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Adolescência e ato infracional: por que os adolescentes se submetem à criminalidade?

Adolescence and infraction: why do adolescents submit to criminality?

Adolescence et infraction: pourquoi les adolescents se soumettent-ils à la criminalité ?

Adolescencia e infracción: ¿por qué los adolescentes se someten a la criminalidad?

Resumo

Este estudo contribui com a tessitura de uma análise das relações sociais e das formas políticas à luz da psicanálise, e propõe reflexões sobre o desamparo e modalidades de subjetivação de adolescentes em risco de envolvimento com a criminalidade. O estudo foi desenvolvido a partir de escuta clínica de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e teve como objetivo investigar a inserção no laço social pela via do ato infracional. Para isso, foram resgatadas expressões produzidas pelos adolescentes e analisadas a partir de três dimensões: desamparo, pacto com o grupo e violência. Concluiu-se que modalidades de sujeição e exclusão social, nos contextos culturais colonizados, produzem efeitos significativos na subjetividade dos adolescentes, sendo o ato infracional uma possível via de solução para o desamparo, uma inserção no laço social e uma modalidade de identificação.

Palavras-chave:
adolescência; ato infracional; identificação; medida socioeducativa; psicanálise

Abstract

This study contributes with weaving an analysis of the social relations and the political forms in the light of psychoanalysis and proposes reflections on the helplessness and subjectivity modalities of adolescents at risk of involvement with crime. The study was developed from the clinical listening of adolescents in a socio-educational measure and aimed to investigate the insertion in the social bond via the infraction. To that end, the expressions produced by the adolescents were recovered and analyzed from three dimensions: helplessness, pact with the group, and violence. In conclusion, the modalities of subjection and social exclusion, in the colonized cultural contexts, produce significant effects on the subjectivity of adolescents, with the crime being a possible solution to helplessness, as well as an insertion in the social bond, and an identification modality.

Keywords:
adolescence; offense; identification; socio-educational measure; psychoanalysis

Résumé

Cette étude contribue au tissage d’une analyse des relations sociales et des formes politiques à la lumière de la psychanalyse et propose des réflexions sur les modalités d’impuissance et de subjectivité des adolescents à risque d’implication dans la criminalité. L’étude a été développée à partir de l’écoute clinique d’adolescents dans le respect d’une mesure socio-éducative et visait à enquêter sur l’insertion dans le lien social à travers l’infraction. Pour cela, des expressions produites par les adolescents ont été récupérées et analysées à partir de trois dimensions : l’impuissance, le pacte avec le groupe et la violence. Il a été conclu que les modalités d’assujettissement et d’exclusion sociale, dans les contextes culturels colonisés, produisent des effets significatifs sur la subjectivité des adolescents, l’infraction étant un moyen de rechercher une solution à l’impuissance, ainsi qu’une insertion dans le lien social, et une modalité d’identification.

Mots-clés:
adolescence; infraction; identification; mesure socio-éducative; psychanalyse

Resumen

Este estudio contribuye con un análisis de las relaciones sociales y formas políticas a la luz del psicoanálisis, además de proponer reflexiones sobre el desamparo y las modalidades de subjetividad de los adolescentes en riesgo de involucrarse en la criminalidad. A partir de la escucha clínica de adolescentes en cumplimiento de una medida socioeducativa, este estudio tuvo como objetivo investigar la inserción en el vínculo social a través de la infracción. Así, se tomaron los relatos de los adolescentes, para analizarlos bajo tres dimensiones: desamparo, pacto con el grupo y violencia. Se concluyó que las modalidades de sometimiento y exclusión social, en los contextos culturales colonizados, producen efectos significativos sobre la subjetividad de los adolescentes, y es la infracción un medio de búsqueda de una posible solución al desamparo, una inserción en el vínculo social y una modalidad de identificación.

Palabras clave:
adolescencia; infracción; identificación; medida socioeducativa; psicoanálisis

Contextualização da questão

Partindo da minha experiência como psicanalista em um centro socioeducativo, trago uma reflexão sobre as modalidades de sujeição e exclusão social, muitas vezes invisibilizadas nos contextos culturais colonizados. Neste sentido, a experiência psicanalítica movimentou questões sobre a escuta do sujeito em sua dimensão de desamparo e vulnerabilidade social, buscando localizar os elementos que propiciam a inserção e a servidão ao crime. A adolescência que ocupa os centros socioeducativos é oriunda de um lugar comum: da evasão escolar, da negligência, do abandono pelas políticas públicas. São adolescentes provenientes das periferias urbanas e pertencentes à classe social de baixa renda. De acordo com o relatório de Levantamento Anual do SINASE (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos [MDH], 2019Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. (2019). Levantamento anual SINASE 2017. Brasília, DF: MDH.), a maioria dos adolescentes privados de liberdade no Brasil é do sexo masculino (96%) e a faixa etária predominante é de 16 a 17 anos (56%). Além disso, 40% são considerados de cor parda/preta, 23% branca, 0,8% de cor amarela, 0,2% indígenas e 36% não tiveram categoria classificada para etnia/raça (MDH, 2019Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. (2019). Levantamento anual SINASE 2017. Brasília, DF: MDH.).

Na conjuntura dos discursos produzidos sobre adolescentes que cometem atos infracionais (Rosa & Vicentin, 2010Rosa, M. D.; Vicentin, M. C. (2010). Os intratáveis: o exílio do adolescente do laço social pelas noções de periculosidade e irrecuperalidade. Revista Psicologia Política , 10(19), 107-124.), fatores como a ausência de ambos os genitores no ambiente doméstico, a violência como organizador do laço familiar e a incidência de pobreza veiculam a leitura de noções como “família desestruturada” ou “vulnerabilidade” relacionada à entrada de adolescentes à criminalidade. Entretanto, neste artigo, a partir do encontro com os adolescentes autores de ato infracional, buscaremos, com a psicanálise, descortinar a lógica que (re)produz, a partir da divisão desigual de riquezas e discursos, práticas de assujeitamento que operam a captura dos corpos desses adolescentes pela lógica necropolítica da eliminação (Mbembe, 2018Mbembe, A. (2018) Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo, SP: n-1edições.) e do encarceramento, fruto de sucessivos epistemicídios (Grosfoguel, 2016Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25-49. doi: 10.1590/S0102-69922016000100003
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) que levaram povos inteiros à perda do reconhecimento de sua capacidade de produção e resposta no campo político e subjetivo.

Assim, o desenvolvimento deste estudo partiu da importância de contribuir para a tessitura das relações sociais e das formas políticas à luz da psicanálise, bem como, conforme declarou Rosa (2004Rosa, M. D. (2004). Uma escuta psicanalítica das vidas secas. In Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Org.), Adolescência: um problema de fronteiras (pp. 148-161). Porto Alegre, RS: APPOA. ), de construir possibilidades para refletir sobre as pessoas que padecem de desamparo social e discursivo, com a finalidade de elucidar sobre a produção dos processos de exclusão social da contemporaneidade. Daremos foco à construção subjetiva da resposta adolescente e à sua captura discursiva pelo corpo coletivo. Nossa hipótese é a de que, politicamente, assujeitamo-nos a diferentes formas de dominação sem uma justificativa direta ou plausível racionalmente. De um lado, a necropolítica molda corpos matáveis (Agamben, 2002Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Vol. 1). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.), não inscritos como passíveis de luto (Butler, 2019Butler, J. (2019). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte, MG: Autêntica. ), e, de outro, os adolescentes negros, do sexo masculino e pobres encarnam, no processo histórico de escravização, a racialização do crime e a individualização da pobreza como destinos simbólicos.

Os adolescentes em risco de envolvimento com a criminalidade compõem, assim, uma parcela social excluída e que experimenta um panorama de fracassos das políticas públicas. Nos espaços de privação de liberdade, os adolescentes são submetidos a situações de violências e negligências (Gurski, 2017Gurski, R. (2017). Jovens “infratores”, o rap e o poetar: deslizamentos da “vida nua” à “vida loka”. Subjetividades, 17(3), 45-56. doi: 10.5020/23590777-rs.v17i3.5573
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), são privados de fala, de vontades, de singularidade e identidade (Bossa & Guerra, 2019Bossa, D. F., & Guerra, A. M. C. (2019). Ressonâncias da escuta psicanalítica com adolescentes em privação de liberdade. Estilos da Clínica, 24(3), 497-509. doi: 10.11606/issn.1981-1624.v24i3p497-509
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) e as constantes denúncias que chegam ao Ministério Público sobre as violências sofridas no interior das unidades socioeducativas (Whitaker, 2010Whitaker, C. (2010). O campo infracional: sistema de justiça e a prática judiciária à luz da psicanálise. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) revelam que o Estado também faz valer sua posição de exercício da violência contra os corpos (Derrida, 2007Derrida, J. (2007). Força da lei: o “fundamento místico da autoridade”. São Paulo, SP: Martins Fontes. ), provocando efeitos em suas subjetividades. As instituições socioeducativas são, nesse sentido, construções sociais voltadas ao adolescente autor de ato infracional cuja finalidade é reparar o dano e produzir a responsabilização pelo ato e pelas suas consequências sociais. No entanto, a reincidência infracional marca o fracasso da medida socioeducativa, possivelmente porque, em seu trato, não considera a singularidade do adolescente ocupante do espaço de privação de liberdade, tampouco a adolescência em questão ou, ainda, o contexto determinante de sua exclusão.

Foucault (1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.) identificou que as instituições de privação de liberdade se fundamentaram a partir de fatores coercitivos e dogmatizadores que submetem os sujeitos ao exílio e a estruturas repressivas e funcionam como um sistema normalizador da punição. Na transição entre o suplício às prisões, estas se configuraram como o espaço em que a punição se estruturou e o poder se tornou algo produtivo e produtor de normas. A reincidência indica a invalidade de seus objetivos quanto à reeducação ou à reflexão com vistas à mudança de posição subjetiva e/ou política (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.). Além disso, devemos considerar que as insistentes violências ocorridas nesses espaços evidenciam a impossibilidade de conter o avanço da violência e o desejo de morte aplicado a esses jovens, visto que, no Brasil, termos um índice 30 vezes maior que os países europeus quanto às mortes por homicídio dessa população (Guerra, 2020Guerra, A. M. C. (2020). Periferias e subjetividades políticas na perspectiva psicanalítica. Novos Estudos, 39(1), 39-56. doi: 10.25091/S01013300202000010002
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).

Nesse sentido, entendemos que, se podemos falar de uma escolha - ainda que forçada (Bemfica & Guerra, 2012Bemfica, A. G., & Guerra, A. M. C. (2012). O traumático na infância e a passagem adolescente: cenas de uma infração. Revista aSEPHallus, 7(14), 106-119.) - quanto a se inserir na criminalidade, ela é apenas uma etapa que compõe o longo percurso de privações e violações que culminam, nesse quadro, nos três C’s: cadeia, caixão e cadeira de rodas. Consideramos, também, a perspectiva discursiva e estrutural que compõem aquilo que Zizek (2014Zizek, S. (2014). Violência: seis reflexões laterais. São Paulo, SP: Boitempo.) considerou como a violência simbólica social que se manifesta de forma mais pura como o seu contrário, como espontaneidade do meio. A violência simbólica social se mostra disfarçada de tolerância, seja em suas versões de racismo, religião e efeitos da exploração capitalista ou na crônica e estrutural miséria da população. Tais condições não isentam a responsabilidade do sujeito adolescente sobre os seus atos, mas implica a responsabilidade social na reprodução retroalimentadora da criminalidade na constituição da sujeição criminal (Misse, 2010Misse, M. (2010). Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (79), 15-38. doi: 10.1590/S0102-64452010000100003
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). A violência simbólica, encarnada na linguagem e suas formas, impõe um universo de sentido que naturaliza relações de dominação e de desigualdade por meio da culpabilização, racialização e individualização da responsabilidade do criminoso.

A medida socioeducativa em questão - a privativa de liberdade - priva o adolescente de circular pelo espaço urbano e, por isso mesmo, desconsidera todas as demais privações que o Estado e suas políticas públicas exerceram sobre ele ao longo de sua trajetória de vida. Expressões resgatadas do atendimento a adolescentes privados de liberdade, como “estou no crime porque não tenho nada a perder” e “o crime precisa de gente como eu, abandonado”, dizem respeito ao lugar de exclusão que esses sujeitos já ocupam e seguem ocupando quando são apartados da sociedade sob a égide da socioeducação e o intento de ser educado para a cidadania, como prescreve a lei no seu ideal jurídico. Na prática, entretanto, a medida socioeducativa funciona como modalidade de proteção da sociedade face ao adolescente infrator, e não como forma de proteger o adolescente dos processos de exclusão que sofreu devido à necropolítica, ao preconceito e à divisão desigual de riquezas e de poder na organização social, somados ao não acesso às políticas públicas (Batista, 2003Batista, V. M. (2003). Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. (2a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Revan.).

Agamben (2002Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Vol. 1). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.) denominou por vida nua aquela dos corpos passíveis de sofrerem a violência do Estado. A vida nua é a vida passível de aniquilação pela força da sociedade e da governabilidade da vida. Agamben (2002)Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Vol. 1). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG. também reconhece que o regime contemporâneo exerce um poder soberano sobre a vida que, travestido em sua defesa, acaba por reduzi-la à sua modalidade biológica. Assim, supomos que a estratégia política da sociedade contemporânea se baseia nas modalidades de gozo e submissão do sujeito em seu campo libidinal, de forma que, a partir dessa contribuição, podemos compreender que o sujeito resiste em se submeter, encontrando a criminalidade, muitas vezes, como via escapatória à submissão e aniquilação social. Não pretendemos aqui defender o crime como solução à situação de violência e violação permanentes, mesmo porque, como ledo engano individual, essa solução individual e identificatória conduz os adolescentes, como os dados estatísticos nos evidenciam, à morte concreta (Guerra, Soares, Pinheiro, & Lima, 2012Guerra, A. M. C., Soares, C. A. N., Pinheiro, M. C. M., & Lima, N. L. (2012). Violência urbana, criminalidade e tráfico de drogas: uma discussão psicanalítica acerca da adolescência. Psicologia em Revista, 18(2), 247-263. doi: 10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p247
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). Realiza-se, nessa decisão subjetiva, movida por um empuxo-à-morte, sua dupla realização: a morte simbólica, de um corpo eliminável juridicamente e não passível de luto, e a morte concreta, de um corpo dispensado.

A partir da perspectiva decolonial, devemos relembrar que a dimensão segregatória quilombola se difere da dimensão do crime, pois a primeira está relacionada à criação de formas de resistência, de novas formas de associação e laço, de cosmologia, de um sistema de solidariedades e de crenças, sendo fundamentada a partir de um saber tradicional que funda uma nova condição de participação política (Santos, 2018Santos, A. B. (2018). Somos da terra. Piseagrama, (2), 44-51.). Já no crime, o sujeito realiza seu destino neoliberal de corpo matável. Nessa perspectiva, estamos muito mais próximos de uma ilusão de resposta e de autoria do que da realidade concreta que conduz esses corpos ao destino pré-traçado de corpo não passível de luto.

Exposta à perspectiva ampliada de nossa análise, cabe agora dizer que este estudo foi desenvolvido, metodologicamente, a partir da escuta de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e em risco de envolvimento com a criminalidade. A escuta psicanalítica no contexto institucional de privação de liberdade aponta para a movimentação de importantes questões políticas e sociais, enfatizando o posicionamento do sujeito - tomado como determinado pelo inconsciente - frente a tais demandas. A construção do espaço de escuta no centro socioeducativo implica a ressignificação da experiência infracional e não se exime em proporcionar a escuta do sujeito, de seu sofrimento e de seu movimento desejante. Diante da dissonância entre a aplicação da privação de liberdade e a reincidência infracional, este estudo retomou o conceito de servidão voluntária desenvolvido por Étienne de La Boétie (1530-1563) para a produção de considerações a respeito da questão que orientou a investigação: por que os adolescentes se submetem à criminalidade?

Nosso questionamento é resultado da experiência analítica em um centro socioeducativo, cuja escuta aponta para o impasse dos adolescentes diante do desejo verbalizado de se inserirem na criminalidade, que se expressa, porventura, no ingresso em uma facção quando alcançam a maioridade. Nosso estudo se desenvolveu a partir da hipótese de que a inserção do adolescente na criminalidade pela via do ato infracional representa uma modalidade de engajamento no laço social, uma forma que ele encontra de elaborar o desamparo fundamental e, ao se submeter à lógica infracional diante do desamparo social, encontra também uma solução para essa dimensão, a partir de vias identificatórias com os pares no crime e idealizadoras com o líder ou “patrão” (Martins, Guerra, & Canuto, 2015Martins, A. S., Guerra, A. M. C., & Canuto, L. G. G. (2015). A guerra do tráfico como sistema de vida para adolescentes autores de ato infracional. Culture-Kairós - Revue d’Anthropologie des practiques corporelles et des arts vivants, (5), 1-14.). Para isso, registramos e resgatamos aqui expressões produzidas, no momento da escuta, pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, com a finalidade de possibilitar, a partir da psicanálise, a interlocução entre três dimensões conceituais: desamparo, pacto com o grupo e violência. Começaremos pelo resgate do conceito de servidão voluntária.

A servidão voluntária nos grupos criminais hoje

O conceito servidão voluntária foi apresentado por Étienne de La Boétie na obra Discurso sobre a servidão voluntária (1549/2017). O conceito proporciona a justaposição entre dois termos contraditórios: a servidão e a voluntariedade. Assim, La Boétie (1549/2017)La Boétie, E. (2017). Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo, SP: Edipro. (Trabalho original publicado em 1549) considerou que servidão, supostamente compreendida como algo impositivo e independente da voluntariedade do sujeito, pode ser solicitada do oprimido, que renuncia à liberdade individual em nome da segurança e da ordem social personificada pela figura do tirano.

Étienne de La Boétie (1549/2017)La Boétie, E. (2017). Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo, SP: Edipro. (Trabalho original publicado em 1549) cunhou o termo para designar o fenômeno de submissão das massas à figura do tirano, a partir da qual os membros de uma sociedade delegam sua liberdade individual em troca de segurança e proteção. Conforme Birman (2017Birman, J. (2017). Arquivos do mal-estar e resistência (2a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), a servidão voluntária foi reconhecida pela marca da vontade dos sujeitos, pela escolha dos homens, apresentando contrariedade ao projeto libertário, a partir do qual constituíram-se as utopias libertárias da modernidade. No estudo Psicologia de grupo e análise do ego, Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) apresentou uma segunda linha de abordagem que nos auxilia a pensar essa submissão. Trata-se da identificação como a manifestação mais antiga da ligação afetiva com uma pessoa, podendo se atualizar em novos laços que envolvam um ideal, uma pessoa, um objeto. Nesse sentido, se podemos considerar que tal ligação afetiva contempla um ideal ou um objeto, a criminalidade pode se apresentar como tal.

Assim, como bem retoma Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921), a servidão associa-se ao fascínio pelo líder tirano. Começaremos por compreender como se constitui um grupo, na perspectiva freudiana, e como a idealização do líder tem função agalmática de manutenção do laço grupal para, depois, discutirmos como os processos identificatórios mantêm essa servidão entre os membros nos grupos.

Freud, analisando a estrutura do laço primário que sustenta os grupos, localiza nela duas vertentes de manutenção. Na primeira, temos a identificação egóica horizontal entre os pares que, num segundo plano, é composta a partir da idealização vertical com o líder, que possui função de unificação do grupo, conformando um traço em torno do qual todos se associam por identificação no nível de seu ideal de ego. Assim, Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) define um grupo primário como “certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal de ego e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego” (p. 73).

Diferentemente do processo de identificação, como veremos a seguir, no qual o ego se enriquece com a incorporação de um traço que modifica o Eu, no amor, cuja base é a idealização, o ego se empobrece. “Vemos que o objeto está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo que, quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto” (Freud, 1921/2006Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921), p. 70). Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) chega a afirmar que o objeto consome o ego, sendo colocado no lugar de seu ideal de ego, tornando-o, podemos acrescentar, suscetível e fragilizado face à pressão do grupo. Há, portanto, inconsciente e internamente, uma substituição radical no nível do superego, que é o responsável pelas funções de crítica, vigilância e auto-observação. O sujeito passa a (re)produzir inconscientemente os comandos externos do grupo criminal como se fossem exigências internas no nível do ideal que regula seu ego. Ele passa a operar com esses comandos como se fossem ordens de ferro internas, não negociáveis, dados impostos pelo seu próprio superego.

Por que é importante a compreensão desses dois níveis? Ao propor a construção a respeito do risco de envolvimento com a criminalidade e com atos infracionais, tentando responder à questão que move este estudo, constatamos que o sujeito se submete à lógica da criminalidade a partir desses comandos regulatórios de sua conduta e de sua satisfação, que são sustentados por processos identificatórios, como logo discutiremos. Assim, por meio da interlocução entre servidão voluntária e inserção na criminalidade, reconhecemos que, no ato infracional, o adolescente compartilha com o grupo um pacto, a partir de uma lei moral interna que o comanda - mesmo que na direção contrária da lei jurídica. Esse pacto, tanto no nível inconsciente quanto no relacional, coloca os profissionais e as instituições socioeducativas como pertencentes à dimensão dos que “estão de fora”, apontando uma inversão na lógica do dentro e fora, do incluído e do excluído, que parece ser resgatada na concepção do “dentro e do fora da lei”.

Assim, o adolescente que se submete à criminalidade está a serviço desta lei interna, firmando um pacto com seus parceiros, ou seja, é identificável a presença de um pacto de irmandade na relação com o crime, revelando uma estrutura de alienação imaginária que substitui os laços fraternos e familiares, como mostra Biondi (2014Biondi, K. (2014). Etnografia no movimento: território, hierarquia e lei no PCC (Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos). Recuperado de https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/246
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) em sua pesquisa sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC). Os adolescentes podem, em nome desse pacto, colocar em risco a própria vida, a qual se coloca como objeto de troca em nome da segurança e da proteção que o grupo oferece, sob a idealização do “patrão”, como num sistema lógico que atualiza a lei do Dom no sistema de trocas de Mauss, relido por Levi-Strauss (Martins et al., 2015Martins, A. S., Guerra, A. M. C., & Canuto, L. G. G. (2015). A guerra do tráfico como sistema de vida para adolescentes autores de ato infracional. Culture-Kairós - Revue d’Anthropologie des practiques corporelles et des arts vivants, (5), 1-14.).

A inserção na criminalidade, portanto, diz respeito à inscrição em uma ordem de ferro, não dialetizável (Guerra, Cunha, Costa, & Silva, 2014Guerra, A. M. C., Cunha, C. F., Costa, M. H., & Silva, T. L. (2014). Risco e sinthome: a psicanálise no centro socioeducativo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 30(20), 171-177. doi: 10.1590/S0102-37722014000200006
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), cuja submissão representa um lugar de não reconhecimento sociojurídico. A identificação imaginária toma o lugar da representatividade política e o jovem se converte em um instrumento a serviço do micromercado ilícito de drogas. Nessa perspectiva, podemos, a partir de Guerra et al. (2012)Guerra, A. M. C., Soares, C. A. N., Pinheiro, M. C. M., & Lima, N. L. (2012). Violência urbana, criminalidade e tráfico de drogas: uma discussão psicanalítica acerca da adolescência. Psicologia em Revista, 18(2), 247-263. doi: 10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p247
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, considerar que, com o tráfico, os adolescentes se submetem à organização geopolítica do capital, atuando sob a lógica da imediatez do cotidiano da sobrevivência, cujo corpo é lançado à manutenção do sistema que transforma o corpo - e a vida - em uma engrenagem do próprio sistema. Nesse sentido, conforme os autores, o corpo em questão é o corpo-produção da perspectiva marxista, que adverte sobre a alienação do trabalhador, salvo que os adolescentes se anestesiam a partir de adições diversas, cultuando o prestígio comunitário, e, ao atuarem, colocam seus corpos expostos diariamente e diretamente à morte.

O ato infracional a partir dos conceitos de servidão voluntária e identificação

Em Psicologia de grupo e análise do ego, Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) resgatou compreensões apresentadas por Le Bon e Ferenczi, permitindo o diálogo com a referência primeiramente apresentada por de La Boétie (1549/2017)La Boétie, E. (2017). Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo, SP: Edipro. (Trabalho original publicado em 1549) a respeito do conceito de servidão voluntária. Na obra, Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) mostrou a diferença entre a identificação e o estado de “estar amando”, este podendo ser descrito como “fascinação” ou “servidão”. Vejamos como Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) descreveu: “É fácil agora definir a diferença entre a identificação e esse desenvolvimento tão extremo do estado de estar amando, que podem ser descritos como ‘fascinação’ ou ‘servidão’” (p. 71). Retomar essa passagem da obra é importante, uma vez que a escuta de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade nos convoca a questionar sobre a ilusão quanto ao fascínio que a criminalidade lhes oferece. Lembramos que, no caso da identificação, o ego se enriquece narcisicamente com as propriedades do objeto, incorporando-as ao seu ego e mantendo, assim, o laço libidinal com seus pares. Esse enriquecimento não deixa de ser uma compensação narcísica e imaginária à perda que a idealização promove ao investir libido no objeto idealizado às custas do Eu.

Vejamos como as modalidades identificatórias, segundo suas fontes, funcionam para entendermos a associação criminosa e a importância do grupo delinquente na subjetividade adolescente. A identificação é apresentada por Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) a partir de três possibilidades: (1) identificação com o pai, que desempenha função para a pré-história do complexo de Édipo e se encontra na matriz constitutiva do Eu; (2) identificação a partir da formação dos sintomas, por meio da introjeção do objeto no ego que, assim como ocorre na neurose, constitui-se a partir do processo de regressão libidinal, na qual, de maneira regressiva, o objeto de amor regride à identificação; (3) uma não relação libidinal com a pessoa a ser copiada, na qual se compartilha uma qualidade comum. Quanto mais importante essa qualidade comum, mais forte e bem-sucedida será a identificação.

Assim, Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) resumiu que a identificação é possível a partir de três fontes, quais sejam: identificação primordial de ligação afetiva com o objeto, constituindo a pré-história edípica; a via regressiva, na qual a identificação se torna um substituto para a ligação objetal libidinosa possível pela introjeção do objeto ao Eu; a identificação que surge diante de qualquer percepção de algo comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais. Podemos pensar em uma introjeção real, uma incorporação simbólica e uma adesão imaginária em cada caso, sendo as duas primeiras operações constitutivas primárias do ego e a última uma atualização permanente dessa matriz (De Logivière, 1987De Logivière, J. M. (1987). Une introduction au noeud borroméen. In Recueil-bulletin du Secrétariat de l’École de la Cause Freudienne à Angers (Vol. 3, pp. 96-100). Angers, Pays de la Loire: ECF.).

A identificação é tema central na obra Psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/2006Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921)) e se revela como fundamental para o processo de socialização, sendo a terceira forma de identificação responsável pela formação das coletividades, uma vez que é capaz de ligar os membros entre si (Guimarães & Celes, 2007Guimarães, V. C., & Celes, L. A. M. (2007). O psíquico e o social numa perspectiva metapsicológica: o conceito de identificação em Freud. Psicologia: Teoria e Pesquisa , 23(3), 341-346. doi: 10.1590/S0102-37722007000300014
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). A identificação é um importante conceito para compreensão psicanalítica do campo político, pois a partir dela Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) buscou descrever os processos de produção de coesão social por meio das dinâmicas libidinais presentes nas relações verticais à autoridade, ou seja, com o lugar do líder (Safatle, 2020Safatle, V. (2020). Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte, MG: Autêntica . ). Segundo Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921), a ligação entre os membros da massa é construída a partir de algo afetivo importante em comum, sem dispensar a ligação que se forma com o líder, como vimos.

Adolescência, identificação e infração

Para o caso de nossa análise, sobre a relação do adolescente com a criminalidade, podemos considerar que essa ligação afetiva pode estar relacionada à figura representada pelo chefe do tráfico ou aos membros da facção. Guerra et al. (2012Guerra, A. M. C., Soares, C. A. N., Pinheiro, M. C. M., & Lima, N. L. (2012). Violência urbana, criminalidade e tráfico de drogas: uma discussão psicanalítica acerca da adolescência. Psicologia em Revista, 18(2), 247-263. doi: 10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p247
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) consideram que a adolescência atravessada pela criminalidade compõe um modo de abreviar a passagem entre a infância e a vida adulta e se configura como resposta sintomática para que o sujeito se aliene ao saber do Outro do tráfico, o que sugere uma via de identificação com as figuras do crime. A adolescência, de acordo com Lacan (1974/2003)Lacan, J. (2003). Prefácio a O despertar da primavera. In. Outros Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 557-560). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1974), representa o atravessamento de um tempo para a experiência de reencontro com o furo estrutural do sexual traumático, no qual a criminalidade se oferece como resposta às dificuldades que a puberdade apresenta ao sujeito.

O laço social é uma vertente importante na obra freudiana e corresponde a uma solução, dentre outras possíveis, para o desamparo. Todavia, tal solução se torna uma ilusão, cuja crença é motivada pela realização do desejo primitivo de proteção através do amor (Ceccarelli, 2009Ceccarelli, P. R. (2009). Laço social: uma ilusão frente ao desamparo. Revista Reverso, 31(58), 33-42.). A partir da obra freudiana, percebemos que os laços sociais, criação de Eros, com os quais o sujeito se engendra são feitos em nome de uma parcela constitutiva que remete à identificação ou alienação ao Outro e como possível solução para o desamparo. O desamparo, a identificação e a idealização e o laço social são, assim, três dimensões da tensão entre sujeito e sociedade, geradora do mal-estar.

Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921) considerou impossível dissociar as dimensões indivíduo e sociedade. As explicações psicológicas a respeito da alteração mental que o indivíduo experimenta no grupo, cujos membros formam laços libidinais entre si e de amor ao líder, seriam essa evidência. Conforme Rosa (2002Rosa, M. D. (2002). Adolescência: da cena familiar à cena social. Psicologia USP, 13(2), 227-241. doi: 10.1590/S0103-65642002000200013.
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), as teses freudianas até aqui desenvolvidas devem receber relevância quanto ao tema da identificação, da idealização e da natureza dos laços com o grupo, uma vez que são integradas no nível do ideal de Eu e do superego, permitindo a compreensão do funcionamento do sujeito nos grupos e instituições a partir do reforço narcísico dos membros, bem como servindo de referenciais para as identificações imaginárias mútuas.

Nesse sentido, é possível compreender que o narcisismo se apresenta rearticulado na construção dos laços que constituem a inserção nos grupos sociais, cuja entrada modifica o sujeito e seu sintoma na dimensão dos ideais. É a partir dessa perspectiva que Rosa (2002Rosa, M. D. (2002). Adolescência: da cena familiar à cena social. Psicologia USP, 13(2), 227-241. doi: 10.1590/S0103-65642002000200013.
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) considerou que um acontecimento na adolescência influencia a constituição subjetiva do jovem, aproximando a relação da identificação, o ato e a inserção no grupo social.

Considerar a formação dos laços sociais nos remete a analisar se os adolescentes em risco de envolvimento com a criminalidade traçam, a partir do ato infracional, uma identificação com o grupo, cuja qualidade emocional, que os liga aos membros, influencia na submissão às condutas a serem seguidas, na submissão ao “patrão” e à lei de ferro do crime. Nos atendimentos aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, emergiram expressões e ideias que se repetiram justamente por comporem as normas às quais devem se submeter, configurando o pacto com o grupo.

Sobre as expressões, destacaremos três dimensões:

  1. a dimensão do desamparo em expressões como “estou no crime porque não tenho nada a perder” e “o crime precisa de gente como eu, abandonado”;

  2. a dimensão do pacto com o grupo em “no crime é o certo, pelo certo” e “cagueta1 1 Jargão que corresponde ao denunciante/delator dos atos de outros membros. tem que morrer”;

  3. a dimensão da violência, que pode ser efeito do sujeito no outro, garantindo sua sobrevivência, como em “mato para não morrer”, ou destacando a inutilidade do sujeito pela violência sofrida, como em “quem entra no crime já entra sabendo, ou é cadeia ou é caixão”.

Modalizações do laço infracional entre adolescentes

Agora nos deteremos à análise das expressões que compõem as dimensões 1, 2 e 3, apresentadas anteriormente, que foram recolhidas no trabalho psicanalítico no contexto da privação de liberdade, buscando extrair seu valor de ligação e solução sintomática para alguns adolescentes. No primeiro caso (dimensão do desamparo), a análise das frases recolhidas nos atendimentos nos permitiu desenvolver a hipótese de que, face ao desamparo fundamental - como vivência psíquica de angústia face à relação com a insuficiência do corpo para enfrentar o mundo -, o sujeito se vale de recursos variados ao longo da vida. A criminalidade, na adolescência, pode se tornar uma dessas soluções, dada a ilusão de pertencimento grupal e fidelidade à liderança do crime.

No segundo grupo de asserções (dimensão do pacto com o grupo), os jovens evidenciam a alienação ao imperativo superegóico que os introduzem à submissão à regras de ferro do crime. Mesmo que realizando atos infracionais como gozo transgressor face à lei jurídica, os jovens aderem com rigor às normas do crime, internalizadas como injunções inconscientes que conformam um ideal do qual não podem ceder.

Finalmente, no terceiro grupo (dimensão da violência), veremos que a associação entre condutas de risco adolescente e o discursivo empuxo-à-morte evidencia a determinação inconsciente e singular de cada adolescente que, ao buscar formas de resistir ao destino funesto de sujeitos matáveis - homo sacer (Agamben, 2002Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Vol. 1). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.) -, acabam por ceder alienadamente ao enquadre que produz socialmente sua própria eliminação. Assim, ao buscarem defesas, através do crime, para resistirem ao constrangimento social e econômico ao qual são lançados, os dados (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2019Conselho Nacional de Justiça. (2019). Reentradas e reinterações infracionais: um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros. Brasília, DF: CNJ.; MDH, 2019Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. (2019). Levantamento anual SINASE 2017. Brasília, DF: MDH.) evidenciam que um destino comum entre os jovens é o encarceramento ou a morte, cumprindo exatamente o destino do qual fogem (Guerra, 2012Guerra, A. M. C. (2012). Crítica de uma morte anunciada. In C. Garcia, Interfaces (pp. 239-251). Belo Horizonte, MG: Ophicina de Arte & Prosa.). Veremos, sobre este tópico, como a sensação ilusória de proteção do líder do crime e o pertencimento imaginário a um coletivo criminal se tornam uma tela que obscurece a percepção da violência simbólica, do racismo estrutural e da exclusão à qual esses adolescentes se encontram submetidos. Sigamos o texto dos adolescentes e sua analítica permitida pela psicanálise.

Desamparo: “estou no crime porque não tenho nada a perder” e “o crime precisa de gente como eu, abandonado”

Em psicanálise, é possível compreender o desamparo como um conceito metapsicológico que se refere a uma condição fundamental para a constituição do psiquismo, diferentemente de vulnerabilidades, que são produzidas no social em diversas fontes e oriundas de ameaças de diferentes direções (Betts, 2014Betts, J. (2014). Desamparo e vulnerabilidades no laço social: a função do psicanalista. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, (45-46), 9-19.). Para Freud (1930/2010)Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. In Sigmund Freud (1930-1936): obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 9-89). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930), a inserção na cultura é geradora de mal-estar, cujo sofrimento é oriundo de três fontes: a força da natureza, a fragilidade do corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade. Para as duas primeiras fontes de sofrimento, é impossível abolir todo o sofrimento, sendo possível abolir uma parte e mitigar outra. No entanto, no que toca à terceira fonte de sofrimento, a social, vê-se que as instituições sociais, ainda que constituídas para organizar e proteger as relações, não garantem a proteção e o bem-estar almejados pelos grupos sociais. Trata-se, conforme Freud (1930/2010)Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. In Sigmund Freud (1930-1936): obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 9-89). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930), de um fracasso na prevenção do sofrimento.

O conceito de desamparo, em Freud, prossegue em direção ao mal-estar, o qual é decorrente daquilo que o sujeito experimenta como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o outro e com o mundo, de modo que coloca o sujeito diante do enfrentamento de inúmeras situações de vulnerabilidade, reatualizando o conflito entre civilização e barbárie, que perpassa tanto o processo individual como o civilizatório (Koltai, 2014Koltai, C. (2014). O desejo do psicanalista face ao desamparo contemporâneo. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre , (45-46), 20-31.).

O desamparo, em Freud (1930/2010)Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. In Sigmund Freud (1930-1936): obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 9-89). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930), está relacionado à condição de derivação da necessidade de estabelecer um laço com as figuras parentais. Assim, Freud reconheceu a existência de uma necessidade intensa da infância em receber a proteção de um pai. O medo da perda de amor seria, portanto, colocar-se em risco de perder a proteção da pessoa amada, de forma que o bebê deixa de ser protegido de uma série de perigos. O desamparo, portanto, é uma condição para o estabelecimento do laço com o Outro. Cavalcanti e Poli (2015Cavalcanti, C. A. T., & Poli, M. C. (2015). O laço social e o mal-estar face ao desamparo. Interthesis, 12(2), 55-73.) consideram que a dependência do outro promove a reativação da oposição coletiva e coloca em foco o desamparo, o que origina o mal-estar. As autoras retomam o termo alemão Hilflosigkeit, desmembrando-o em Hilflos, Los, Helfen e Keit. Hilflos significa desamparado, sem auxílio; Los indica a ausência de algo e, como sufixo, anula a ação do verbo Helfen, que significa ajudar/socorrer, e Keit é a terminação que classifica a palavra como substantivo. Dessa forma, o termo, utilizado por Freud (1930/2010)Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. In Sigmund Freud (1930-1936): obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 9-89). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930), indica, na sua literalidade, a ausência de ajuda, a falta da ação de socorrer. O termo Hilflosigkeit pressupõe a interação com o Outro, que está suspensa, mostrando-se a ausência do amparo do Outro.

“Não ter nada a perder” e “ser abandonado” são marcas simbólicas que nos apresentam os registros do sujeito frente a seu desamparo, a ausência de socorro, em que o sujeito se encontra confrontado com o desejo do Outro e, em presença desse desejo, sem recurso. É isso que Lacan (1959/2002)Lacan, J. (2002). O desejo e sua interpretação: seminário 1958-1959 (Vol. 6). Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1959) propõe sobre o termo freudiano Hilflosigkeit. A posição de estar sem recurso, Hilflosigkeit, é a mais primitiva do ser humano e o ponto de partida para o esboço da organização da angústia. A relação do sujeito diante do desejo do Outro o deixa sem recursos, de modo que o drama da relação do desejo do sujeito com o desejo do Outro constitui, fundamentalmente, as estruturas clínicas. Assim, estar sem recurso fundamenta a constituição do desejo do sujeito, não ausente de angústia e não dissociado da relação com a alteridade. Com isso, compreendemos que há um modo de laço com o social do qual o sujeito não pode escapar; o que é resgatado neste estudo, porém, é a qualidade desse laço pela lógica da inserção na criminalidade.

Enquanto o sujeito se depara com seu desamparo, devemos perceber que o encontro com a vulnerabilidade havia se instalado no social antes mesmo de seu nascimento como corpo. Assim, a vulnerabilidade já existe no social e precede o sujeito, que, ao nascer, precisa se ver tanto com essa dimensão quanto com o desamparo, inerente à constituição psíquica. Desamparo e vulnerabilidade são duas forças avassaladoras. Na expressão “não tenho nada a perder”, o sujeito já nasceu em corpo perdendo, e com isso lhe resta a marca do abandono, sob a qual precisa fazer algo a partir de sua dimensão subjetiva. O desamparo subjetivo se depara com o desamparo social, cujo desdobramento em vulnerabilidades deixa o sujeito à mercê das políticas públicas, impactando sua subjetividade. Rosa (2004Rosa, M. D. (2004). Uma escuta psicanalítica das vidas secas. In Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Org.), Adolescência: um problema de fronteiras (pp. 148-161). Porto Alegre, RS: APPOA. ) considerou que, na modernidade, a desproteção provocada pela transgressão das normas elementares, pelos abusos, pela corrupção e pela ruptura dos elementos do contrato social culminam na irrupção do traumático como desorganização subjetiva, cuja emergência exaure de sentido e significação.

A literatura psicanalítica esclareceu que o desamparo é uma condição fundamental para a constituição do psiquismo, a partir do qual é possível a relação com a alteridade. O desamparo é, assim, constitutivo do laço social, o qual é gerador de angústia. O desamparo social, no entanto, aparece, conforme Rosa (2004Rosa, M. D. (2004). Uma escuta psicanalítica das vidas secas. In Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Org.), Adolescência: um problema de fronteiras (pp. 148-161). Porto Alegre, RS: APPOA. ), como impedimento dos acessos aos recursos institucionais organizadores da vida social, como saúde, educação, moradia, trabalho e segurança. Os adolescentes que ocupam os espaços institucionais de privação de liberdade são, em sua maioria, provenientes das classes sociais menos favorecidas e representam, de acordo com Moreira, Guerra, Oliveira, Souza e Soares (2015Moreira, J. O., Guerra, A. M. C., Oliveira, N. A., Souza, J. M. P., & Soares, C. A. N. (2015). Medidas socioeducativas com seus dispositivos disciplinares: o que, de fato, está em jogo nesse sistema? Revista Psicologia Política, 15(33), 285-302.), elementos do real que não se reduzem à linguagem e à significação. E, segundo Bossa e Guerra (2019Bossa, D. F., & Guerra, A. M. C. (2019). Ressonâncias da escuta psicanalítica com adolescentes em privação de liberdade. Estilos da Clínica, 24(3), 497-509. doi: 10.11606/issn.1981-1624.v24i3p497-509
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), podemos considerar que a população de adolescentes que cometeram atos infracionais sofre os efeitos dessa tentativa de eliminação a partir das intensas - e incessantes - práticas de violência nos contextos institucional e urbano. A eliminação dessa parcela social diz respeito à tentativa de evacuar o excedente por meio de modalidades de violência e marginalização, lugar a partir do qual os adolescentes buscam responder pelo processo de identificação com o resto societário, desprovidos como sujeitos de direito e de desejo.

Assim, podemos considerar que o desamparo como experiência psíquica e subjetiva é revivido como vulnerabilidade pelos adolescentes, que se colocam diante da busca por recursos de defesa e proteção, sendo a busca pela inserção na criminalidade um desses recursos. Devemos considerar que a adolescência que cometeu ato infracional é uma adolescência que incomoda socialmente e que o judiciário, muitas vezes, encaminha para os centros socioeducativos na impossibilidade, ou na ineficiência, dos outros mecanismos sociais da rede assegurarem a proteção dos adolescentes - ou seja, quando todos os demais mecanismos já falharam com essa adolescência em sua trajetória de vida. É uma adolescência, portanto, que experimenta, ao mesmo tempo, desamparo e vulnerabilidade, a partir dos quais a criminalidade pode ser um modo de conseguir reconhecimento, inserção social e ressignificação do mal-estar da civilização excludente e dos quais se encontram excluídos de acesso e incluídos a partir do excesso, do descarte e da marginalidade.

Pacto com o grupo: “no crime é o certo pelo certo” e “cagueta tem que morrer”

As expressões “no crime é o certo pelo certo” e “cagueta tem que morrer” sugerem que a inserção na criminalidade, enquanto escolha para a adolescência, remete ao compartilhamento de uma cultura, um pacto a ser seguido por seus membros. Percebe-se que no atendimento ao adolescente em privação de liberdade, ao considerar a relação de contratransferência, os impasses da escuta encontrados por alguns profissionais remetem ao encontro com a cultura infracional. Nesta, a morte está presente, a vida vale pouco e o que fala demais ou denuncia seus parceiros precisa ser cobrado por essa transgressão à norma.

O ato infracional, assim, corresponde à inserção em uma cultura de normas e leis próprias, mas que não está apartada da sociedade que a comporta, uma vez que é em seu seio e sob a ruptura da lei neurotizante que a transgressão emerge. Betts (2014Betts, J. (2014). Desamparo e vulnerabilidades no laço social: a função do psicanalista. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, (45-46), 9-19.) identificou que, quando uma cultura entra em contato com a outra, o mal-estar se intensifica na hostilidade em que o laço social se deflagra, isso porque o que se configura como um tabu para um, não é, necessariamente, um tabu para outra. Vemos, por exemplo, que na cultura neurótica, denunciar a prática criminosa ou a transgressão às autoridades competentes é um modo de garantir a ordem social; no entanto, essa mesma prática é vista, para aqueles que se inserem na criminalidade, como uma grave infração, um tabu a ser restaurado pela aplicação de uma lei, que, nesse caso, é o silêncio pela morte. O “certo pelo certo” garante que o “cagueta” seja eliminado dessa cultura e, dessa forma, a morte cumpre a finalidade de manter a ordem viva.

O pacto com o grupo é um modo de compartilhar a cultura, e os adolescentes, ao realizarem atos infracionais, tendem a se engajar em parcerias temporárias e não duradouras. Isso quer dizer que, no relato de muitos adolescentes, é possível perceber que para realizar um furto ou um assalto, por exemplo, eles se associam a desconhecidos ou a parceiros recém-apresentados por outros colegas. As amizades são imediatas e tendem a se restringir apenas à execução do ato infracional. É raro o relato de parcerias que tenham pouco mais de semanas de relação ou que tenham se associado para a realização de outros atos infracionais. Tal constatação, porém, pode ser anulada pelo princípio anterior (“cagueta tem que morrer”), no qual os adolescentes não podem denunciar os atos uns dos outros ou dizer de outras experiências de seus parceiros. No entanto, é possível considerar que existe um pacto que orienta a ação, mesmo entre desconhecidos.

Alguns adolescentes tomam a responsabilidade pelo ato quando realizam o delito com a participação de adultos, pois compartilham do conhecimento - controverso - de que a aplicação da medida judiciária será mais branda ao adolescente, que responde a partir dos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990, 13 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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), ao contrário do adulto que responde pelo Código Penal. Há, portanto, adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade que indicaram ter assumido a responsabilidade do delito para minimizar a dolo do parceiro maior de idade. Os adolescentes são ameaçados, intimados para “aliviar a barra” dos adultos, pois se não assumirem a responsabilidade pelo delito e anunciarem o autor principal da transgressão, este adolescente se torna “cagueta” e o princípio anterior é cumprido, de que o “cagueta tem que morrer”. Nesse sentido, alguns adolescentes assumem em audiência a autoria do delito e, ao cumprirem a medida socioeducativa de privação de liberdade, acabam por cumprir a ordem da criminalidade em não “caguetar” os parceiros, ou seja, temem mais a lei do crime do que a lei jurídica. Uma escolha difícil para os adolescentes que se encontram diante desse impasse.

A ética do “certo pelo certo” e a norma de que “cagueta tem que morrer” são modos de regular as relações entre os membros e firmar o pacto com o grupo, bem como condições para que a lei que sustenta a cultura infracional continue sendo compartilhada entre os antigos e novos membros. Ao não “caguetar” e evitar a própria aniquilação, o adolescente responde ao princípio do “certo pelo certo”, ou seja, toma uma postura ética diante do grupo. Ao se submeterem à lei da criminalidade, os adolescentes identificam que a vida possui um destino anunciado: “cadeia ou caixão”. É necessário, portanto, discutir sobre a violência que regula o pacto com o grupo.

Violência: “mato para não morrer” e “quem entra no crime já entra sabendo, ou é cadeia ou é caixão”

A aproximação do adolescente com a criminalidade remete a se colocar em risco, à vida estar sempre em perigo como algo inerente a esse processo de se incluir no contexto da transgressão da norma social. Le Breton (2012Le Breton, D. (2012). O risco deliberado: sobre o sofrimento dos adolescentes. Política & Trabalho: Revista de Ciências Sociais, (37), 33-44.) identificou que as condutas de risco são formas de produzir sentidos e valores que têm o potencial para testemunhar a resistência ativa dos jovens e suas modalidades de estar no mundo e, apesar de terem formas perigosas ou dolorosas, satisfazem a necessidade de transformar e renascer em nova versão de si em aproximação com a morte, real ou simbólica. As condutas de risco envolvem atos que colocam o sujeito e seu corpo em situação de perigo, havendo exposição deliberada a situações de risco de se ferir ou morrer, o que acarreta a alteração do futuro pessoal ou riscos para a saúde. Segundo o mesmo autor, algumas condutas de risco podem ser elencadas: desafios, tentativas de suicídio, fugas, alcoolismo, toxicomanias, transtornos alimentares, velocidade em estradas, violências, exposição a relações sexuais sem proteção, recusas de atendimento ou tratamento médico vital, dentre outras ações.

As condutas de risco podem marcar um estilo de vida, como a toxicomania e os problemas alimentares, ou podem configurar uma passagem para a ação, a qual está relacionada a aspectos como a idade e aos processos identitários inacabados. Podem, ainda, ser tomadas como desafios para se aferir o valor da vida verdadeira. Dessa forma, a atuação compõe a tentativa do adolescente de desviar de sua própria impotência para lidar com as dificuldades cotidianas, como a inabilidade de pensar em si próprio a fim de encontrar novas soluções possíveis, de modo que o corpo substitui a palavra impossível de ser formulada (Le Betron, 2012).

Assim, é possível considerar que o envolvimento com a criminalidade se configura como uma experiência de risco, uma vez que o adolescente se apresenta ao trágico diante do desfecho do delito, por exemplo, na apreensão policial e em suas diversas formas de violência e tortura que estão expostas nessas operações, tal como o conhecimento da regra “ou é cadeia, ou é caixão”. O desfecho do crime pode ser a última tentativa de existência do sujeito, de forma que, para o adolescente, o ato infracional pode assegurar o valor da existência, afastando o medo de sua própria insignificância para existir. Le Breton (2012Le Breton, D. (2012). O risco deliberado: sobre o sofrimento dos adolescentes. Política & Trabalho: Revista de Ciências Sociais, (37), 33-44.) identificou que as condutas de risco são formas ritualísticas realizadas pelo sujeito que visam a construção de sentido para que este continue a viver, afastando-o da impotência para torná-lo autor de sua própria história, mesmo que isso lhe custe a vida como modo de pagar pela lógica do sacrifício. Na situação em que o resultado frente à morte é favorável à vida, é possível que essa aproximação simbólica ou real com a morte reconstitua a afeição por viver, mesmo que temporariamente.

Lacadée (2011Lacadée, P. (2011). O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. ) considerou que a falta de interesse na vida é um fator importante para o engajamento em condutas de risco, pois são vistas como formas de livramento desse desgosto diante do indizível sobre a vergonha do indivíduo de si mesmo. Uma solução possível frente ao desinteresse pela vida seria o habitar com o corpo o mundo em que o Outro não existe. A conduta de risco aponta para um modo de vida e propõe o lugar vazio da Coisa, para a qual a morte é um modo de nomear esse vazio. Dessa forma, o engajamento nas condutas de risco, sendo a criminalidade um exemplo, pode indicar a função do delito como uma forma de entrada no laço social, um modo de partilhar aspectos da cultura e uma modalidade de gozo.

A adolescência atravessada pela criminalidade coloca o sujeito diante da possibilidade de destruição, seja do Outro ou de si. A destruição do Outro garante certo grau de sobrevivência, indicado por “mato para não morrer”, e a destruição de si aponta para a inutilidade do sujeito diante da prática infracional, estando inviabilizado de atuar pela via da privação de liberdade ou pela morte presentificada, como vemos na expressão “quem entra no crime já entra sabendo, ou é cadeia ou é caixão”; ou seja, existe um destino inevitável, seja a morte real ou simbólica.

Considerações finais

Este estudo foi desenvolvido a partir da experiência de atendimento psicológico a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, na qual a prática psicanalítica no centro socioeducativo possibilitou a construção de um espaço de escuta que propunha duas rupturas: a primeira posta pela instituição de privação de liberdade, que visa a submissão do sujeito à estrutura repressora da singularidade e a individualidade dos adolescentes acautelados, e a segunda ruptura é com a lógica do silêncio tanto pela organização da criminalidade quanto pela anulação subjetiva das instituições de privação de liberdade. É diante desse impasse que os adolescentes foram convocados, pela psicanalista, a dizer sobre si, seu enigma, sua história, a fim de transformar em narrativa seu sofrimento. Assim, compreendemos, conforme Betts (2014Betts, J. (2014). Desamparo e vulnerabilidades no laço social: a função do psicanalista. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, (45-46), 9-19.), que a ética psicanalítica propõe uma abertura no laço social instituído para que o sujeito possa emergir.

Interessadas na escuta dos sujeitos, foi possível interrogar sobre o desejo e o gozo dos adolescentes que realizaram atos infracionais, buscando compreender a lógica pela qual o delito é construído a partir de uma inserção à lei. Com a análise das três dimensões apresentadas (desamparo, pacto com o grupo e violência), a partir das expressões enunciadas por adolescentes privados de liberdade, percebemos que os adolescentes se submetem à criminalidade a partir da submissão a uma regra de ferro e ao compartilhamento de um pacto que conduz suas ações e laços. A regra e o pacto com o crime criam uma ilusão de respeito a um código e de uma orientação ética como possibilidade para a construção de laço com o grupo. Entretanto, não se legitima dessa maneira um lugar subjetivo no desejo do Outro, a partir do qual o adolescente responderia com seu ato a uma forma de existência, mesmo que muito próxima da morte. O que se realiza nesse pacto é a necropolítica que envia esses adolescentes, de fato, à morte precoce e à eliminação.

As práticas de eliminação da vida regem as organizações políticas contemporâneas, alicerçadas na gestão da morte, dentre elas as vulnerabilidades sociais e os processos de exclusão. A inserção na criminalidade é uma das formas de viver e morrer para muitos adolescentes, uma escolha que pressupõe via de solução para o desamparo, para a inclusão no grupo social e para ressignificar as diversas formas de violência que experimentam. Vimos que a violência não se constitui apenas como um modo de exercício de poder sobre o corpo, mas também como uma forma de domínio da vida e da morte, que estruturam as bases de nossa sociedade brasileira, alicerçada pelo processo colonizador e escravocrata. Temos, portanto, uma violência atuante e, ao mesmo tempo, invisível que legitima as diversas formas de morrer e matar. O ato infracional e o incômodo que a adolescência em risco de envolvimento com a criminalidade provoca nos âmbitos políticos e sociais denunciam as diversas formas de violências e comportam a exclusão dos corpos elimináveis.

Para a relação entre a adolescência e o ato infracional, a partir da consideração da enunciação de inserção na criminalidade, como foi desenvolvido neste estudo, é fundamental relembrar que a adolescência remete a um tempo de passagem, do agir e da atuação, sendo a infração um elemento que produz efeitos subjetivos e políticos, mas não determinantes. Isso quer dizer que as enunciações apresentadas não categorizam os adolescentes ao estatuto de “criminoso” ou, pejorativamente, “delinquentes”. Sabemos que o objeto criminogênico que pode se constituir como fonte de satisfação não se torna definitivo e que, ao se envolver no ato infracional, o adolescente não necessariamente irá se transformar em um potencial “criminoso”. É cuidado que devemos tomar para lembrar que os adolescentes podem buscar no ato infracional um alicerce, uma alça temporária para encontrar seu lugar no mundo, bem como uma resposta para as diversas formas de violência experimentadas ao longo de sua vida diante das vulnerabilidades sociais.

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  • 1
    Jargão que corresponde ao denunciante/delator dos atos de outros membros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2022
  • Revisado
    14 Nov 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
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