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Mulheres que foram reis

DOSSIÊ: ENTRE IMAGENS E TEXTOS

Mulheres que foram reis

Marilia Pacheco Fiorillo

Escritora e jornalista, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros, dos livros: O Deus Derrotado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Record, 2007 (no prelo); "Homens", duas sátiras e uma fábula, reedição. São Paulo: Editora Arx/Siciliano, 2004; A caminho do paraíso. São Paulo: Editora Arx/Siciliano, 2003. mfiorillo@usp.br

Advertência

Esta é uma falsa ficção. As vozes são inventadas, mas baseadas em fatos, personagens, peripécias e inclusive pormenores históricos, absolutamente reais.

Três mulheres: Hatshepsut, Hypatia e Shagarat ad-Durr.

Hatshepsut, ou melhor, o faraó Hatshepsut, reinou como homem durante 20 anos na 18ª dinastia, idos de 1500 a.C. O que me atraiu na história é que ela só foi redescoberta no século passado, pois seus sucessores no comando do Egito fizeram um minucioso e feroz trabalho de destruição de qualquer vestígio de seu reinado. Só quando os americanos escavaram em Luxor descobriu-se um riquíssimo material representando-a e — o melhor — constatou-se, com as restaurações, que ela tinha sido apagada (é, escavada, mesmo) de outros monumentos importantes, como alguns obeliscos e templos em Luxor. Vejo o alcance da tentativa de aniquililá-la, liquidando sua memória, e me pergunto que espécie de ódio - ou medo - atávico levou a este sistemático encobrimento de um(a) faraó cujo reinado, descobriu-se, foi grandioso, de prosperidade e paz.

A filósofa neoplatônica Hypatia de Alexandria foi assassinada por monges cristãos, que também destruíram a quase totalidade de sua obra.

A sultana Shagarat ad-Durr, que comandou exércitos fingindo-se de seu marido de dentro da tenda onde ele estava morto, virou uma nota de rodapé na história do Islã.

I.

Eu, Rei Hatshepsut, irmã e esposa de Thutmosis II, concebida por Amon, a mais amada dos filhos de Thutmosis I e Ahmose, de linhagem divina e sangue real, cujo nome e mando alcançaram até a distante Etiópia, cujo selo e governo trouxeram prosperidade e paz por vinte e dois anos às margens do Nilo, cujos feitos, de tantos e tão magníficos, estão inscritos no mais alto obelisco de Karnak, para que nele coubessem as minúcias de minha grandeza, eu, cujo templo mortuário foi erguido para empalidecer todos os palácios e templos e santuários do passado e do futuro — o claro e límpido Deir al-Bahri, jóia arquitetônica incrustada no deserto, incomparável e hierático, simétrico só a mim em esplendor e nobreza —, eu, Maatkare Khnemet-Amon Hatshepsut, soberano coroado, senhor do Alto e Baixo Egito, cujo nome golpeia como uma brisa seca, cujo selo ostenta o leão, cujos feitos estão adiante dos de qualquer geração, eu, rei e faraó, rei e regente, rei e consorte de mim mesma, eu, Hatshepsut-Amon, que envergo as vestes e a barba real, daqui de Thebas, no ano 21 da 18ª dinastia, escrevo a Senenmut, meu amigo, arquiteto e conselheiro, para exaltá-lo:

O portal de sua casa estava aberto.

Meu bem-amado inclinado aos pés de sua mãe,

irmãos e irmãs o circundavam.

E aqueles que passavam pelo caminho

eram tomados de amor por ele,

Jovem perfeito e sem-igual, de raras virtudes.

Ele pousou seu olhar em mim,

pois eu o havia notado.

Quando penso no bem-amado

Meu coração se sobressalta

E confunde meus gestos.

Esqueço de vestir-me como deveria,

Negligencio meus leques,

Não maquio meus olhos,

Não me perfumo mais com suaves aromas.

Oh, coração, não me exponha a tais penas.

Por que se conduz como um louco?

Venha para sua morada, bem-amado.

Você não tem inimigos.

Ó bela criança, venha para sua morada, para que possa me ver.

Sou sua esposa, aquela que o ama.

Não se afaste de mim, belo adolescente,

Venha agora para sua morada.

Meu coração pede por você, meus olhos o desejam.

Ah, que maravilha vê-lo, bem-amado.

Na cabeceira de minha cama

Possa você dormir, as narinas cheias de alegria,

E, amanhã cedo, despertar com Amon.

II.

Eu, Hypatia, filha de Theon, o guardião da Biblioteca, filha da Idéia e irmã da Razão, instruída nas artes e ciências de Platão, Plotino e Ptolomeu, de linhagem grega no espírito e macedônica no sangue, eu, que interrogo o movimento dos céus, do sol e das estrelas e por isso inventei o astrolábio, que pondero a gravidade de toda substância líquida e para isso inventei o hidrômetro, eu, astrônoma, matemática, geômetra, estudiosa do cosmos e das formas das coisas, eu, presença que é como um magneto e atrai multidões para os salões da Biblioteca, mais, sempre mais gente a me ver e ouvir, eu, cujas lições graves e serenas encantam a todos, judeus, romanos e egípcios do Delta, eu, cuja palavra esparge um fármaco que cura as exasperações e dissolve as dúvidas, cuja fama de sabedoria corre o Mare Nostrum e fez de Orestes, o prefeito da cidade, meu cativo, meu discípulo, meu seguidor, eu, cujos conselhos têm força de ordens, que dobro os desígnios com o sopro do verbo, cuja discreta autoridade é peremptória, indisputável, eu, a última filósofa de um mundo que está prestes a ruir e doravante abominará o atrevimento do intelecto, eu, Hypatia, daqui desta nova Atenas, a gigantesca cidade de Alexandria, no ano 415, escrevo a Sinesio, amigo e devotado aluno, que, soube, foi nomeado bispo da Cirenaica, de todo norte da África, para aquietá-lo. Pois dele recebi esta carta:

De Ptolemaide a Alexandria, início de 413.

Saudações, bem-aventurada Senhora, a ti e aos felicíssimos companheiros. Já há algum tempo pretendia repreendê-la por não me escrever, pois não me considera digno de uma resposta. E se tu, beata Senhora, e todos vós, me desdenhais, não será por minha culpa, pois não há culpa em ser desafortunado como só um homem pode ser. Mas se ao menos pudesse ler tuas cartas e saber como estás (espero que gozando da melhor fortuna), me bastaria, pois me regozijaria por ti, reduzindo assim à metade as minhas agruras. Porém agora o teu silêncio se junta aos males que me afligem. Perdi os filhos e os amigos, e a benevolência dos semelhantes. Mas a perda maior é a falta que sinto de teu diviníssimo espírito, o único bem que esperava me restasse para ajudar-me a superar os caprichos da sorte e os engodos do fado.

III.

Sou Eu, Shagarat ad-Durr, quem comanda centenas de homens e centenas de batalhas, de dentro desta tenda onde jaz meu marido morto. Eu, nascida escrava e nômade, tornada esposa e serva de Sahlib Ayyub, usurpo agora sua voz e seu pulso, e governo através do véu. Por 90 luas decido a cada momento o que farão os generais inquietos, que esperam, do lado de fora da tenda, minhas ordens, que eles pensam ser as de meu marido morto, e por 90 luas nesta artimanha acumulo vitória sobre vitória contra os infiéis, glória sobre glória, até a chegada inesperada de meu filho, cuja covardia e distrações poderiam ameaçar meus feitos, não tivesse eu mandado assassiná-lo a tempo. E depois coroei a mim mesma como Sultana de todo Egito e reinei sem disfarce por 80 outras luas e tantas batalhas, até que o califa de Bagdá enviou contra mim seus guerreiros e sua fúria, e escolhi não lutar e não fugir, mas casar-me com o mais valente dos meus algozes, e assim o fiz e tornei-me esposa de Aybak, o mameluco, e através dele, de sua docilidade, por tantas outras ininterruptas luas governei. Antes havia me servido do cadáver de um marido, agora me valia da ânsia carnal de outro. E, temendo que esta se entorpecesse com a escolha de uma segunda esposa, não tive outra saída senão mandar assassiná-lo antes que ele consumasse o ato, o que seus guerreiros só descobriram muito mais tarde, e se rebelaram, quando então me ofereci em casamento ao mais temível deles, mas desta vez tive a má sorte de ser entregue, ao invés, ao harém.

A mim, Shagarat ad-Durr, o último grande líder da dinastia Ayyubida, o mais feroz e destemido nas campanhas militares, implacável na ação e incapaz de hesitações, a mim, Shagarat ad-Durr, a Árvore de Pérolas, filha da coragem e da astúcia de Saladino, a mim, que subjuguei cristãos e muçulmanos e todas as criaturas feitas de vontade, a mim foi destinada uma estreita e escura tumba, minúsculos mosaicos de vidro que só cintilam à hora em que o sol se põe.

Eu, o único soberano mulher que já houve no Islã, daqui de al-Qahira, que os forasteiros chamam Cairo, em 1249, sussurro minha história à minha fiel escrava, minutos antes de ser conduzida ao tribunal das concubinas.

Ontem foi gestado o delírio de hoje, deste dia

e a indiferença, o triunfo ou o desespero de amanhã.

Celebremos! Pois não sabemos de onde viemos ou por quê.

Celebremos! Pois não sabemos por que iremos, nem para onde.

Quê! Um desatinado Nada não pode provocar o jugo.

É tão tolo ressentir-se de prazeres fruídos na proibição como temer castigos eternos diante da dor que despedaça o presente.

IV.

Em 1458 a.C, portanto há três mil e quinhentos anos, assim que Thutmosis III, seu sobrinho, foi coroado, Hatshepsut foi submetida a uma segunda morte.

Por ordem do novo faraó, de quem ela havia sido regente, foram destruídos todos os indícios de sua existência, todos os monumentos, as esculturas, as inscrições que representassem ou lembrassem a antecessora. Alguns foram demolidos e reduzidos a fragmentos de granito ou calcário; outros, adulterados para que, no lugar onde antes aparecia a imagem dela, fosse entalhada a de seu sucessor. A operação deve ter sido formidável, pois durante o reinado de Hatshepsut seus arquitetos trabalharam incansavelmente, naturalmente ornamentando suas criações com a efígie da soberana, e a supressão de qualquer vestígio seu em tantas construções só pode ter exigido um empenho de destruição comparável. Não bastasse ter sumido da pedra, o rei Hatshepsut também desapareceu dos papiros, pois foi removido das listas dos cronistas da história do Egito, e apenas um deles, Manetho, citado pelo historiador judeu Flavio Josefo, registrou sua passagem. Para os escribas oficiais, porém, sempre constou que o reinado de Thutmosis I foi seguido imediatamente pelo de Thutmosis III. Hatshepsut Maatkare, aquela que se intitulou Rei, permaneceu virtualmente inexistente até o começo do século XX, quando arqueólogos da equipe de Herbert Winlock, do Metropolitan Museum de Nova York, casualmente desenterraram, na vizinhança do Deir al-Bahri, uma considerável quantidade de fragmentos de imagens da rainha-rei, depois restaurados e hoje expostos no Metropolitan e nos Museus do Cairo e de Luxor. Não fosse esse acidente, e Hatshepsut, provavelmente o mais importante governante da 18ª dinastia, continuaria ignorada pela posteridade.

A segunda morte teria sido mais grave que a anterior. A extinção física, para um contemporâneo de Hatshepsut, era apenas uma passagem para uma nova vida, mas a sobrevivência na outra margem ou no reino dos mortos, isso sim importante, dependia da permanência de representações da figura do morto. Tuthmosis III, embora não tenha planejado a morte de sua antecessora, quis assegurar-se de sua aniquilação completa, na história, na memória e, certamente, garantir que ela jamais tivesse a chance de passar pela balança de Anúbis, aquela que compara o peso do coração do morto ao de uma pena e decide seu futuro.

A morte de Hypatia foi um episódio de sadismo e brutalidade excepcional até mesmo para os padrões pouco pacíficos da época. Hypatia foi linchada por uma multidão de monges cristãos enfurecidos, a mando do bispo de Alexandria, Cirilo. Era um período, o mesmo de Agostinho, de uma delicada transição entre o cosmopolitismo pagão romano, mais tolerante, e o paroquial absolutismo eclesiástico. O bispo Cirilo, prestes a engolfar o poder, temia a influência da filósofa sobre os ricos e poderosos da cidade, sobretudo sobre Orestes, o prefeito, seu discípulo e admirador. A versão mais provável do assassinato, adotada por Gibbon, é a de que ela foi retirada à força de sua liteira quando estava a caminho de uma de suas palestras públicas, despida, arrastada para a Igreja local e ali estripada pelos monges, uma agonia que deve ter sido longa, pois eles usaram pequenas conchas para separar a carne dos ossos. Em seguida, os monges a esquartejaram (alguns dizem que jogaram sua cabeça ao mar), queimaram o que havia restado do corpo e foram até Cirilo saudá-lo como libertador. Por sorte, ninguém pensou em queimar também a correspondência da filósofa com Sinesio, melhor, as cartas dele, e foi através delas e de eventuais menções de historiadores da Igreja, que a chamavam de feiticeira, que se pôde reconstruir algo desta extraordinária biografia..

Quanto a Shagarat ad-Durr, as esposas e concubinas do harém não desperdiçaram a oportunidade de vingar-se da favorita do sultão e a surraram até a morte, golpeando-a com seus tamancos. O cadáver da única mulher-sultão do Islã foi pendurado no centro do Cairo para servir de repasto aos cães e diversão aos inimigos. Dizem que alguém da equipe do arqueólogo Howard Carter comprou em 1903 uma caixinha de madrepérola no mercado Khan al Khalili e esqueceu-se dela. Seu neto, anos depois, abriu-a e achou um fino rolo de papiro que descrevia, no árabe mais requintado, as façanhas desta esquisita e poderosa mulher.

V.

De mim, Hatshepsut, a História nada quis, senão aniquilamento. Nem mesmo um único duplo me concederam, fosse na forma de esfinge, deus, homem, mulher, faraó, quimera. Coube-me ser apenas um intervalo de silêncio.

De mim, Hypatia, algo de meu corpo está enredado nos corais do fundo do mar, mas na superfície tudo se perdeu. Sou uma fantasmagoria, que o tempo torna cada vez mais tênue.

De mim, Shagarat, cujo epílogo foi servir de comida aos cães, nada sobrou, nem um fio de cabelo ou o fio do tecido que cobria minha cabeça. Negaram-me até o anátema, até a fama de cruel, condenando-me ao esquecimento.

Eu, Hypatia, me pergunto se teriam sido as mesmas aquelas mãos que retalharam meu corpo e as que despedaçaram meus livros, Eu, Shagarat, suspeito que meus braceletes foram para a mais jovem concubina, Eu-Hatshepsut, que uma vez fui deus e rei, tornei-me fragmento de pedra, insignificância misturada a outras, Eu-Shagarat, que uma vez curvei o Islã e a Cristandade, que decidia vida e morte, tornei-me um incômodo desdenhável, uma vacuidade, Eu-Hypatia, que regia os rumos de uma cidade infiltrando-me no intelecto de seus homens, tornei-me pela boca de meus inimigos tudo o que combatia, superstição, malevolência, iniqüidade, Eu-Hypatia, a quem todos admiravam como complacente e sábia, Eu-Hatshepsut, a magnânima soberana do Nilo, reverenciada e respeitada, Eu-Shagarat, a quem todos adulavam e diante de quem todos tremiam, Hatshepsut venerada, endeusada, temida, Shagarat, temida, odiada, Hypatia, invejada, adulada, odiada, Eu, Nós, temíveis, odiadas, vandalizadas, esquecidas, párias, sombras, silhuetas, névoa, fulgurância negra.

Invisíveis.

Ninguém, não fosse uma carícia do acaso.

Recebido em 20 de agosto de 2007 e aprovado em 23 de novembro de 2007.

Fotos de Marília Pacheco Fiorillo. Karnak – apagamento de imagem de Hatshepsut por Tuthmosis III e templo de Hatshepsut em Deir al-Bahri.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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