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Condições de emergência do sindicalismo docente: Conditions for the emergence of teachers' labor unions

Resumos

O surgimento do sindicalismo docente de educação básica constitui o objeto de análise deste artigo. São estudados dois casos de formação de sindicatos: São Paulo e Rio de Janeiro. A questão subjacente consiste em entender porque o sindicalismo docente surgiu décadas após o sindicalismo operário no Brasil. Para a construção de organização sindical são necessárias condições objetivas e subjetivas de parte do grupo social em movimento. Nossa hipótese é de que condições relativas à formação da consciência dos trabalhadores assalariados, tanto quanto condições objetivas, são imprescindíveis para qualquer tipo de organização sindical, particularmente para os docentes de educação básica.

sindicalismo docente; sindicalismo operário; associativismo; condições objetivas; condições subjetivas


This article deals with the emergence of elementary school teachers' labor unions. Two case studies are analyzed, São Paulo and Rio de Janeiro. The aim of this paper is to understand why teachers' unions were created decades after the emergence of working class unions. The creation of labor unions by the social group in question requires objective and subjective conditions. Our hypothesis is that, besides the objective conditions, rising worker's awareness is also essential for the emergence of any type of union organization, particularly teachers' labor unions.

labor unions; teachers' labor unions; associations; objective conditions; subjective conditions


ARTIGO

Condições de emergência do sindicalismo docente

Conditions for the emergence of teachers' labor unions

Sadi Dal RossoI; Hélvia Leite Cruz II; Erlando da Silva RêsesIII

IProfessor titular do Departamento de Sociologia e Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (GEPT) da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: sadi@unb.br

II Professora do Departamento de Teoria e Fundamentos e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (GEPT) da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: hellcruz@unb.br

IIIProfessor adjunto do Departamento de Teoria e Fundamentos e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (GEPT) da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: erlandoreses@gmail.com

RESUMO

O surgimento do sindicalismo docente de educação básica constitui o objeto de análise deste artigo. São estudados dois casos de formação de sindicatos: São Paulo e Rio de Janeiro. A questão subjacente consiste em entender porque o sindicalismo docente surgiu décadas após o sindicalismo operário no Brasil. Para a construção de organização sindical são necessárias condições objetivas e subjetivas de parte do grupo social em movimento. Nossa hipótese é de que condições relativas à formação da consciência dos trabalhadores assalariados, tanto quanto condições objetivas, são imprescindíveis para qualquer tipo de organização sindical, particularmente para os docentes de educação básica.

Palavras-chave: sindicalismo docente; sindicalismo operário; associativismo; condições objetivas; condições subjetivas.

ABSTRACT

This article deals with the emergence of elementary school teachers' labor unions. Two case studies are analyzed, São Paulo and Rio de Janeiro. The aim of this paper is to understand why teachers' unions were created decades after the emergence of working class unions. The creation of labor unions by the social group in question requires objective and subjective conditions. Our hypothesis is that, besides the objective conditions, rising worker's awareness is also essential for the emergence of any type of union organization, particularly teachers' labor unions.

Key words: labor unions; teachers' labor unions; associations; objective conditions; subjective conditions.

Introdução – origem tardia do sindicalismo docente

Este artigo trata das condições de emergência do sindicalismo docente da educação básica. Sob esse título podem ser estudados fatores tais como condições econômicas, políticas, sociais, culturais e educacionais vigentes à época da formação da organização sindical docente. E também componentes da estrutura interna da categoria docente, entre os quais as relações de trabalho; a formação dos docentes, sua origem social; o sistema educacional; a estrutura das escolas; a percentagem da população com acesso à educação; o controle do Estado sobre a formação e o exercício da atividade de magistério; e elementos específicos da subjetividade docente, além de outros. O artigo busca captar um conjunto de condições que permitam interpretar a emergência da organização associativa e sindical de defesa dos interesses próprios da categoria, da educação e de causas sociais que ultrapassam os limites do grupo.

De imediato, duas perguntas cruciais interpõem-se à tarefa de pesquisa. O que é o sindicato e qual seu papel na sociedade, diante de outras formas de associação de trabalhadores? Essa questão será discutida neste artigo, tendo em vista a literatura internacional, que há tempo sobre ela se debruçou. Ver-se-á que o sindicato recebe uma ampla gama de conceituações, dependendo dos papéis que é chamado a exercer em determinados momentos na sociedade. E mais: quando se constituiu a organização sindical docente? A resposta a essa questão varia de país para país e, no Brasil, de estado para estado, a depender das condições existentes e dos tipos de organização. Sindicatos de professores existem no Brasil desde a fundação do Sinpro-Rio em 1931 (Rêses, 2008), uma quase exceção e, especialmente, ao final dos anos 1970, quando a resistência ao regime militar abriu espaço para inúmeros sindicatos e associações surgirem (Antunes, 1991) tanto em relação à educação básica quanto em relação à educação superior. Os sindicatos foram, entretanto, precedidos por outras formas de organização defensiva. São as chamadas associações ou uniões que, dependendo das regiões em que surgem, combinam papéis agregadores da categoria docente em torno de questões pedagógicas e científicas, proteção mútua, atividades sociais e culturais, defesa dos interesses dos associados e debate sobre políticas e práticas educacionais. Esse tipo de organização pré-sindical lança raízes século XIX adentro, no Brasil. (Borges; Lemos, 2009; Catani, 2003; Cruz, 2008.).

Uma dificuldade adicional consiste na aparente distância temporal observada entre a emergência do sindicalismo docente e o sindicalismo operário. Dados relativos às datas de criação dos sindicatos permitem levantar a suposição de que o sindicalismo docente tenha se organizado muitos anos depois do sindicalismo operário ter-se constituído (Dal Rosso; Lúcio, 2005). Se a tese da origem tardia do sindicalismo docente não se mostrar apenas consequência da incipiência das pesquisas históricas, dado que em diversas regiões e estados brasileiros sequer se produziram ainda estudos sistemáticos sobre o problema, ela poderá apontar para outras dimensões relevantes, entre elas: a) o descaso que os governos coloniais, imperiais e republicanos conferiram à educação em suas políticas administrativas nestas terras brasílicas; b) ou o rígido controle que os governos sempre exerceram sobre a atividade docente, dada sua capacidade disruptiva; c) ou ainda a dificuldade que os docentes encontraram em libertar-se de amarras ideológicas e políticas que sobre seus ombros pesavam.

A gênese da organização sindical e suas condições

A discussão sobre a gênese da organização sindical é realizada por autores que estudam sindicalismo em geral, o que significa dizer sindicalismo operário, e não sindicalismo docente. Mas é a eles que será necessário recorrer em busca de contribuições conceituais. A discussão sobre a noção de sindicato é relevante para o caso brasileiro, quando se procura o começo das organizações sindicais e as condições de sua emergência. O que é realmente sindicato? Que características deve ter uma instituição para receber o nome de sindicato?

Essa discussão é feita no livro de Sidney Webb e Beatrice Webb sobre a origem do sindicalismo na Inglaterra. A definição geral de sindicato proposta pelos Webb (1973, p. 1) perdura durante anos e permite iniciar o debate: "um sindicato é uma associação contínua de assalariados com o objetivo de manter ou melhorar as condições de suas vidas". Dessa definição podem ser extraídos critérios importantes.

Tome-se o princípio de que o sindicato é uma associação. Lutas individuais ou isoladas contra a exploração do trabalho não representam sindicatos. O sentimento de exploração, a consciência da exploração é uma condição para a existência de sindicato, desde que conduza à organização dos assalariados e que, portanto, represente uma ação coletiva.

Os Webb (1973, p. 4) ressaltam também o argumento de que sindicatos não são "combinações transitórias de diaristas contratados contra seus empregadores". Sindicatos são "associações duráveis", permanentes. Esse critério é de difícil aplicação ao caso brasileiro, especialmente sabendo-se da conduta repressiva que os governos sistematicamente assumiram contra os sindicatos e outras formas de organização. Greves isoladas, greves espontâneas e revoltas passageiras são formas importantes de resistência do movimento dos trabalhadores, mas não têm a característica da associação permanente. Ainda que não representem organização sindical, são formas importantíssimas de resistência ou de protagonismo e que podem resultar em formas associativas.

O terceiro elemento a discutir da definição do casal Webb consiste na relação de assalariamento. O sindicato é uma organização de trabalhadores assalariados. Essa questão recebe melhor tratamento na teoria marxista e serve para criticar a postura defensivista atribuída como característica ao sindicato: "com o objetivo de manter ou melhorar as condições de suas vidas" (Webb, 1973, p. 1).

O sindicalismo docente emerge de dois segmentos de trabalhadores assalariados: do magistério público e do magistério privado. Como a legislação sindical vedou sistematicamente a organização sindical em toda a história brasileira para os funcionários públicos, a primeira organização de docentes que se organizou segundo as regras ditadas pelo Governo de Getúlio Vargas e se mantém pujante até os dias de hoje é o Sinpro-Rio, que iniciou congregando assalariados do setor privado — especialmente do Ensino Médio — em 1931, na cidade do Rio de Janeiro (Rêses, 2008).

A condição de assalariamento, ou seja, de trabalhadores livres que vendem sua capacidade de trabalho para empregadores em troca de uma remuneração, estabelece uma relação de trabalho e ao mesmo tempo de exploração. Na condição de trabalhadores livres, defrontam-se com os empregadores (sejam empregadores privados, sejam empregadores públicos) numa posição de disputa. A metáfora do senhor e do escravo, empregada por Hegel, representa o antagonismo que os separa, bem como a força que existe nas mãos do escravo quando descobre seu poder e assume consciência de si. De escravo, o assalariado transforma-se em protagonista.

A reunião de trabalhadores sob uma mesma empresa, segundo a teoria marxista, produz o efeito de co-operação que, por um lado, propicia formas mais elevadas de divisão do trabalho e extração de mais-valia, e que, por outro, contribui para a geração de consciência e a criação de organização de autoproteção. A questão da consciência é um elemento crucial para o surgimento da organização sindical, dado o controle ideológico mantido pelos governos e pelos sistemas educacionais durante a formação dos trabalhadores docentes e durante o exercício da atividade educacional. A condição de assalariamento, pela qual o trabalhador se encontra em liberdade formal, é necessária, mas insuficiente para a emergência da organização sindical. Há um movimento necessário de rompimento de uma forma de consciência e identidade nas quais os educadores se entendem como modelos para a sociedade e para outro tipo de consciência em que se sentem livres para pensar, reivindicar, organizar-se e lutar por suas causas e bandeiras.

As condições de gênese do sindicalismo docente podem ser divididas em materiais e subjetivas. Entre as condições materiais, estão aquelas discutidas até este ponto, a saber, a existência de um número grande de trabalhadores docentes em condição precária de assalariamento, política educacional elitista com restrição ao acesso massivo da população, entre muitas outras. Entre as subjetivas, podem ser arroladas a consciência, o controle social sobre a formação dos docentes e sobre o exercício do magistério, o lugar da ideologia e da política.

Apontamentos da literatura

Sidney e Beatrice Webb (1973) estabeleceram rígidos critérios para definição de sindicato e defendem que o sindicalismo inglês não antecede o século XVII. No começo daquele século, as reclamações e as críticas contra combinações e uniões de trabalhadores profissionais de vários setores eram isoladas. Mas, na segunda parte do século, vieram a multiplicação de tais reclamações, petições e contrapetições, revelando a existência de associações de diaristas contratados por trás das lutas. Nessas condições de enfrentamento contra o Estado e o patronato começaram a organizar-se os sindicatos.

Os autores não poupam palavras para a perseguição e a repressão a sindicalistas, lideranças e organizadores de entidades sindicais, amparadas em provisões legais. Em muitos sindicatos permaneceram lendas românticas das ações underground para manter operante a organização (Webb, 1973).

A proibição à organização sindical também está presente na história francesa e está explícita no dispositivo da Lei Chapelier, que proíbe organizações coletivas tipo guildas, mas que atinge também associações e sindicatos, com base no argumento da liberdade individual para empreender (LeFranc, 1975).

Mais preocupado com a questão conceitual e o relato histórico, o casal Webb não oferece informações adequadas sobre a existência de outros tipos de associações que antecedem ou se desenvolvem simultaneamente aos sindicatos. Isso pode ser encontrado no livro de Georges Lefranc (1975) sobre a História do trabalho e dos trabalhadores na França. A história do sindicalismo na França e na Inglaterra difere muito. A Inglaterra industrializou-se e formou uma classe operária muito antes do que a França e, consequentemente, a gênese do sindicalismo inglês deveria ser anterior à francesa.

Na França, o sindicalismo foi precedido por formas de organização mutualistas. A relação entre organizações mutualistas e sindicatos é umbilical, embora não desprovida de conflitos. As organizações mutualistas desaguaram em sindicatos, transformaram-se em sindicatos com o passar dos anos. Outras permaneceram enquanto tais e tiveram seus papéis sociais muito reduzidos.

LeFranc (1975) afirma a existência de associações mutualistas antes do final do século XVIII e antes da Revolução Francesa. Algumas dessas organizações serviram de base para greves e movimentos de reivindicação.

O autor opera com a tese de que as organizações mutualistas deram origem a organizações sindicais, após passarem por várias formas organizativas. Em 1840, assumiram a forma de "associações operárias" (LeFranc, 1975, p. 293), a partir de 1867, "câmaras sindicais" e enfim, em 1884, a lei reconheceu o direito sindical na França (LeFranc, 1975).

A revisão desses dois casos da literatura internacional chama a atenção sobre o conceito de sindicato e seus pré-requisitos, bem como descreve relatos históricos. Mas não discute a emergência do sindicalismo docente. Daí a necessidade de recorrer também à literatura brasileira.

No estudo sobre Sindicato e Estado (1966), Azis Simão fornece uma interpretação da gênese do sindicalismo operário em São Paulo, fortemente centrado em condições estruturais materiais: ciclo do café, abolição do emprego da mão de obra escrava, industrialização, constituição de relações de trabalho heterônomas, surgimento do trabalho assalariado, péssimas condições de trabalho do proletariado industrial. Além disso, indica a importância para o surgimento de sindicatos e associações "do grau de concentração da mão de obra nos estabelecimentos dos diversos setores industriais" (Simão, 1966, p. 18). A criação de organizações sindicais dependia da possibilidade de interação direta dos assalariados e de sua socialização, que permitem o desenvolvimento de uma consciência de defesa das condições de vida. Esse sentimento de liberdade é uma característica marcante que diferencia o trabalho heterônomo escravo do trabalho heterônomo assalariado, a despeito das proximidades no terreno da gestão.

A chegada de ideologias já prontas ao País, o anarquismo, o marxismo, formulações do pensamento católico tal como o mutualismo, de certa forma permite responder ao problema da formação e do desenvolvimento da consciência entre os assalariados. Em relação ao sindicalismo docente, entretanto, não basta afirmar a existência de ideologias prontas vindas de fora, porquanto existem elementos específicos do trabalho docente que podem constituir trunfos ou obstáculos à organização sindical. Os professores constituem um grupo social com elevado grau de formação, o que permite o desenvolvimento do pensamento crítico. Mas também são confrontados por inúmeros mecanismos de controle social, político e ideológico, a começar pela própria noção de identidade profissional. Teorias sociológicas, como as de Durkheim e Bourdieu, assumem a atividade docente como reprodutiva dos valores e das normas sociais. Não existe espaço nessas concepções para papéis de transformação, contestação e busca de alternativas para a sociedade. A adesão à organização sindical certamente não é uma decisão tão radical, mas requer uma ruptura com um determinado tipo de consciência.

Simão (1966) escreve um capítulo inteiro dedicado às condições de trabalho, indicando que uma teoria sobre associativismo e sindicalismo requer a discussão dessas questões, porquanto o sindicato é uma instituição de defesa das condições de vida dos trabalhadores.

Borges e Lemos advogam que

a emergência do associativismo docente, constituindo-se a partir das lutas empreendidas pelos professores, no início de forma isolada, e, depois de forma conjunta, ajuda a perceber a entrada em cena de novas forças, o associativismo docente, que visou à defesa econômica dos professores mediante a defesa dos seus interesses materiais, sem desconsiderar a defesa das condições de trabalho e a importância da qualidade do ensino. (2008, p. 17).

Tais manifestações dos docentes e mesmo suas organizações transitórias ainda não indicam a emergência de associativismo permanente nem de sindicalismo, como se pode depreender da discussão conceitual de sindicato.

A resumida revisão da literatura internacional e nacional aponta para a relevância das condições objetivas e subjetivas para o estudo da emergência do sindicalismo em geral e do sindicalismo docente em particular. A questão, no entanto, não é apenas mencioná-las e, sim, organizá-las em uma interpretação teórica coerente.

O método do estudo

O estudo sobre condições de surgimento do sindicalismo docente requer uma abordagem simultaneamente teórico-conceitual e empírica. A primeira já foi realizada nos apontamentos anteriores, consubstanciando-se no esquema de classificação entre condições materiais e condições subjetivas adotado para o estudo. Cabe aqui discutir apenas a estratégia de tratamento empírico.

Foram selecionados dois casos de estudo: São Paulo e Rio de Janeiro, por serem grandes centros urbanos (Marcílio, 2005), polos de desenvolvimento, centros políticos nevrálgicos plenos de conflitos sociais, e por apresentarem elevadas densidades de magistério, dentre outros fatores. Diversos centros urbanos também poderiam ser escolhidos (Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia, entre outros estados). Mas a escolha desses dois é certamente irrepreensível.

Para a análise das condições materiais, recorreu-se a informações estatísticas dos censos demográficos e da educação, e a documentos sindicais. Relativamente às condições de subjetividade docente, o estudo baseou-se em dados diretos colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas com participantes históricos do movimento sindical docente. As falas de professores e professoras empregadas mais adiante no texto têm essa origem e foram colhidas durante pesquisas de campo realizadas em São Paulo e Rio de Janeiro. Essa fonte de informação não consegue cobrir os períodos entre 1900 e 1930. Entretanto, consiste num levantamento da memória e da avaliação para o entendimento da constituição do movimento sindical e, especialmente, para a captura de transformações nas condições da subjetividade e da identidade docente.

Nossa pesquisa valeu-se de literatura anterior que estuda a questão sindical docente e de documentos produzidos pelas entidades sindicais. A literatura existente, entretanto, não esgota, em hipótese alguma, a análise das condições sociais, políticas, econômicas e subjetivas que constituíram a moldura na qual se tornou possível, contra o desejo dos governos e dos empresários do ensino e contra as medidas repressivas por eles adotadas, o aparecimento de entidades sindicais docentes.

O objetivo latente a este estudo consiste em oferecer uma interpretação ampla a respeito da gênese do movimento sindical docente. A gênese do movimento sindical seja do magistério seja de outras categorias não é objeto de estudos sociológicos sistemáticos. Em geral, prevalecem apontamentos à margem da questão. Por isso, foi necessário realizar um esforço inicial de colocar elementos teóricos e conceituais juntos, de modo a obter o direcionamento de uma interpretação sistemática consistente.

São Paulo e a construção do sindicalismo docente

A primeira constatação, ao estudar o sindicalismo docente em São Paulo, é de que existe uma multiplicidade de entidades associativas ou sindicais representando a mesma categoria, ao mesmo tempo que existe uma relação entre elas. Não se pode falar de uma associação e ou sindicato sem levar em consideração o amplo universo de organizações existentes. Ao mesmo tempo, tem-se a impressão de que os professores são "loteados" em campos específicos de organização e luta. Alguns docentes são filiados a uma ou mais associações e ou sindicatos docentes, simultaneamente. Não se pode pensar na Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, Apeoesp, sem considerar outras entidades associativas e sindicais.

Para resgatar a origem das organizações docentes em São Paulo, operou-se com a classificação de condições objetivas e subjetivas. A primeira hipótese é de que condições objetivas, materiais, concretas, devem existir para que aconteça o movimento organizativo dos professores. Entre elas, as condições de trabalho, as relações de poder e, implícito nesses dois aspectos, o aparecimento de contradições. A segunda hipótese diz respeito às condições da subjetividade dos docentes, subjetividade entendida enquanto representação social que professores fazem da sua prática pedagógica. O trabalho do magistério, a função da profissão e a estruturação do campo educacional constroem-se no contexto do capitalismo brasileiro. Na relação da profissão com a subjetividade dos docentes, há que levar em conta a formação dos professores, a concepção de trabalho docente, e, principalmente, o modo como o professor representa sua profissão. Para tal reflexão, torna-se fundamental remeter ao aparecimento do sindicalismo operário para que se possa pensar sobre o surgimento do sindicalismo docente de educação básica. Com a imigração, a abolição da escravatura e, subsequentemente, com a proclamação da República, inicia-se a constituição e consolidação efetiva do operariado no Brasil. O aparecimento tardio tanto do trabalho industrial quanto do operariado é característica da formação colonial do País. Esse aparecimento só vai se consolidar com a afirmação real das relações capitalistas de produção.

Em consequência, a formação do operariado brasileiro também surge com certo atraso em relação ao europeu, o mesmo ocorrendo com o sindicalismo operário e o sindicalismo docente.

O sindicalismo operário nasce com forte influência dos trabalhadores europeus que emigraram para o Brasil e haviam acumulado experiência de luta nos seus países de origem, como Itália e Espanha, entre outros. São experiências com tendências anarquistas e socialistas na fase inicial, e tendências comunistas nas fases subsequentes.

Quando se constitui a primeira organização dos professores do ensino público do estado de São Paulo? Como seria essa organização? Registros apontam para a existência da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, (ABPPSP), cuja fundação data de 27 de janeiro de 1901, comprovada tanto nos apontamentos da Revista de Ensino, periódico dessa associação, como na ata de fundação do Centro do Professorado Paulista, CPP. Consta também das biografias de alguns professores apresentadas no documento intitulado "Poliantéia Comemorativa do 1º Centenário do Ensino Normal de São Paulo (1846-1946)". Um trecho da biografia do professor Arnaldo de Oliveira Barreto, que se destacou por ter dirigido escolas para filhos de operários, afirma que:

Em 1901 vemos surgir em São Paulo desejada e esperançosa corporação de professores – a Associação Beneficente do Professorado Paulista, em cujos estatutos se incluía a publicação de uma revista. Em abril de 1902 sai a lume seu primeiro número e até 1919 é publicada regularmente. Arnaldo Barreto é o seu redator chefe até 1904. Acompanharam-no no corpo redatorial por vários anos, Romão Puiggari, João Pinto e Silva, João Lourenço Rodrigues, Alfredo Bresser da Silveira, Roca Dordal e João Crisóstomo Bueno dos Reis Júnior (Poliantéia, 1946, p. 104).

Em comum, esses professores têm o fato de terem estudado na primeira Escola Normal de São Paulo. Daí, poder ser considerado que essa escola possa ter sido o berço da Associação, fato que reforça a tese da importância dos grandes estabelecimentos em que ocorre socialização intensa dos professores.

Existem dúvidas sobre a existência, em período anterior, de outras associações nesse estado. As declarações do Inspetor Geral, Professor Emílio Mario de Arantes, registradas em 1902, na Revista de Ensino, de que a Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo representaria a satisfação de 24 anos de luta dos professores e professoras de São Paulo, deixam claro que a expectativa de fundar uma entidade de classe é anterior a essa Associação. As lutas docentes em São Paulo reportar-se-iam ao ano de 1877. As palavras do inspetor geral podem ser interpretadas como lutas por uma associação beneficente, mas é, certamente, mais do que isso, se for levado em conta o papel do magistério em relação à adesão aos ideais republicanos. Vale a pena observar alguns trechos da biografia do professor Alfredo Bresser da Silveira:

Foi um dos doze professores que em 1896, resolveram cotizar-se para publicar 'Escola Pública' e mais tarde, em 1901 concorria também como sócio-fundador para a instalação da 'Associação Beneficente do Professorado Público'. Ao falecer, ocupava a vice-presidência da 'Associação' e o cargo de diretor da Escola Profissional Masculina (Poliantéia, 1946, p. 114).

Isso demonstra a expectativa dos professores da época em organizar-se, mesmo que essa organização tenha ficado restrita à publicação de revistas pedagógicas.

Também revela o quanto o campo educacional se encontrava em fase de estruturação.

Mas o fato é que, antes mesmo da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, fundada em 1901, encontra-se referência à existência de uma sociedade, denominada Instituto Pedagógico Paulista, de 1895. Esse instituto publicava o periódico A Instrução Popular, do qual participavam quatro professores que iriam depois atuar na Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo. Esse Instituto tinha como ideal trabalhar para a independência e o prestígio da classe, defendendo o professorado para que pudesse garantir a instrução do povo. Porém, não se tem registro se essa associação teve permanência, nem se visava estruturar um sindicato (Catani, 2003, p. 46-47).

Essa autora faz referência à biografia do Professor Carlos Escobar, também publicada na "Poliantéia Comemorativa do Centenário do Ensino Normal de São Paulo". Esse professor é apresentado como fundador da primeira associação de sua classe. Segundo a autora, não fica claro que associação é essa. (Catani, 2003, p. 45-46).

A biografia desse professor diz mais:

Ocupou todos os cargos acessíveis no magistério público primário, distinguindo-se pela sua independência de opinião, quando se recusou a beijar a mão do Imperador na qualidade de republicano.

E ainda,

Fundou, com Sótero de Araújo e Silvério Fontes, em Santos, o primeiro Partido Socialista do Brasil, lançando, então Questão Social considerado também o primeiro jornal socialista da América do Sul. (Poliantéia, 1946, p. 95).

Catani faz referência, ainda, a outra associação, a Associação Beneficente da Educação, de iniciativa do professor Manuel Cyridião Buarque, que teria existido concomitantemente à primeira associação de que se tem registro em São Paulo.

Contudo, a biografia do professor não faz referência a essa associação, conforme afirma a própria pesquisadora (Catani, 2003, p. 47).

Todas essas fontes conduzem à conclusão de que a expectativa de organização dos professores é bastante antiga e coincide com o desejo de estruturar o campo educacional, investindo em publicações de caráter lítero-pedagógico, na melhoria da qualidade da formação dos professores, entre outros aspectos. Portanto, a defesa da categoria caracteriza-se de forma incipiente. Esses esforços ainda não tipificam estruturas sindicais, mesmo sendo relevantes para a organização dos docentes.

Os anos que se sucederam à Proclamação da República trouxeram para São Paulo reformas educativas. Essas reformas contribuíram para o agrupamento de professores em Grupos Escolares, mexeram com a essência da formação dos professores, reformulando a Escola Normal e criando escolas modelo; enfim, buscaram estruturar organicamente a educação escolar do estado.

Essas reformas podem ter oferecido as condições objetivas para que os docentes se organizassem, reivindicassem melhorias, principalmente salariais, e exigissem das autoridades mais empenho no estabelecimento de políticas públicas para a educação. Crescentes numericamente e reunidos em grupos escolares, os professores podiam dialogar, trocar ideias, discutir as contradições da profissão, enfim, organizar-se.

Nos estatutos da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo (ABPPSP), está registrada a participação dos professores de "um ou de outro sexo" o que pode ser interpretado, a priori, como avanço na questão de gênero e na igualdade de tratamento. Contudo, em todas as nominatas das diretorias de que se tem registro no período de 1901 a 1919, tempo de existência ativa da Associação, não se observa presença feminina nessas diretorias, a despeito de as mulheres constituírem maioria numérica no magistério. O mesmo acontece nas Comissões de Redação da Revista de Ensino.

Embora inovadora para a época, a terminologia "melhorias das condições da classe", que aparece como um dos objetivos dessa Associação Beneficente, não indica, necessariamente, que o conceito de classe tenha a significação revolucionária similar ao conceito marxista de classe social.

Enquanto, em 1901, professores do ensino público paulista fundavam sua primeira associação, na primeira década de 1900, o movimento sindical operário já estava afirmado e crescia. Na sua origem, o movimento dos professores luta pela constituição do campo educacional e, embora se esteja comparando realidades diferentes, entende-se esse atraso em função da inexistência dessas condições objetivas, quais sejam: número suficiente de professores; espaço de encontro entre esses professores para discutir a profissão, as contradições, os baixos salários e diferenças salariais; um campo profissional estruturado; comunicação entre profissionais, por meio de produção e circulação de jornais, revistas; entre outras.

Em 1919 surgiu a Liga do Professorado Católico de São Paulo (LPC). Essa organização participará por volta da década de 1930, das discussões sobre a adoção dos princípios da Escola Nova, como modelo de educação para São Paulo e para o Brasil. Essa Liga irá questionar os princípios liberais do escolanovismo. Nesse sentido, pode-se caracterizar esse período como de ruptura da prática assistencialista, prática essa que lhe foi própria desde sua origem. Essa nova associação não se constituiu numa continuidade ao trabalho que era desenvolvido pela Associação Beneficente, mas servirá de reflexão para a existência da próxima associação a ser criada, ou seja, o Centro do Professorado Paulista (CPP).

Esse Centro nasceu em 1930 em outro contexto: com o campo educacional paulista já relativamente constituído e estruturado, especialmente no que se refere ao ensino primário, o ensino relativo às séries iniciais. Nasceu da negação do que foram a Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo e a Liga do Professorado Católico, conforme registros de sua história. (Mennucci, 2004). Contudo, essa associação não romperá com o caráter assistencialista, embora tivesse se caracterizado mais pelo seu aspecto de congraçamento social entre os docentes, à época.

Em 1945 surgiu a Associação dos Professores do Ensino Secundário e Normal Oficial do Estado de São Paulo, APESNOESP. Essa associação nasceu com a marca da luta, pois sua fundação foi consequência de um embate salarial e político. Professores organizaram-se e mobilizaram-se em torno de salários não recebidos. Como consequência, resolveram criar uma associação que representasse os professores do ensino normal e do secundário. Nasceu com um viés diferente do CPP. Esse passado de luta, de combatividade, foi retomado pela APEOESP, (à época, APESNOESP), em 1963. Nesse ano, a associação desencadeou uma grande greve, a primeira greve da instituição. Em 1968, a APEOESP promoveu manifestações de rua, que foram reprimidas com violência.

Em relação à hipótese de que a subjetividade dos professores possa ter agido como fator impeditivo ao aparecimento do sindicalismo docente enquanto sindicalismo combativo, de enfrentamento e de luta, conclui-se que as condições objetivas, por si só, não respondem ao contexto. É necessário que haja a confluência com forças subjetivas, que envolvam as ideias, os valores, e as concepções dos professores, conforme demonstram os depoimentos dos docentes entrevistados na pesquisa empírica.

Em relação a essa hipótese, os dados apontam que a subjetividade docente guarda em si um imaginário que se refere ao passado da categoria e que é reflexo da trajetória pela qual passou a educação no Brasil. Desde a ideia de missão, vocação, até outras identidades, que foram se configurando através dos tempos.

Se os professores hoje resistem a serem considerados funcionários públicos, a distância é grande quando devem assumir a ideia de serem Trabalhadores em Educação. O imaginário dos docentes guarda ideias iluministas e positivistas sobre a profissão e se relaciona ainda com as expectativas criadas para o magistério da época republicana. Os depoimentos abaixo fazem parte da pesquisa empírica realizada com docentes associados às entidades de classe citadas anteriormente, Liga do Professorado Católico de São Paulo (LPC) e Centro do Professorado Paulista (CPP). Expressam representações que os professores têm da identidade profissional (Souza, 1996) e os conflitos que vivenciam ao assumir a posição de trabalhadores em educação, sobretudo quando se trata das professoras das séries iniciais:

São mães de família, são mães antes de tudo. Então, as mulheres têm uma relação com as crianças que evidentemente é diferente da relação dos homens com as crianças. Talvez a expressão seja muito pesada falar em instinto maternal para uma professora. Mas, digamos assim, nós não estamos tratando de seres que não sejam mães. Então, eu acredito que há muito dessa característica materna nas professoras. Eu acredito que há muito de dedicação, de geração, de geração mais velha para geração mais nova. Do cuidar, do cuidado. Eu não acho que isso seja ruim... Não acho que isso tenha sido obstáculo, tanto que o movimento dos professores cresceu e muito com essas características. As mulheres, as professoras não deixaram de ter essas características, em parte. Em parte deixaram. Houve um movimento, quer dizer, não é que houve um movimento. Houve uma certa resistência ao título de 'tia'. Ainda hoje há. Mas ainda hoje em grande parte as professoras são chamadas de tias... Então eu não acho que isso seja ruim, não acho também ... a minha impressão é que não houve conflito entre o fato das pessoas serem consideradas 'tias'. Houve talvez uma interpretação esquerdista de tentar passar por cima dessa realidade e considerar todo mundo como simplesmente trabalhador. Trabalhador com interesses objetivos, salariais, etc... (Professor, 58 anos). Normal. Antigamente nós éramos chamadas de normalistas. Eu sou a famosa de tailleur azul e branco. (Professora, 80 anos).

Também fica evidenciada a postura do docente como aquele que leva o saber ao aluno. E para tal, a vocação torna-se imprescindível.

Precisa gostar, ter amor. Para construir, formar o cidadão. É uma realização para você. É uma autorrealização. Chegar ao final do ano, a criança saber ler, saber se expressar, aqueles cantinhos que você deu, aquelas poesias. (Professora, 80 anos).

Quanto a sindicalismo, fica claro que as ideias sobre essa instituição e sobre a luta sindical são ainda confusas, oscilando entre a força e a impotência.

Hoje eu vejo que dada a grande marcha de trabalhadores que existem no Brasil, o sindicato assumiu uma posição de muita responsabilidade porque no caso particular dos professores nós temos um dos maiores ... cerca de 200 mil professores sindicalizados. A responsabilidade hoje é muito grande. Perante a população, ela é capaz de mudar até o rumo do que nós chamamos hoje movimento sindicalista, trabalhista principalmente. É uma força imensa de que todos nós temos a consciência dessa força. (Professor, 70 anos).

Antigamente a gente lutava bastante porque o governo não nos tinha podado. Hoje ele podou, tirou todos os caminhos nossos. Pelo fato deles terem tirado os caminhos nós estamos quase que sem ação. Eu até não sei que milagre que Apeoesp faz que a gente ainda encontra alguma fresta, alguma aresta para enfrentar o governo. (Professora, 72 anos).

Foi necessária a superação de um tipo de subjetividade e o aparecimento de outra para que os professores reagissem e colocassem o seu tempo sindical em igualdade com o tempo sindical operário. Esse não é um processo simples e tem-se a impressão de que os tempos entre objetividades e subjetividades são defasados. Muitas vezes, as condições objetivas estão postas, mas as subjetividades guardam resistências e não funcionam a tempo.

Rio de Janeiro: um marco no sindicalismo docente

O Rio de Janeiro, em fins do século XIX e nos anos iniciais do século XX, foi palco de intensos e grandes movimentos grevistas da classe operária, devido à acumulação de capital no setor exportador e de comércio, à sua transferência para a produção industrial, à existência de um mercado amplo e de uma rede de transportes.

Estudo realizado por Mattos (2003; 2004) em jornais, no período compreendido entre 1890 e 1909 indica um número expressivo de paralisações: 109 greves no Rio de Janeiro. Em 1858, em plena era do trabalho escravo, a Imperial Associação Tipográphica Fluminense, fundada em 1853, organizou uma greve de seus representados — os gráficos da imprensa oficial — a primeira greve do Rio de Janeiro e, talvez, do Brasil (Linhares apud Mattos, 2004). Borges e Lemos analisam veículos de imprensa existentes no Rio de Janeiro, sejam os grandes jornais sejam os jornais e as revistas voltados especificamente para a categoria docente; ou as Conferências Pedagógicas, organizadas pela Coroa. Os resultados dessas pesquisas

mostram que, desde a década de 1870, os professores encontravam-se no centro dessa disputa (abolicionismo, república, reformas políticas e administrativas, voto), não somente como aplicadores de uma política pensada fora da classe, mas como questionadores e propositores de aspectos que lhes diziam respeito. Neste momento proliferam reivindicações e escritas de protesto em que os professores se colocam diante de uma vasta gama de assuntos, reclamam, opinam, pedem e propõem de forma organizada, reunindo-se e escrevendo. (Borges; Lemos, 2008, p. 1).

Esse tipo de participação do professorado durante o final do Império pode ser encontrado na capital, Rio de Janeiro, e em algumas capitais de províncias e grandes cidades. Nelas, a proporção de docentes em relação à população era maior. Suas unidades educacionais abrigavam muitos docentes e, consequentemente, abriam espaço para encontros, interações e cooperação mútua sobre questões pedagógicas, políticas e salariais, com o que ultrapassava o limite das ações individuais no sentido das ações coletivas.

Na defesa dos interesses materiais e éticos, os professores escreveram um Manifesto dirigido ao Imperador em 1870. "Neste manifesto, os professores reclamavam da situação de penúria a que estavam submetidos, comparando seu estado com

o dos escravos, e levando à dedução de que o governo seria o 'grande feitor'". (Borges; Lemos, 2008, p. 9). Antes da existência formal de associações de defesa, os professores reclamavam das péssimas condições de trabalho.

Na década de 1880 surgiram associações mutualistas e sindicatos que se propunham a defender os interesses materiais dos trabalhadores livres. E o movimento organizativo dos professores como se encontrava nesse período?

Segundo o censo de 1872, existia uma população de 10 milhões de pessoas no Brasil. Ao relacionar esse contingente populacional com o número de professores (3.525 professores), verifica-se que havia 2.868 habitantes para cada professor (Brasil, 1872). Essa situação permite observar a imensa deficiência de profissionais para prestar serviços educacionais e a dificuldade para criar organização sindical dos professores. No Rio de Janeiro, que mantinha condição privilegiada em relação ao restante do País, as condições de trabalho eram péssimas e a situação era desfavorável para qualquer iniciativa de organização sindical, dada a baixa densidade de profissionais (Brasil, 1916). No censo escolar de 1907, os 1.373 professores, dos quais 1.166 professoras e 207 professores, trabalhavam em 438 escolas municipais e particulares, o que perfazia uma média de 3,1 professores por escola.

O Rio de Janeiro detinha uma boa frequência escolar e ocupava o quarto lugar em conclusões do curso no primário, de acordo com os dados da estatística escolar de 1907. Nesse período, a população do Rio de Janeiro era de 811.413 habitantes.

Desse total, 137.570 pessoas correspondiam à população escolar, ou seja, 17% da população total. Dessas pessoas, somente 57.523 estavam matriculadas no ensino primário, isto é, 42% da população em idade escolar. Para atender essa população existiam os ridículos números de 1.373 docentes e de 438 escolas, entre municipais e particulares (Brasil, 1916).

O magistério brasileiro em 1907, no nível primário, era exercido por 15.586 professores; destes, 11.402 em escolas públicas e 4.184 em escolas particulares. Destes professores, 8.068 pertenciam ao ensino estadual e 3.334 ao municipal. Para cada 10 mil habitantes havia 06 escolas, 07 professores e 294 alunos (Brasil, 1916), o que representa uma gritante demonstração da insuficiência da política educacional naquela época.

A categoria docente era tipicamente feminina (61%) no início do século XX. O levantamento estatístico da época também revelou que essa realidade era mais acentuada ainda no Distrito Federal: "é o professorado elementar, no Brazil, um officio sobretudo feminino. Dos mestres de primeiras lettras, com effeito, segundo os dados constantes deste livro, as senhoras representavam 61% e os homens 39%". (Brasil, 1916, p. 5).

Naquela época, a docência era considerada uma atividade que podia ser desempenhada por seres humanos, sem distinção de sexo. Por conta da identidade feminina, acreditava-se que as mulheres poderiam realizar melhor essa tarefa. Nesse sentido, as brasileiras foram incorporadas à docência sobre a base da articulação de concepções de feminilidade e atividade docente, pondo em evidência as diferenças de gênero existentes na sociedade (Yannoulas, 1994).

Em 1920, a situação era bem diferente. O processo de migração, com forte influência dos estrangeiros; o crescimento econômico interno estimulado pela Primeira Guerra Mundial, entre outros fatores, contribuíram para o aumento do número de professores na educação primária, tanto pública quanto privada, o que permitia perfazer a relação de 560 habitantes por professor. Crescia o número de assalariados na sociedade em geral em função da abertura de empresas capitalistas de diversos ramos. As greves já eram uma prática conhecida. Começaram a aparecer, então, aquelas condições objetivas mínimas necessárias para formação de organizações sindicais de professores no país.

No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro passava por uma série de transformações de caráter social, econômico e político com a efervescência de ideologias trazidas da Europa. O rápido crescimento da cidade alterou a demografia, a composição étnica e a estrutura ocupacional, principalmente por conta da abolição da escravatura e da imigração. Contudo, a capital da República apresentava uma situação bem diferente dos demais estados do Brasil em relação à situação educacional. Ela não tinha uma baixa densidade de professores naquele período por escola, o que poderia representar uma condição objetiva de retardamento da organização sindical dos professores. Cabe, entretanto, questionar: qual era a origem social dos professores naquela época?

A Escola Normal significou "a forma didática mais importante para a preparação dos educadores da Primeira República" (Nosella, 1998, p. 171). A Primeira República representou a negação do acesso de amplas camadas populares à educação. Na Reforma de 1931, a de Francisco Campos, Ministro da Educação do governo Getúlio Vargas, a estruturação do currículo compunha-se de dois ciclos: um ciclo fundamental com uma formação básica geral; e um ciclo complementar, voltado para a elite. Num contexto social que começava a despertar para os problemas do desenvolvimento e da educação, numa sociedade cuja maioria vivia na zona rural e era analfabeta, numa época em que a população urbana mal alcançava a educação primária, pode-se imaginar a camada social para a qual havia sido elaborado um currículo tão vasto (Romanelli, 1989). Complementarmente, Nosella salienta que "o elitismo das antigas Escolas Normais era evidente. A clientela era representada, majoritariamente, pelas filhas dos fazendeiros, dos grandes negociantes, dos altos funcionários públicos e dos profissionais liberais bem sucedidos" (Nosella, 1998, p. 172). Ainda que o período fosse numericamente favorável à formação sindical docente, essa situação elitizada das professoras caracteriza uma das condições subjetivas e objetivas que determina o impedimento das discussões em torno da formação sindical.

Ao contrário do que ocorreu com o movimento operário, a organização anarcosindicalista só se constituiu de fato, entre os professores, no início dos anos 1930, como alternativa àquele que se vinculava ao sindicalismo oficial. O Sindicato dos Trabalhadores do Ensino do Rio de Janeiro, de inspiração anarquista, foi fundado em julho de 1931 e em novembro apareceram as últimas notícias sobre o seu funcionamento. Teve vida efêmera, como um sindicato "paralelo" 1 1 . Diário de Notícias, de 20/set./1931; O Globo, de 24/nov./1931, apud Coelho, 1988. .

A tendência dos anarquistas em fundar o Sindicato dos Trabalhadores do Ensino do Rio de Janeiro no começo dos anos 1930 aponta para uma posição identitária do professorado com a designação de trabalhadores. A proposta desse grupo era defender os interesses dos professores, inspetores e auxiliares de ensino e definiu que a organização seria livre e leiga, isto é, sem adoção de credo religioso e político. Essa organização recusou-se a submeter-se à aprovação e ao controle do Ministério do Trabalho, ao Registro de Professores no Departamento Nacional de Ensino e aos exames em estabelecimentos particulares (Coelho, 1988).

Embora as primeiras iniciativas de organização sindical entre os professores tivessem contado com a participação ativa de militantes anarquistas, os professores aceitaram as normas de enquadramento sindical estabelecidas pelo governo Getúlio Vargas, quando da oficialização da representação sindical no País, momento em que foi criado um dos primeiros sindicatos de professores do Brasil, o do Rio de Janeiro, então congregando somente o magistério de ensino secundário.

Assim surgiu o Sindicato dos Professores do Ensino Secundário e Comercial do Distrito Federal em 31 de maio de 1931 no Rio de Janeiro, que se mantém até os dias de hoje com o nome de Sinpro-Rio. É possível concluir que multifatores contribuíram para a organização tardia dos professores na rede pública de ensino do Rio de Janeiro: a) desorganização estrutural do ensino público e sua desvalorização pelo Estado; b) baixa densidade de professores até 1920; c) elitismo dos professores na primeira República; d) enquadramento sindical e consequente ausência de sindicalismo autônomo; e) limitação legal do Estado para a organização sindical no serviço público; f) ambiguidade da identidade social da profissão de professor e g) existência de vocação, missão ou dom para o exercício do magistério.

Conclusão

A construção de organizações sindicais pressupõe a vigência de relações de assalariamento. No desenvolvimento do sistema de assalariamento, diversas formas de organizações defensivas foram tentadas pelo movimento dos trabalhadores, dependendo das propostas e do grau de evolução de sua consciência política. Este artigo mostrou como associativismo mutualista, associativismo cooperativo e uniões de diversos tipos foram criados, antes que começasse a existir a entidade sindical propriamente dita. Algumas delas também se propunham a defender a categoria.

Para a existência do sindicalismo no setor de educação, certo volume e densidade de trabalhadores docentes, operando em estabelecimentos de porte maior mostraram-se como condição importante de modo a que o individualismo cedesse à circulação de ideias, ao intercâmbio de propostas, à discussão de encaminhamentos — elementos importantes para a ação coletiva. Não há como pensar a criação de sindicatos de educação, ainda que as condições de trabalho sejam precárias, em estabelecimentos com um ou dois professores apenas. Os casos de São Paulo e Rio de Janeiro mostram como o sindicalismo surgiu em grandes centros urbanos, nos quais as relações professor por estabelecimento e professor pela população eram bem mais elevadas.

As condições de trabalho e as políticas educacionais constituem condições latentes, de fundo, para o surgimento do sindicalismo. A educação sempre foi sonegada aos cidadãos brasileiros. Analisar a evolução do analfabetismo constitui uma tarefa dolorida e de sabor amargo para o pesquisador, por revelar no período colonial, no Império e na República, a privação do acesso da população ao bem da educação e sua efetivação apenas para grupos dominantes e estratos médios da sociedade. O descaso das políticas educacionais por uma educação massiva e de qualidade é uma condição constante de enfrentamento entre educadores, governos e empresários da educação. A precariedade das condições de trabalho na discussão do surgimento do sindicalismo é de tal modo conhecida da literatura que este artigo não acrescenta novidades ao tema.

O estudo de campo evidenciou ainda outras condições interessantíssimas no processo de constituição de organizações sindicais. É o caso de frisar a participação feminina. Ainda que à frente das direções de organizações sindicais apareçam muitas vezes nomes masculinos, a presença das mulheres, particularmente do ensino básico, é fundamental e constituiu a força de sustentação dos sindicatos. A feminização do magistério é um processo social que começou a manifestar-se ainda no final do século XIX, avançou na virada do século, e atingiu porcentagens entre 70 e 80 por cento já nas primeiras décadas do século XX. Portanto, ou o surgimento do sindicalismo docente apoia-se sobre essa base constituída por mulheres ou simplesmente não emerge.

A questão da feminização do sindicato docente permite transitar imediatamente das condições materiais para condições subjetivas. Toda a literatura nacional e internacional sobre sindicalismo, desde a formulação do marxismo clássico até a contemporaneidade, sempre apontou para o peso da consciência na organização sindical, da ideologia e da política. Além de condições materiais e objetivas, fazem-se necessárias condições imateriais, subjetivas, particularmente aquelas que permitem o desenvolvimento de ações coletivas, em que consiste o cerne da organização sindical. De vocação para profissão (Rêses, 2008), Do sacerdócio à sindicalização (Miranda, 2009) entre outros, estudam essa questão. A formulação "de ... para" insinua a necessidade de uma ruptura, insinua que aconteceu uma transição profunda na identidade docente para que ele(a) pudesse filiar-se a organizações sindicais e realizar movimentos de reivindicação e greves. Participar do sindicato, de greves, de assembleias, de mobilizações de rua supõe liberdade do docente e uma concepção e identidade pela qual eles e elas possam interferir na construção das políticas educacionais e das políticas para a transformação da sociedade como um todo.

A conceitualização das condições para emergência do sindicalismo de educação em condições objetivas e subjetivas permite superar o conhecimento difuso. O tratamento teórico dessa classificação implica dar atenção simultaneamente a condições objetivas e subjetivas. Como sindicalismo é um movimento coletivo, é insuficiente a argumentação baseada apenas em condições objetivas, como as condições degradadas de trabalho, sem atenção para a formação da consciência sindical. A construção de um movimento sindical supõe rupturas de consciência, ainda mais em um setor tão controlado pela ideologia oficial como o magistério da escola básica.

Recebido em 08 de abril de 2010 e aprovado em 21 de julho de 2010.

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    Diário de Notícias, de 20/set./1931;
    O Globo, de 24/nov./1931, apud Coelho, 1988.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      08 Abr 2010
    • Aceito
      21 Jul 2010
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