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EDITORIAL

Na última semana de 2011, uma boa notícia foi amplamente divulgada aos brasileiros: segundo estimativa de um Centro britânico de pesquisas econômicas, o Brasil encerraria o ano na posição de sexta economia mundial, superando, assim, o Reino Unido e com a perspectiva de ultrapassar a França, dentro de pouco tempo. Tal informação, sem dúvida, positiva, foi comemorada com cautela, mesmo nos meios governamentais. O próprio ministro da Fazenda, ao comentar esse fato, ressaltou os desafios a serem vencidos nas áreas social e econômica, para que o País possa ser considerado, efetivamente, avançado, e declarou que pode levar de 10 a 20 anos para que o padrão de vida do brasileiro seja semelhante ao do europeu. Aliás, é importante lembrar que o Brasil ocupa, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o 87º lugar no ranking referente ao Índice de Desenvolvimento Humano - medida que leva em conta não apenas o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, mas também a longevidade e a educação -, atrás de alguns países da América Latina, como México, Chile, Argentina e Uruguai.

No decorrer de 2011, muitos estudos buscaram evidenciar os notáveis avanços obtidos por nosso país nas áreas sociais e econômicas na primeira década do século XXI. Sobre este período, uma importante pesquisa, coordenada pelo economista Marcelo Neri, da FGV1 1 . NERI, Marcelo (Coord.). Desigualdade de renda. Rio de Janeiro: Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, 2011. Disponível em: < http://www.fgv.br/cps/bd/DD/DD_Neri_Fgv_TextoFim3.pdf>. Acesso em: 3 fev. 2012. , apresentou um quadro bastante claro referente à desigualdade e à pobreza e levantou questões sobre as perspectivas do futuro próximo. Uma das perguntas-chave do relatório desse estudo é: quem mais se beneficiou do crescimento recente do País? Ressalta-se que os bons resultados econômicos das décadas de 1960 e 70 - época do "milagre econômico" -, quando o PIB apresentou taxas de crescimento muito altas, não foram acompanhados de uma queda da desigualdade social; ao invés disso, houve um aumento da distância entre pobres e ricos. Na primeira década deste século, em direção contrária ao ocorrido anteriormente, houve uma mudança desse panorama, uma vez que os maiores beneficiados do crescimento econômico foram os 10% mais pobres da população, com um aumento de renda de quase 70%, especialmente nos grupos tradicionalmente excluídos, ou seja, entre as mulheres e os negros, nos estados do Nordeste, nas áreas rurais e periféricas. Isso significa que, mesmo sem ter havido taxas tão altas de crescimento do PIB como as atingidas em décadas anteriores, foram os mais pobres que registraram maior aumento na renda, o que permitiu a muitos deles mudar de classe econômica. Esses bons resultados estão relacionados não apenas à implementação de créditos e de programas sociais, mas à melhoria da escolaridade de muitos integrantes da população mais desfavorecida. De fato, tanto ou mais do que os bens materiais que um determinado grupo possui, o que define a classe à qual pertence um cidadão é o número de anos de frequência à escola e, sobretudo, os níveis de ensino que completou. Além de permitir acesso a melhores postos de trabalho, o fato de possuir uma formação em uma determinada área contribui muito, em caso de desemprego, para que um indivíduo possa, por exemplo, migrar de um setor para outro. Em suma, uma das conclusões interessantes do estudo da FGV é a de que a educação e o aumento do emprego formal são as variáveis mais relevantes para explicar as mudanças positivas em andamento e, até certo ponto, garantir a mobilidade social e a sustentabilidade do crescimento econômico. Ao evidenciar esses dados, os economistas enfatizam a necessidade de investir, na década atual, na melhoria da qualidade da educação, considerando seus efeitos positivos na mudança do quadro socioeconômico do País.

É, portanto, de grande atualidade o tema do dossiê "Educação, cidade e pobreza", coordenado pela profa. Agueda B. Bittencourt e composto por cinco textos de pesquisadores do Brasil, da Argentina e da Colômbia. Ao contrário dos economistas, que apresentam números, gráficos e informações estatísticas, de maneira um tanto distanciada e fria, este conjunto de textos - de autoria de estudiosos que, trabalhando sobre diferentes temas da área educacional, refletem sobre as relações entre pobreza e educação na cidade - evidencia que as questões ligadas à pobreza material se entrelaçam com amplos problemas sociais: preconceitos, violência, migrações e imigrações, distintas formas de racismo, crimes contra os direitos humanos, entre muitos outros.

A apresentação da Profa. Agueda Bittencourt - "Cenas urbanas" - traz uma bela abordagem da pobreza, ao descrever, privilegiando o olhar a distância, o que pode ser observado a partir de um ponto fixo, qual seja, uma janela localizada no 6º andar do local em que a narradora vive durante meses, em um país da América Latina que não é aquele no qual ela reside.

Foucault, em As palavras e as coisas (1966), assinala a importância que teria a observação para o aprimoramento das ciências da vida, especialmente no século XVIII, em parte, graças aos aperfeiçoamentos técnicos trazidos pela invenção do microscópio, que tornou possível enxergar o que não se vê a olho nu. A leitura do texto de Bittencourt, além de nos lembrar de quanto a observação é importante nas Ciências, remete-nos ao filme A janela indiscreta, de Hitchcock e também a uma obra literária escrita, em 1822, por Hoffmann - A janela da esquina de meu primo2 2 HOFFMANN, E.T.A. A janela da esquina de meu primo. Tradução: Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Cosacnaif, 2010. O livro, com lindas ilustrações de Daniel Bueno, traz também um posfácio de autoria do Prof. Marcus Mazzari - "Hoffmann e as primícias da arte de enxergar" -, por meio do qual aprendemos que este último texto do consagrado escritor alemão é de cunho autobiográfico e a visão para o exterior é a da janela de seu apartamento, situado nessa praça. -, narração de um diálogo entre dois personagens - "o primo" e o "eu-narrador". Trata-se de um homem enfermo que pouco se locomove em seu apartamento e que, ao receber a visita de seu primo, procura lhe ensinar "as primícias da arte de enxergar". Sentados em frente a uma janela, ambos observam, com uma luneta que passa de um a outro, uma bela e importante praça na região central de Berlim - a Gendarmenmarkt - em um dia de feira livre. Dessa perspectiva, abarcam com a vista toda a extensão da feira e, se, no início, percebe-se apenas uma concentrada massa humana, os observadores atentos passam a descortinar um leque variado de situações e acontecimentos, tendo, por protagonistas, pessoas que se destacam no interior da multidão. Em meio ao burburinho e à confusão da feira, os primos conversam sobre o que enxergam: comerciantes variados - quitandeiros; vendedores de roupas, carnes, peixes; floristas; moleiros com seus sacos de farinha, próximos aos carvoeiros - e os compradores de diferentes classes sociais, tanto as donas de casa como as "serviçais", tendo estas, algumas vezes, a função de acompanhar as moças, filhas de altos funcionários. Não falta também um cego que pede esmolas, mas que é explorado por uma comerciante para quem trabalha, carregando volumes pesados.

A maneira como algumas figuras são descritas, acrescida das ideias trocadas entre os primos, que comportam reflexões sobre as mudanças nos modos e nos costumes do povo berlinense ao longo do tempo, acaba por desenhar um esboço da sociedade da época: sua estratificação social, os modos de convivência e de relação entre membros de uma mesma classe, mas também entre os pobres e os ricos. No exercício da arte de enxergar, a descrição de Bittencourt é centrada em uma vendedora de abacates, que, acompanhada de seu bebê recém-nascido, é observada ao longo de meses. O relato, constituído de um tema e suas variações, ganha efeitos pungentes, uma vez que a mesma situação se repete, em diferentes momentos, distinguindo-se, porém, as mudanças da temperatura, dos trajes da vendedora, das pessoas que gravitam ao seu redor, o que imprime diversos matizes às várias facetas de um modo precário de subsistência. É um caso paradigmático de uma situação comum, tão frequentemente observada nos cruzamentos das artérias das grandes cidades do nosso país e de países vizinhos.

Na seção de artigos, apresentam-se cinco textos de pesquisadores de diferentes regiões do Brasil: duas professoras, Alda J. Marin (PUC-SP) e Marieta Penna (Unifesp) abordam, a partir de pesquisa empírica, as parcerias entre público e privado nas escolas estaduais paulistas e visam problematizar seus efeitos, em particular, os que são percebidos pelos professores no seu trabalho quotidiano. Alceu R. Ferraro (UFRGS), ao tratar da relação entre métodos quantitativos e qualitativos em pesquisas, aponta para a dialética marxista como um caminho promissor na discussão de questões envolvidas nessa relação, tanto nas ciências sociais em geral, quanto na educação em particular. Marília P. de Carvalho (USP) apresenta um texto sobre teses e dissertações a respeito da diferença de desempenho escolar entre gêneros, abrangendo um grande número de pesquisas realizadas em diferentes regiões do Brasil e referindo-se também a estudos de outros países. Kelly Silva e Sara Santos Morais (UNB) relatam uma pesquisa de cunho etnográfico que procurou caracterizar a sociabilidade de estudantes provenientes dos Palop, em duas universidades brasileiras: USP e UNB. Marcos V. Pereira (PUCRS) propõe uma reflexão sobre a experiência estética, considerando-a "como uma oportunidade de ampliação, de desvelamento e de expansão da subjetividade na medida em que representa uma abertura para a coleção de exemplos que são a arte e a vida".

Duas resenhas apresentam publicações de importância para a área educacional: uma referente a um livro da Profa. Célia Maria de Castro Almeida, fruto de sua tese de doutorado, editado recentemente e que trata de um tema de grande atualidade, qual seja, as artes no ensino superior; e outra, a respeito de um livro de Georges Simmel, autor da Sociologia ainda pouco conhecido e traduzido no Brasil, que traz ensaios sobre religião. Uma nota de leitura sobre um livro recém traduzido e publicado no Brasil, dedicado a Vigotski, de autoria de Janette Friedrich, encerra a seção Leituras e Resenhas.

Foi com grande consternação que recebemos a notícia da morte abrupta de nosso querido colega e amigo, Prof. Milton José de Almeida, em outubro passado. Artista plástico e professor dedicado, consagrou a metade dos anos de sua vida ao ensino e à pesquisa na Faculdade de Educação da Unicamp, onde formou muitos pesquisadores que hoje, seguindo os passos do mestre, trabalham em instituições de diferentes regiões de nosso país. Nesta revista, sua presença era contínua e marcante, uma vez que, durante muitos anos, idealizou e produziu as admiráveis capas da Pro-Posições e foi um interlocutor assíduo dos membros do Conselho Editorial. Além de publicarmos um de seus últimos textos no dossiê ora apresentado, ainda temos o privilégio de tê-lo presente como autor da capa deste número e das fotografias que constam na seção Diverso e Prosa. Milton deixou muitas saudades e uma marca inesquecível em todos os que com ele conviveram.

Luci Banks-Leite

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    . NERI, Marcelo (Coord.).
    Desigualdade de renda. Rio de Janeiro: Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, 2011. Disponível em: <
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    HOFFMANN, E.T.A.
    A janela da esquina de meu primo. Tradução: Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Cosacnaif, 2010. O livro, com lindas ilustrações de Daniel Bueno, traz também um posfácio de autoria do Prof. Marcus Mazzari - "Hoffmann e as primícias da arte de enxergar" -, por meio do qual aprendemos que este último texto do consagrado escritor alemão é de cunho autobiográfico e a visão para o exterior é a da janela de seu apartamento, situado nessa praça.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012
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