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Editorial

EDITORIAL

A questão da formação de professores da rede pública - já comentada em nosso último número - retorna novamente à pauta nos meios políticos do Estado de São Paulo. Um "pacote" (a ser ainda aprovado pela Assembléia), anunciado no mês de abril pelo governador José Serra, visa, entre outras medidas, à criação de um curso de quatro meses, com uma prova, para todos os ingressantes no magistério da rede estadual, em razão da previsão de abertura de 60 mil vagas, já no próximo semestre. Esse curso será ministrado por uma Escola de Formação de Professores de São Paulo e, para implementá-lo, prevê-se o estabelecimento de convênios com universidades públicas; anuncia-se ainda que uma parte será realizada a distância e outra, de forma presencial. Naquela ocasião, o governador, acompanhado do secretário da Educação, professor Paulo Renato, afirmou: "os professores vão receber uma forte injeção de conhecimentos" e criticou as faculdades de Pedagogia que, segundo ele, não ajudam a melhorar a educação; e acrescentou: "você vê uma lista de teses dessas faculdades e pouca coisa pode ser aproveitada pela educação", "os professores têm muita teoria e pouca prática."

Essas afirmações contundentes levam-nos a refletir sobre seus possíveis sentidos: primeiramente, a idéia de conhecimento como algo aplicável, nos moldes de uma injeção, demonstra que o pretendido com esse curso é transferir conteúdos prontos, em forma de um líquido, um verdadeiro "preparado", decerto uma fórmula mágica que surtirá efeitos positivos nos futuros professores. Aquilo que um curso de Pedagogia, por exemplo, não realiza, efetivamente, em quatro anos, agora será resolvido em quatro meses. Além disso, pontos obscuros e um tanto contraditórios transparecem na fala do senhor governador: se os professores têm muita teoria, mas não prática - idéia essa partilhada pela atual secretária da Educação do município do Rio de Janeiro, Sra. Claudia Costin -, como propor uma formação mais prática através de um ensino que será, parcialmente, realizado a distância? Como supervisionar atividades práticas em um curso dessa natureza, quando se conhecem as dificuldades inerentes à realização e à supervisão de estágios no decorrer de cursos de formação docente? A menos que a prática mencionada se resuma a fornecer receitas de aulas pré-programadas e/ou de métodos estereotipados, prontos para "uso" em sala de aula. Por fim, pretende-se firmar convênios com as universidades públicas e, pressupõe-se, com as áreas relacionadas à Educação. Ora, não seriam estas que, além de formar os professores para o Ensino Fundamental e Médio, responsabilizam-se pela produção de teses consideradas, pelo governador, como pouco proveitosas para a área educacional?!

De fato, concordamos que a difícil questão referente à formação dos professores - modos de concebê-la e implementá-la -, bem como o credenciamento e a avaliação de cursos destinados a esse fim

Mas vale também a pergunta: por que um número decrescente de jovens se interessa pelos cursos de Licenciatura e de Pedagogia, em uma população universitária que não cessa de aumentar? E ainda: os que se dirigem aos cursos de formação de professores - sobretudo para a Pedagogia - fazem-no por escolha, ou seja, por interesse, "vocação", motivação ou, justamente, porque sobram vagas nesses cursos, o acesso é mais fácil e a competição, menos acirrada? Infelizmente, esta parece ser a razão mais aventada. Além disso, não são poucas as dificuldades que o professor, mesmo bem preparado, deve enfrentar para tornar-se um bom professor em uma sociedade que sofre grandes transformações e mudanças rápidas. A própria tentativa de incluir crianças e adolescentes antes excluídos, até aqueles que há pouco tempo eram atendidos pela "educação especial", obriga o professor a ter competências não apenas para ensinar, mas também para gerir situações que permaneciam, antes, fora do âmbito da sala de aula "regular". De fato, um emaranhado de questões extremamente complicadas invadiu o quotidiano escolar, não só em nosso país, mas também nos chamados países desenvolvidos.

Exemplos de situações típicas da escola atual surgem nas cenas de Entre os muros da escola (Entre les murs), do diretor Laurent Cantet, lançado em São Paulo, em março último. O filme, que recebeu a Palma de Ouro no festival de Cannes de 2008 e foi indicado, neste ano, para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro, conhece bom êxito entre nós, uma vez que se encontra em cartaz há mais de três meses, em boas salas de cinema da capital paulista e de outras cidades do país.

Como se sabe, a escola e as múltiplas questões envolvendo dificuldades dos alunos e a relação professor-aluno têm sido abordadas, de diferentes modos, pelos diretores do cinema francês. Lembremos o clássico de Jean Vigo, Zero em comportamento (Zéro de conduite, 1933), filme que inspirou o primeiro longa metragem de François Truffaut - Os incompreendidos (Les quatre cents coups, 1959) -, ganhador do prêmio de Melhor Diretor em Cannes. Um retrato bastante positivo da sala de aula foi apresentado, mais recentemente, no documentário de uma "escola de uma turma só", freqüentada por crianças de 4 a 11 anos, de Nicolas Philibert - Ser e ter (Être et avoir, 2002)

O que traz de novo, então, o filme de Cantet? Como entender o sucesso e o impacto no público em geral e nos "profissionais da educação", particularmente naqueles que conhecem e vivem os problemas de sala de aula? Inúmeras razões podem ser evocadas, mas uma delas relaciona-se, sem dúvida, ao fato de o principal ator - que assume o personagem central do filme, François Bégaudeau, o professor de francês cujas atividades se desenvolvem no decorrer de um ano letivo em uma classe equivalente à nossa 7ª série, penúltima do ensino básico - ser o autor do livro de mesmo nome

O que se vê, então, nessa escola

O fato de o protagonista principal ser um professor de francês apenas acrescenta um problema suplementar ao ato mesmo de ensinar: muitos alunos são descendentes de emigrantes de variados países - antigas colônias francesas na África e na França de ultramar (Antilhas) - e alguns, mesmo já nascidos em solo francês, costumam praticar outras línguas em casa, com familiares que pouco ou nada conhecem da língua francesa; e estão fadados a aprender, na escola, uma língua outra, o que dificulta a tarefa do professor e até mesmo a escolha de textos de leitura. Afinal, os entraves para aprender essa língua "estrangeira" não são também indícios de uma resistência a assumir outra identidade, a assimilar uma cultura estranha àquela do próprio meio familiar? De qualquer forma, não é mais possível solicitar, como há uma ou duas décadas atrás, que os alunos leiam textos clássicos, dos iluministas franceses - Voltaire, por exemplo, como sugere o professor de História. O professor François inventa, cria, lança mão de diversas estratégias, visando a aprendizagem da leitura, da escrita, da ampliação do vocabulário e da gramática francesa. Após a leitura do Diário de Anne Frank, propõe a redação de um autoretrato, o que desencadeia, no início, críticas e conflitos entre professor e alunos, mas parece, finalmente, dar bons resultados; até mesmo Souleymane, o malinês que, para desvencilhar-se da tarefa, apresenta fotos dele mesmo em companhia de membros de sua família e de amigos, é solicitado a escrever legendas - de novo, a língua francesa - e acaba por ver o resultado de seu trabalho exposto em um mural.

Esse professor parece obter, às vezes, êxito em seu labor, mas também incorre em erros; em suma, é apresentado como um ser humano com suas imperfeições. Não é um super-herói, sempre benquisto pelos alunos, como ocorre, com freqüência, nos filmes holywoodianos; ao contrário, vê-se constantemente em meio a tensões com os alunos, além de enfrentar as turbulências "normais" dos adolescentes entre si. Mas não perde de vista o fim principal: ensinar, criar condições para que os alunos aprendam, até mesmo elementos da gramática, como o imperfeito do subjuntivo - "esse verbo de burguês", segundo Khoumba -, raramente empregado na linguagem oral francesa.

E por que é tão importante aprender a língua do país no qual se vive, inclusive em seus aspectos mais sofisticados? Haveria outra forma de o professor de francês procurar, efetivamente, incluir essa primeira geração que deseja - ela e seus familiares - integrar-se e ser aceita nessa "nova" comunidade? É o que pedem, explicitamente, os pais recebidos pelo professor, na escola: um pai, ao lado do filho, afirma que este deve "ir o mais longe possível (nos estudos)", uma vez que "eu não fui muito longe"; uma mãe, ela mesma emigrante, deseja "o melhor" para o filho, bom aluno, e revela seu sonho: que ele estude no Henri IV, o melhor colégio público de Paris, pois ela pensa que os professores da "Dolto" não são muito exigentes.

Apesar de todos os impasses e dificuldades, o filme termina em um tom otimista. Ainda que existam inúmeras diferenças entre aquela escola do filme - prédio moderno, impecavelmente limpo, com salas de 25 alunos em cada classe, computadores à disposição para a realização dos trabalhos - e as nossas, há muitas semelhanças, pois a essência das questões é a mesma. E, como tem sido assinalado por aqueles que assistiram ao filme, a escola é um microcosmo da sociedade: ela espelha, reflete a realidade e os inúmeros problemas ocorridos fora de seus muros; traz para dentro dela as principais questões e inquietações do presente. Aqui, como lá, seria difícil imaginar fórmulas mágicas, visando preparar o professor para as múltiplas e variadas tarefas que cabem à escola na atualidade - algo pronto, cuja aplicação contribuísse, de fato, para a realização de um trabalho mais eficiente...

O dossiê, coordenado pela Profa. Dra. Kimi Tomizaki, da USP, aborda o tema Educação e política: novas configurações nas práticas de militância - de grande atualidade e importância crescente no âmbito das ciências sociais nas duas últimas décadas, objeto de estudos publicados, principalmente, na Europa e nos Estados Unidos. Congregando alguns textos de autores de várias universidades do Brasil e um da Universidade de Buenos Aires - UBA -, Argentina, traz elementos de pesquisas empíricas que estudam o engajamento militante envolvendo diferentes esferas - sindicatos, meio jurídico, contextos estudantis, movimentos ambientalistas e sociais e "contribui para a discussão teórico-metodológica das abordagens da ciência política, da sociologia, da antropologia e da sociologia da educação sobre o assunto", segundo Fabiano Engelmann, que apresenta o dossiê. A ressaltar, a entrevista, ou "conversa" em forma de entrevista, do sociólogo francês Bernard Pudal - conhecido pelos seus trabalhos sobre a história e a sociologia do Partido Comunista Francês -, concedida à organizadora do dossiê.

No que diz respeito aos quatro artigos apresentados neste número, um deles estuda os processos formativos em instituições de Educação Infantil, a partir de uma pesquisa realizada em creche da Rede Municipal de Florianópolis, Santa Catarina; outro analisa seis edições do bem conhecido livro de Cecília Meirelles, Ou isto ou aquilo, à luz dos estudos da História Cultural. Dois outros textos trazem elementos muito importantes para entendermos o que tem sido realizado na tentativa de democratizar o ensino superior: um deles aborda o Pró-Uni e a Universidade Aberta (UAB), analisando não só as regulamentações, mas também as estratégias adotadas para seu funcionamento; o outro apresenta e discute as políticas públicas de inclusão na educação superior no Brasil e na Argentina - comparando o desenrolar desse processo nos dois países. Este último, fartamente baseado em dados concretos, aponta para diferentes maneiras empregadas pelos dois países, visando à inclusão de novos grupos ao ensino superior.

Este número conta ainda com um excelente ensaio do professor Roberto Magalhães, docente da Universitá Internazionale dell'Arte de Florença, que busca ilustrar as estratégias pedagógicas dos museus da Filadélfia, cidade com uma grande concentração de museus, historicamente importante, que, durante dez anos, foi capital dos Estados Unidos (1790-1800). Através de exemplos bem escolhidos, Magalhães demonstra que "um fervor pedagógico generalizado, expresso na qualidade, na quantidade e na constância dos materiais colocados à disposição do público parece ser um traço museológico específico" dos museus dessa cidade. O tema é importante, uma vez que já se tornou regra, no Brasil, a discussão em torno do papel fundamental dos museus na divulgação cultural e sua importância na educação formal e não formal.

Na sessão de resenhas, a professora Zeila Demartini, bem conhecida por sua liderança no grupo de pesquisa Ceru - Centro de Estudos Rurais e Urbanos (USP) -, apresenta o livro Vozes roubadas: diários de guerra, organizado por Melanie Challenger e Zlata Filipovic, que reúne autobiografias de 14 crianças e jovens no período em que vivenciavam situações de guerras ocorridas de 1914 a 2004.

A seção Diverso e Prosa reproduz o texto "Amar sem aulas práticas", do Professor Dr. Luiz Dantas - colega do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp -, prematuramente desaparecido no ano passado; originalmente publicado em 1984, é aqui apresentado pela Professora Miriam V. Gárate. Este texto denso e poético nos traz saudosas recordações desse querido colega e é também uma maneira singela de homenageá-lo; além disso, leva-nos a refletir sobre a importância da leitura dos clássicos por aqueles que trabalham em todas as esferas da área educacional, uma vez que "a literatura amplia nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo", idéia defendida por Todorov,

Luci Banks-Leite

  • 6. T. Todorov. A literatura em perigo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
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    , deve ser seriamente revista e discutida, sem negligenciar, entretanto, outros tantos problemas a ela associados. De fato, dados do
    Estudo exploratório sobre o professor brasileiro, divulgado pelo INEP/MEC, realizado com base no Censo Escolar de 2007, apresentam um quadro dramático da situação das escolas das redes pública, particular e confessional do país, ao apontar que 17,5% do professorado brasileiro atua sem formação adequada - boa parte no Ensino Fundamental, de primeira a oitava séries. E Fernando Haddad, ministro da Educação, vai na mesma direção do governador Serra, ao afirmar: "é ruim, a formação, mesmo daqueles que têm curso superior" (cf.
    O Estado de S. Paulo, 3 de junho de 2009).
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    .
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    , fonte de inspiração para o roteiro do qual ele é também co-autor. Por tratar-se de um livro-roteiro escrito por alguém que viveu, durante vários anos, o quotidiano escolar, apresenta um retrato bastante verossímil de uma sala de aula típica de alunos dessa faixa etária - 14-15 anos
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    - e os principais obstáculos para que o professor aí exerça suas funções.
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    que, ao contrário do que afirmam algumas críticas dos jornais, não está na periferia, mas sim no 20º distrito da cidade, ou seja, na chamada Paris intramuros? Qual a população que freqüenta a classe alvo do filme, e quem são seus professores? Logo se nota, pela aparência física dos alunos - jovens negros, mestiços, árabes, asiáticos - e por seus nomes, Bien-Aimé, Rachid, Hadia, Souleymane, Gibran, Chérif, Esmeralda, Khoumba, Wei, entre outros, a diversidade de origens étnicas e culturais, em claro contraste com nomes de outros poucos alunos: Sandra, Cynthia, Artur, Louise e, sobretudo, com os dos professores - Dominique, Elise, Bastien, Chantal, Gilles, Léopold, Géraldine, Rachel, Sylvie, Philippe, além do próprio François. Estes, nos encontros na sala de professores, exasperam-se enquanto sorvem seus cafés, ao discutir as dificuldades encontradas na tentativa de colocar em prática uma das importantes prescrições de seu ofício: ensinar conteúdos das disciplinas básicas - História, Geografia, Matemática, Educação Física e Francês.
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    em seu último livro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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