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Corpo, arte e loucura em Arthur Bispo do Rosário

Body, art and madness in Arthur Bispo do Rosário

Cuerpo, arte y locura en Arthur Bispo do Rosário

Corps, arts et folie chez Arthur Bispo do Rosário

Resumo

Este artigo investiga a relação corpo, arte e loucura na obra de Arthur Bispo do Rosário, pelo referencial teórico psicanalítico freud-lacaniano em diálogo com outros campos do saber, a partir das seguintes interrogações: de que maneira a psicanálise dialoga com a temática da arte? Qual o estatuto da arte na psicose? Como sujeitos psicóticos fazem uso da arte, pela via das invenções, a fim de lidar com o corpo e estabilizar seu sofrimento psíquico? Nesse sentido, traçamos considerações sobre o estatuto da arte na psicanálise, levantamos algumas contribuições histórico-filosóficas sobre a relação entre arte e loucura e apreciamos a obra de Bispo à luz das proposições de Jacques Alain-Miller, com vistas a compreender os modos através dos quais a arte produzida por sujeitos em sofrimento psíquico pode servir de anteparo à loucura e favorecer a forma como eles lidam com seu corpo.

Palavras-chave:
arte; loucura; psicanálise

Abstract

This essay investigates the relations between body, art, and madness in Arthur Bispo do Rosário’s oeuvre based on the Freudian-Lacanian psychoanalytic theoretical reference, in dialogue with other fields of knowledge, drawing on the following interrogations: in what ways does psychoanalysis dialogues with the theme of art? What is the status of art in psychosis? How do psychotic individuals use art, through inventions, to deal with the body and stabilize their psychic suffering? In this regard, this paper discusses the status of art in psychoanalysis, brings some historical-philosophical contributions to the relationship between art and madness, and interprets his work in the light of Jacques Alain-Miller’s propositions, to understand the ways in which the art produced by subjects in psychological distress can serve as a buffer to madness and favor how they deal with their bodies.

Keywords:
art; madness; psychoanalysis

Resumen

Este artículo analiza la relación entre cuerpo, arte y locura en la obra de Arthur Bispo do Rosario, por el referencial teórico psicoanalítico freud-lacaniano en diálogo con otros campos del saber, partiendo de los siguientes interrogantes: ¿De qué manera el psicoanálisis dialoga con la temática del arte? ¿Cuál es el estatuto del arte en la psicosis? ¿Cómo sujetos psicóticos hacen uso del arte, por la vía de las invenciones, a fin de tratar con el cuerpo y estabilizar su sufrimiento psíquico? Para ello, trazamos consideraciones sobre el estatuto del arte en el psicoanálisis, levantamos algunas contribuciones histórico-filosóficas sobre la relación arte y locura y apreciamos la obra de Bispo a la luz de las proposiciones de Jacques Alain-Miller, con miras a comprender los modos a través de los cuales el arte producido por sujetos en sufrimiento psíquico puede servir de amparo a la locura y favorecer la forma de cómo lidian con su cuerpo.

Palabras clave:
arte; locura; psicoanálisis

Résumé

Cet essai étudie les relations le corps, l’art et la folie chez Arthur Bispo do Rosário à partir de la référence théorique psychanalytique freudienne-lacanienne, en dialogue avec d’autres domaines de connaissance, en s’appuyant sur les interrogations suivantes : de quelle manière la psychanalyse dialogue-t-elle avec le thème de l’art ? Quel est le statut de l’art dans la psychose ? Comment les individus psychotiques utilisent-ils l’art, à travers des inventions, pour faire face au corps et stabiliser leur souffrance psychique ? À cet égard, cet article discute du statut de l’art dans la psychanalyse, apporte quelques contributions historico-philosophiques à la relation entre l’art et la folie, et interprète son travail à la lumière des propositions de Jacques Alain-Miller, afin de comprendre comment l’art produit par les sujets en souffrance psychique peut servir de tampon à la folie et favoriser la façon dont ils font face à leur corps.

Mots-clés:
art; folie; psychanalyse

No presente texto, desvelaremos alguns elementos da relação entre corpo, arte e loucura na obra do artista Arthur Bispo do Rosário, a partir do referencial teórico psicanalítico freud-lacaniano, em diálogo com outros campos do saber. Inicialmente, situaremos o estatuto da arte para a psicanálise. Em seguida, apontaremos algumas contribuições histórico-filosóficas no que concerne às interseções entre a arte e a loucura. Na sequência, apresentaremos uma contextualização acerca da obra do artista Bispo, apreciada à luz das proposições do psicanalista Jacques-Alain Miller, com vistas a compreender os modos através dos quais as produções artísticas de sujeitos em sofrimento psíquico podem servir de anteparo à loucura, favorecendo a forma como eles lidam com seu corpo. Por fim, as considerações finais ressaltarão implicações psicanalíticas, filosóficas e estéticas da experiência artística em xeque, apontando outras paisagens para as concepções da loucura.

A psicanálise e a arte: Freud e Lacan

O diálogo da psicanálise com a arte sempre esteve presente na construção da teoria em Freud e Lacan, em diversos momentos de suas elaborações e teses. As referências, citadas em um apêndice que faz parte de um dos volumes da obra de Freud, indicam os estudos consagrados “principalmente ou em grande parte [à] arte, literatura ou teoria da estética” (Freud, 1927-1931/1990Freud, S. (1990). A relação dos trabalhos de Freud que tratam principalmente ou em grande parte de arte, literatura ou teoria da estética. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, p.247). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado 1927-1931), p. 247). Neles são referidas as obras literárias Antígona e Édipo rei (Sófocles), Hamlet (Shakesperare), A dama das camélias (Alexandre Dumas Filho), O Fausto e Os sofrimentos do jovem Werther (Goethe), O homem da areia (Hoffmann), O fantasma de Canterville (Oscar Wilde), Salammbô (Gustave Flaubert), bem como escultura (Moisés, de Michelangelo) e pintura (Leonardo da Vinci) e suas respectivas análises (Autuori & Rinaldi, 2014Autuori, S., & Rinaldi, D. (2014). A arte em Freud: Um estudo que suporta contradições. Boletim Academia Paulista de Psicologia, 34(87), 299-319. Recuperado de https://bit.ly/3NxMIXf
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; Rivera, 2002Rivera, T. (2002). Arte e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .).

Lacan, por sua vez, também construiu sua obra em diálogo com a linguagem artística, notadamente em artigos dedicados às literaturas de James Joyce (Lacan, 2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), Shakesperare (Lacan, 2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 44), André Gide, Marguerite Duras, Edgar Allan Poe e de outros.

Freud (1907/1990Freud, S. (1990). Delírios e sonhos da Gradiva de Jensen. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, pp. 13-98). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1907)) indica-nos que

os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar... [Os escritores] se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (p. 18)

Na elaboração de sua tese em torno da função da arte, Freud coloca no cerne o tema da sublimação. Em Lacan, a abordagem à relação da função da arte avança da sublimação ao sinthoma. Este conceito o possibilita abordar o savoir-faire (saber fazer) do artista ao tratar o Real pelo simbólico, distanciando-se, a partir de então, da noção freudiana de sublimação (Falbo, 2017Falbo, G. (2017). A-bordagens da arte em psicanálise: Sublimação, psicobiografia e sinthoma. Opção Lacaniana Online , (22), 1-13.; Autuori & Rinaldi, 2014Autuori, S., & Rinaldi, D. (2014). A arte em Freud: Um estudo que suporta contradições. Boletim Academia Paulista de Psicologia, 34(87), 299-319. Recuperado de https://bit.ly/3NxMIXf
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). Com o conceito de sinthoma, Lacan inaugura uma nova abordagem na articulação entre psicanálise e arte se afastando das concepções presentes nas psicobiografias (Falbo, 2017Falbo, G. (2017). A-bordagens da arte em psicanálise: Sublimação, psicobiografia e sinthoma. Opção Lacaniana Online , (22), 1-13.; Regnault, 2001Regnault, F. (2001). Em torno do vazio: A arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa .; Recalcati, 2005Recalcati, M. (2005). As três estéticas de Lacan. Opção lacaniana, (42), p. 94-108.).

Na transição entre os séculos XIX e XX, a psicanálise, mormente com Freud e Lacan, a arte, com o cinema e a pintura, e certos expoentes da filosofia, tais como Merleau-Ponty e Michel Foucault, convergiram rumo à zona do irrefletido, do sombrio e do impensado, presentes tanto na experiência estética quanto na loucura e na relação com o corpo.

A arte, a loucura

A partir do século XVII, construiu-se uma consciência histórica da loucura (social e moral). O hospital de loucos e o internamento foram uma sequência do embarque no Navio dos loucos, representado na pintura de Hiëronymus Bosch (Figura 1), demonstrando que se desenhava, então, “uma nova forma de exclusão e de experiência da loucura em um mundo dominado pela ciência e por uma filosofia racionalista” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). La folie n’existe que dans une societé. In M. Foucault, Dits et écrits I: 1954-1975 (pp. 159-167).Paris, FR: Gallimard., p. 196).

Figura 1
Navio dos loucos, de Hiëronymus Bosch (c. 1490-1500)

Foi preciso esperar o século XIX para olhá-la novamente a partir das obras expressivas de Nietzsche, Freud e Vincent van Gogh (Foucault, 1978Foucault, M. (1978). História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, SP: Perspectiva.), embora, naquele momento, os discursos nosológico e anatomopatológico da medicina determinassem a psiquiatria nascente, forçando-a a descrever a loucura como doença, com seus sintomas, evolução e elementos diagnósticos, e a localizá-la no corpo (como o saber médico tinha feito em relação às enfermidades). Era preciso encontrar a verdade da doença mental (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). O poder psiquiátrico: Curso dado no Collège de France (1973-1974). (E. Brandão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.; Sforzini, 2014Sforzini, A. (2014). Michel Foucault: Une pensée du corps. Paris, FR: Puf.).

De todo modo, é no século XIX que as aproximações entre loucura e estética começam a se desenhar de modo mais evidente. C’est un fou!, diziam sobre van Gogh. Um crítico havia declarado que as formas distorcidas e cores berrantes eram “produto de uma mente doentia”. O que era para muitos uma expressão de sua loucura ou uma falta de técnica, para o artista eram “pinturas cheias de pintura”; o louco, na verdade, era um artista excepcional: “Quero pintar o que sinto e sentir o que pinto. O que minha arte é, eu sou também” (van Gogh citado por Naifeh & Smith, 2012Naifeh, S., & Smith, G. (2012). Van Gogh: A vida. São Paulo, SP: Companhia das letras., p. 27).

A história da teorização em torno da relação da arte com a loucura surge a partir do final do século XIX e início do século XX, com os primeiros estudos sobre a produção artística dos alienados. Essas pesquisas partiam do pressuposto de que “o impulso criador era sintoma de degeneração psíquica” (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp., p. 13).

Em 1907, Marcel Réja lançou um dos primeiros estudos sobre a temática, denominado A arte dos loucos. O autor subtraiu a arte dos loucos à redução clínica, transportando-a para o terreno da estética comparada. A tese de Rejá defendia que as produções dos sujeitos em questão seriam uma forma embrionária de arte (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.). Em 1921, Walter Morgenthaler escreveu e defendeu uma monografia sobre seu paciente Adolf Wolfli, fazendo considerações a respeito da doença mental não como um déficit, mas enquanto uma estrutura mental rica, capaz de estimular e fazer emergir a potência artística em seu paciente (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.).

Em 1949, o pintor francês Jean Dubuffet diferenciou a arte de “doentes mentais” da arte em si, “apontando a impossibilidade de se esperar dela um modelo de conformidade e considerando a loucura antes como um fator produtivo, fecundo, necessário para a produção artística.” (Soares, 2000Soares, I. A. (2000). Arthur Bispo do Rosário a arte bruta e a propagação na cultura pós-moderna. Psicologia: Ciência e profissão, 20(4), 38-45. doi: 10.1590/S1414-98932000000400005
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, p. 2). O pintor foi considerado um dos primeiros a demonstrar interesse pela produção artística de pacientes psiquiátricos e “denominou Arte Bruta a estas produções atípicas inventadas a partir somente dos impulsos do artista” (Soares, 2000Soares, I. A. (2000). Arthur Bispo do Rosário a arte bruta e a propagação na cultura pós-moderna. Psicologia: Ciência e profissão, 20(4), 38-45. doi: 10.1590/S1414-98932000000400005
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, p. 2).

Ao investigarmos a construção da história das relações entre arte e loucura na realidade brasileira, localizamos a publicação de Ozório César, de 1929, A expressão artística dos alienados. Ademais, constatamos que, desde a década de 1920, iniciou-se o trabalho com a arte no hospital psiquiátrico do Juqueiri (SP) (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.). Em 1946, a mesma prática foi levada ao Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro Engenho de Dentro (RJ), por Nise da Silveira, que sugeriu a criação de um ateliê de pintura para os internos, contrapondo-se às propostas conservadoras de tratamento psiquiátrico em voga.

Na época, a loucura era tratada com o uso de eletrochoques, sedação medicamentosa excessiva, intervenções cirúrgicas cerebrais, punições, dentre outros processos que não levavam em consideração o sujeito em questão (Soares, 2000Soares, I. A. (2000). Arthur Bispo do Rosário a arte bruta e a propagação na cultura pós-moderna. Psicologia: Ciência e profissão, 20(4), 38-45. doi: 10.1590/S1414-98932000000400005
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). Nesse contexto um marco fundamental foi a inauguração do Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, também por iniciativa de Nise, cujo propósito era estimular as produções e abrigar as peças dos pacientes. Antes da década de 1970, contudo, na Colônia Juliano Moreira (RJ), não havia incentivo algum à expressão artística para os loucos (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.).

A partir dessa breve retrospectiva histórica, verificamos que essas iniciativas partiram do pressuposto de que havia uma arte de loucos, perspectiva que demonstra uma tentativa de definir uma fronteira entre a experiência artística do louco e aquela vivenciada pelos indivíduos supostamente normais. Dantas (2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.) toma distância de tal vertente, não pactuando com a ideia de uma arte psicopatológica. A autora levanta considerações a respeito da aproximação da arte produzida pelos loucos enquanto processo de criação, imerso na relação entre criador e obra, bem como entre arte e sociedade. Utilizaremos essa abordagem para a análise da obra de Bispo do Rosário, com os elementos ofertados pelos campos da psicanálise e da arte.

Conforme assinala Merleau-Ponty em A dúvida de Cézanne, ao remeter-se à dimensão do vínculo entre a vida e a obra do artista, “é certo que a vida não explica a obra, mas é certo também que elas se comunicam. A verdade é que essa obra por fazer exigia essa vida” (Merleau-Ponty, 2013Merleau-Ponty, M. (2013). A dúvida de Cézane. In M. Merleau-Ponty, O olho e o espírito. São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 92). No prefácio do livro Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.), João A. Frayze-Pereira indica que a obra deve ser situada como o princípio fundamental, e a partir dela pode-se pensar o artista e não o contrário. A singularidade do criador deve provir de suas criações, invenções plásticas: “o sentido singular de uma obra de arte não é explicável pela vida do artista.” (Frayze-Pereira, 2009Frayze-Pereira, J. A. (2009). A escuta poética do delírio. In M. Dantas, Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio . São Paulo, SP: Unesp ., p. 8). O autor ainda destaca as contribuições dos fundamentos da psicanálise no que concerne à compreensão da obra, mas considera ser necessário “ter em mente que... a obra de Bispo é de ordem poética e que uma interpretação apenas psicológica corre o risco do reducionismo” (Frayze-Pereira, 2009Frayze-Pereira, J. A. (2009). A escuta poética do delírio. In M. Dantas, Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio . São Paulo, SP: Unesp ., p. 10).

Seguindo esse raciocínio, a respeito da relação entre vida e obra do artista louco, Foucault (1978Foucault, M. (1978). História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, SP: Perspectiva.) afirma que

É por isso que pouco importa saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, na humildade de Van Gogh, a voz primeira da loucura. Só há loucura como instante último da obra - esta a empurra indefinidamente para seus confins; ali onde há obra, não há loucura; e no entanto a loucura é contemporânea da obra, dado que ela inaugura o tempo de sua verdade. (p. 530)

Dessa forma, constatamos que o campo da arte tem se colocado como um grande aliado nas novas formas de abordar a loucura. Esse aspecto fica bem demonstrado a partir dos trabalhos de Nise da Silveira, ao proporcionar atividades e experiências estéticas aos pacientes, lançando as bases para fundação de uma nova clínica, cujos desdobramentos viriam a inscrever a loucura na cultura e na cidadania pela via da arte (Guerra, 2004Guerra, A. M. C. (2004). Oficinas em saúde mental: Percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In C. M. Costa & A. C. Figueiredo (Orgs.), Oficinas terapêuticas em saúde mental: Sujeito, produção e cidadania (pp. 105-116). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.).

O campo de investigação circunscrito ao vínculo entre arte e loucura foi explorado por Guerra (2004Guerra, A. M. C. (2004). Oficinas em saúde mental: Percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In C. M. Costa & A. C. Figueiredo (Orgs.), Oficinas terapêuticas em saúde mental: Sujeito, produção e cidadania (pp. 105-116). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.), ao investigar as produções de trabalhos realizados em oficinas terapêuticas com pacientes psicóticos. A autora localizou a presença de quatro discursos orientadores dos trabalhos dos oficineiros. O primeiro deles é o discurso do déficit, segundo o qual a loucura constitui-se num déficit em relação ao padrão normal, e as oficinas terapêuticas se caracterizariam mais como um passatempo para a ociosidade na instituição e menos enquanto um trabalho propriamente terapêutico. O louco era colocado no lugar da incapacidade, da criança, da infantilidade. Nesse sentido, construiu-se a fórmula loucura=infantilidade/déficit, fazendo da oficina lugar de entretenimento.

O segundo discurso é o do inconsciente. Nele, as oficinas seriam utilizadas como possibilidade de subjetivar ou simbolizar a história do sujeito, criando possíveis formas de estabilização únicas e singulares. Considerava-se, nessa abordagem, uma perspectiva de produção de um objeto condensador de gozo. As seguintes estruturas apresentavam-se nesse discurso: loucura=psicose (estrutura clínica diferenciada) e oficina=operação subjetiva (estabilização).

O terceiro discurso é o da cidadania. O que importava nas atividades de arte, nessa ótica, era a reinserção do sujeito. A oficina convertia-se, dessa maneira, num espaço capaz de dar início a um processo político de resgate da cidadania e da tolerância à diferença. O lugar da loucura e da oficina se exprimiam na seguinte formulação: loucura=exclusão sociopolítica e oficina=inscrição-política.

O quarto e último discurso, por fim, é aquele da estética. Nele, atestamos que as oficinas podiam ser utilizadas enquanto formas contemporâneas de expressão artística, promovendo uma inscrição do louco na cultura. Essa concepção caminhava na direção da possibilidade do alargamento dos limites estéticos, permitindo ao louco a produção artística através do exercício livre de sua expressão criativa. Nesse último discurso, a fórmula seria, então, loucura=forma contemporânea de expressão e oficina=inscrição na cultura.

A partir desse estudo de Guerra (2004Guerra, A. M. C. (2004). Oficinas em saúde mental: Percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In C. M. Costa & A. C. Figueiredo (Orgs.), Oficinas terapêuticas em saúde mental: Sujeito, produção e cidadania (pp. 105-116). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.), foi possível verificar que, no atual campo da saúde mental, um grupo de profissionais enfatiza o passatempo como atividade principal das oficinas, ao passo que outros postulam ser fundamental o fato de a oficina ser um espaço de criação artística. Já um terceiro grupo concebe as atividades como produção de objetos com valor de troca comercial e uma quarta concepção visualiza nas oficinas, referência à função subjetiva ou terapêutica da linguagem. Tal função serviria como ponto de ancoragem a partir do qual o usuário poderia se inscrever como sujeito. É nessa vertente que se inscreve nossa investigação a respeito do artista Bispo do Rosário.

Quem foi Bispo do Rosário? Artista ou louco?

Bispo do Rosário foi um artista que dos 80 anos de sua vida, viveu o sofrimento psíquico e internações recorrentes em hospitais psiquiátricos durante cinco décadas, período em que criou as suas obras de arte. Quando indagado sobre sua história respondia de maneira vaga “um dia eu simplesmente apareci” (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 13). Nasceu em Japaratuba, Sergipe, em julho de 1909, mas não foi registrado em cartório. Foi batizado 3 meses depois na Igreja Nossa Senhora da Saúde e, de acordo com o registro do livro de batismo, o pai chamava-se Claudino Bispo do Rosário e a mãe, Blandina Francisca de Jesus. No documento da Marinha, consta que seu nascimento foi em 14 de junho de 1909, e no documento da admissão da Viação Excelsior da Light, a data de nascimento é 16 de março de 1911. As informações biográficas são, evidentemente, contraditórias (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp., p. 17-18). Japaratuba, palavra cujo significado em tupi é “rio de muitas voltas” (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 31), é uma cidade marcada por tradições e alegorias festivas repletas de trajes bordados, o que se refletiu de alguma forma na obra de Bispo (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.).

Aos 15 anos de idade se alistou na Escola de Aprendizes de Marinheiro em Sergipe. Ficou na Marinha por oito anos, quando foi expulso pelo regime disciplinar. Foi, então, trabalhar no Departamento de Trações de Bondes da Viação Excelsior, onde permaneceu por quatro anos. Durante esse período, sofreu um acidente com o bonde, mas não quis entrar em litígio trabalhista. Em 1937, Bispo foi demitido por se recusar a cumprir ordens, recorrendo ao advogado Humberto Leoni para reaver a causa. Nessa mesma época, o artista passou a trabalhar em serviços domésticos na mansão do advogado (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.).

O dia 24 de dezembro de 1938 pode ser considerado um “divisor de águas psíquico para Arthur Bispo do Rosário” (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 10). Ele estava na casa da família Leoni quando, à meia-noite, viu sete anjos. Segundo Bispo, seres celestiais lhes comunicaram “que ele havia sido eleito pelo Todo-Poderoso, e sua missão na Terra seria julgar os vivos e os mortos e recriar o mundo para o Dia do Juízo Final” (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp., p. 30). Bispo vagou pelas ruas do Rio de Janeiro durante dois dias: passou pela Igreja de São José e foi até o Mosteiro de São Bento, quando os monges chamaram a polícia.

Tinha 30 anos quando foi levado para o Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, nomeando-se Jesus. O diagnóstico atribuído a ele foi esquizofrenia paranoide (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.; Poli & Mesquita, 2014Poli, M. C., & Mesquita, D. B. G. (2014). Arte & psicose: A obra de Arthur Bispo do Rosário. Psicologia: Ciência e profissão, 34(3), 612-624. doi: 10.1590/1982-3703001382013
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; Corpas & Vieira, 2012Corpas, F. S., & Vieira, M. A. (2012). Bispo do Rosário e a representação dos materiais existentes na Terra. Tempo Psicanalítico, 44(2), 405-422. Recuperado de https://bit.ly/3OTmvn8
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). Em 25 de janeiro de 1939, foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.; Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.). Daí em diante, Bispo alternou internações na Colônia e no Centro Psiquiátrico Pedro II, com períodos na casa da família Leoni. Posteriormente, instalou-se no pronto-socorro pediátrico do Dr. Bomfim, cunhado de Humberto Leoni, no qual passou a trabalhar, sendo internado definitivamente na Colônia em 1964, onde permaneceu até sua morte, em 1989 (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.).

Bispo criou sua obra no espaço do Hospital Colônia Juliano Moreira em uma cela/ateliê. Em 1989 o crítico de arte Frederico de Morais dedicou-se a escrever a primeira biografia da vida e obra de Bispo do Rosário. Outro registro importante recolhido a partir da fala do artista trata-se dos documentários O prisioneiro da passagem, produzido por Hugo Denizar em 1982, e O Bispo, dirigido por Fernando Gabeira em 1985 (Corpas, 2014Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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).

A Obra de Bispo extrapolou os muros da Colônia Juliano Moreira ao mundo, da loucura à arte, e teve desdobramentos no mundo da cultura. É o que podemos conferir com as quase 500 publicações, entre livros, teses, dissertações, monografias, catálogos etc. O artista teve também reconhecimento no campo das artes com diversas exposições, dentre elas a Bienal de São Paulo em 1912 e a Bienal de Veneza em 1913 (Corpas, 2014Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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). Para além da loucura, o surgimento de Bispo “no cenário das artes produziu importantes desdobramentos, contribuindo, por exemplo, para a discussão sobre a natureza da obra de arte e sobre as relações entre arte e loucura, problematizando o entendimento destas duas noções” (Corpas, 2014Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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, p. 14).

Psicanálise, arte e loucura: invenções

Ao abordar o campo das psicoses a partir do referencial da psicanálise, consideramos que Freud dedicou sua clínica de forma expressiva às neuroses. Porém, em diversos momentos de sua obra localizamos teses inaugurais concernentes às psicoses, a exemplo da gênese do delírio e da sua articulação com a estabilização na psicose. Freud (1911/1990Freud, S. (1990). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides). In J. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 13-108). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado 1911)), em seu artigo Notas psicanalíticas de um relato autobiográfico de um caso de paranoia, aborda o estudo paradigmático do caso Schreber a partir do livro Memórias de um doente dos nervos, biografia escrita pelo próprio paciente. No referido artigo, o fundador da psicanálise lança a proposição do delírio como uma tentativa de cura ao afirmar que “a formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (Freud, 1911/1990Freud, S. (1990). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides). In J. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 13-108). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado 1911), p. 94-95). A tese a respeito da gênese do delírio será retomada posteriormente em Neurose e psicose (Freud, 1924/1990Freud, S. (1990). Neurose e psicose. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 185-193). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1924)), ocasião na qual define o delírio como “um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo” (p. 191). Schreber escreve suas Memórias durante uma de suas internações psiquiátricas, conseguindo, a partir de uma ação judicial e de seu escrito, a alta do hospitalar após uma breve estabilização.

Com o psicanalista Jacques Lacan, entretanto, a teoria e a clínica da psicose obtiveram seus avanços mais significativos (Guerra, 2007Guerra, A. M. C. (2007). A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: Criação e suplência (Tese de doutorado). Recuperado de Portal Domínio Público (https://bit.ly/3AwUnSG)
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). Lacan inaugura os estudos sobre o tema em sua tese de doutorado, intitulada Da psicose paranoica e suas relações com a personalidade (1932/2011), na qual ele discute a paranoia de autopunição no paradigmático estudo do caso Aimèe (Lacan, 1932/2011Lacan, J. (2011). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade seguido de primeiros escritos sobre a paranoia. Rio de Janeiro, RJ: Forense. (Trabalho original publicado em 1932)), paciente atendida por Lacan durante um ano e meio. Na referida tese, o autor sinaliza o fenômeno da passagem ao ato como solução estabilizadora da psicose (Beneti, 2005Beneti, A. (2005). Do discurso do analista ao nó borromeano: Contra a metáfora delirante. Opção Lacaniana Online, (3), 1-17.). No caso clínico em questão, Aimèe também fazia uso de seus escritos literários numa tentativa de estabilização. Seguindo a trilha de Lacan em torno do tema da psicose, remetemo-nos ao Seminário 3, As psicoses (1988), bem como ao escrito intitulado De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957/1998), no qual faz a primeira grande afirmação de que é possível o tratamento psicanalítico do sujeito psicótico. Neste período de seu ensino, constatamos que Lacan retoma Freud com o caso Schreber. O objetivo era embasar a clínica da psicose a partir da solução estabilizadora denominada metáfora delirante, situando-a em Schreber com a construção “Ser a Mulher de Deus” (Beneti, 2005Beneti, A. (2005). Do discurso do analista ao nó borromeano: Contra a metáfora delirante. Opção Lacaniana Online, (3), 1-17.). Porém, em 1975 e 1976, no Seminário 23, O sinthoma, Lacan (2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) lança sua última formalização clínica com a teoria dos nós borromeanos e a ressonância do conceito de sinthoma como solução estabilizadora para a psicose, diferentemente do que havia proposto com o conceito de metáfora delirante (Beneti, 2005Beneti, A. (2005). Do discurso do analista ao nó borromeano: Contra a metáfora delirante. Opção Lacaniana Online, (3), 1-17.; Guerra, Figueiredo, Borçato, Souza, Andrada, 2008Guerra, A. M. C., Figueiredo, A. C., Borçato, L. L., Souza, P. V., & Andrada, C. S. (2008). Sujeito e invenção: A topologia borromeana na clínica das psicoses. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 11(2), 283-297. doi: 10.1590/s1516-14982008000200008
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; Guerra, 2007Guerra, A. M. C. (2007). A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: Criação e suplência (Tese de doutorado). Recuperado de Portal Domínio Público (https://bit.ly/3AwUnSG)
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). Nesse último seminário supracitado, Lacan dedica-se a estudar a obra do escritor James Joyce e em particular, a sua relação singular com a escrita e a função de estabilização que ela exerce na vida de Joyce. Dessa forma, enquanto para Freud, no campo das neuroses, a arte relaciona-se ao conceito de sublimação, para Lacan ela se insere no tema das estabilizações ou soluções psicóticas. No ensino de Lacan, destacam-se três diferentes saídas ou soluções encontradas na psicose, a saber: o ato, a metáfora delirante e a obra (Guerra, 2017Guerra, A. M. C. (2017). Impacto clínico da topologia borromeana no estruturalismo lacaniano. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 20(1), 35-51. doi: 10.1590/S1516-14982017001002
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; Guerra et al., 2008Guerra, A. M. C., Figueiredo, A. C., Borçato, L. L., Souza, P. V., & Andrada, C. S. (2008). Sujeito e invenção: A topologia borromeana na clínica das psicoses. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 11(2), 283-297. doi: 10.1590/s1516-14982008000200008
https://doi.org/10.1590/s1516-1498200800...
; Guerra, 2007Guerra, A. M. C. (2007). A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: Criação e suplência (Tese de doutorado). Recuperado de Portal Domínio Público (https://bit.ly/3AwUnSG)
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).

A fim de imergirmos no caso de Bispo, vamos nos deter no terceiro desses paradigmas, ou seja, aquele centrado na obra. Isso posto nos interrogamos: como os sujeitos psicóticos buscam soluções ou invenções pela via da obra de arte para intermediar a sua relação com seu corpo, considerada problemática na psicose? As invenções são possíveis no campo das psicoses?

Em acordo com Guerra (2007Guerra, A. M. C. (2007). A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: Criação e suplência (Tese de doutorado). Recuperado de Portal Domínio Público (https://bit.ly/3AwUnSG)
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), “também sabemos que muitas vezes esses caminhos traçados pelos psicóticos em suas saídas prescindem da presença de um analista ou de um dispositivo institucional de cuidados, além de envolverem diferentes mecanismos e trabalho psíquicos” (p. 25).

Para pensar essas questões, elegemos duas das obras de Bispo: Manto da apresentação (Figura 2) e o estandarte Eu preciso destas palavras escrita (Figura 3).

Figura 2
Manto da apresentação, de Arthur Bispo do Rosário (s.d.)

Figura 3
Estandarte Eu preciso destas palavra escrita, de Arthur Bispo do Rosário, s.d.

O Manto da apresentação (Figura 2) é um bordado com dimensão de 118,5cm×141,3cm e foi

confeccionado em dois tipos de tecido, apresenta, face externa, feita de um cobertor, palavras, símbolos, números e figuras bordados em fios de lã, distribuídos quase que circularmente; alamares e cordas de cortina servem como adornos. Na face interna (avesso), sobre tecido branco, nomes de mulheres, organizados em forma de espiral irregular em direção à abertura da cabeça, foram bordados, na sua maioria, com fios de cor azul. Esse manto foi confeccionado para cobrir o corpo de Bispo no dia da sua “passagem”, o dia do julgamento final. (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp., p. 207)

O estandarte Eu preciso destas palavras escrita (Figura 3) é um bordado em tecido, suportado por madeira, com dimensão de 120cm x 189cm e caracteriza-se por ser um “corpo humano” no qual o artista borda os nomes de todos os órgãos (unhas, joelhos, pernas, fígado, boca, lábios etc.), contornando uma figura humana envolta por este pano e no meio de um oco. Abaixo da figura do corpo humano consta a seguinte frase: “Eu preciso destas palavras. escrita”.

O psicanalista Jacques-Allain Miller (2003Miller, J. A. (2003). A invenção psicótica. Opção lacaniana, (36), 6-16. Recuperado de https://bit.ly/3afZhJg
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) indica, em seu artigo Invenções psicóticas, que o sujeito psicótico faz uso de diferentes recursos para se ligar ao seu corpo, a exemplo de anéis e faixas amarradas. Interroga-se ainda, nesse contexto, a respeito da pertinência do uso do termo invenções ao se debruçar sobre o campo das psicoses: “em que este termo invenção é pertinente quando se trata de abordamos as psicoses?” (Miller, 2003Miller, J. A. (2003). A invenção psicótica. Opção lacaniana, (36), 6-16. Recuperado de https://bit.ly/3afZhJg
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, p. 6, grifo nosso). Ele justifica a sua adequação, especificamente na esquizofrenia, a partir da tese de Lacan, que “nos convida a pensar que a esquizofrenia tem a propriedade de enigmatizar a presença no corpo, de tornar enigmático o ser no corpo” (2003, p. 7). A fim de melhor compreender o lugar do corpo na esquizofrenia, Miller ainda estabelece uma distinção entre criação e invenção, destinando à última o valor de uma bricolagem. Enquanto a criação tem relação com o ex nihilo, ou seja, a partir do nada, a invenção parte de materiais existentes.

O termo bricolagem é originário do francês, bricoler/bricolage, e vincula-se às atividades portadoras de um caráter artesanal e privado. O bricoleur é aquele que busca fazer por si só instalações, construções ou consertos domésticos, sem recorrer a um profissional especializado, aproveitando partes de objetos, restos ou coisas sem utilidade. Ele as reorganiza em outro objeto, no qual essas partes passam a ter outro uso (Lima, 2014Lima, F. M. S. (2014). Psicose, invenção e sintoma. ECOS - Estudos contemporâneos da subjetividade, 4(2), 184-192.).

Em Bispo do Rosário, “o texto fabricado ... é tecido, bordado com agulha e linha em panôs, estandartes, fardões. Encontramos temas de sua vida,... elementos do saber universal... Ele tentou reproduzir tudo o que conhecia do mundo com seu bordado de letras” (Quinet, 2009Quinet, A. (2009). Bispo, o entalhador de letras: Criação e sintoma. In A. Quinet, Teoria e clínica da psicose (pp. 220-238). Rio de Janeiro, RJ: Forense ., p. 226). Dantas (2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.) indica que a obra de Arthur Bispo do Rosário apresenta um caráter mitopoético, consistindo “... na elaboração de um conjunto a partir de resíduos e fragmentos de acontecimentos testemunhas fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade; é uma espécie de bricolagem intelectual ...” (p. 20).

Fundamentando-nos nas proposições de Miller (2003Miller, J. A. (2003). A invenção psicótica. Opção lacaniana, (36), 6-16. Recuperado de https://bit.ly/3afZhJg
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), dirigimos nosso olhar às produções de Bispo do Rosário enquanto invenções, estando assim aproximadas do valor de uma bricolagem. Nessa direção, Bispo “não receberia papel, a tinta e o carvão, mas desfiaria o próprio uniforme para conseguir a matéria bruta de sua arte ... Se aquilo era delírio, expressão primitiva ou arte, o tempo se encarregaria de decifrar” (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 62). Na fabricação de sua obra, é possível notar claramente as associações aos restos: “todo tipo de objeto usado, dejetos, vestígios materiais da sociedade de consumo, eram recolhidos pelo artista e organizados por critérios que a razão desconhece” (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp., p. 36).

As duas obras de Bispo analisadas transportam-nos para o caráter paradoxal e criador. Nelas, não vemos uma fiel representação da anatomia, mas a bricolagem de uma corporeidade mergulhada, ao mesmo tempo, na configuração psíquica de Bispo e na experiência estética dela indissociável. O manto, que toma a forma dos nossos membros - ou, para usar a expressão empregada por Foucault (1966/2009Foucault, M. (2009). Le corps utopique. In M. Foucault, Le corps utopique suivi de les heterotopies (pp. 1-61). Paris, FR: Nouvelles Éditions Lignes. (Trabalho original publicado em 1966), p. 9), “toma corpo” -, revela esse aspecto da ligação entre a própria subjetividade incorporada e os objetos do mundo, do interior e do exterior, da pele e daquilo que a circunda.

Em Bispo, a bricolagem constitui-se nessa atividade do corpo próprio, o qual encontra nos objetos circundantes uma via de expressão. Os inúmeros dejetos recolhidos pelo artista e agregados ao seu manto aparecem como essa maneira de religar sua subjetividade excluída ao mundo, mesmo que seja pelo que é considerado resto.

Essas reflexões sobre as duas produções de Bispo buscaram demonstrar como os sujeitos psicóticos tateiam soluções, pela via da arte, para se haver com seu corpo. Como um bricoleur que nas suas invenções artesanais parte de materiais existentes, constatamos que em Bispo “O manto ... envolvia o seu corpo, e este incorporava o manto” (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp., p. 192). Ao mesmo tempo, como consequência, essa solução proporciona a estabilização de seu sofrimento psíquico, próprio da loucura. O estandarte Eu preciso destas palavras escrita enunciou o quanto essas palavras lhe eram necessárias (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.). Nesse sentido, podemos “pensar o lugar do delírio e dos objetos produzidos por Bispo do Rosário na solução encontrada por esse sujeito para caber no mundo, bem como propor uma leitura para os mesmos a partir dos campos da psicanálise e da arte” (Corpas, 2014Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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, p. 19).

A construção de objetos e a salvação pelos dejetos

Ao longo das idas e vindas das internações e convivência fora dos hospitais, Bispo deu início a sua obra.

Ele acreditava ser Jesus e ter uma missão na Terra - fundamental na incansável produção de objetos que vieram a constituir sua obra. Sua crença delirante, entretanto, não impediu que estes objetos, criados ao longo de vários anos de trabalho e internação, fossem considerados arte; uma das mais importantes, surpreendentes e debatidas coleções de arte brasileira do século XX. (Corpas & Vieira, 2012Corpas, F. S., & Vieira, M. A. (2012). Bispo do Rosário e a representação dos materiais existentes na Terra. Tempo Psicanalítico, 44(2), 405-422. Recuperado de https://bit.ly/3OTmvn8
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, p. 406)

Os objetos criados originavam-se em restos encontrados no seu cotidiano ou recolhidos nos hospitais durante as internações: madeira, plástico, latas, utensílios domésticos, roupas, sapatos etc., com os quais construía miniaturas, ou os organizava sob algum princípio estético em quadros ou assemblage (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.). Notadamente, “destacam-se, sempre as palavras. Palavras escritas, bordadas, pintadas. Por toda a obra, encontram-se nomes de pessoas, célebres ou anônimas, registros de ideias breves, regulamentos íntimos ou mesmo extratos poéticos” (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 23). Ao longo de sua vida, Bispo construiu cerca de 802 peças e “De fato, seus objetos não eram reproduções, mas verdadeiras recriações e intervenções” (Corpas & Vieira, 2012Corpas, F. S., & Vieira, M. A. (2012). Bispo do Rosário e a representação dos materiais existentes na Terra. Tempo Psicanalítico, 44(2), 405-422. Recuperado de https://bit.ly/3OTmvn8
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, p. 407). Referimo-nos aos objetos classificados pela crítica de arte como O.R.F.A.S (Objetos Recobertos por Fios Azuis), objetos não recobertos ou parcialmente recobertos, objetos em que a técnica de mumificação se mistura a muitas outras técnicas, escritos bordados, estandartes bordados, vitrines (assemblages), mantos, jaquetas, barquinhos, brinquedos etc. (Dantas, 2009Dantas, M. (2009). Arthur Bispo do Rosário: A poética do delírio. São Paulo, SP: Unesp.).

Nessa direção, somamo-nos a Corpas e Vieira (2012Corpas, F. S., & Vieira, M. A. (2012). Bispo do Rosário e a representação dos materiais existentes na Terra. Tempo Psicanalítico, 44(2), 405-422. Recuperado de https://bit.ly/3OTmvn8
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, p. 406), que propõem uma nova leitura a respeito da missão de Bispo, e empreendemos um diálogo com o artigo de Miller (2010Miller, J. A. (2010). A salvação pelos dejetos. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 67, 1-6.), A salvação pelos dejetos. Segundo o psicanalista, o título do artigo resgata a fórmula de Paul Valéry que define a via eleita pelo surrealismo enquanto caminho possível para a arte e que vai na mesma direção da descoberta da psicanálise com Freud na medida em que este se dedicou aos dejetos mentais. Nesse sentido, assevera Miller (2010Miller, J. A. (2010). A salvação pelos dejetos. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 67, 1-6.):

aliás, a promessa surrealista nunca teria sido proferida se não tivesse havido antes a psicanálise, a descoberta freudiana que foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato-falho e mais além, o sintoma. Mas também a descoberta de que levando-os a sério, e mais ainda, estando atento a eles, o sujeito tem chance de se salvar. (p. 1)

No caso de Bispo, apesar do seu delírio, é importante destacar que a expressão salvação não tem caráter religioso, mas traz a marca de uma ruptura com a salvação pelos ideais; indica que essa via oposta aos ideais não faz referência a um tratamento interessado somente na saúde, na cura, mas no caminho do sintoma, trilha pela qual o sujeito pode recorrer à sua verdade, ao seu saber. Bispo ainda nos revela, igualmente, que não podemos reduzir o tratamento a uma cura ou à restauração de uma suposta normalidade. Cada sujeito, na sua singularidade, buscará construir as suas soluções, sendo uma delas a salvação pelos dejetos, deslizando no mundo - para retomar uma das definições do psicanalista para via - pela arte. A salvação pelos ideais se opõe diretamente à salvação pelos dejetos, porquanto os ideais remetem a uma forma, ao passo que os dejetos surgem de algo informe. Ademais, como ressalta Miller (2010Miller, J. A. (2010). A salvação pelos dejetos. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 67, 1-6.), eles emergem de um pedaço, de uma peça solta. Sobre o termo dejeto, diríamos ter ele

muitas ressonâncias para aqueles que, mesmo que rapidamente, percorrem o ensino de Lacan. É o que é rejeitado e especialmente rejeitado ao cabo de uma operação onde só se retém o ouro, a substância preciosa a que ela leva. O dejeto é o que os alquimistas chamavam de caput mortuum. É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto que o ideal resplandece. (Miller, 2010Miller, J. A. (2010). A salvação pelos dejetos. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 67, 1-6., p. 2)

Nesse ponto, Miller introduz o tema da arte contemporânea, ao aventar que “a essência da arte é a de estetizar o dejeto” (Miller, 2010Miller, J. A. (2010). A salvação pelos dejetos. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 67, 1-6., p. 2), e cita, como exemplo, Marcel Duchamp, na medida que esse último oferece o dejeto como objeto de arte. Bispo teve sua obra comparada com a do artista francês, ambos consagrados e considerados representantes da arte de vanguarda. Os dois apresentavam características que se aproximavam por “curiosas semelhanças, especialmente por seus trabalhos a partir de objetos comuns, do cotidiano, que, retirados do contexto de sua utilidade, foram reconhecidos como obras de arte” (Lhullier, 2011Lhullier, L. A. (2011). Bispo e Duchamp: A diferença na ponta da língua. Opção lacaniana online, (4), 1-7., p. 1). Nessa ótica, cabe ressaltar que no hospital Colônia Juliano Moreira eram distribuídas colheres, canecas e outros utensílios para os pacientes, que os perdiam. Porém, “Bispo ficava de olho nas sobras e guardava esses e outros restos para fins que um dia colocariam a sucata da Colônia Juliano Moreira no mapa-múndi das artes plásticas” (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco., p. 20). Os materiais recolhidos e soltos no hospital, desde tênis tipo conga, galochas, canecas de alumínio, restos de lençóis e fardamento, são reordenados e chamados de vitrines, as quais seriam denominadas pelos críticos de arte de assemblages (Hidalgo, 2011Hidalgo, L. (2011). Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.).

A respeito da produção/criação ou invenção dos objetos no artista investigado, Bispo não se considerava nem artista e nem louco. Diante da pergunta “quem é você?”, respondia ser Jesus Cristo e afirmava que tinha uma missão na terra, a saber, a de produzir objetos. Segundo Corpas (2014Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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), sua crença delirante não impediu que os objetos criados fossem considerados arte. A autora parte da análise da vida desse sujeito para “demonstrar o lugar que o delírio e os objetos produzidos por Bispo do Rosário tiveram na estabilização desse sujeito em seu ancoramento no mundo” (Corpas, 2014Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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, p. 18).

Assim, Corpas e Vieira (2012Corpas, F. S., & Vieira, M. A. (2012). Bispo do Rosário e a representação dos materiais existentes na Terra. Tempo Psicanalítico, 44(2), 405-422. Recuperado de https://bit.ly/3OTmvn8
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, p. 405) demonstraram

de que maneira esta obra funcionou para Bispo como estratégia suplementar ao delírio, permitindo a ele maiores possibilidades no laço social. Longe de reduzir a obra ao delírio, visamos apontar a complexidade que marca a relação entre eles no caso específico de Bispo do Rosário.

Podemos pensar que Bispo, ao construir sua obra, seguiu no campo da estabilização de sua psicose. Tomando essas invenções à luz do ensino de Lacan, conforme indica Guerra (2017Guerra, A. M. C. (2017). Impacto clínico da topologia borromeana no estruturalismo lacaniano. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 20(1), 35-51. doi: 10.1590/S1516-14982017001002
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), o sujeito constrói uma forma de amarração, uma “arte de saber-fazer com o Real e com o gozo derivado de seu tratamento” (p. 47). A autora representa a lógica da estabilização, localizando-a na seguinte sequência, de fora para dentro. Em primeiro lugar as soluções, em seguida as suplências e, por fim, o sinthoma. Entende-se, desse modo, que “cada sujeito, a partir do real em jogo com seu gozo, irá operar uma forma de suplência ao impossível de nomear” (p. 48).

Considerações finais

Embora a arte estivesse presente na psicanálise desde Freud, com Lacan ela passou a se inserir enquanto via de estabilização das psicoses, a partir das invenções singulares dos sujeitos psicóticos. Por esse viés, ela deixa de ser propriedade dos “não loucos”, permitindo a inserção desses sujeitos na cultura e na cidadania.

É a esse cenário que Foucault acena em 1961, ao lembrar que “a loucura não pode ser encontrada em estado selvagem”, mas “existe somente em uma sociedade, e não fora de formas de sensibilidade que a isolam e formas de repulsão que a excluem ou capturam”, o que nos permite compreender que, na Idade Média e no Renascimento, ela estava presente “no horizonte social como um fato estético ou quotidiano” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). La folie n’existe que dans une societé. In M. Foucault, Dits et écrits I: 1954-1975 (pp. 159-167).Paris, FR: Gallimard., p. 197).

Bispo do Rosário e sua obra perturbaram e continuam a desestabilizar as formas como a sociedade concebe a experiência da loucura, dado o caráter precursor da dimensão de invenção que sua produção artística representa para os sujeitos em sofrimento psíquico. A salvação pelos dejetos aponta não somente a maneira por ele encontrada para reaver-se com a própria subjetividade e saber-fazer com seu próprio corpo, produzindo assim uma estabilização do sofrimento psíquico. Ela também revela, de um lado, uma zona de partilha com as invenções e, de outro, a originalidade da estética da desrazão, abrindo uma zona a ser explorada, em perspectivas teórica e clínica, tanto pela psicanálise quanto pela estética filosófica - o que tem sido feito ao longo das últimas décadas.

REFERÊNCIAS

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    » https://bit.ly/3NxMIXf
  • Beneti, A. (2005). Do discurso do analista ao nó borromeano: Contra a metáfora delirante. Opção Lacaniana Online, (3), 1-17.
  • Corpas, F. S., & Vieira, M. A. (2012). Bispo do Rosário e a representação dos materiais existentes na Terra. Tempo Psicanalítico, 44(2), 405-422. Recuperado de https://bit.ly/3OTmvn8
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  • Corpas, F. S. (2014). Arthur Bispo do Rosário: Do claustro infinito à instalação de um nome. (Tese de doutorado). Recuperado de Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (https://bit.ly/3OXsUhe)
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2020
  • Aceito
    06 Jun 2022
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