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Psicoterapia on-line e economia do compartilhamento: um estudo de caso do aplicativo FalaFreud

Online psychotherapy and sharing economy: a case study of the FalaFreud application

Psychothérapie en ligne et économie de partage : une étude de cas de l’application FalaFreud

Psicoterapia en línea y economía compartida: un caso de estudio de la aplicación FalaFreud

Resumo

Este artigo resulta de estudos empíricos e teóricos sobre a captação da psicologia pelo digital e a lógica de mercado que atravessa a psicoterapia on-line. Nosso objeto de estudo é a plataforma FalaFreud, analisada a partir do aporte teórico-metodológico da Teoria Crítica da Sociedade. Na primeira fase, realizamos uma imersão netnográfica no aplicativo, seu site oficial, blog, e páginas em redes sociais. Na segunda, coletamos avaliações do aplicativo na Play Store de uma e cinco estrelas, e realizamos análises estatísticas e lexicográficas através do software Iramuteq. Os resultados apontaram quatro questões principais: a tecnologia como entrave à terapia, o usuário como entrave ao lucro, a terapia distante do aplicativo e, por fim, a felicidade como obrigação. Sugerimos a diferenciação entre terapia on-line e psicoterapia mediada por computadores, e apontamos a necessidade de discussão dessas questões no contexto da formação em psicologia em conjunto com a compreensão da sociedade mercadológica atual.

Palavras-chave:
teoria crítica; FalaFreud; terapia on-line; psicologia

Abstract

This paper stems from empirical and theoretical research on psychology as captured by the digital environment and the market logic that permeates online psychotherapy. To do so, it analyzes the FalaFreud platform based on Critical Theory. First, a netnographic immersion was carried out in the application, its official website, company blog, and social networks. Then, one- and five-stars reviews were collected from the app on Play Store, and examined by statistical and lexicographic analyzes using the Iramuteq software. The findings pointed to four main issues: technology as a barrier to therapy; the user as a barrier to profit; therapy outside the application; and happiness as an obligation. The text suggests differentiating between online therapy and computer-mediated psychotherapy, and points out the need to discuss these issues within psychology education considering the current consumer society.

Keywords:
critical theory; FalaFreud; online therapy; psychology

Résumé

Cet article est issu de recherches empiriques et théoriques sur la psychologie telle qu’elle est saisie par le numérique et la logique du marché qui imprègne la psychothérapie en ligne. Pour ce faire, il analyse la plateforme de thérapie brésilienne FalaFreud à partir de la théorie critique. Tout d’abord, une immersion netnographique a été réalisée dans l’application, son site officiel, son blog et ses réseaux sociaux. Ensuite, des critiques d’une et cinq étoiles ont été collecté sur Play Store, et examinées par des analyses statistiques et lexicographique à l’aide du logiciel Iramuteq. Les résultats ont mis en évidence quatre enjeux principaux : la technologie comme obstacle à la thérapie ; l’usager comme obstacle au profit ; la thérapie en dehors de l’application ; et le bonheur comme obligation. Le texte suggère de faire la distinction entre la thérapie en ligne et la psychothérapie médiatisée par l’ordinateur, et souligne la nécessité de discuter de ces problématiques dans le cadre de la Licence ès Psychologie en tenant compte de la société de consommation actuelle.

Mots-clés:
théorie critique; Fala Freud; therapie en ligne; psychologie

Resumen

Este artículo es el resultado de estudios empíricos y teóricos sobre el uso de los medios digitales en las prácticas de psicologia y la lógica del mercado que pasa por la psicoterapia en línea. Nuestro objeto es la plataforma FalaFreud, y el aporte teórico-metodológico, la Teoría Crítica de la Sociedad. En la primera fase, realizamos una inmersión netnográfica en la aplicación, su página oficial, blog y páginas en redes sociales. En la segunda fase, recopilamos calificaciones de una y cinco estrellas de la aplicación en Play Store y realizamos análisis estadísticos y lexicográficos utilizando el software Iramuteq. Los resultados señalaron cuatro cuestiones principales: la tecnología como obstáculo para la terapia, el usuario como obstáculo para el lucro, la terapia alejada de la aplicación y, finalmente, la felicidad como obligación. Sugerimos la diferenciación entre la terapia en línea y la psicoterapia mediada por computadora, y señalamos la necesidad de discutir estos temas en el contexto de la formación en psicología, en conjunto con la comprensión de la sociedad de mercado actual.

Palabras clave:
teoría crítica; FalaFreud; terapia en línea; psicología

Introdução

O ano é 2015, você vai morar nos Estados Unidos e começa a ter problemas de relacionamento. Entra em contato com o psicólogo que o atendia no Brasil e dá início às sessões via WhatsApp, devido à distância. Meses depois, um insight ocorre: “alguém pagaria por isso!”. Assim o aplicativo FalaFreud1 1 O aplicativo era comercializado até maio de 2020. Atualmente, ele está fora de circulação, e permanece seu canal no YouTube e Facebook. foi pensado por Yonathan Yuri Faber, um de seus criadores, e, em julho de 2016, lançado nas plataformas virtuais Apple Store e Play Store. Inicialmente testado com mensagens de texto ao estilo WhatsApp, no final de 2019 realizava atendimentos por texto, áudio e vídeo, por smartphones ou computadores.

Contudo, a terapia mediada por tecnologias não é uma criação de Faber. A discussão sobre psicoterapia via internet ocorre no campo da psicologia e tem sido abordada em artigos desde o início deste século, embora careça de mais estudos. As pesquisas abrangem diferentes modalidades de terapia on-line (Pinto, 2002Pinto, E. R. (2002). As modalidades do atendimento psicológico on-line. Temas em Psicologia, 10(2), 168-177. Recuperado de https://bit.ly/3yCXVR5
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), revisão de literatura (Pieta & Gomes, 2014Pieta, M. A. M., & Gomes, W. B. (2014). Psicoterapia pela Internet: viável ou inviável? Psicologia: Ciência e Profissão, 34(1), 18-31. doi: 10.1590/S1414-98932014000100003
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), análise de resolução do Conselho Federal de Psicologia (Siegmund, Janzen, Gomes, & Gauer, 2015Siegmund, G., Janzen, M. R., Gomes, W. B., & Gauer, G. (2015). Aspectos éticos das intervenções psicológicas online no Brasil: Situação atual e desafios. Psicologia Em Estudo , 20(3), 437-447. doi: 10.4025/psicolestud.v20i3.28478
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), orientação psicológica on-line (Siegmund & Lisboa, 2015Siegmund, G., & Lisboa, C. (2015). Orientação Psicológica On-line: Percepção dos Profissionais sobre a Relação com os Clientes. Psicologia: Ciência e Profissão , 35(1), 168-181. doi: 10.1590/1982-3703001312012
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), demanda de regulamentação (Rodrigues & Tavares, 2016Rodrigues, C. G., & Tavares, M. de A. (2016). Psicoterapia Online: demanda crescente e sugestões para regulamentação. Psicologia Em Estudo, 21(4), 735-744. doi: 10.4025/psicolestud.v21i4.29658
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) e constituição do vínculo terapêutico (Faria, 2019Faria, G. M. (2019). Constituição do vínculo terapêutico em psicoterapia online: perspectivas gestálticas. Revista do NUFEN, 11(3), 66-92. doi: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo59
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).

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) discorreu sobre as possibilidades e limitações do uso dessas ferramentas no exercício da profissão desde o ano 2000, através das resoluções n.º 003/2000; n.º 12/2005; n.º 11/2012; n.º 11/2018 e n.º 004/2020. Inicialmente descrita como atendimento mediado por computadores, as reformulações das normativas aconteceram em resposta às novas formas de comunicação que surgiram e às demandas profissionais e de pesquisa, e hoje é chamada de modo mais geral de “prestação de serviços por meio de tecnologias da informação e comunicação” (CFP, 2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução CFP nº 11, de 11 de maio de 2018. Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP N.º 11/2012. Recuperado de https://bit.ly/2IGf0S1
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).

Em 2012, eram permitidos a distância: supervisões, orientações de trabalho, aplicação de testes, seleção de pessoal e atendimentos eventuais aos clientes que por alguma razão não podiam comparecer presencialmente. O CFP exigia cadastro e aprovação dos websites caso esses serviços fossem realizados regularmente a distância. Em 2016, o aplicativo FalaFreud foi lançado, e um embaraço frente à regulamentação em vigor à época surgiu: a empresa apresentava falhas éticas na forma de divulgação e atendimento, usava o preço das sessões como forma de propaganda, e ofertava atendimentos psicoterapêuticos quando a resolução permitia os diferentes serviços de orientação psicológica limitados a 20 sessões (“Nota do CFP”, 2016Nota do CFP sobre matéria veiculada pela revista Exame (2016, 9 de novembro). Conselho Federal de Psicologia. Recuperado de https://bit.ly/3PnoEYl
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). Os impasses perante o CFP, contudo, não limitaram a demanda de clientes do aplicativo. Em 2018, nova resolução regulamentou os serviços ofertados por aplicativos e a psicoterapia a distância, permitindo-os independente da circunstância e número de sessões. Com isso, o FalaFreud usou a nova resolução em seu marketing, e anunciou ser um aplicativo regulamentado pelo CFP.

Contudo, as questões referentes à aproximação entre psicoterapia e tecnologias digitais não desaparecem na mera modificação de resoluções. Compreendemos que à psicologia - como ciência e profissão - cabe também a tarefa de se debruçar sobre os aplicativos que passaram a mediar a psicoterapia com o advento da internet e seu processo de democratização. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar um estudo realizado sobre o FalaFreud, a fim de contribuir com a discussão no campo da psicoterapia de forma específica e da relação entre subjetividade e tecnologia de modo amplo.

Percurso metodológico

De inspiração frankfurtiana, delineamos essa pesquisa a partir da ideia de primado dialético do objeto, segundo o qual o percurso metodológico se desenvolve no contato com o objeto e não deve ser imposto a ele de antemão. Tal concepção foi desenvolvida por Adorno (1966/2009)Adorno, T. W. (2009). Dialética negativa (M. A. Casanova, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966) a partir de sua “metódica negação do método”, contrapondo o positivismo e desenvolvendo métodos de acordo com as particularidades do estudado. Os frankfurtianos produziram importantes análises sociais que englobam diferentes áreas do conhecimento (Jay, 1973/2008Jay, M. (2008). A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-1950 (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1973)), e a contribuição teórico-metodológica da Teoria Crítica da Sociedade oferece aporte às pesquisas empíricas sob seu viés epistemológico (Antunes, 2014Antunes, D. C. (2014). Por um conhecimento sincero do mundo falso: Teoria crítica, pesquisa social empírica e The Authoritarian Personality. Jundiaí, SP: Paco.), em que a interdisciplinaridade contribui para a compreensão da sociedade contemporânea. Nesse mesmo sentido, nosso caminho metodológico seguiu a análise imanente do objeto para desvelar criticamente suas contradições.

Utilizamos, desse modo, diferentes vias neste estudo. A netnografia nos auxiliou na aproximação do fenômeno dos aplicativos de terapia on-line. Ela é um procedimento observacional desenvolvido por Kozinets (2014Kozinets, R. V. (2014). Netnografia: realizando pesquisa etnográfica online (T. M. Tosi, R. R. Javales, D. Bueno, Trads.). Porto Alegre, RS: Penso.) para compreender um fenômeno cultural ou social na internet; uma transposição metodológica do espaço físico para o on-line. Por ser uma adaptação, consideramos suas limitações e plasticidade: procedimentos específicos podem ser incluídos a partir do que vem a ser estudado (Amaral, Natal, & Viana, 2017).

Para delimitar o aplicativo selecionado para a pesquisa, realizamos um mapeamento na Play Store. Os critérios foram a finalidade terapêutica e o número de downloads. Encontramos cinco aplicativos, e apenas dois ofereciam psicoterapia on-line. Considerando o maior número de downloads (mais de 100.000) e a adesão de psicólogos de todo o Brasil, o FalaFreud foi o mais relevante. Investigamos o site, blog, YouTube, Instagram, Facebook e aplicativo da empresa, para construir uma constelação imagética do objeto em estudo. Tabulamos os dados sobre foco de atendimento dos psicólogos, abordagem psicológica e existência de registro no Conselho Federal de Psicologia. Transcrevemos os vídeos (FalaFreud, 2018aFalaFreud (2018a, 14 de dezembro). Saiba como surgiu o FalaFreud, app pioneiro de terapia online no Brasil. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/3IBOlm7
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, 2018bFalaFreud (2018b, 12 de dezembro). Como é a terapia online no FalaFreud - Cenário Econômico 2018. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/3z4N0RE
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, 2018cFalaFreud (2018c). FalaFreud Aplicativo de Terapia e Psicólogos online [Programa de Computador e Smartphone]. Recuperado de https://bit.ly/3nYpDmb
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) do canal da empresa no YouTube e analisamos as imagens associadas às postagens no blog e Instagram2 2 As análises apresentadas aqui e aquelas derivadas dos dados imagéticos mereceram artigos em separado, por sua riqueza e profundidade. .

Investigamos, por fim, a recepção dos clientes do aplicativo. Assim, analisamos comentários dos usuários nas avaliações de uma e cinco estrelas (menor e maior avaliação respectivamente) na Play Store. Incluímos em nossa análise as respostas da empresa FalaFreud a esses comentários3 3 Esses dados de avaliação foram coletados em 31/10/2019. . Seguimos aqui a orientação adorniana, que se contrapõe à ideia da ciência tradicional de orientação pela média, substituindo-a pela ideia de que a verdade de um fenômeno está nos extremos (Adorno, 1950/2019Adorno, T. W. (2019). Estudos sobre a personalidade autoritária (F. L. T. Corrêa, V. H. F. Costa, C. H. Pissardo, Trads.). São Paulo, SP: Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1950)), daí a escolha pela análise dos comentários das avaliações nos extremos inferior e superior.

Utilizamos o Iramuteq, software gratuito de análise estatística e lexicográfica (Camargo & Justo, 2018Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2018). Tutorial para uso do software Iramuteq. Florianópolis, SC: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição - UFSC. Recuperado de https://bit.ly/3hATMT7
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) para analisar os dois corpora textuais: os comentários dos usuários e as respostas da empresa. Nossos resultados derivaram do percurso acima e dos relatórios de dados fornecidos pelo Iramuteq a partir da Análise de Similitude e da Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Buscamos, através desse percurso, dar conta das esferas de produção, reprodução e recepção, importantes para compreender o fenômeno da comunicação em geral (Adorno, 1969/2002Adorno, T. W. (2002). On the problem of musical analysis. In Essays on music (S. H. Gillespie, Trad., pp. 162-180). Berkeley, CA: University of California Press. (Trabalho original publicado em 1969) ; Antunes, 2016Antunes, D. C. (2016). Estética, percepção e política dos meios de comunicação: uma abordagem metodológica baseada nas reflexões de Adorno sobre a. In B. Pucci, B. C. G. Costa, L. B. O. Silva (Orgs.), Atualidade da Teoria Crítica na Era Global (Col. Teoria Crítica, Vol. 4, pp. 140-161). São Paulo, SP: Nankin. ) e da comunicação digital de psicoterapeutas e clientes por aplicativo de terapia on-line, em específico.

Resultados: apresentação e análise

No mergulho netnográfico no aplicativo, verificamos que o acesso às suas funcionalidades se dava partir de um cadastro feito por uma associação com as contas do Google ou do Facebook - a partir do compartilhamento de informações entre as empresas - ou pelo preenchimento de informações como nome, e-mail e senha. O cadastro levava à página da “psicóloga-chefe”, com foto, nome e cargo. Ela informava a necessidade de completar o perfil para encontrar o psicólogo mais adequado.

Parecia uma conversa por chat com a psicóloga chefe, que era, na verdade, um bot (um chat automático de coleta de dados), motivo da terapia, se já esteve em terapia antes, idade, sexo, escolaridade, profissão, cartão de crédito, renda mensal e acesso ao FalaFreud. As perguntas sobre profissão e idade eram de resposta aberta, as demais, de opções pré-estabelecidas. Por exemplo, para a pergunta sobre o motivo da terapia podia-se escolher ansiedade, depressão, problemas no relacionamento/família e outro. Para renda mensal acima de cinco mil reais, havia 30 minutos de terapia gratuita. Quando se indicava um valor abaixo, não havia esse “brinde”.

Ao final do chat aparecia um cardápio com dez psicólogos on-line, com foto, nome, tempo de experiência, número de cadastro no Conselho Regional de Psicologia (CRP), universidade de formação, breve descrição, especialidade e um vídeo. Após a escolha do psicólogo, mostrava-se a tela para informar os dados do cartão de crédito (ainda que no cadastro o cliente disse não possuir) e a quantidade de sessões compradas. Não era informado tratar-se de uma assinatura mensal, assim, o número de sessões a serem realizadas por mês era escolhido antes do primeiro contato com o psicoterapeuta. Por fim, aparecia a opção “começar terapia”, que levava o usuário a um chat com o profissional escolhido. Após o cadastro, a tela do aplicativo continha as opções: chat, agendamentos, configurações (perfil do usuário, blog do FalaFreud, suporte de dúvidas, avaliação do aplicativo, recomendações) e registro de humor.

A relação entre cliente e terapeuta era mediada pelo aplicativo do início ao fim. O sistema de captação de dados do aplicativo buscava compatibilizar os perfis de cliente e profissional (FalaFreud, 2018aFalaFreud (2018a, 14 de dezembro). Saiba como surgiu o FalaFreud, app pioneiro de terapia online no Brasil. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/3IBOlm7
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) através do registro das atividades e das avaliações do psicólogo, ao final das sessões, de uma a cinco estrelas, dos comentários e o cruzamento desses dados.

Os vídeos da empresa no YouTube (FalaFreud, 2018aFalaFreud (2018a, 14 de dezembro). Saiba como surgiu o FalaFreud, app pioneiro de terapia online no Brasil. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/3IBOlm7
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, 2018bFalaFreud (2018b, 12 de dezembro). Como é a terapia online no FalaFreud - Cenário Econômico 2018. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/3z4N0RE
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, 2018cFalaFreud (2018c). FalaFreud Aplicativo de Terapia e Psicólogos online [Programa de Computador e Smartphone]. Recuperado de https://bit.ly/3nYpDmb
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) apresentavam o FalaFreud como serviço psicológico, promoviam publicidade e definiam a terapia on-line. Entre eles, estavam aqueles apresentados no cardápio de psicoterapeutas do aplicativo. No canal, também havia entrevistas com Yuri Faber em programas de TV aberta e canais de empreendedorismo sobre o surgimento do FalaFreud e seu funcionamento.

O conteúdo do site FalaFreud.com apresentava a terapia on-line como flexível, de baixo custo e disponível em qualquer lugar, formas de ingresso dos profissionais e seu modo de funcionamento. Nele encontrava-se a lista dos psicólogos cadastrados, fotos, número de CRP, abordagens, focos de atuação, anos de experiência e universidades de formação. A maior parte dos profissionais eram da região sudeste (20 registros referentes ao estado de São Paulo, 15 de Minas Gerais, 13 do Rio de Janeiro e 12 do Paraná, no Sul, de um total de 77 de todas as regiões do Brasil, mais 2 sem registro encontrado4 4 Levantamento realizado em 21 de setembro de 2019. ). A mistura de abordagens era comum, embora, segundo Faber (FalaFreud, 2018aFalaFreud (2018a, 14 de dezembro). Saiba como surgiu o FalaFreud, app pioneiro de terapia online no Brasil. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/3IBOlm7
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), a Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) parecia mais relevante na análise dos dados captados pelo aplicativo, e era a abordagem preferencial na inclusão de psicólogos - o que fazia com que muitos se apresentassem como “psicanalistas e TCC”, por exemplo. O blog continha textos sobre sintomas/diagnósticos, medicamentos, benefícios da terapia on-line e relacionamentos.

Os comentários dos clientes que avaliaram o aplicativo com uma e cinco estrelas e as respostas da empresa, trabalhados pelo Iramuteq, deram origem aos dendogramas e gráficos de similitude presentes no artigo, dos quais derivamos as análises nos seguintes temas principais: (1) tecnologia como entrave à terapia (comentários dos usuários nas avaliações de uma estrela); (2) usuário como entrave ao lucro (resposta da empresa às avaliações de uma estrela); (3) terapia distante do aplicativo (comentários dos usuários nas avaliações de cinco estrela); (4) felicidade como obrigação (resposta da empresa às avaliações de cinco estrela).

Tecnologia como entrave à terapia

Para construir este corpus textual5 5 Não foi possível inserir na análise as avaliações na Apple Store, uma vez que não é possível retirar informação do seu sistema fechado. , foram coletados todos os 281 comentários. Após análise mais básica quanto à frequência de palavras e ao número de segmentos de texto, todos os corpora foram submetidos à Classificação Hierárquica Descendente, encontrando similaridades e coocorrências nos textos6 6 Para tanto, o corpus foi dividido em 364 segmentos de texto com 1226 palavras lematizadas, ou seja, reduzidas ao seu radical; 1011 formas ativas e 22 formas suplementares, com média de 24.33 formas por segmento de texto, considerando 64.01% (233) dos segmentos de texto. Para maiores informações sobre a análise realizada com o Iramuteq, entrar em contato com as autoras. .

Os resultados das três classes de palavras apresentadas na Figura 1 tornam perceptível a relação do acesso à terapia on-line e seu pagamento, expressos pelas palavras mais recorrentes em cada classe, bem como os grupos de sentidos a elas pertencentes. Na classe 1, a palavra mais recorrente é “cartão”, referente ao cartão de crédito, única opção de pagamento do aplicativo. Os “erros de cobranças” eram um dos motivos principais da nota mínima dos usuários (36,48%). Na classe 2 (19,74%), há outro sentido para “cartão”, referido agora em relação a uma suposta falsa propaganda por parte da empresa em divulgar o app como gratuito. Na classe 3 (43,78%), “psicologia” é o termo mais recorrente. Aqui, os comentários questionam a ética do app e seus profissionais.

Figura 1
CHD - Comentários de usuários com avaliação de uma estrela | Fonte: Elaboração própria.

O motivo mais frequente de baixa avaliação era o desconforto em relação às falhas denunciadas. Podemos afirmar, ainda, que a presença da subdivisão em que se encontram as classes 3 e 2, onde as palavras “psicologia” e “pagar” são os termos mais recorrentes, também aponta essa ideia, pois nessa subdivisão a ética psicológica e a divulgação de um falso serviço gratuito também são motivos de descontentamento.

Os comentários referem-se ao aplicativo enquanto empresa. A análise de similitude mostra claramente como a política do aplicativo em si - vinculada à lógica neoliberal que aqui, no âmbito da psicoterapia na internet, aparece como uma lei social geral derivada da lógica do capital, parafraseando Laval (2019Laval, C. (2019) A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público (M. Echalar, Trad., 2a ed.). São Paulo: Boitempo.) em outro contexto - é o foco quando se estuda as baixas avaliações recebidas por ele.

Figura 2
Análise de Similitude - Comentários de usuários com avaliação de uma estrela | Fonte: Elaboração própria.

Como observado em nosso estudo netnográfico, ao inserir os dados do cartão para o pagamento da sessão, o aplicativo cobrava automaticamente o mesmo valor todos os meses até a “alta” do cliente pelo psicólogo. Além disso, o usuário tinha 30 dias para fazer todas as sessões pagas em determinado mês, “perdendo seu dinheiro” caso não conseguisse agendar todas as sessões no período determinado. Essas regras não estavam no aplicativo e deixam transparecer o foco no lucro da empresa sem respeito a qualquer regulamentação. Conforme os comentários da classe 1 e 2:

péssimo não tem um botão pra cancelar a assinatura você tem que pedir ao seu terapeuta pedi o cancelamento dia 5 de junho e para minha surpresa hoje quando abri meu aplicativo de cartão de crédito debitaram mais um mês [sic] (Usuário 1)

experiência lamentável socorro gente estou sendo assaltada pelo aplicativo me veio uma cobrança de 299 reais no cartão de crédito mesmo depois de ter cancelado o serviço o que está acontecendo vou acionar a polícia [sic] (Usuário 3)

A autonomia da negociação das sessões, valores e formas de pagamento que fazem parte da relação terapeuta-cliente é subjugada aqui, e em seu lugar reina a lógica do capital, em que tanto cliente, quanto terapeuta encontram-se enredados. A relação terapeuta-cliente é prejudicada de diversas formas, afinal de contas, como é possível estabelecer um vínculo de confiança, respeito e cuidado em uma situação em que ao menos uma das partes sente-se enganada?

Salientamos que não é toda tecnologia que opera como entrave à psicoterapia em geral, e à psicoterapia pela internet em particular. Quando se vive em um mundo em que a tecnologia afasta as pessoas - cada qual em seus carros, smartphones e tablets, por exemplo, ainda que compartilhando o mesmo espaço físico -, é ela quem também pode apresentar outra face como possibilidade de aproximação, num movimento dialético onde as possibilidades de superação do dado estão sempre existentes. A questão é a existência de um aplicativo específico apresentado como solução facilitadora da mediação entre cliente e terapeuta, que geralmente é acessado por quem encontra-se já em situação de vulnerabilidade emocional, e o modo como essa situação é utilizada, aumentando o sofrimento de modo material. Aqui, são compreensíveis os questionamentos nos comentários (classe 3) a respeito da ética psicológica nesse contexto:

os termos de uso do aplicativo ferem vários artigos e parágrafos do código de ética da profissão da psicologia principalmente o parágrafo f do artigo 2 que diz que é proibido o profissional prestar serviços ou vincular o título de psicólogo a serviços de atendimento psicológico cujos procedimentos [sic] (Usuário 4)

violação da ética profissional violação do código de ética do psicólogo indução ao usuário de que é um serviço de psicoterapia on-line não é um serviço de psicoterapia on-line [sic] (Usuário 5)

O problema é uma cisão que parece operar na psicologia ao ser mediada pelo aplicativo de terapia on-line e sua lógica atrelada a outro modus operandi no qual não faz sentido a adesão ao código de ética do psicólogo, à medida que uma coisa é a tecnologia e sua neutralidade aparente, e outra é o fazer psicológico em si durante as sessões - uma cisão verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Verdadeira porque é o modo como se apresenta na superfície da realidade material/virtual; falsa porque à psicoterapia pertence todo um campo de relações, mediações e acontecimentos que incluem o aplicativo escolhido por cliente e terapeuta para a realização de seus encontros. Dentre os comentários da classe 3, no entanto, encontramos psicólogos atentos aos problemas do aplicativo, ainda que seus comentários sejam pouco elaborados, talvez pela limitação de caracteres. Alguns psicólogos de fato reconhecem o aplicativo como engodo, enquanto outros acabam por aderir a ele como ferramenta dos atendimentos.

Usuário como entrave ao lucro

Coletamos as 168 respostas da empresa às avaliações de uma estrela7 7 O corpus foi dividido em 177 segmentos de texto com 529 palavras lematizadas; 389 formas ativas e 19 formas suplementares, com média de 23.08 formas por segmento de texto e considerando 72.88% (129) dos segmentos de texto. . Ao relacionar os resultados das cinco classes de palavras do dendograma, observamos a relação dos agradecimentos e feedbacks aos usuários com respostas padronizadas e justificativas do modo de funcionamento do aplicativo, expressos pelas palavras mais recorrentes em cada classe, bem como os grupos de sentidos a elas pertencentes.

Na classe 1, a palavra mais recorrente é “obrigar”, redução de “obrigada” feita pelo Iramuteq, palavra que se repete em quase todos os comentários aqui, mesmo os mais ríspidos. Os textos aqui são padronizados, seguindo o modelo “muito obrigado pela sua mensagem sentimos que não tenha tido uma boa experiência em nossa plataforma vamos levar o feedback para nossa equipe trabalhar melhor esse detalhe levantado por você [sic]” (Resposta FalaFreud 1) (22,48%).

Figura 3
CHD - Respostas da empresa aos comentários de uma estrela | Fonte: Elaboração própria.

Na classe 2, a palavra mais recorrente é “plano”, indicando a necessidade de assinatura mensal do serviço, única forma de acesso aos psicólogos no aplicativo - as sessões não poderiam ser pagas de modo “avulso” (22,48%). Na classe 3, por sua vez, temos “suporte” como palavra mais recorrente, indicando ao usuário que entre em contato com o serviço de suporte para solucionar seu problema - parece que o grande entrave é o usuário não buscar ajuda pelo meio correto (26,36%).

“Site” aparece como a primeira palavra da classe 4. Seu contexto é das respostas que indicam aos usuários que deveriam ter se informado sobre o aplicativo no site da empresa antes de utilizá-lo (13,95%). A palavra “selecionar” é a primeira da classe 5 com 14,73%, e indica o suposto processo criterioso de seleção dos psicólogos que trabalhavam no aplicativo, justificando o custo do serviço divulgado como “acessível”. Os “erros de cobranças” gerados pelo aplicativo foram justificados por uma falta de compreensão dos usuários a respeito de seu funcionamento e características.

Os comentários apontam, portanto, o cliente como quem não compreende a política do aplicativo pertencente a uma empresa. A análise de similitude mostra como as respostas aos usuários os colocam como figura central - não seguindo a ideia do liberalismo econômico, a partir da regulamentação do mercado pela lei da oferta e da procura, de que “o cliente sempre tem razão”, mas colocando-os como a fonte real dos problemas que eles mesmos encontram ao acessar a plataforma em questão. Parece haver uma batalha entre usuários, que focam nos problemas do aplicativo como mostrado anteriormente, e o aplicativo, que coloca os usuários como a fonte do problema.

A individualização de um problema estrutural é característica de um momento histórico em que é cada vez mais difícil encontrar-se em coletividades, que coloca cada ser individual como responsável por si mesmo a despeito de seu contexto social, econômico e político. Essa lógica parece se repetir tanto no descontentamento daqueles em relação ao aplicativo, quanto nas respostas da empresa a esses usuários.

Quando a empresa responde que precisa cobrar para ter sua fonte de renda, isso é uma obviedade que, no entanto, parece que precisa ser mostrada. Numa sociedade de classes, serviços de saúde são serviços de acesso limitado, porque são ainda privilégio de uma parcela da população - o que claramente não justifica cobranças indevidas e falta de esclarecimento sobre sua política de funcionamento, mas é preciso compreender que a lógica do capital é ela mesma avessa à ética - assim como a lógica da economia do compartilhamento (Slee, 2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (J. Peres, Trad.). São Paulo, SP: Elefante.) é avessa a quaisquer regulamentações, gerando um trabalho cada vez mais precarizado e um foco cada vez menor no bem estar coletivo. Quando um serviço de saúde se atrela a um aplicativo do Vale do Silício, o abismo dessa relação aumenta exponencialmente.

Figura 4
Análise de Similitude - Respostas da empresa às avaliações de uma estrela | Fonte: Elaboração própria.

Terapia distante do aplicativo

Para realizar essa análise, foram coletados todos os 658 comentários8 8 Em sua análise de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), esses comentários foram divididos em 749 segmentos de texto com 1391 palavras lematizadas; 1159 formas ativas e 22 formas suplementares, com média de 19.91 formas por segmento de texto e considerando 93.32% (699) dos segmentos de texto. das avaliações de cinco estrelas. Ao relacionar os resultados das quatro classes de palavras apresentadas no dendograma da Figura 5, observamos a relação da ideia de terapia com o ato de falar, e os adjetivos “ótimo” e “bom”.

Figura 5
CHD - Comentários de usuários com avaliação de cinco estrelas | Fonte: Elaboração própria.

Na classe 1, a palavra com maior recorrência é “ótimo”, e refere-se aos elogios aos profissionais terapeutas na experiência dos clientes com eles. A esta classe estão relacionados comentários como “muito bom adorei o atendimento a psicóloga é um amor e uma ótima profissional super recomendo [sic]” (Usuário 7) (36,34%).

Na classe 2 (25,18%), por sua vez, a palavra com maior recorrência é “falar”, e indica a importância de falar com um terapeuta disponível seja nas sessões, seja nas mensagens do chat do aplicativo. Nas palavras do Usuário 9: “a minha terapeuta está quase sempre disponível responde na hora ou um pouco depois sobre o valor acho que compensa porque é o valor mensal no consultório que você vai uma vez por semana e por aqui você fala praticamente todos os dias [sic]”. Nota-se que nos comentários dessa classe, a ênfase recai na disponibilidade 24/7 (Crary, 2016Crary, J. (2016). 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo, Trad.). São Paulo, SP: Ubu.) dos terapeutas, que podem, em tese, ser acessados a qualquer hora do dia e da noite. Segundo o Usuário 10: “quando estou triste mando mensagem para ele a hora que eu quiser e isso me ajuda muito estou pelo terceiro mês seguido muito obrigada pelo serviço prestado aplicativo sensacional [sic]”. Estamos diante do fenômeno da “Uberização” e precarização do trabalho do psicólogo dentro da dinâmica de um profissional liberal transformado em um “novo proletariado de serviço”, nas palavras de Antunes (2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.), reconhecido pelo cliente como benefício de quem leva um produto com desconto.

“Bom” é a palavra mais recorrente da classe 3 (11,3%). Os comentários, no entanto, são de pessoas que não usaram o aplicativo, mas indicam que ele “[...] parece muito bom depois venho falar da minha experiência [sic]” (Usuário 11). Não se trata, portanto, nem de uma avaliação real do aplicativo, nem do processo de terapia em si. Na classe 4 é onde a palavra “terapia” aparece como o termo mais recorrente (27,18%), e os comentários são elogios bastante gerais sobre a importância de fazer terapia: “a terapia é importante para mim porque me ajuda a lidar com questões complexas da vida nesse sentido a ajuda profissional faz com que a gente consiga viver a vida com mais qualidade e na sua plenitude [sic]” (Usuário 13) - são comentários, portanto, que não se referem nem ao aplicativo e suas supostas vantagens, nem aos profissionais que trabalham nele. Essa classe aparece como uma cisão em relação às anteriores, mais bem visualizada na Figura 6:

Figura 6
Análise de Similitude - Comentários de usuários de 5 estrelas | Fonte: Elaboração própria.

Na Figura 6, é notório como as altas avaliações do aplicativo dividem-se em dois grandes eixos: aquelas que mencionam o aplicativo (seja para elogiar os profissionais ali cadastrados, ou a precarização desse trabalhador, seja para dizer que ainda irão utilizar o aplicativo), e aquelas que apontam terapia como algo importante, mas desvinculadas do aplicativo. É interessante como, em um olhar mais atento a essas análises, pode-se perceber como a terapia aparece distante do aplicativo, operando uma denúncia involuntária, mesmo quando a intenção seria tecer elogios e, de certa forma, colaborar com uma “propaganda”. A imagem do gráfico de similitude, esteticamente, rememora a imagem de um pulmão, como se nos fizesse lembrar o que mantém “respirando” a empresa.

Felicidade como obrigação

Foram coletadas as 561 respostas da empresa às avaliações de cinco estrelas9 9 O corpus foi dividido em 561 segmentos de texto com 229 palavras lematizadas; 150 formas ativas e 11 formas suplementares, com média de 16.10 formas por segmento de texto e considerando 78.61% (441) dos segmentos de texto. . Ao relacionar os resultados das duas classes de palavras apresentadas na Figura 7, observamos o destaque da palavra “expectativa”, a mais recorrente da classe 1 (67,8%), com mais repetição das respostas, embora com uma quantidade de palavras menor: expectativa, plataforma, atender, mensagem, obrigar, feliz e ficar.

Figura 7
CHD - Respostas do aplicativo às avaliações de 5 estrelas | Fonte: elaboração própria.

Essa classe representa a resposta padronizada aos comentários elogiosos dos usuários, conforme segue: “muito obrigado pela sua mensagem ficamos felizes em saber que a plataforma atende suas expectativas [sic]” (Resposta FalaFreud 6). Na classe 2 (25,18%), a palavra mais recorrente é “estar”. Essa classe também é formada por respostas padronizadas, mas com alguma variação - o que justifica a lista maior de palavras -, conforme segue:

usuário ficamos felizes com a sua avaliação e por saber que nosso serviço está ajudando se precisar de alguma ajuda por favor entre em contato pelo suporte do aplicativo [sic] (Resposta FalaFreud 7).

usuário, ficamos felizes em saber que você está gostando da terapia e do falafreud conte conosco para o que precisar [sic]. (Resposta FalaFreud 8).

O conjunto de respostas padronizadas indica uma escolha deliberada de palavras, em especial para forjar a ideia de que todos aqueles que avaliaram bem o aplicativo na Play Store são, de fato, usuários/clientes. Isso porque é notável como reafirmam que todos estão gostando, estão satisfeitos com o FalaFreud, mesmo que não tenham indicado que realmente usam o aplicativo na avaliação. A Figura 8, abaixo, produz um insight interessante de interpretação:

Figura 8
Análise de Similitude - Respostas do aplicativo às avaliações de cinco estrelas | Fonte: elaboração própria.

Na Figura 8, vemos três nós principais a partir das palavras “obrigar”, “ficar” e “feliz”, que resulta em outras ramificações menores. E realmente parece, pelo padrão de respostas da empresa, que eles tentam incutir a ideia de que seus clientes estão felizes, na tentativa de passar credibilidade sobre seus serviços.

Discussão

Os dados e análises apresentados indicam uma constelação de problemas vinculada à relação que se estabelece entre a clínica psicológica e o modelo de negócios de aplicativos liderado pela ideologia do Vale do Silício, segundo a qual, os dados são o novo petróleo, o conteúdo é rei e para sobreviver, devemos ser disruptivos (Greene, 2018Greene, L. (2018). Silicon States: the power and politics of big tech and what it means for our future. Berkeley, CA: Counterpoint LLC.). Uma inovação disruptiva é aquela capaz de criar um novo mercado e uma nova rede de valores, e que é capaz de desestabilizar e romper com mercados existentes, substituindo empresas, produtos e alianças estabelecidas. Economia de compartilhamento é o nome que se dá aos negócios realizados por via da internet, conectando consumidores e provedores de serviço - caso de aplicativos como Uber, iFood, Airbnb (Slee, 2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (J. Peres, Trad.). São Paulo, SP: Elefante.) e FalaFreud. Trata-se de uma empreitada de “remodelamento” da sociedade, em vistas de construir um “futuro melhor” - em nome do progresso e da ideologia segundo a qual o que se busca é a resolução mais rápida possível dos problemas que assolam a humanidade, muitas vezes passando por cima de legislações e acordos de classes e entidades profissionais, e sem atingir a raiz desses mesmos problemas sociais.

As grandes empresas de tecnologia, as chamadas Big Tech, já possuem inúmeros e valiosos dados sobre a nossa vida: nossos caminhos, rotas e mapas, espaços em que vivemos - onde moramos, estudamos e trabalhamos, a casa de quem frequentamos, são capazes de dizer e predizer questões íntimas, como gravidez e término de relacionamentos, nossa “estrutura de personalidade” e preferências ideológicas pela análise de nossas pegadas digitais (Antunes, 2019Antunes, D. C. (2019). Notas para pensar a indústria cultural na era digital. In W. D. Guilherme (Org.), Filosofar: Aprender e Ensinar (pp. 143-153). Ponta Grossa, PR: Atena.; Antunes & Maia, 2018Antunes, D. C., & Maia, A. F. (2018). Big Data, exploração ubíqua e propaganda dirigida: novas facetas da indústria cultural. Psicologia USP, 29(2), 189-199. doi: 10.1590/0103-656420170156
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). As informações pessoais registradas no aplicativo FalaFreud, além de ferir o sigilo profissional na medida em que os dados dos clientes são usados para a venda de mais produtos através do marketing digital e a manutenção de uma necessidade forjada pela ferramenta de continuidade de utilização, interferem na relação psicoterapeuta-cliente, submetendo-a à lógica do capital neoliberal, ao individualismo exacerbado, à culpabilização do cliente por suas mazelas e à consequente geração de mais sofrimentos a quem já se encontra em estado de vulnerabilidade social e emocional. Aqui encontra-se um ponto nodal: a responsabilidade ético-política do psicólogo clínico ao escolher os meios através dos quais oferece seus serviços, ao mesmo tempo em que essa escolha se refere também ao lugar que ocupa no mundo do trabalho - profissional liberal ou proletariado de serviços (Antunes, 2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.)/cibertariado (Huws, 2017Huws, U. (2017). A Formação do Cibertariado: Trabalho Virtual em um Mundo Real (M. Laan, Trad.). Campinas, SP: Unicamp.)?

Antunes (2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.) nos alerta que enquanto o profissional liberal era dono de seu saber e meios de produção, mas também de todo o valor gerado por seu trabalho, o proletariado de serviços é dono de seus instrumentos de trabalho, arca com suas despesas de seguridade, com os gastos de manutenção de seus espaços de trabalho, alimentação, limpeza e assim por diante, e o aplicativo, por sua vez, uma empresa privada, promove um “assalariamento disfarçado sob a forma de trabalho desregulamentado” (p. 35), e, assim, acaba por se apropriar da mais valia gerada pelo serviço, sem preocupação com deveres trabalhistas e direitos dos trabalhadores. Embora apareçam como solução em benefício de profissionais e clientes, utilizando o discurso de empoderamento, esses aplicativos acabam por, na realidade, beneficiarem apenas seus empreendedores, enfraquecendo ainda mais aqueles que estão no ponto mais frágil da relação de inclusão e exclusão social e laboral.

Vale lembrar que o trabalho varia com seu contexto e cultura, e sua realidade depende da sociedade em que existe (Marx, 1867/2011Marx, K. (2011). O Capital [Livro I] crítica da economia política. O processo de produção do capital (R. Enderle, Trad., Col. Marx & Engels, Vol. 1, 2a ed.). São Paulo, SP: Boitempo . (Trabalho original publicado em 1867)). Esta sociedade é permeada não só pela tecnologia, mas pelo ideal de produtividade e felicidade que se construiu principalmente através do consumo. A crítica aqui não se limita ao uso do aplicativo, ou à tecnologia de modo geral. Concordamos com Morozov (2018Morozov, E. (2018). Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política (C. Marcondes, Trad.). São Paulo, SP: Ubu ., p. 30): nosso real inimigo não é a tecnologia genérica, e sim “o atual regime político e econômico ... que recorre às tecnologias mais recentes para alcançar seus horrendos objetivos (mesmo que lucrativos e eventualmente agradáveis)”. O Vale do Silício por si só não é o cerne do problema. Ele seria, no entanto, a parte mais exposta, escondendo os problemas reais que precisamos resolver; como, por exemplo, a promessa de liberdade ao passo que excede na vigilância, fazendo com que todos os aspectos de nossa vida possam gerar lucro - inclusive a saúde mental e a promessa de felicidade.

Essa suposta “liberdade”, no entanto, tem um alto preço a ser pago, pois, à medida que nos conectamos ao mundo digital, em sua formatação atual, precisamos disponibilizar nossos dados. Com tais informações, criam-se aplicativos que buscam “resolver” problemas que são por vezes criados pela própria indústria. Portanto, os aplicativos do Vale do Silício são apenas uma pequena parcela do grande problema. Eles criam ferramentas, mas não discorrem “sobre os sistemas sociais, políticos e econômicos que são viabilizados ou inviabilizados, ampliados ou atenuados por essas mesmas ferramentas” (Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política (C. Marcondes, Trad.). São Paulo, SP: Ubu ., p. 41).

E é permeado por estas ferramentas que o indivíduo se constitui, pois ele é atravessado pela sociedade em que habita e é apresentado constantemente a um mundo construído a partir de seus dados coletados pelos algoritmos das redes. À medida que cresce o recebimento de informações relevantes, o sujeito é orientado pela tecnologia na sedimentação e reificação de determinados “aspectos considerados ‘naturais’ como suas necessidades, afetos, desejos, seu pensamento e forma de interpretar o mundo” (Maia, 1998Maia, A. F. (1998). Apontamentos sobre ética e individualidade a partir da Mínima Moralia. Psicologia USP , 9(2), 151-177. doi: 10.1590/S0103-65641998000200006
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, p. 166).

Por ser sedimentação de seu processo social, o sujeito em sua individuação é um potencial consumidor que gerará lucro para quem busca preservar o elemento de falsidade das plataformas, reafirmando o que Adorno (1951/1993Adorno, T. W. (1993). Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada (L. E. Bica, Trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1951), p. 200) já havia destacado em suas reflexões sobre a vida danificada: “tudo que é individuado funciona como mero agente da lei do valor”. A questão aqui não é propriamente a hipotética de uma psicoterapia realizada pela internet, mas a utilização bastante problemática de determinados aplicativos como mediadores da relação terapeuta-cliente. Se o psicoterapeuta encontra reveses na construção de seu caminho profissional e segurança financeira, especialmente no início de sua prática, a adesão a mecanismos de mediação com o cliente como o FalaFreud acaba por fragilizar ainda mais esse campo de trabalho e se faz cada vez mais urgente discutir dentro das universidades e formações de psicólogo esse mundo do trabalho ao qual ele deverá adentrar, suas alternativas e possibilidades como alguém que, em seu fazer, também constrói esse mundo.

As tecnologias da informação e comunicação são parte de uma realidade da qual é ineficaz qualquer tentativa de evitar e fugir. Ela faz parte do mundo a nossa volta, do nosso universo particular, e do universo de nossos clientes. Como partícipes da construção desse universo, a questão que se coloca é a de como nos apropriaremos (como criadores, agentes reais e responsáveis) das tecnologias e promoveremos experimentações e transformações a fim de que se tornem potentes auxiliares na prática da psicoterapia. Aqui propomos um paralelo com uma discussão já mais avançada em um campo bastante próximo à psicologia, a educação.

Desde o surgimento da Universidade Aberta do Brasil (UAB), suas contradições na sociedade industrial avançada e do neoliberalismo têm sido analisadas em um sentido próximo ao nosso. Em meio à vantagem de acesso amplo ao ensino, Pucci (2010Pucci, B. (2010). Educação a Distância (EAD) virtual e formação de professores no Brasil: considerações sobre as políticas educacionais a partir de 1996. Piracicaba, SP: Unimep.) aponta o uso das tecnologias na educação e na relação ensino/aprendizagem com promotor da ideologia do homo economicus como programa da educação superior a básica, a compreensão da educação como um serviço e a ênfase na informação pontual, a grande mercadoria do capitalismo global. Zuin (2006Zuin, A. A. (2006). Educação a distância ou educação distante? O Programa Universidade Aberta do Brasil, o tutor e o professor virtual. Educação & Sociedade, 27(96), 935-954. doi: 10.1590/S0101-73302006000300014
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) questiona a Educação a Distância (EaD), que contradiz o princípio educacional ao se realizar como uma educação distante, em que os meios ganham status de fins e na qual a formação cultural e a relação intersubjetiva são assoladas pela temporalidade e pelo pragmatismo de organizações monetárias internacionais (Cronos), deixando de lado o tempo subjetivo da experiência (Kairós). Reconhecem, ambos, a importância da crítica radical como ponto de apoio para a emancipação da sociedade e do indivíduo, pois a consciência da realidade e de seus processos históricos fomentam a criação e o manejo libertário de tecnologias, a ponto de possibilitar que se irrompa o potencial que, como fruto do trabalho humano, elas guardam de livrar-nos de uma vida cativa.

A partir do ponto de virada estética da crítica, Santos (2010) distingue EaD e Educação On-line. Enfatiza nesta não apenas o aspecto informacional da internet, mas sobretudo criacional e colaboracional, e aponta processos de criação de dispositivos que permitam a experiência de práticas interativas. A criação do devir adentra a dinâmica das relações pela internet possibilitada pela plasticidade do digital e da compreensão de que os encontros on-line são um universo múltiplo e em rede - na configuração de um corte epistemológico e metodológico.

Seguindo um raciocínio similar, propomos uma distinção entre psicoterapia mediada por computadores10 10 O termo utilizado pelo Conselho Federal de Psicologia em suas resoluções atuais é “Prestação de serviços psicológicos mediada por tecnologias da informação e da comunicação”. Utilizamos em nossa escolha a palavra “computadores” como sinônimo das atuais “tecnologias da informação e da comunicação”, na medida em que os dispositivos atuais utilizados para a comunicação são também computadores, ou seja, máquinas destinadas ao processamento de dados, capazes de obedecer a instruções que visam produzir certas transformações nesses dados para alcançar um fim determinado (Oxford Languages, 2020): tablets, smartphones, laptops e desktops. Além disso, em nosso artigo, nos referimos à psicoterapia em específico, diferentemente do Conselho, que em suas resoluções faz referência a um apanhado maior de serviços que podem ser realizados por psicólogas e psicólogos. , e terapia on-line, a distância ou remota. Na psicologia, o termo terapia on-line é bastante utilizado, inclusive no marketing dos aplicativos como o FalaFreud. O termo deve ser reservado, assim, para o tipo de terapia mediada por aplicativos especializados a partir da conjuntura da economia do compartilhamento, da precarização do trabalho do psicoterapeuta transformado em cibertariado e de uma relação frágil e de fragilização com o cliente instigado a buscar soluções fáceis para seus problemas individualizados - onde a ênfase está no “on-line” e não na psicoterapia em si. Quando pensamos em uma psicoterapia mediada por computadores enfatizamos a própria terapia que deve ter seus objetivos independentes do “espaço” material ou virtual em que é realizada, ou ainda, que deve (est)eticamente se apropriar desses espaços em benefício do bem-estar subjetivo e do desenvolvimento emocional do cliente. O meio pelo qual terapeuta e cliente se comunicam é capaz de interferir como forma no conteúdo fundamental da relação terapêutica. A compreensão do humano em sua multideterminação continua fundamental, e, a partir de uma visão não reducionista, a prática deve proporcionar encontros potentes e transformadores, aliando conhecimento teórico e técnico, a um ambiente de acolhimento e afetividade, independente da via de contato.

Considerações finais

Esta pesquisa se desenvolveu durante um período de transição, no qual o CFP regulamentou a prestação de serviços psicológicos on-line na resolução 11/2018. A prática da psicoterapia a distância perdeu seu caráter experimental e diferentes iniciativas se apropriaram desse formato. À vista desse panorama, empresas de aplicativos como o FalaFreud encararam este momento como oportunidade para expansão dos seus negócios, por meio de serviços que já eram atuantes, ainda que de modo inicialmente irregular.

Nesse sentido, evidencia-se que a conjuntura na qual se constrói o aplicativo FalaFreud advém de uma demanda mercadológica. Ao se apropriar de uma reconfiguração do atendimento psicoterapêutico, a empresa impele os profissionais colaboradores a uma adequação à plataforma on-line, a “baixo custo”. Esse processo embota a autonomia dos psicólogos na relação com seus pacientes e o serviço de cuidado em saúde mental é exposto com o mesmo trato que um cardápio on-line, no qual diferentes quadros de sofrimento psíquico são revelados como hashtags de um próximo pedido para o almoço. Lembramos que o acesso gratuito e universal aos serviços de saúde mental deve ser garantido constitucionalmente pelo Estado, e a tentativa de “resolver” o problema de sua falta via aplicativos como o aqui analisado apenas fragiliza ainda mais psicólogos e seus clientes.

No momento em que os resultados dessa pesquisa vêm a público, vivemos uma pandemia que aumenta a oferta de serviços de psicoterapia on-line. Em março de 2020 foi promulgada pelo CFP a resolução 04/2020 que regulamentou a prestação de serviços psicológicos por meio de Tecnologias da Informação e da Comunicação durante a pandemia da covid-19. A normativa suspende, de forma excepcional e temporária, alguns componentes da Resolução CFP nº 11/2018, visando flexibilizar esta forma de atendimento e, assim, evitar a descontinuidade da assistência à população nos próximos meses (CFP, 2020Conselho Federal de Psicologia. (2020). Resolução CFP nº 4, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Recuperado de https://bit.ly/3RtS0X5
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). São eles: (1) a prestação de serviços de forma condicionada à realização de um cadastro prévio junto ao CRP; (2) a falta disciplinar do profissional que prestar serviços psicológicos por meios tecnológicos de comunicação a distância, sem o cadastramento no Conselho Regional de Psicologia; (3) o atendimento de pessoas em situação de urgência e emergência, situação de desastres, e situação de violação de direitos ou de violência pelos meios de tecnologia da informação e comunicação.

Ao mesmo tempo em que aumentam as demandas por atendimento psicológico via internet, pululam cursos on-line que prometem ensinar aos psicólogos como atender a distância, contudo, não parece haver espaço para o questionamento das ferramentas utilizadas como meios da psicoterapia. A própria suspensão do cadastro on-line de psicólogos para atendimento via internet no contexto da atual pandemia nos permite questionar os atendimentos realizados hoje de modo massivo, uma vez que uma das exigências para ter autorização de realizar psicoterapia mediada por computadores era apresentar justificativa teórica e metodológica, assim como demonstrar domínio a respeito da abordagem teórica e suas reflexões e pesquisas realizadas a respeito dessa via de atendimento, além de uma justificativa fundamentada da escolha da via/dos programas e aplicativos, através dos quais os atendimentos seriam realizados, incluindo aí a preocupação com o sigilo profissional. Por outro lado, a lista de aplicativos de serviços psicológicos disponíveis na Play Store aumentou consideravelmente, mostrando a relevância deste estudo e a importância de uma postura crítica e sensível de psicoterapeutas na análise e escolha dos mediadores das consultas via web. A questão que se coloca é em que medida a escolha por oferecer serviços através de aplicativos de terapia on-line é uma escolha sensível de suas implicações, responsabilidades e consequências particulares e sociais.

Estamos certas de que as questões levantadas aqui precisam ser colocadas ainda no contexto de formação de psicólogas e psicólogos, junto à compreensão da sociedade em que se atua e ao funcionamento do mercado de trabalho, de modo a criar um terreno fértil para que as escolhas profissionais sejam realizadas de modo consciente e socialmente implicado. A realização de psicoterapia mediada por computadores precisa de criatividade e cuidado, assim como a psicoterapia presencial. Não basta a utilização de ferramentas já criadas, especialmente no contexto dos negócios - mesmo porque tecnologias não são neutras como se costuma pensar, mas carregam em seu cerne todo o programa filosófico, ético-político e epistemológico de seus criadores, como nos lembra Marcuse (1964/2015)Marcuse, H. (2015). O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada (R. Oliveira, D. C. Antunes, R. C. Silva, Trads.). São Paulo, SP: Edipro. (Trabalho original publicado em 1964). Compreendemos que a psicologia deve ser sensível ao fato de que precisa também estar atenta para a adequação das subjetividades, inclusive de seus profissionais, ao mercado de maneira capciosa, o que acaba por ir na contramão da própria ideia de promoção da saúde.

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  • 1
    O aplicativo era comercializado até maio de 2020. Atualmente, ele está fora de circulação, e permanece seu canal no YouTube e Facebook.
  • 2
    As análises apresentadas aqui e aquelas derivadas dos dados imagéticos mereceram artigos em separado, por sua riqueza e profundidade.
  • 3
    Esses dados de avaliação foram coletados em 31/10/2019.
  • 4
    Levantamento realizado em 21 de setembro de 2019.
  • 5
    Não foi possível inserir na análise as avaliações na Apple Store, uma vez que não é possível retirar informação do seu sistema fechado.
  • 6
    Para tanto, o corpus foi dividido em 364 segmentos de texto com 1226 palavras lematizadas, ou seja, reduzidas ao seu radical; 1011 formas ativas e 22 formas suplementares, com média de 24.33 formas por segmento de texto, considerando 64.01% (233) dos segmentos de texto. Para maiores informações sobre a análise realizada com o Iramuteq, entrar em contato com as autoras.
  • 7
    O corpus foi dividido em 177 segmentos de texto com 529 palavras lematizadas; 389 formas ativas e 19 formas suplementares, com média de 23.08 formas por segmento de texto e considerando 72.88% (129) dos segmentos de texto.
  • 8
    Em sua análise de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), esses comentários foram divididos em 749 segmentos de texto com 1391 palavras lematizadas; 1159 formas ativas e 22 formas suplementares, com média de 19.91 formas por segmento de texto e considerando 93.32% (699) dos segmentos de texto.
  • 9
    O corpus foi dividido em 561 segmentos de texto com 229 palavras lematizadas; 150 formas ativas e 11 formas suplementares, com média de 16.10 formas por segmento de texto e considerando 78.61% (441) dos segmentos de texto.
  • 10
    O termo utilizado pelo Conselho Federal de Psicologia em suas resoluções atuais é “Prestação de serviços psicológicos mediada por tecnologias da informação e da comunicação”. Utilizamos em nossa escolha a palavra “computadores” como sinônimo das atuais “tecnologias da informação e da comunicação”, na medida em que os dispositivos atuais utilizados para a comunicação são também computadores, ou seja, máquinas destinadas ao processamento de dados, capazes de obedecer a instruções que visam produzir certas transformações nesses dados para alcançar um fim determinado (Oxford Languages, 2020): tablets, smartphones, laptops e desktops. Além disso, em nosso artigo, nos referimos à psicoterapia em específico, diferentemente do Conselho, que em suas resoluções faz referência a um apanhado maior de serviços que podem ser realizados por psicólogas e psicólogos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2020
  • Aceito
    03 Jul 2022
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