais conduzidas pelos psicanalistas eram frequentes intervenções de caráter integrativo entre as falas dos usuários. O contínuo exercício de fazer as narrativas de sofrimento se entrelaçarem parecia cumprir a tarefa de fazer a palavra circular em caráter permanente. No entanto, a potência das costuras integrativas somente foi de fato percebida após a observação de um grupo terapêutico acontecendo na ausência do psicanalista. Naquela ocasião, Otto não pôde estar presente em função de certas demandas extras no serviço. O grupo foi então conduzido por suas supervisionandas. No diário de campo daquele dia foi realizado o seguinte apontamento:

Na ausência do psicanalista é como se as falas não fossem consideradas em sua qualidade de entrelaçamento. A fala de Otto parecia funcionar como um tear que cruza e trama as linhas em prol da construção de um único objeto oriundo de lados opostos. Um discurso intersubjetivo.

Sabe-se que todo conhecimento científico - independente da base epistemológica - visa a explicação de fenômenos e eventos. Dentro da linguagem científica, existem diversos modos possíveis de se realizar a tarefa explicativa, sendo a elaboração de modelos um dos recursos mais utilizados, inclusive no cenário psicanalítico. O modelo é uma criação destinada a representar uma realidade, visando torná-la descritível e observável (Sayão, 2001Sayão, L. F. (2001). Modelos teóricos em ciência da informação - Abstração e método científico. Ciência da Informação, 30(1), 82-91. doi: 10.1590/S0100-19652001000100010
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). Nesse sentido, entendemos que a costura intersubjetiva realizada pelos psicanalistas pode ser representada, tal qual o assinalamento do diário de campo, a partir do modelo do tear.

O tear diz respeito a uma estrutura mecânica destinada à fabricação de malhas que possui distintos graus de complexidade variáveis de acordo com o nível de manualidade que exigem do tecelão. Contudo, todo tear está subordinado ao mesmo princípio: o contínuo exercício de entrelaçamento entre duas ou mais linhas. Para a presente modelagem, tomaremos como referência o tear de pregos que possui todos os elementos básicos desse artefato de costura. O tear de pregos (Figura 1) é composto por: (A) uma moldura geral que comporta pregos enfileirados em duas de suas extremidades; e (B) a linha de base que diz respeito a uma linha contínua, organizada em carreiras e disposta ao redor de cada prego, realizando movimentos de zigue-zague de uma extremidade a outra da moldura geral. É na linha de base que serão tramadas as linhas subsequentes.

Figura 1
Tear de pregos.

Para a realização da trama (Figura 2) no tear de pregos, faz-se necessário a utilização de dois instrumentos básicos, a saber, (C) a régua e/ou (D) a navete. A régua é o objeto que atravessa a linha de base, intercalando as carreiras sobre e sob si própria. Dessa forma, ela abre caminho para que a navete atravesse livremente a linha de base. Esta é como um suporte em torno do qual (E) as linhas da trama são enroladas e, subsequentemente, conduzidas entre a linha de base, formando a malha.

Figura 2
Trama.

Cada parte desse modelo corresponde a um elemento que compõe a prática da psicanálise nas modalidades não ambulatoriais de atendimento da saúde mental, sobretudo nas ações e intervenções coletivas. Podemos dizer que no tear, a moldura geral corresponde ao serviço de saúde mental no qual trabalho é desenvolvido - o CAPS, o Consultório na Rua, o Serviço de Residencial Terapêutico ou, nesse caso, a Equipe de Saúde Mental. Ela é como o espaço que abriga os técnicos e os usuários. Nesse caso, a linha de base, organizada ao redor da moldura do tear, passa a funcionar como a base discursiva da saúde pública e da saúde mental, isto é, o conjunto de diretrizes e saberes que estruturam os serviços desde a reforma psiquiátrica. Ela organiza os cotidianos e garante a ética do cuidado. Até a Figura 1, portanto, temos o campo da saúde mental pública propriamente dito que,enquanto tão somente campo de ação, independe da presença do psicanalista para existir. A psicanálise surge justamente na Figura 2, quando o tear entra em ação, abandonando a condição de substantivo para adentrar no devir de um verbo no infinitivo.

Tanto a régua quanto a navete podem ser compreendidas como o discurso psicanalítico ou a prática da psicanálise. Enquanto régua, o psicanalista atravessa as linhas de base da saúde mental pública, faz furos e nas brechas encontra seu lugar. Sua técnica não protocolar, bem como sua presença reservada, materializada por uma ética voltada ao desejo e à singularidade do sujeito, trazem novos modos de acolher e intervir. Como apontou Otto, a escuta psicanalítica na saúde pública transmite uma função alteritária ao serviço e seus trabalhadores:

A ideia da escuta é, num primeiro momento, ajudar as pessoas a terem empatia pelo outro. Não é escutar o inconsciente. Não precisa ser. Pode ser uma prática de TCC. Uma terapia de resolução de problemas, uma terapia de intervenção breve, mas que tu esteja preocupado com o outro. Com o que ele quer. Com o que o anima e não com aquilo que tu acha que ele deveria querer. Esse é o impasse que eu acho que tem na saúde pública e até nas equipes de saúde mental.... Com o tempo vai ficando mais claro pras pessoas que não adianta querer que uma pessoa não tenha o sintoma que tem. (Entrevista complementar)

Se por um lado a régua abre fendas nos saberes da saúde mental pública, trazendo novos discursos e entendimentos sobre o usuário, a navete passa a ser a função que, diante das aberturas fabricadas, conduz e introduz o discurso dos usuários nos serviços, fruto de suas subjetividades. Ela é o suporte que organiza e trama as narrativas de sofrimento de cada sujeito aos contextos e dinâmicas dos serviços. Desse modo, o discurso do usuário passa a ser representado pelas linhas da trama, as quais estão fora da moldura geral, mas que precisam se integrar a esta para que o ato de tear aconteça.

Diante do modelo do tear psicanalítico, temos a representação gráfica de como a ética da intersubjetividade é inaugurada - a qual se faz, necessariamente, sobre a trama entre ética do cuidado e ética do desejo. Na terceira ética, temos um exercício de intersubjetividade, isto é, de construção coletiva, que começa no intersubjetivo da relação entre psicanalista e serviço de saúde mental e é concluído na intersubjetividade que se estabelece entre usuários e trabalhadores.

De acordo com Coelho Jr. e Figueiredo (2012)Coelho N., Jr., & Figueiredo, L. C. (2012). Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: Dimensões da alteridade. In N. Coelho Jr., P. Salem, & P. Klautau (Orgs.), Dimensões da intersubjetividade (pp. 19-35). São Paulo, SP: Escuta ., em psicanálise, a noção de intersubjetividade tem sido amplamente trabalhada, tanto na perspectiva intrapsíquica - aquela que se direciona ao plano dos objetos internos e, portanto, dona de efeitos que não ocorrem na realidade externa - como a partir da intersubjetividade enquanto um fenômeno natural no hic et nunc do processo analítico. Dentro da perspectiva interna ao trabalho de um psicanalista, talvez seja a noção de terceiro analítico, de Thomas Ogden, um dos exemplos mais marcantes de intersubjetividade.

Pitanguy (2009Pitanguy, L. (2009). As dimensões do ser. In G. C. Pinto (Org.), Psicanalistas contemporâneos (Col. Memória da Psicanálise, pp. 76-83). São Paulo, SP: Duetto.) explica que, em Ogden, o terceiro analítico trata-se de uma criação conjunta entre analista e analisando, confeccionada pelos pensamentos de ambas as partes. O terceiro analítico parte da premissa de que o sujeito pensa os pensamentos do outro, pois o pensamento não é uma propriedade exclusiva, mas sim uma construção intersubjetiva, sendo, portanto, o terceiro analítico um “narrador inconsciente que faz ecoar vozes intersubjetivas e histórias” (Pitanguy, 2009Pitanguy, L. (2009). As dimensões do ser. In G. C. Pinto (Org.), Psicanalistas contemporâneos (Col. Memória da Psicanálise, pp. 76-83). São Paulo, SP: Duetto., p. 82). A concepção de Ogden (2013)Ogden, T. (2013). Reverie e interpretação: Captando algo humano. São Paulo, SP: Escuta . é radical quando afirma que tanto o psicanalista quanto o analisando o são a partir do ato de criação do terceiro analítico, sendo inexistentes na ausência da relação intersubjetiva.

Poderíamos dizer que se o terceiro analítico é uma construção intersubjetiva, e o psicanalista se sustenta pela criação desse terceiro. Ser um analista e conduzir uma análise é, portanto, fomentar a intersubjetividade, sendo esta uma posição ética. Logo, a ética da intersubjetividade reside na práxis de um psicanalista que conduz o encontro até que se forme algo que não existia. Como afirma Coelho Jr. (2008Coelho, N, Jr. (2008). Formas de comunicação e intersubjetividade em psicanálise. In L. C. Figueiredo & N. Coelho Jr., Ética e técnica em psicanálise (pp. 123-141). São Paulo, SP: Escuta.), a intersubjetividade do terceiro analítico está além de uma relação entre sujeitos, sendo, no lugar disso, a elaboração de um novo sujeito.

O novo sujeito criado pela prática da psicanálise nas modalidades não ambulatoriais da saúde mental é justamente a malha, ou seja, o produto do enlace do tear. A subjetividade de cada usuário, conduzida pela navete psicanalítica, mistura-se à subjetividade do analista que se faz parte atuante e constitutiva do novo sujeito. Entendemos assim que, diante da história de uma saúde mental brasileira que se funda e consolida a partir da mobilização de trabalhadores e usuários, o novo sujeito é a política. A reforma psiquiátrica, enquanto movimento de superação de estigmas, preconceitos e maus-tratos de modelos terapêuticos desumanizados, é a malha que a ética da intersubjetividade tece.

A política penetra a prática até que a prática se faz política

Sabe-se que a reforma psiquiátrica brasileira é oriunda de um conjunto de movimentos sociopolíticos, iniciados pela crítica à psiquiatria higienista nos anos 1970, que visam a transformação dos modelos de cuidado à saúde mental. O modelo prínceps de tratamento, que se pautava no isolamento do louco em manicômios, é então superado pelo princípio de recuperação dos vínculos sociais e da produção de subjetividade, outrora excluídos em devido à doença mental (Amancio, 2012Amancio, V. R. (2012). Uma clínica para o CAPS: A clínica da psicose no dispositivo da Reforma Psiquiátrica a partir da direção da psicanálise. Curitiba, PR: CRV.). É justamente a partir da concepção de desinstitucionalização que a reforma psiquiátrica viabiliza a criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico (Hirdes, 2009Hirdes, A. (2009). A reforma psiquiátrica no Brasil: Uma (re)visão. Ciência & Saúde Coletiva, 14(1), 297-305. doi: 10.1590/S1413-81232009000100036
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), serviços estes que preconizam práticas não ambulatoriais de atendimento.

Todavia, Amarante (2013Amarante, P. (2013). Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.) lermbra que a reforma psiquiátrica diz respeito a uma luta política não reduzida ao processo de reestruturação de serviços: embora o oferecimento de serviços substitutivos tenha tido grande relevância para a transformação dos manicômios, é preciso ter em mente que o objetivo principal se encontra ainda na superação de uma lógica exclusivamente biomédica a partir do reconhecimento da saúde mental como um campo complexo, sendo, por isso, um movimento de caráter permanente. Nesse sentido, toda prática da saúde mental, quando verdadeiramente alinhada ao interesse de não submeter o louco à exclusão, atualiza a reforma psiquiátrica enquanto movimento ético-político de cuidado e não de exclusão. As práticas são, assim, penetradas pela história da reforma psiquiátrica ao ponto de elas próprias se tornarem instrumentos políticos, na medida em que realizam a manutenção das conquistas alcançadas até então.

Dentro dos serviços substitutivos criados a partir da reforma, as práticas passam a ser, em última instância, atos políticos, pois tratar o sofrimento psíquico é uma forma de cuidado que visa garantir a permanência e integração dos indivíduos em suas comunidades. Por essa razão, a busca pela promoção de cidadania, manifesta na concessão de benefícios, inserção em atividades laborais e oferta de moradia, é balizadora das práticas da reforma psiquiátrica, uma vez que produz um lugar para o cidadão que sofre.

A psicanálise, por sua vez, quando na saúde mental, não se furta em tecer críticas ao contínuo exercício de promoção de cidadania. De acordo com Rinaldi, Cabral e Castro (2008Rinaldi, D. L., Cabral, L. H., & Castro, G. S. (2008). Psicanálise e reabilitação psicossocial: Limites e possibilidades de articulação. Estudos & Pesquisas em Psicologia, 8(1).), nos atuais dispositivos de saúde mental estão priorizadas práticas de resgate das habilidades sociais que, embora tenham sua relevância, podem facilmente se tornar verdadeiros imperativos de cidadania quando impostas a um usuário que não necessariamente reconhece para si a importância dessa busca. Por isso, Moreira e Kyrillos Neto (2017Moreira, L. R., & Kyrillos, F, Neto. (2017). Dos benefícios sociais na reforma psiquiátrica: Necessidade, demanda e desejo. Revista de Psicologia, 8(2), 110-118.) apontam que a psicanálise inaugura um trabalho complementar aos processos de ressocialização na saúde mental por fazer operar a escuta de um sujeito, o que “não quer dizer extinguir a dimensão social das demandas que se apresentam, mas sobretudo, considerar a apropriação singular que cada usuário faz delas” (Moreira & Kyrillos Neto, 2017Moreira, L. R., & Kyrillos, F, Neto. (2017). Dos benefícios sociais na reforma psiquiátrica: Necessidade, demanda e desejo. Revista de Psicologia, 8(2), 110-118., p. 117), isto é, a responsabilização do sujeito pela própria vida.

Escutar o sujeito é implicá-lo politicamente, não na política do serviço ou do técnico, mas sim em seu próprio desejo. No contexto de um grupo terapêutico constituído por jovens adultos de 18 a 20 anos de idade, Virgínia foi colocada diante de um conjunto de narrativas de sofrimento sobre o futuro político do país. Na aurora do segundo turno das eleições para presidência da república, o grupo narrava suas angústias perante a perseguição às diferenças. Ao comentar as crescentes ondas de machismo, homofobia e racismo, os jovens destacam a necessidade de fazer a revolução e, assim, morrer lutando por liberdade.

Após as falas dos usuários, a psicanalista intervém: “Acho que todos nós vamos ter que pensar no que vai ser feito e, como um de vocês disse, as coisas podem ficar bem interessantes, pois agora estaremos todos juntos. Vocês falavam que se sentem diferentes, a revolução talvez seja uma forma de vermos que temos algo em comum e que sim, vamos precisar lutar. Mas pra isso é importante estarmos vivos. É vivo que se luta”. (Diário de campo)

A intervenção de Virgínia, em um só tempo, enlaça discursos (faz o tear da intersubjetividade dos usuários); enaltece o desejo do sujeito (nesse caso o lutar e fazer a revolução); intervém sobre a pulsão de morte (“estar vivo para lutar” substitui a tendência mortífera de “morrer lutando”); e, por fim, não desimplica a analista da posição de sujeito político, afinal “nós vamos ter que pensar no que vai ser feito... pois agora estaremos todos juntos”. Estar junto na garantia de direitos sem impor suas convicções ao outro, mas, no lugar disso, fomentando um sujeito posicionado em relação ao próprio desejo, é ser agente político.

Checchia (2011Checchia, M. (2011). O inconsciente é a política? Stylus: Revista de Psicanálise, (22), 69-79. doi: 10.31683/stylus.vi22.817
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) argumenta que falar de política é falar de sua articulação com as formas de poder distribuídas em sociedade, o qual é sempre exercido sobre um outro. Teria sido inclusive a partir do uso de poder sobre o outro - nesse caso o poder da sugestão - que Freud teria descoberto o inconsciente. A psicanálise nasce, assim, da busca por um outro manejo das relações de poder. Teríamos, nesses termos, certa proximidade com a máxima de que “o inconsciente é a política” (Lacan, 1966-1967/2008Lacan, J. (2008). A lógica do fantasma, 1966-1967. Recife, PE: Centro de Estudos Freudianos do Recife., p. 350). No entendimento de Ferretti (2011Ferretti, M. G. (2011). Considerações sobre a ética e a política na psicanálise. A peste, 3(1), 69-76.), o aforismo de Lacan refere-se ao fato de que o inconsciente é estruturado pela via do contato com o Outro que introduz o sujeito na linguagem. Este Outro será alvo, segundo Ferretti (2011)Ferretti, M. G. (2011). Considerações sobre a ética e a política na psicanálise. A peste, 3(1), 69-76., de uma tentativa subsequente de separação que tornaria o inconsciente uma instância indomável. Defende-se, assim, que a psicanálise sustenta a noção de que sempre haverá algo impossível de ser governado e que subverte a dominação.

Nesse sentido, a política inaugurada pela psicanálise na saúde mental é justamente a política do sujeito. No contexto de práticas não ambulatoriais, a política do sujeito não se faz individualmente, e sim na construção de espaços de compartilhamento e produção de coletividade. Na já comentada ética da intersubjetividade, o agente político é o encontro entre sujeitos que utilizam o serviço de saúde como espaço promotor de laço social. Este pode ser entendido como parte do trabalho psicanalítico não ambulatorial nas instituições de saúde mental também a partir da expressão cunhada por Jacques-Alain Miller e desenvolvida por Di Ciaccia (1999Di Ciaccia, A. (1999). Da fundação por um à prática feita por muitos. Curinga, (13), 60-65.), Kusnierek (2007Kusnierek, M. (2007). Pertinências e limites da prática entre vários. In J. Miller (Ed.), Pertinências da psicanálise aplicada (pp. 161-166). Rio de Janeiro, RJ: Forense .) e Baio (2007Baio, V. (2007). Invenções do sujeito e de um parceiro na prática entre vários. In J. Miller (Ed.), Pertinências da psicanálise aplicada (pp. 167-173). Rio de Janeiro, RJ: Forense.): a “prática entre vários”.

A reforma psiquiátrica se fez justamente no estabelecimento de laços garantidores da prática entre os vários componentes da saúde mental, isto é, trabalhadores e usuários, fortalecendo a participação dos últimos nas decisões acerca do próprio tratamento - modelo que se alinha perfeitamente à cena psicanalítica de um analisando conduzindo a própria análise. A política de saúde mental perpassa todas as práticas, como o fio de base do tear, até o ponto em que as práticas se convertem em atos políticos. A prática psicanalítica, especificamente, é aquela que se faz política na garantia de um sujeito ativo no próprio tratamento e preparado para responsabilizar-se pelo próprio desejo.

Considerações finais

O presente artigo foi construído a partir da premissa freudiana de que, quando exercida em espaços distintos do setting tradicional no qual foi fundada, a psicanálise faria-se amalgamada a outros manejos que, à primeira vista, não possuem o mesmo brilho de seu puro ouro. Diante disso, optou-se por desenvolver uma pesquisa sob a perspectiva de uma etnografia, considerando a validade da observação etnográfica como instrumento para apreender a amálgama acontecendo em tempo real na saúde mental.

Por meio de excertos do diário de campo, buscamos apresentar o modo como psicanalistas habitam os espaços da saúde pública. Sabe-se que o cotidiano desse serviço não compõe um conjunto de resultados que revela e sistematiza de forma categórica a experiência psicanalítica em equipes de saúde mental. Entretanto, o fato de o presente artigo debruçar-se sobre a singularidade de uma única equipe e nos manejos, também singulares, de somente dois psicanalistas, não inviabiliza que tais experiências possam ser tomadas como ponto de partida para proposições teóricas e conceituais que se tornem resolutivas e representativas de outros serviços e psicanalistas. Apesar de cada serviço e psicanalista possuir suas especificidades e estilos, todos estarão atravessados pelos mesmos elementos essenciais que são a política de saúde mental, oriunda dos movimentos da reforma psiquiátrica, e a ética psicanalítica, condutora das técnicas a serem utilizadas quando diante de um sujeito que narra o próprio sofrimento. Os entendimentos apresentados, portanto, repousam sobre estes elementos.

A proposição do modelo do tear é o ponto de chegada organizador das diversas facetas desse percurso. Nesse modelo, buscamos sintetizar a forma como técnica e ética psicanalíticas interagem com as proposições da saúde mental, as políticas balizadoras do cuidado, e os usuários que chegam ao serviço de saúde mental. Entende-se que todo profissional da saúde integra o tear enquanto estrutura representativa de um espaço que oferta o cuidado em saúde mental. Todavia, quando combinado ao discurso psicanalítico - que não depende da presença de um psicanalista - o tear amplia seu potencial intersubjetivo, passando a cruzar as narrativas dos sujeitos entre si e com aquelas que compõem a política de saúde mental. Assim, ao mesmo tempo em que introduz a dimensão do sujeito que demanda ser escutado para além das definições nosológicas, a psicanálise pode incentivar a ética da intersubjetividade, isto é, uma ética que se alicerça na interlocução entre os vários sujeitos que praticam a saúde mental.

A ética da intersubjetividade é o combustível da saúde mental que produz o encontro coletivo e a implicação do sujeito como parte de um todo. Nela, o psicanalista é parte integrante e ativa do discurso. Ele deixa de ser mais um para se tornar parte constitutiva de um novo sujeito que é a reforma psiquiátrica. Entendemos que o exercício não ambulatorial, expresso nas práticas grupais realizadas nos espaços coletivos, faz do psicanalista um agente político que atualiza continuamente a reforma psiquiátrica ao mesmo tempo em que atualiza a si próprio. Se na amálgama entre ouro e cobre, o último cumpre a função de dar ao ouro mais resistência na confecção de peças, o campo da saúde mental não necessariamente será usurpador da pureza psicanalítica, mas, em vez disso, ocupará a nobre função de tornar o psicanalista um agente mais apto a suportar as transformações de sua clínica que serão, em última instância, as transformações de seu tempo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2019
  • Revisado
    19 Maio 2021
  • Aceito
    06 Jun 2022
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