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Nove teses sobre a "infância como um fenômeno social"

Nine theses about "childhood as a social phenomenon"

Resumos

O artigo apresenta teses que sustentam que as crianças são parte da sociedade e do mundo e que é possível e necessário conectar a infância às forças estruturais maiores, ampliando as condições para a pesquisa sociológica dessa categoria social. Argumenta, a partir de eventos e estudos que tendem a excluir as crianças de suas análises, que o foco no desenvolvimento infantil e na socialização tradicional dificultou o reconhecimento da infância como fenômeno social. Como conclusão, indica a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para estabelecer relações entre a infância, como categoria, e as crianças, em suas vivências cotidianas; e para prover um quadro positivo ou negativo das condições de vida das crianças em geral, com vistas a compreendê-las como cidadãs.

infância; sociedade; estrutura social; pesquisa; sociologia


The article presents theses that claim that children are a part of society and the world and that it is possible and necessary to connect childhood with major structural forces, expanding the conditions for sociological research of this social category. There is an argumentation, from events and studies that excluded children from their analysis, that the traditional focus on child development and socialization has hindered childhood's recognition as a social phenomenon. To conclude, the text indicates the need for an interdisciplinary approach to establish relationships between childhood as a category and the children in their everyday experiences, in order to understand children as citizens.

childhood; society; social structure; research; sociology


DIVERSO E PROSA

Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Brasil. letician@usp.br

Jens Qvortrup é uma referência no campo dos Estudos Sociais da Infância. Nascido na Dinamarca, país onde fez o doutorado em sociologia, trabalhou com estudos sociais comparativos, voltados particularmente à União Soviética e aos países do Leste Europeu. Na década de 1980, quando supervisionava projetos sobre família e divórcio, na Áustria, deu-se conta da ausência das crianças nesses estudos e, entre 1987 e 1992, liderou o projeto pioneiro "Infância como Fenômeno Social", que, sob o patrocínio do European Center, de Viena, pesquisou a infância em dezesseis países. Em paralelo, iniciou e presidiu o grupo de pesquisa "Sociologia da Infância" (RC53), da Associação Internacional de Sociologia (ISA), por dez anos. No final dos anos 1990, mudou-se para a Noruega, onde foi professor e diretor do Centro Norueguês de Pesquisa sobre Infância (Norwegian Centre for Child Research - NOSEB) e coeditor do periódico Childhood, entre 1998 e 2007.

Liderou outras pesquisas sobre infância - "Crianças e bem-estar social" (Dinamarca, 1997-2002); "Bem-estar das crianças" (Noruega, 2001-2005); "A criança moderna e o mercado de trabalho flexível. Institucionalização e individualização das crianças à luz das mudanças no estado de bem-estar social" (Noruega, 2003-2008); "Crianças como novos cidadãos e o 'melhor interesse da criança' - um desafio para as democracias modernas" (Noruega, 2005-2007). Participou de conselhos editoriais de periódicos da área e publicou, como editor, diversos livros sobre a sociologia da infância.

Seus artigos, publicados em língua inglesa, são encontrados em livros e periódicos do campo da sociologia da infância e suas ideias frequentemente são citadas na produção de pesquisadores franceses, italianos, portugueses e brasileiros, além dos sociólogos que publicam em inglês. Jens Qvortrup defende algumas ideias que estimulam o debate. Apresenta a infância como categoria na estrutura social e defende que a categoria geracional é aquela que define o lugar ocupado pela infância na sociedade, portanto, o elemento que fundamenta o campo da sociologia da infância. Dessa forma, admite as outras categorias clássicas de análise no campo das Ciências Sociais (classe social, gênero, etnia) como categorias complementares à geração.

O texto "Nove teses sobre a infância como fenômeno social", de 1993, faz parte dos relatórios da pesquisa pioneira e tem como objetivo apresentar as principais ideias que formulam o novo paradigma dos Estudos Sociais da Infância, constituindo-se como fundamento teórico dos estudos e das pesquisas posteriores do campo.

Nove teses sobre a "infância como um fenômeno social"1 1 . Artigo publicado em Eurosocial Report Childhood as a Social Phenomenon: Lessons from an International Project, n. 47, 1993, p. 11-18. Tradução de Maria Letícia Nascimento.

Nine theses about "childhood as a social phenomenon"

Jens Qvortrup

Norwegian University for Science and Technology, Trondheim, Norway

RESUMO

O artigo apresenta teses que sustentam que as crianças são parte da sociedade e do mundo e que é possível e necessário conectar a infância às forças estruturais maiores, ampliando as condições para a pesquisa sociológica dessa categoria social. Argumenta, a partir de eventos e estudos que tendem a excluir as crianças de suas análises, que o foco no desenvolvimento infantil e na socialização tradicional dificultou o reconhecimento da infância como fenômeno social. Como conclusão, indica a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para estabelecer relações entre a infância, como categoria, e as crianças, em suas vivências cotidianas; e para prover um quadro positivo ou negativo das condições de vida das crianças em geral, com vistas a compreendê-las como cidadãs.

Palavras-chave: infância; sociedade; estrutura social; pesquisa; sociologia

ABSTRACT

The article presents theses that claim that children are a part of society and the world and that it is possible and necessary to connect childhood with major structural forces, expanding the conditions for sociological research of this social category. There is an argumentation, from events and studies that excluded children from their analysis, that the traditional focus on child development and socialization has hindered childhood's recognition as a social phenomenon. To conclude, the text indicates the need for an interdisciplinary approach to establish relationships between childhood as a category and the children in their everyday experiences, in order to understand children as citizens.

Key words: childhood; society; social structure; research; sociology.

Em artigo sobre a crise da dívida internacional e sua influência sobre as crianças do Terceiro Mundo, os autores demonstram que aquilo que o Fundo Monetário Internacional (FMI) chama de "ajustes estruturais" tem, direta ou indiretamente, impedido a sobrevivência da criança, a liberdade da infância, o crescimento econômico, o predomínio do atendimento de saúde, a nutrição adequada e a urbanização equilibrada. Eles concluem que "o investimento nas vidas das crianças parece ser incompatível com a condicionalidade imposta pelo capital financeiro internacional" (Bradshaw et al., 1993, s.p.). Essas conclusões estão alinhadas às descobertas da Unicef, tanto no Terceiro Mundo quanto no Leste Europeu, no presente período de transição.

Essas são percepções notáveis, em primeiro lugar pelo que revelam, mas também porque voltam nossa atenção ao fato, muitas vezes negligenciado, de que as crianças são indiscutivelmente parte da sociedade e do mundo e é possível e necessário conectar a infância às forças estruturais maiores, mesmo nas análises sobre economia global. Tais lições são importantes, visto que não é comum incluir as crianças, científica ou politicamente, no nível das políticas mundiais ou das nacionais. Haverá alguém, em qualquer circunstância, pensando nas consequências para as crianças, por exemplo, do Tratado de Maastrich ou do mecanismo de taxa de câmbio ou da crise dos mercados financeiros, etc.? Imediatamente após acordos desse tipo, o que se discute e escreve em primeiro lugar são as análises políticas e econômicas, que avaliam as consequências para a Europa; em segundo, as análises sobre os efeitos no próprio país; em terceiro, as organizações e seus analistas profissionais os exploram intensivamente com vistas a prever as repercussões para o comércio, a indústria, a agricultura, o movimento trabalhista, etc. Ninguém se pergunta, contudo, o que tudo isso significa para as crianças - para sua vida cotidiana, para seu bem-estar econômico, social e cultural. É certo que pode haver considerações posteriores, mas somente depois, quando as coisas já se acalmaram e, na maioria das vezes, indiretamente. Assim, é possível perguntar: por que as crianças, por que a infância é ignorada nas análises econômicas e políticas? Deveriam as crianças ou a infância ter um lugar nessas discussões?

Não tivemos que lidar com questões dessa ordem no Projeto Infância2 2 . Projeto internacional Infância como Fenômeno Social - Implicações para Políticas Sociais Futuras (Projeto Infância), realizado entre 1987 e 1992, sob o patrocínio do Centro Europeu de Bem-Estar Social, Política e Pesquisa. . Posso mesmo dizer que o projeto está discutindo a inclusão muito mais ampla da infância nos debates econômicos e políticos. Com isso, não pretendo afirmar que cada criança, em particular, deva manifestar-se sobre questões dessa ordem; trata-se de um enfoque completamente diferente. Significa, porém, que todos os eventos, grandes e pequenos, terão repercussões sobre as crianças, como parte da sociedade; e, em consequência, elas terão reivindicações a serem consideradas nas análises e nos debates acerca de qualquer questão social maior.

Se poucos anos atrás qualquer reivindicação advinda das crianças podia gerar controvérsias, esse parece não ser mais o caso, provavelmente em razão das novas orientações na pesquisa sobre a infância, dentre as quais este projeto é uma parte. Até recentemente, entretanto, a exclusão das crianças do mundo maior, ou melhor, adulto, era a abordagem comum à maioria dos cientistas. De um ponto de vista positivo, o esforço de exclusão ajudava a proteger as crianças dos perigos do mundo moderno; de um negativo, era um projeto ilusório e duvidoso. Ilusório porque as crianças fazem parte desse mundo amplo em muitos, muitos aspectos; duvidoso, e talvez até mesmo contraproducente, no sentido de esconder as crianças num tipo de "limbo analítico", o que impediu pesquisadores e outros de atentarem às macroforças, que são da mais alta importância, potencialmente, para as condições de vida das crianças.

O que tentamos fazer em nosso projeto foi abordar, ao menos, as seguintes questões: Qual é a posição da infância na estrutura social da sociedade moderna? Como se cuida da infância ou se presta atenção nela, no conjunto das macroforças que influenciam a vida das crianças? De modo a aproximar essas questões, utilizamos o conceito de infância mais do que o de criança. Além dos problemas na aplicação do conceito, sabíamos que alguma coisa se perderia com as escolhas realizadas. Poderíamos, utilizando "criança", por exemplo, abordar principalmente problemas de natureza particular, comprometendo as crianças em termos de grupo ou tratando-as de modo abstrato, o que está longe de ser suficiente. Ganhamos, entretanto, novas perspectivas, remotamente previstas em pesquisas. Fomos capazes de trazer perspectivas estruturais para as análises. Esperamos que haja reflexos desse procedimento nos tópicos que escolhemos: o desenvolvimento econômico, político e social durante o século XX, que mudou a estrutura populacional; a composição da família; a economia da infância na interface com família e sociedade; a justiça distributiva em termos de equidade geral; e, mesmo, os direitos das crianças, os quais finalmente foram vistos no seu processo de cidadania. O que temos sugerido, ao menos em minha interpretação, é que não é suficiente realizar análises sobre a infância como mera questão interna da família (ainda que isso seja também importante), nem analisar a infância em termos das classes tradicionais ou de parâmetros de estratificação; esses aspectos são também importantes, mas, se forem aplicados exclusivamente em nossas análises, poderemos negligenciar as relações geracionais.

Essa é, naturalmente, uma questão aberta, ou seja, se trazemos macroparâmetros para o jogo, por um lado, e usamos a variável estrutural "infância" como unidade de análise, por outro, esse procedimento pode nos prover um quadro positivo ou negativo das condições de vida das crianças em geral. Pessoalmente, entretanto, sinto-me atraído pela conclusão formulada por Franz-Xaver Kaufmann, que sugere que nossa sociedade exibe uma "desconsideração estrutural em relação às crianças" ("strukturelle Rücksichtslosigkeit"). Há, diz ele, em nossas sociedades, uma "indiferença estrutural" em relação às crianças nos diversos segmentos da vida política, que, como efeito cumulativo, tem conduzido à necessidade de consideração das crianças e de suas famílias. A questão é, entretanto, que isso não acontece em função de uma hostilidade em relação às crianças, mas, antes, em virtude de uma tendência secular, entre os adultos em geral, de considerar prioritariamente outros fatores da vida que não as crianças, em nossa sociedade moderna. Como disse Kaufmann:

A orientação para a prosperidade, o princípio de competição e a seleção voltada para a realização, como características centrais numa cultura marcada pelas prioridades econômicas, estão sendo mediadas e fazendo a si mesmas manifestas nos espaços de vida das crianças e dos jovens, e estão ainda produzindo "custos psicológicos", cuja extensão depende da habilidade dos pais e dos professores - contra as diferenças - para promover as crianças como [...] num clima para o desenvolvimento e a aprendizagem (Kaufmann, 1990, p. 136).

Vou apresentar brevemente os elementos essenciais do projeto para dar sentido a algumas teses. Importante destacar que não falo em nome de todo o grupo, mas somente por mim.

Tese 1: A infância é uma forma particular e distinta em qualquer estrutura social de sociedade

Esta tese postula que a infância constitui uma forma estrutural particular, que não é definida pelas características individuais da criança, nem por sua idade - mesmo que a idade possa aparecer como uma referência descritiva, por razões práticas. Como forma estrutural, é conceitualmente comparável com o conceito de classe, no sentido da definição das características pelas quais os membros, por assim dizer, da infância estão organizados e pela posição da infância assinalada por outros grupos sociais, mais dominantes. Pessoalmente, poderia, como exemplo, mencionar duas características definidoras da infância na sociedade moderna como extremamente importantes: primeiramente uma, relacionada à prática, principalmente à escolarização das crianças ou, em termos mais gerais, à institucionalização das crianças; o que pode significar uma situação de confinamento até o final da infância, que coincidiria, então, com o final da escolarização compulsória. Em segundo lugar, em termos legais, o lugar da criança como menor - um lugar que é dado pelo grupo dominante correspondente, os adultos. Em nenhum desses casos nós precisamos ter idades fixadas em termos biológicos, mas definições determinadas socialmente. Isso ainda deixa muito a desejar, e, mesmo que variados fatores possam ser propostos, o ponto crucial é, a meu ver, olhar para o que são características comuns para as crianças e, então, evitar confundir suas condições de vida com as características de vida de seus pais, por exemplo. É claro que isso nos força a lidar com conceitualizações abstratas, o que não parece ser necessariamente uma desvantagem.

O uso de características abstratas, como as que foram mencionadas aqui, tem, por exemplo, a vantagem de proporcionar o acompanhamento do desenvolvimento histórico da infância, verificando o lugar em que as crianças têm sido colocadas e podem ser localizadas na arquitetura social pelos adultos. Também proporciona a comparação de crianças de diferentes sociedades e culturas. E, finalmente, torna possível, em princípio, comparar crianças com outros grupos na sociedade.

A primeira tese sobre infância como forma estrutural leva-nos, logicamente, para a segunda tese.

Tese 2: A infância não é uma fase de transição, mas uma categoria social permanente, do ponto de vista sociológico

Subjacente a esta tese, enquanto distinção entre transição e permanência, está um diálogo, mas não um argumento contrário à descrição psicológica e à socialização, que postulam que a criança se desenvolve por meio de certo número de fases, até que atinja a maturidade. Esta idéia é obviamente correta, num certo sentido, mas não contribui para o entendimento sociológico da infância. Do meu ponto de vista, a infância persiste: ela continua a existir - como uma classe social, por exemplo - como forma estrutural, independentemente de quantas crianças entram e quantas saem dela. Como característica da infância, a única questão importante é como ela se modifica, quantitativa e qualitativamente. Essas modificações não podem ser explicadas em termos de disposições individuais - mesmo que também o possam ser -, mas devem, primeiramente, ser explicadas por mudanças no número de parâmetros sociais. Por essa razão, a meu ver, a concepção de socialização, no sentido de desenvolvimento, é pouco fecunda no argumento sociológico, a menos que pensada metateoricamente, isto é, a partir da questão: como são as expressões da educação e da socialização dos adultos nas atitudes da sociedade adulta, e qual sua influência e seu poder em relação à infância?

Tese 3: A ideia de criança, em si mesma, é problemática, enquanto a infância é uma categoria variável histórica e intercultural

Esta tese é uma especificação do que já foi parcialmente dito, mas é importante o suficiente para ser sublinhada, visto que a ideia de criança tem dominado a pesquisa sobre as crianças até hoje. Essa abordagem tem sido frequentemente criticada, porque advoga que a criança é supra-histórica e, portanto, um indivíduo a-histórico; porque distancia nossa atenção da ação construtiva das crianças em seus próprios direitos; porque nos impede de tratar a infância em sua variabilidade histórica; e, finalmente, porque separa a criança da sociedade na qual ela vive. Isso quer dizer, então, que não há somente uma concepção de infância, mas muitas, construídas ao longo do tempo, e, novamente - como um metanível -, são exatamente as mudanças de concepção que são objeto de interesse sociológico, porque presumivelmente refletem mudanças de atitude em relação às crianças. Agora, ao invés de sugerir que as crianças são especiais, que talvez mesmo ontologicamente tenham tipos diferentes e sejam expostas a tratamento diferenciado, eu proponho minha quarta tese, que é:

Tese 4: Infância é uma parte integrante da sociedade e de sua divisão de trabalho

Esta tese, novamente, contradiz o conhecimento psicológico sobre as crianças, que se fixa sobre como elas crescem e como serão finalmente incluídas na sociedade. Penso que se possa discutir, de modo convincente, que crianças são participantes ativas na sociedade não somente porque realmente influenciam e são influenciadas por pais, professores e por qualquer pessoa com quem estabeleçam contato, mas também por duas outras razões: primeiro, porque elas ocupam espaço na divisão de trabalho, principalmente em termos de trabalho escolar, o qual não pode ser separado do trabalho na sociedade em geral; na realidade, essas atividades são totalmente convergentes no mercado de trabalho. Em segundo lugar, porque a presença da infância influencia fortemente os planos e os projetos não só dos pais, mas também do mundo social e econômico. A infância interage, então, estruturalmente, com os outros setores da sociedade. Isso pode ser demonstrado de diferentes maneiras, mas talvez seja mais claramente visto no balanço da mudança demográfica: mesmo que a razão de dependência não tenha mudado radicalmente em si mesma, a constância relativa é ilusória, visto que há uma dramática diferença, quando o numerador da fração é composto por uma larga porção de crianças e uma pequena porção de idosos, como no começo do século; ou vice-versa, como está se tornando agora.

Se for plausível propor que as crianças façam parte da regra da divisão social do trabalho, é também possível sugerir que certos interesses estejam conectados a essa regra e que as crianças, baseadas em seu consumo, reivindiquem recursos sociais, além daqueles que são autorizadas a receber como membros de uma família particular. É também uma questão moral, se se pode defender que o direito à provisão é bastante variável, a depender do background familiar. Nas sociedades orientadas para o consumo, isso é contraditório, e pode somente acontecer porque crianças (a) são consideradas fora das sociedades utilitárias como não consumidoras e (b) são consideradas como propriedade dos pais e, portanto, dependentes do consumo destes.

Tese 5: As crianças são coconstrutoras da infância e da sociedade

Esta tese está ligada à anterior. Contudo, é bastante importante reiterá-la, porque é muito negligenciada, apesar de sua simplicidade, em razão da concepção amplamente divulgada, tanto na ciência quanto entre os adultos, que afirma que as crianças são inúteis e meras receptoras. Já apontei como construtivas as atividades escolares das crianças, mas elas não são as únicas, e penso que a tese pode ser generalizada para sugerir que, todas as vezes que as crianças interagem e se comunicam com a natureza, com a sociedade e com outras pessoas, tanto adultos quanto pares, elas estão contribuindo para a formação quer da infância quer da sociedade. Isso é tão simples e evidente que não acredito que alguém possa discordar. No entanto, a partir das metáforas que usamos sobre as crianças ou a partir das regras de não participação que nós costumeiramente endossamos - ou acreditamos endossar -, não parece errado propor que as crianças são percebidas e vêm a perceber-se como "máquinas triviais", expressão criada por Niklas Luhman (1991, p. 25 e 38). Uma "máquina trivial" é aquela que sempre transforma inputs em outputs do mesmo modo, contanto que sua função de transformação permaneça idêntica. Crianças não são, porém, máquinas triviais - como nenhum sistema orgânico ou psíquico pode ser - sustenta Luhman, mesmo que os professores façam o seu melhor para transformá-las nessas máquinas, quando as encorajam a responder questões com segurança, ou seja, utilizando tão somente os caminhos corretos, desejados. Luhman parece, então, concordar com a conclusão de Marx Wartofski - assim como eu - que "se as crianças aprendem somente aquilo que é ensinado... as espécies deveriam ter acabado há longo tempo - talvez depois de uma só geração!" (Wartofski, 1981, p. 202). Wartofski argumenta que as crianças são criadoras, inventivas, porque se envolvem em ações propositivas. Não acredito que essa afirmação seja difícil de substanciar; o problema talvez seja seu conhecimento para e pela sociedade, porque a tese das crianças como participantes na construção do mundo é radical o suficiente para tornar-se uma ameaça à ordem social, a qual talvez deva esforçar-se para tratar as crianças como máquinas triviais, a despeito da falsidade desse conceito.

Tese 6: A infância é, em princípio, exposta (econômica e institucionalmente) às mesmas forças sociais que os adultos, embora de modo particular

Já referi o contexto estrutural da infância e a influência das macroforças. Penso que parece ser essencial para um ponto de vista sociológico, porque nos informa sobre a sociedade como um terreno comum para todos os grupos etários e coloca-se contra a ideia de que as crianças vivem em um mundo especial, ideia baseada nas supostas, e talvez realmente diferentes, disposições das crianças em relação aos adultos. A questão, entretanto, não é indicar que crianças não possam interpretar o mundo diferentemente, mas sugerir que ninguém, inclusive as crianças, pode evitar a influência de eventos mais amplos, que ocorrem além do microcosmo próximo. Como, por exemplo, as forças econômicas, os eventos ligados ao meio ambiente, o planejamento físico, as decisões políticas, etc. Dificilmente poder-se-ia pensar em qualquer questão, em áreas dessa ordem, que não causasse impacto na vida das crianças.

O que tenho em mente, quando digo que a infância é influenciada de um modo particular pelas forças sociais, é que, frequentemente, as crianças são atingidas por elas indiretamente ou de forma mediada, o que torna mais difícil a constatação dessa influência; e, com muita frequência, a legislação é elaborada sem levar as crianças em consideração, embora haja poucas dúvidas de que os eventos sociais causem efeitos constantes. As crianças, no entanto, não são consideradas - e, na melhor das hipóteses, famílias com crianças o são.

Não temos que invocar os dramáticos eventos que mencionei no início do texto. Vamos considerar, por exemplo, as questões do mercado de trabalho: desemprego é uma questão dada pela legislação atual que só atinge os adultos. Em país algum há estatísticas públicas com o número de crianças atingidas pelos efeitos do desemprego. Felizmente, as consequências psicológicas para as crianças têm sido estudadas, embora seja possível - como exemplos de nosso projeto têm mostrado - produzir estatísticas correntes sobre "crianças com pais desempregados", assim como fazer os políticos lembrarem-se das implicações para as crianças também.

Em termos mais gerais, a retração e a expansão do mercado de trabalho têm também um tremendo impacto sobre a vida das crianças. Creio que a maioria de nós concordará em compreender como positiva a progressão em direção ao pleno emprego de homens e mulheres. No entanto, essa progressão tem contribuído para o crescimento da institucionalização das crianças. Se isso é bom ou ruim para elas, esta é uma questão em aberto, mas ninguém pode negar que a vida das crianças mudou - e, também, que essa questão foi tomada como ex post facto, como uma adaptação do fait accompli.

Para mencionar um último exemplo - sobre impostos, o que parece ser relevante somente para aqueles que têm renda -, poderia citar a última notícia do EC - Observatório Nacional de Políticas Familiares, na qual se conclui que

a reforma dos impostos não ocorre por causa das crianças, mas por causa dos adultos... também atinge casais sem filhos, o que pode servir como indicação distante da igualdade entre adultos prevalecendo sobre iguais oportunidades para as crianças (Dumon, 1990, p. 75).

Tese 7: A dependência convencionada das crianças tem consequências para sua invisibilidade em descrições históricas e sociais, assim como para a sua autorização às provisões de bem-estar

Nada foi mais frustrante em nosso projeto do que ter encontrado tão pouca informação sobre as crianças onde procurávamos por ela. Procuramos - em vão - em estatísticas comuns, nas informações governamentais, em documentos de pesquisa, etc. por algum material que trouxesse as crianças como unidade de observação ou que fizesse esforço para analisar a infância do ponto de vista das crianças. Por mais frustrante que tenha sido, surgiram questões interessantes sobre as razões que determinavam essa situação. Duas respostas principais foram obtidas: uma, sob o título de "capitalização da infância", sugeria que o Estado demandava somente dados que eram absolutamente necessários para seu planejamento e esforços de elaboração de políticas. Uma outra, que não contradizia a primeira, via a invisibilidade como uma consequência das definições arraigadas das crianças como imaturas, não adultas ainda, que, de qualquer modo, têm que confiar nos pais. Então, aparentemente, parece não existir necessidade de contar as crianças por elas mesmas. Vários exemplos colhidos durante nosso projeto provam que essa explicação está errada. Nós obtivemos importantes insights novos quando focalizamos diretamente as crianças. Por exemplo, a insistência em utilizar a família como unidade de observação quando buscamos saber sobre condições materiais impede-nos de perceber a situação agregada das crianças, comparada com outros grupos na sociedade. Desse modo, o peso preponderante atribuído ao status das crianças como dependentes contradiz qualquer ideia de "melhor interesse da criança". Na verdade, poder-se-ia discutir que essa ideia em si mesma tornou-se a vítima dos interesses estruturais da sociedade industrial.

Tese 8: Não os pais, mas a ideologia da família constitui uma barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças

A despeito da carência de informação, conseguimos coletar evidências suficientes para substanciar a suspeita de que as crianças, como grupo, mais frequentemente que outros grupos, pertencem aos mais baixos escalões em termos de renda per capita disponível. Somente os mais idosos, em alguns países, são capazes de competir com esse record, embora a última década tenha demonstrado uma relativa deterioração das condições das crianças em comparação com as condições dos mais idosos. De fato, há várias razões para a relativa desvantagem de algumas crianças em particular, mas, se pensarmos em termos da posição das crianças em geral, qual é a razão? De modo geral, posso sugerir que a culpa não é dos pais. Eles estão realmente fazendo muitas coisas e são, na maioria dos casos, forçados a experienciar a mesma privação que suas crianças. Na minha interpretação, herdamos uma ideologia da família que pode ser considerada um anacronismo. O principal problema que constitui nossa ideologia da família - e que vários membros do grupo do projeto referiram como "familialização" - é que as crianças expressis verbis são mais ou menos propriedades de seus pais; ou, em termos menos dramáticos, são, ao menos, responsabilidade parental e, em princípio, exclusivamente responsabilidade de seus pais. Desde que a sociedade só se interessa em interferir em casos excepcionais, quando as crianças estão em situação perigosa, segue-se que não é aceito nem cogitado aceitar a responsabilidade geral pela infância. Isso não necessariamente significa que a sociedade não se ocupe das crianças, mas significa que ela não é constitucionalmente obrigada a intervir, mesmo em casos em que as crianças estejam próximas da pobreza de maneira recorrente, para mencionar um exemplo.

Por que a sociedade deveria assumir qualquer responsabilidade sobre as crianças? Penso que existem pelo menos três argumentos. Primeiramente, um argumento moral: para garantir que crianças sejam providas de acordo com um padrão básico ou com um padrão para famílias com crianças que, em princípio, estejam em igualdade de condições com outros casais sem crianças. Em segundo lugar, um argumento de direito, que deveria admitir que, se as crianças estão contribuindo, elas também podem reivindicar recursos para distribuição; e pode-se adicionar que deveria haver garantias para compensar os pais de suas contribuições. Terceiro, um argumento que diz respeito ao "interesse" nas crianças, com responsabilidade sobre elas, e não é difícil demonstrar que a sociedade também tem significativo interesse nas crianças, se não como crianças, mas como membros do que é ilusoriamente denominado próxima geração.

Tese 9: A infância é uma categoria minoritária clássica, objeto de tendências tanto marginalizadoras quanto paternalizadoras.

Houve várias tentativas, no projeto, de categorizar a infância ou determinar a natureza sociológica da infância como um fenômeno social. Como anteriormente mencionado, falamos da infância familializada, da infância capitalizada; discutimos a institucionalização da infância e, em conexão com isso, a individualização das crianças. Estas foram categorizadas como um grupo excluído, e classe surgiu como um conceito pertinente. Pessoalmente, concordo com a abordagem que categoriza a criança como grupo minoritário, definido em relação ao grupo dominante, que possui status social mais alto e maiores privilégios, isto é, nesse caso, os adultos; e, indo além, como um grupo que, por suas características físicas ou culturais, é singularizado à parte da sociedade, com um tratamento diferencial e desigual. Isso reflete a essência da definição clássica de Lois Wirth, que declara que "o status de minoria carrega com ele a exclusão da participação plena na vida da sociedade" (Wirth, 1945, p. 347). Penso que essa definição pode ser seguramente aplicada à infância, mas é necessário algum detalhamento para distinguir a infância de outras minorias. Na verdade, creio que se justifica sugerir que a infância seja mesmo o protótipo de uma categoria minoritária, pois as metáforas "criança" ou "infantil" são frequentemente utilizadas para caracterizar vários outros grupos minoritários. Quando é esse o caso, trata-se, quase sempre, de um sinal de atitude paternalista, e, exatamente, o paternalismo é uma atitude característica, no sentido de uma estranha combinação de amor, sentimentalismo, senso de superioridade em relação à compreensão equivocada das capacidades infantis e à marginalização.

Essas eram minhas teses. Estou ciente de que elas contribuem principalmente para um estudo teórico e de que foram escolhidas por mim e desenvolvidas de acordo com minha interpretação. Não há dúvidas de que precisamos de uma abordagem interdisciplinar, além de encaminhamentos e significações para transportar o conhecimento obtido no nível macro para o micro, assim como para ampliar as macrodiscussões a partir do insight das experiências diárias das crianças - individuais. Precisamos desesperadamente saber como os problemas experienciados pelas crianças em crise podem se relacionar com a definição de infância como um problema para nossa sociedade moderna. Estou convencido de que esta conexão é essencial e de que incluir infância analiticamente na sociedade é um caminho para compreender as crianças com mais seriedade. Assim como a cidadania real está ainda esperando as crianças, precisamos de um pontapé inicial para que elas possam ter ao menos um tipo de cidadania científica.

N.E. A editoria da Pro-Posições agradece à Profa. Dra. Maria Letícia Nascimento, pela indicação e encaminhamento deste texto aos editores da revista.

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  • Apresentação: nove teses sobre a "infância como um fenômeno social" Jens Qvortrup

    Maria Letícia Nascimento
  • 1
    . Artigo publicado em
    Eurosocial Report Childhood as a Social Phenomenon: Lessons from an International Project, n. 47, 1993, p. 11-18. Tradução de Maria Letícia Nascimento.
  • 2
    . Projeto internacional
    Infância como Fenômeno Social -
    Implicações para Políticas Sociais Futuras (Projeto Infância), realizado entre 1987 e 1992, sob o patrocínio do Centro Europeu de Bem-Estar Social, Política e Pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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