Acessibilidade / Reportar erro

Leitura e formação inicial de professores: sentidos, memória e história a partir da perspectiva discursiva

Reading and initial teacher education: senses, memory and history based on a discourse perspective

Resumos

Neste artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa que vem investigando, dentre outras questões, a relação que estudantes do curso de Pedagogia estabeleceram com a leitura ao longo de suas vidas. Buscamos saber se e como tal relação repercute no processo de aprendizagem desses licenciandos de forma particular e, em sua formação acadêmica, de maneira ampla. Os postulados teórico-metodológicos da Análise de Discurso de linha francesa propostos por Pêcheux e seus seguidores, bem como as contribuições do referencial histórico-cultural trazidas por Chartier, fundamentam nossas investigações.

leitura; aprendizagem; qualificação acadêmica


In this article, we present the results of a research that has been investigating, among other issues, the relationship that the Pedagogy Program students have developed with reading throughout their lives. It is our intention to find out if and how such relationship influences these graduates' learning process, in a particular way and their academic qualification, in an extensive way. The theoretical-methodological postulates from the French Speech Analysis proposed by Pêcheux and followers, as well as the contributions of the historical-cultural referential, brought by Chartier, substantiate our investigations.

reading; learning; academic qualification


DOSSIÊ

HISTÓRIAS E SENTIDOS DA LEITURA PARA PROFESSORES EM FORMAÇÃO

Filomena Elaine P. Assolini

Professora do Departamento de Psicologia e Educação e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento (Gepalle) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), SP, Brasil. elainefdoc@ffclrp.usp.br

RESUMO

Neste artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa que vem investigando, dentre outras questões, a relação que estudantes do curso de Pedagogia estabeleceram com a leitura ao longo de suas vidas. Buscamos saber se e como tal relação repercute no processo de aprendizagem desses licenciandos de forma particular e, em sua formação acadêmica, de maneira ampla. Os postulados teórico-metodológicos da Análise de Discurso de linha francesa propostos por Pêcheux e seus seguidores, bem como as contribuições do referencial histórico-cultural trazidas por Chartier, fundamentam nossas investigações.

Palavras-chave: leitura; aprendizagem; qualificação acadêmica.

ABSTRACT

In this article, we present the results of a research that has been investigating, among other issues, the relationship that the Pedagogy Program students have developed with reading throughout their lives. It is our intention to find out if and how such relationship influences these graduates' learning process, in a particular way and their academic qualification, in an extensive way. The theoretical-methodological postulates from the French Speech Analysis proposed by Pêcheux and followers, as well as the contributions of the historical-cultural referential, brought by Chartier, substantiate our investigations.

Key words: reading; learning; academic qualification.

I - Fundamentação teórica: conceitos e princípios basilares

Neste artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa que investigou, dentre outras questões, a relação que estudantes do curso de Pedagogia estabeleceram com a leitura, ao longo de suas vidas. Buscamos saber se e como tal relação repercute no processo de aprendizagem desses licenciandos, de forma particular e, em sua formação acadêmica, de maneira ampla.

Os postulados teórico-metodológicos da Análise de Discurso de matriz francesa e as contribuições do referencial histórico-cultural trazidos por Chartier e colaboradores, fundamentam nossas análises e discussões.

A Análise de Discurso de matriz francesa (doravante A.D) é um campo de pesquisa fundado por Michel Pêcheux, no final da década de sessenta. O quadro epistemológico da A.D configura-se na articulação de três regiões do conhecimento científico, a saber: a) o materialismo histórico, como teoria das formações sociais, compreendida aí a teoria das ideologias; b) a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; c) a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.

Essas três regiões do conhecimento são atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica.

Pensar os ecos das vivências com a leitura de sujeitos que ocupam a posição de estudantes universitários nos conduz a mobilizar o conceito de memória discursiva, que não deve ser entendida "[...] no sentido psicologista de 'memória individual', mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador" (Pêcheux, 1999, p. 50).

Cumpre dizer que, de acordo com o enfoque discursivo, o dizer não é propriedade particular; não somos os donos absolutos nem das palavras, nem dos sentidos, o que é dito em outro lugar também significa nas nossas palavras, em nossos dizeres. Sendo assim, destacamos que, segundo Gregolin (2007, p. 180), "[...] a memória discursiva é constituída de vestígios que se inscrevem no interdiscurso". O interdiscurso, por sua vez, corresponde ao sentido "já-lá", ao "isso fala", e representa o domínio do saber, a memória das formações discursivas, segundo Orlandi (1996, 1999, 2001).

Os processos discursivos não têm, portanto, sua origem no sujeito, mas, sim, na formação discursiva com a qual o sujeito se identifica. Daí podermos dizer que o que existe é a forma-sujeito das formações discursivas com a quais diferentes posições de sujeitos se relacionam. A maneira como determinada posição-sujeito se relaciona com a forma-sujeito evidencia a dispersão do sujeito e a não homogeneidade da formação discursiva, que determina o que pode e deve ser dito (Pêcheux, 1990, p. 160).

Na A.D, o sujeito é duplamente interpelado: pela ideologia e pelo inconsciente; ele é sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e do inconsciente, sendo que isso "[...] tem a ver com o fato de os nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação" (Henry, 1992, p. 188). Partimos, pois, de um aparato teórico sustentado sob a noção de um sujeito cindido, atravessado pelo inconsciente, cujo discurso mantém sempre relação com outros dizeres.

Outro princípio basilar da A.D, que também nos interessa particularmente, é o de condições de produção. Ou seja, há uma relação constitutiva entre linguagem e exterioridade. Uma relação orgânica e não meramente adjetiva, supérflua.

Prosseguindo com a nossa fundamentação teórica, ressaltamos que, em oposição à compreensão de leitura como simples e ingênuo gesto de decodificação - leitura essa que permanece centrada no texto, tratado como portador de significação única a ser desvendado e apreendido por um crédulo leitor -, o enfoque discursivo concebe leitura como construção e produção de sentidos, porém, nem texto, nem autor, nem leitor, sozinhos, são responsáveis pelos sentidos de um texto.

Chartier (1996), por sua vez, traz para a discussão a concepção de leitura enquanto prática cultural, que obedece às mesmas leis que outras práticas culturais, com a diferença de que ela é mais diretamente ensinada e propagada pelo sistema escolar.

Temos defendido também que leituras (interpretações) múltiplas são possíveis para um sujeito que pode ocupar a posição de "intérprete-historicizado", ou seja, uma posição que permite ao sujeito do discurso produzir sentidos para além da relação termo a termo entre as coisas e a linguagem. (Assolini, 2003)

Apresentando o tecido que sustenta teoricamente esta pesquisa, vamos discorrer sobre os aspectos metodológicos.

II - Dispositivo de análise do processo discursivo: a constituição do corpus, a descrição e a escuta discursiva.

Optamos por trabalhar com entrevistas, pois entendemos, de acordo com Authier-Revuz (1998, p. 97), que "[...] o texto oral, em que não se podem suprimir as reformulações, deixa, mecanicamente, no fio do discurso, os traços do processo de produção".

O fio do discurso, o intradiscurso, permite-nos buscar discursos outros pela memória discursiva (interdiscurso). Amparados por Pêcheux (1990, 1997, 1999), consideramos que tanto o intradiscurso quanto o interdiscurso fazem parte dos fatos discursivos.

Foram por nós realizadas 112 (cento e doze) entrevistas ao longo dos anos de 2007 e 2008; todas elas foram gravadas em áudio e por nós transcritas literalmente. Os entrevistados foram sujeitos de diferentes instituições de ensino superior de quatro diferentes cidades do interior paulista. As entrevistas foram realizadas em espaços não institucionais, tendo em média uma hora e meia de duração.

A partir desse amplo "espaço discursivo", selecionamos, para o presente artigo, três recortes que serão analisados.

O aparato teórico-metodológico da A.D. concebe o recorte como "unidade discursiva; fragmentos correlacionados de linguagem e situação" (Orlandi, 1987, p. 139). Em concordância com a citada pesquisadora, optamos por "fatos" e não "dados" de linguagem, pois os fatos têm memória e historicidade. Considerar os fatos linguísticos e neles buscar pistas e vestígios que nos possibilitem compreender se e como a relação que estudantes universitários construíram com a leitura ressoa em seu processo de aprendizagem escolar no âmbito acadêmico implica analisar a inter-relação entre a ordem da língua, a ordem da história e a ordem do discurso.

É válido notar que tanto a AD quanto o referencial histórico-cultural inscrevem-se no paradigma indiciário proposto por Ginsburg (1989), o que nos permite tomar as marcas linguísticas como pistas e indícios para explicar o funcionamento das formações discursivas e das formações ideológicas às quais se remetem.

III - Gestos de interpretação: perscrutando os indícios e os vestígios nos dizeres de estudantes universitários

Objetivamos compreender os fios discursivos que teceram os discursos dos estudantes universitários. Assim, vamos deter-nos, nesta seção, nas análises dos recortes selecionados, em particular nas sequências discursivas de referências - S.D.R. - (Courtine, 1982).

Recorte nº. 1

Bom, na minha casa teve o meu pai que lia pra gente, sabe? Ele levava muitos gibis pra gente, a gente ficava meio abobados com tantos gibis e com tantas histórias que ele nos contava. Eu comecei a gostar de ler com gibis, achava tudo engraçado, legal. Caraca, mas quando cheguei na universidade aí então a gente lê mesmo os textos pra nota, lê pra conseguir a melhor nota, a nota ideal, porque é isso que vale na verdade, né? "Não leio nada além dos textos da faculdade, porque não dá tempo, agora eu sou um bom aluno, tenho notas muito boas e estudo e penso que estou aprendendo a ser capaz de me fazer críticas ao que leio e ao que meus professores falam. (Estudante "T")

A análise discursiva do recorte acima nos permite dizer, a partir das sequências discursivas destacadas, que o estudante "T" vivenciou em sua infância experiências prazerosas com a leitura: "era uma delícia quando meu pai chegava em casa com gibis, a gente adorava". Tais experiências lhe permitiram aprender, desde cedo, que o ato de ler pode estar associado a sentimentos e a emoções caracterizadas pelo encantamento e pela magia: "a gente ficava meio abobados com tantos gibis e com tantas histórias que ele nos contava". Essas vivências contribuíram para a construção de uma memória de sentidos em relação à leitura na qual "T" pôde ocupar a posição de um sujeito intérprete.

Contudo, quando na posição de sujeito-estudante universitário, "T" vivencia experiências nas quais se vê obrigado a inscrever-se em formações discursivas caracterizadas pelos ditames de um discurso pedagógico escolar, D.P.E., que valoriza, sobretudo, os aspectos avaliativos tradicionais, no caso, estudar e ler "para conseguir a nota ideal".

Nessas condições adversas de produção, a leitura associada ao prazer, à emoção da descoberta e ao encantamento diante do novo e do inusitado cede lugar à leitura-obrigação, à leitura acadêmica, à leitura utilitarista.

As formações ideológicas predominantes na educação superior impõem a circulação de sentidos institucionalizados, cristalizados e legitimados. A ideologia apaga o processo sócio-histórico de constituição dos sentidos, fazendo com que eles se nos apresentem como sendo verdadeiros, únicos, evidentes, naturais. Em outras palavras, predomina na educação superior o processo parafrástico de linguagem, isto é, "o retorno constante a um mesmo dizer sedimentado" (Orlandi, 1987, p. 39). Esse processo conduz o educando a inserir-se em formações discursivas que o levam a acreditar em um mundo "semanticamente normal" (Pêcheux, 1995), sendo que as marcas de um modelo jesuítico-napoleônico de ensino, que ainda se fazem presentes na educação brasileira superior, contribuem para a perpetuação da ilusão de que o "melhor" aluno é o que alcança as notas mais elevadas.

No recorte em análise, há indícios de que "T" reconhece que o fato de ter tido oportunidade de constituir-se como um sujeito-leitor em sua infância contribuiu para que sua aprendizagem, quando na posição de estudante universitário, ocorresse significativamente, pois, apesar de estar inscrito em formações discursivas que o colocam na posição de "escrevente", isto é, na posição de um sujeito que somente enuncia sentidos prefixados, consegue desprender-se desse lugar, passando a ocupar a posição de um sujeito que se contrapõe e se inquieta com os discursos estabilizados, originários da reiteração de processos discursivos cristalizados pela instituição escolar.

Esse movimento de migração para outras formações discursivas, o que possibilita ao estudante "T" questionar os espaços do dizer e as zonas de sentido consideradas legítimas pela instituição escolar, é possível devido a uma memória discursiva marcada por uma relação com a leitura caracterizada pela não interdição ao seu dizer e pensar. Assim, "T" pôde, em sua infância, atribuir e produzir sentidos sem interdições ou proibições, o que lhe permitiu constituir-se como um sujeito-leitor que não se submete a realizar uma simples decodificação textual.

Recorte nº. 2

Não gosto de falar sobre esse assunto, porque eu cheguei a apanhar do meu pai por causa de gostar de ler, você acredita nisso? Meu pai dizia que quem gostava de ficar lendo era gay e não queria trabalhar, ia ser vagabundo. Eu ficava com medo dele, com raiva, me sentia a última das criaturas, uma vez ele chegou a jogar meus livrinhos fora, me chamando de maricas. Tive muito ódio e passei a ligar uma coisa com a outra, quer dizer, gostar de ler com maricagem e brigas com meu pai. Foi só aqui, na faculdade, com o professor J.V.C.A., que comecei a ler com gosto, comecei a participar do grupo dele e me apaixonar pela literatura que ele trabalha e hoje até escrevo melhor. (Estudante "F").

Iniciamos a análise do recorte acima, destacando que nos chamam a atenção, de imediato, os significantes raiva, ódio e medo. Para o sujeito "F", a ação de ler remete-o a situações e a vivências nas quais imperavam sentimentos e emoções aversivas em relação a essa prática social. Tais sentimentos e emoções foram intensificados durante os anos correspondentes a sua adolescência, anos esses que o fizeram sentir-se em uma camisa de força, sobretudo no que concerne à leitura escolar.

Nessas condições de produção, "F" não consegue constituir-se como um sujeito-leitor, que se vê na condição de saborear uma prática leitora caracterizada pelo prazer e pela sedução advindos de um texto, muito menos aprender que um texto pode constituir-se, por exemplo, em fonte de informação e enriquecimento cultural.

No âmbito dessa discussão, trazemos a questão do "outro" como constitutivo do discurso. A esse respeito, afirma Orlandi (1999, p. 38): "a relação com o 'outro' regula tudo e preenche tudo, explica tudo, tanto o sujeito como o sentido". Portanto, a heterogeneidade é constitutiva do discurso; e o sujeito que se constitui pela dispersão e pela multiplicidade de discursos, ao enunciar, o faz ocupando várias posições, que marcam a sua heterogeneidade.

Considerando que todo dizer se liga a uma memória de sentidos, a um saber discursivo e tendo por base a concepção de que o sujeito se constitui na relação com o outro, na interlocução com a exterioridade (meio sócio-histórico cultural), assinalamos que, no caso do sujeito "F", a família, em especial aqueles que ocupam a posição "pai" e "irmão mais velho", contribuiu para que "F" permanecesse inserido em formações discursivas nas quais a prática social da leitura é tida como algo destituído de valor e importância cultural. Essas formações discursivas remetem a formações ideológicas que valorizam, sobretudo, o capital e os bens materiais que dele podem advir: "deixe de ler tanta besteira, menino, vai ser jogador de futebol, ficar rico, ganhar muito dinheiro e ter muitos iates" (posição de sujeito "pai").

Como dizem Coracini; Bertholdo (2003), "todo contato com o outro deixa marcas indeléveis, suturas que não podem ser apagadas, como também é impossível apagar as marcas da própria história, inscrições que passam pelo corpo, se fazem carne e sangue" (idem, p. 9).

Tendo em vista o exposto até o presente momento, entendemos ser possível observar que a constituição da memória discursiva do sujeito "F", referente à leitura, deu-se dentro de condições desfavoráveis de produção, que não lhe possibilitaram estabelecer vínculos afetivos saudáveis e amistosos com essa prática cultural.

Dando prosseguimento, salientamos que o sujeito "F", na posição de estudante universitário, parece movimentar-se no sentido de conseguir romper com formações discursivas, nas quais esteve inscrito na infância e na adolescência, a partir da mediação de um sujeito professor, que o convida e o instiga à leitura de textos literários, em especial, poemas.

Nessa direção, trazemos Pêcheux (1999), que afirma:

uma memória não poderia ser concebida com uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamento e de retomadas, de conflitos, de regularização[...] um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscurso (Pêcheux, 1999, p. 56).

Parece-nos que o sujeito-professor universitário que sensibiliza o estudante "F" para a arte das palavras (a literatura), permitindo-lhe inscrever-se em outras formações discursivas que são marcadas pela aversão à leitura, promove condições de produção que deslocam o sujeito-estudante dessa esfera plena, homogênea, unívoca, em que deslocamentos e contradições não são desejados ou sequer esperados.

A relação com a leitura, ressignificada a partir do contato com textos literários e dentro de condições de produção de leitura que abalam, mexem, remexem e também deslocam os sentidos constituintes da memória discursiva do sujeito "F" contribui para que possa aprender que a aquisição de conhecimentos, saberes acadêmico-científicos e fazeres pedagógicos aconteça dentro de vivências agradáveis e enriquecedoras, que refletem inevitavelmente na constituição de sua identidade profissional.

Considerando a tessitura teórica até aqui desenvolvida, podemos destacar que, sendo o sujeito cindido (por assumir várias posições no discurso) e clivado (por ser fragmentado), uma vez que o inconsciente o constitui, seu discurso é sempre heterogêneo. Embora o sujeito acredite, ilusoriamente, ser a fonte de seu discurso, ele nada mais é do que o suporte e o efeito deste.

Complementando nossa argumentação, assinalamos que o conceito de identidade, pensado à luz da A.D. e da psicanálise, pode ser definido como um processo em movimento, em que o sujeito se constitui pela multiplicidade de discurso, pela heterogeneidade e pelo deslocamento (Authier-Revuz, 1990; Coracini; Bertholdo, 2003; Pêcheux, 1990). Adensando essa discussão, trazemos Hall, que propõe pensar em "identidades", sempre fragmentadas, fraturadas, "[...] estando em constante processo de mudança e transformação" (Hall, 2000, p. 108).

Recorte nº 3

Tenho lembranças bacanas de meu avô, que tinha muitos livros em casa e lia para todos os netos, que subiam no colo dele, e ele lia e brincava comigo e com os meus primos também, principalmente no Natal. Meu avô era o máximo! Eu achava tudo aquilo o máximo. Na adolescência, eu passei a detestar ler... Não sei dizer o porquê, mas eu gostava mesmo de ver TV; eram chatos os livros da escola. Hoje, na faculdade, leio os textos quando os professores deixam a gente dizer o que sente e pensa, agora eu te digo uma coisa, tem docente que exige que a gente escreva do jeito que ele acha que tem que ser, igualzinho o que ele falou, assim não dá, parece que a gente fica preso. Só três professores respeitam o que a gente diz. (Estudante "M")

A relação com a leitura, no caso do sujeito "M", é construída dentro de condições de produção que lhe permitem tomar o outro - no caso o seu avô - como modelo a ser seguido: "eu achava tudo aquilo o máximo". A memória discursiva desse sujeito é, assim, caracterizada na sua infância por sentidos que o remetem a emoções e a sentimentos de acolhimento, aconchego e bem-estar.

Nessa perspectiva, entendemos que "M", na condição de sujeito estudante universitário, identifica-se com formações discursivas que valorizam a leitura como um instrumento importante para o seu aprendizado. Essa valorização, contudo, não foi construída pela escola, mas edificada, segundo o nosso entendimento, principalmente a partir de um interdiscurso que, sobretudo em sua infância, foi construído e marcado por experiências que o instigaram a ocupar o lugar de um sujeito-intérprete, que pôde, inclusive "brincar com as palavras".

O que acima expusemos remete-nos a um importante postulado da A.D.: o interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito (se) significa. Sendo assim, é desejável notar que: "[...] nenhuma palavra é 'neutra', mas inevitavelmente carregada, ocupada, habitada, atravessada pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada" (Authier-Revuz, 1990, p. 27).

Considerando que o interdiscurso determina a formação discursiva, podemos dizer que o estudante universitário "M" identifica-se com aquelas que lhe permitem realizar leituras e interpretações, principalmente a partir da consideração de sua subjetividade: "leio os textos quando o professor deixa a gente dizer o que pensa e sente". Nessa sequência discursiva, é possível constatarmos a concretização da confluência dos eixos da memória (constituição) e da atualidade (formulação).

É válido notar que esse estudante universitário vivencia algumas experiências, em algumas poucas (três) disciplinas do curso de licenciatura em Pedagogia, que lhe permitem ocupar a posição de um sujeito intérprete, condição fundamental, a nosso ver, para que ele possa constituir-se como autor de seu próprio dizer. Contrapomo-nos ao policiamento dos enunciados e dos sentidos que promove a instauração de uma normalização asséptica da leitura, o apagamento seletivo da memória histórica e o silenciamento do dizer do educando.

IV - Considerações finais

As análises e as reflexões por nós realizadas conduzem-nos a destacar a importância de os cursos de formação inicial, particularmente os de Licenciatura em Pedagogia, considerarem que, no processo de aprendizagem do educando, ecoam sentidos já formulados, pois, conforme foi mostrado, todo discurso se delineia na relação com outros dizeres: os presentes e os que se alojam na memória. Nossos discursos são atravessados por outros, em nossas falas fazem-se presentes outras falas; sob as nossas palavras, outras palavras são ditas.

Sendo assim, considerar o interdiscurso em relação à leitura de estudantes universitários pode contribuir para a construção de um trabalho pedagógico que problematize as maneiras de ler, permitindo-lhes construir uma relação mais arguta com o conhecimento científico. Nesse processo, o sujeito ocuparia não o lugar de "escrevente", que tão somente reproduz sentidos e enunciados alheios, mas, sim, de um literato, ou seja, de um sujeito que produz interpretações, por nós concebidas também como atos políticos.

É desejável que os futuros pedagogos, que têm pela frente a complexa tarefa de lidar com os inúmeros desafios de educar crianças e jovens em uma sociedade marcada por transformações histórico-culturais, ideológicas e tecnológicas, dentre outras, possam ocupar o lugar de um sujeito-intérprete (literato), o que lhes poderia assegurar o permanente exercício da crítica e da autocrítica, condição fundamental para o magistério. Afinal, a docência não requer apenas o domínio de conteúdos específicos nas diversas áreas do saber e do ensino, mas também conhecimentos didático-pedagógicos, além da compreensão dos aspectos políticos que sustentam a práxis pedagógica do profissional da educação.

Para encerrar nossas considerações, destacamos que proporcionar aos estudantes de graduação condições de produção para que tenham direito à palavra é um importante passo rumo ao aprimoramento de projetos, propostas e processos de ensino e de aprendizagem que, inevitavelmente, afetam a construção da identidade desse sujeito, que, em sua futura atuação profissional, poderá ocupar ou não a posição de um agente de mudanças e transformações, mas, inevitavelmente, sempre deixará no outro marcas de seu dizer.

Recebido em 15 de outubro de 2010 e aprovado em 10 de dezembro de 2010.

  • ASSOLINI, F. E. P. Interpretação e letramento: os pilares de sustentação da autoria. 2003. Tese (Doutorado) - FFCLP-USP, 2003.
  • AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de estudos linguísticos, IEL-Unicamp, n. 19, jul./dez. 1990.
  • AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas: Unicamp, 1998.
  • CHARTIER, R. Práticas da leitura Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
  • CORACINI, M. J.; BERTOLDO, E. S. (Org.). O desejo da autoria e a contingência da prática: discurso sobre/na sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2003a.
  • CORACINI, M. J. Identidade e discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas : Editora da Unicamp ; Chapecó: Argos, 2003b.
  • COURTINE, J. J. Définition d'orientations théoriques et construction de procédures en analyse du discours. Philosophiques, Québec, v. 9, n. 2, p. 239-264, oct. 1982.
  • GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURB, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Companhia de Letras, 1989.
  • GREGOLIN, M. R.; BARONAS, R. Análise do discurso: as materialidades do sentido. 3. ed. São Carlos: Claraluz, 2007.
  • HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
  • HENRY, P. A ferramenta imperfeita Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
  • ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento Campinas: Pontes, 1987.
  • ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
  • ORLANDI E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
  • ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formação e circulação de sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
  • PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso Campinas: Editora da Unicamp, 1990. p. 163-252.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
  • PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Gestos de leitura: da história no discurso. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
  • PÊCHEUX, M. O papel da memória. In: ACHARD, P. O papel da memória. Campinas: Pontes, 1999.
  • Leitura e formação inicial de professores: sentidos, memória e história a partir da perspectiva discursiva

    Reading and initial teacher education: senses, memory and history based on a discourse perspective
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      15 Out 2010
    • Aceito
      10 Dez 2010
    UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: proposic@unicamp.br