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O Sachs da foto

DOSSIÊ: ENTRE IMAGENS E TEXTOS

O Sachs da foto

Evaldo Vieira

Foi professor titular na FE-USP, na FE-Unicamp e na PUC-SP. Participa do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e da Revista Educação & Sociedade desde a fundação. Escreveu artigos em jornais e em revistas nacionais e estrangeiras, e também livros, dos quais lembra O que é desobediência civil, Sociologia da educação e Os direitos e a política social. http://www.pucsp.br/pos

Correndo pela plataforma dos armazéns, o Sachs parou de repente com o barulho do trem. Não foi bem com o barulho do trem, mas com o engate dos vagões que se chocavam até se ligarem. Arrastavam um ao outro, como elo dançante, feito cobra. A fuligem misturada com as primeiras luzes dos postes de ferro caía sobre o pátio da estação no final da tarde, uma neblina preta perfurando os seus olhos.

Todo dia o Sachs percorria a plataforma com maior rapidez possível, imaginando uma corrida de obstáculos, com competidores e tudo, sem sentir neblina nenhuma, sem dor nos olhos. Agora não. Parou com o barulho do trem, não espiou aquela quantidade de vagões estacionados e só pensou no que iam fazer com ele.

Quase sempre os vagões e o pátio significavam-lhe o mar e os navios, que se alongavam e se retraíam, em movimento contínuo. Com o mar e os navios, o sonho do Sachs consistia numa fantasia remota de embarcar e partir, porque alguém lhe dissera:

- Você não sabe nada, mistura tudo. Vai de escola em escola, aqui e no interior, sai antes de acabar o ano, entra em outra, fica perdido. O diretor se compadece: "Ó, coitado". A professora explica: "Um novo coleguinha que veio de outra escola, de outra escola, de outra escola". Você fica olhando o quadro-negro com esse olhar de peixe morto, não pode ser! Trabalhos manuais não consegue fazer, é reprovado na matéria. Vai cortar um pedaço de pau com o serrote, quebra o pau. Se vai desenhar uma rosa, desanda num punhado de curvas da perna que ninguém entende. Vai rabiscar uma casa, ela se assemelha ao cadafalso. E no canto orfeônico! Outro dia, circunspetamente, todos cantavam "As pastorinhas" e a professora interrompeu a música no meio, de súbito, gritando: "Tem um desafinado aqui, que sempre desafina. Pode sair!" Era você, Sachs, você desafina demais, onde já se viu desafinar nas "Pastorinhas"? Na matemática você se perde no quadrado perfeito, como isto? Dizem que dormiu na aula e num pesadelo gritou: "Tirem esse quadrado perfeito de cima de mim". Isto é impossível.

O Sachs sentou na beira da plataforma e concluiu que seria mandado a uma escola onde permanecesse bom tempo, sem pular de uma para outra, o que lhe confundia a cabeça. Oportunidade derradeira de demonstrar que seu cérebro não nascera insuficiente, embaralhado, que podia desembaralhá-lo de uma vez por todas. Cérebro embaralhado não se aceita no mundo.

Pouco tempo depois, o Sachs viajou para o interior a fim de ingressar em escola onde sua permanência deveria ser duradoura. Nela não havia vaga, porque de novo chegou atrasado às aulas. O abnegado diretor, com olhar triunfante, então disse:

- Olhe lá um lugar, ao lado daquela menina, o último lugar da sala de aula.

O diretor era aplicado mestre, ficou muito contente por colocar mais um menino na escola e ocupar todas as carteiras da sala. O Sachs não perdeu tempo: tão logo a porta se abriu, sem olhar para nada, entrou sorrateiramente igual ao ladrão, quase sem pisar no assoalho de madeira (que poderia ranger), a respiração embaraçada, a nuca rígida e o espinhaço gelado. Nem viu que ia para a primeira fila de carteiras duplas, ao lado da menina.

Os dias passaram, mas as preocupações do Sachs não ultrapassaram os limites da carteira. Ela possuía os pés de ferro fundido, a tampa de madeira, inclinada e repleta de rabiscos, um tinteiro de cada lado, um guarda-cadernos embaixo e o assento também de madeira firme, usado em comum com a menina. Esse banco deixava-o aturdido, nunca tivera uma menina por perto, e uma bela menina de braços peludos. Ficava na extremidade do banco, fugia dela. Sabia lá o que fazer!?

Nas aulas mantinha-se afastado de tudo, do que dizia a verborrágica professora dos outros alunos, entretidos na conversa mole e baixa. Curvava a cabeça, encolhia os ombros, olhava de soslaio e escrevia em seu canto, escondendo com a mão o caderno. A menina de braços peludos estava lá longe, na outra ponta do banco. Os braços peludos eram graciosos, mas o rosto transmitia sisudez, uma circunspeção própria de quem não está para brincadeiras e sabe de suas qualidades. O Sachs queria distância. Um dia, a menina de braços peludos disse à professora:

- Professora!, o menino do lado não colabora em nada. Não fala, não olha, não mexe nem geme. Como é que vamos estudar em grupo? Chega, senta lá longe, na beira do banco, sai para recreio, come e volta em silêncio. Na aula de caligrafia não mostra nada, esconde com a mão suas letras para ninguém ver, é um egoísta sem palavras, sem interesse por ninguém, não tem educação com as meninas, etc. Ainda mais caligrafia, que exige arte.

E pôs-se a chorar. A professora, brava, não hesitou:

- Como é isso!? O Sachs nem muge, fica aí como um entojado. Como ele pode ser egoísta, se não se move, parece boiar em tudo com esse olhar fixo no ar.

O resultado não demorou: o Sachs só aturou até as provas e se foi. A menina de braços peludos não se sentou mais com ele, na mesma carteira, dizia que ele a perseguia, que sempre ficava ao alcance de seus olhos, não trazia merenda para o recreio, era testa curta, vestia calça larga, sapato de feira e assim por diante.

O Sachs meditou muito: "Que mundo esse, se você faz alguma coisa, leva chumbo; se não faz, leva chumbo. Viverei de esguelha nesse mundo, admirando a menina de braços peludos".

Recebido em 20 de agosto de 2007 e aprovado em 23 de novembro de 2007.

Foto de fotógrafo anônimo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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