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Cenas urbanas: apresentação do dossiê Educação, cidade e pobreza

DOSSIÊ

EDUCAÇÃO, CIDADE E POBREZA

Cenas urbanas: apresentação do dossiê Educação, cidade e pobreza

Agueda Bernardete Bittencourt

Professora do Departamento de Educação Conhecimento Linguagem e Arte (Delart), pesquisadora do Grupo de estudos sobre instituição escolar e organizações familiares (Focus) da Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, SP, Brasil. agueda@unicamp.br

... Mas em vista do que vi o olhar reforça a palavra. O olhar segura a palavra na gente. O cheiro e o amor do lugar também participam. Todos os seres daquele lugar me pareciam perdidos na terra, bem esquecidos como um lápis numa península.

(Manoel de Barros, 2010)

Los primeros recuerdos de la vida son visuales. La vida, en el recuerdo se convierte en una película muda. [...] La primera imagen de mi vida es una cortina, blanca, transparente, que cuelga creo inmóvil ante una ventana que da a una calleja más bien triste y oscura.

(Pier Paolo Pasolini, 1997)

Eram dez horas da manhã de sábado, havia sol enquanto soprava um vento frio de montanha. Na esquina, uma mulher vestida de chapéu, calças compridas e bota, cuidava de um carrinho de supermercado, onde se podiam ver alguns abacates à venda. Passavam homens e mulheres jovens e adultos mais velhos, cada um carregando seus planos e fantasias. Ninguém gastava seu tempo a observar a vendedora de abacates. Um rapaz, com uma bolsa a tiracolo, passou tão perto da mulher que quase a tocou com seu próprio corpo, com certeza não a viu, passou quase de costas. Ela permaneceu em pé ao lado do carrinho de abacates. Mais cedo estivera ali um homem que me fizera pensar ser ele o vendedor, mas não. Logo percebi uma perna que escapava por detrás de uma mureta, que depois vim a saber ser uma caixa do sistema de telefonia da cidade. As pernas eram de mulher, escondidas pelas calças e pelas botas.

Passado algum tempo, o homem se foi. Ela voltou a seu posto. Estivera sentada na calçada enquanto o homem permanecera ali. Poderia ser ele: seu pai, um tio, um amigo ou apenas um conhecido. Ambos conversaram por algum tempo. O movimento de carros não parou. Não a vi vender um único abacate. Esteve ali por pelo menos cinco horas. Em um momento levantei a cabeça e percebi que a mulher carregava um bebê nos braços. Até então pensava que se tratasse de uma mulher de uns 50 anos. Seria seu neto? Ou filho de alguma outra pessoa? Deixei a janela, pensando. Quando voltei, a mulher, sentada sobre uma caixa de embalar frutas, à sombra de um guarda-sol de listras que protegia os abacates, amamentava o bebê envolto em cobertas surradas. Já não havia dúvidas, eram a mãe e seu bebê que, na frente do edifício, vendiam abacates. Um carro, de carroceria aberta, aproximou-se pela rua lateral e cruzou a frente da vendedora de abacates. Na carroceria, dois homens, um de cada lado de outra mulher com seu bebê nos braços, equilibrando-se sobre um banco de madeira, sem espaldar.

Não muito longe, um viaduto e depois dele um centro cultural, rodeado de casas antigas e bem cuidadas, com espaços agradáveis, restaurantes e lojas finas. Ali o movimento de pedestres era intenso e, nas barracas espalhadas pela praça, artesãos moldavam suas peças.

Aqui a vendedora seguia na esquina. Já não carregava o bebê. Observei que ele fora acomodado em uma pequena caixa sobre o carrinho de supermercado, ao lado dos abacates verdes. Passado algum tempo, voltei a olhar pela janela e vi um homem jovem próximo ao bebê. A mulher não estava lá. Permaneci algum tempo acompanhando os movimentos do rapaz, quando percebi que a mulher atravessava a avenida para juntar-se aos dois. Pensei que havia chegado o marido, o companheiro, o pai do bebê, e senti uma felicidade me assomar o espírito. Mas ela chegou, ele saiu. Não sei quantas palavras trocaram. Sei que foram poucas. Ele atravessou a rua lateral e entrou no edifício vizinho. Tive a sensação de que era apenas mais um passante a quem a mulher pediu ajuda para cuidar de seu bebê por uns instantes, enquanto ela foi ao banheiro, ou algo assim. Assumi o compromisso comigo mesma de acompanhar essa vendedora até sua partida. Distraí-me por uns minutos; quando voltei ao meu posto de observação, já ninguém estava lá. Eram duas horas da tarde. Quem sabe se amanhã os veria novamente?

*

Ainda não expliquei, mas, certamente, o leitor já entendeu que estou em uma cidade diferente daquela em que vivo e com a qual estou habituada, onde tenho naturalizada a paisagem e o movimento de sua gente. Aqui estou hospedada na casa de uma amiga, em um país vizinho. Ontem fazia frio, como todos os dias, nesta cidade onde parques e jardins se misturam às ruas e caminhos de pedestres, aos edifícios de arquitetura inglesa, em cujas janelas pendem cortinas de voal. As flores multiplicavam-se por todos os lados. Saímos, minha amiga e eu, para umas compras, dessas de todo dia, umas verduras, umas frutas e uma garrafa de vinho para presentear um amigo a quem visitaríamos à noite. Voltávamos cheias de sacolas e já nos preparando para comprar as flores da semana no jardim central da avenida, em frente à esquina onde permanece a vendedora de abacates, quando, a menos de dez passos de nós, um homem tombou na calçada. Ele até então seguira à nossa frente. Eu não o havia notado até aquele momento. Por ele passavam um casal de meia idade e um homem só. Este último observava aquele que se convulsionava, estendido no chão, e o casal, indeciso, não sabia se seguia ou se auxiliava o homem caído. Aproximamo-nos, pedindo que nos ajudassem a amparar aquele homem. Nada. Ninguém tomava nenhuma atitude. Soltamos as sacolas e o levantamos. Ele, de punhos cerrados, nos olhou e pediu que abríssemos suas mãos. Assim o fizemos, massageando-as. Os demais passantes olhavam de longe e foram aos poucos se afastando, constrangidos. Perguntamos ao homem, então sentado na mureta do jardim, se estava melhor. Respondeu que sim e que em duas ou três horas lhe daria outro desses ataques, que era sempre assim. Que estava vindo do médico e que nada lhe resolvia o problema. Despediu-se e saiu andando no sentido oposto ao que vinha antes de sofrer o ataque. Atravessamos a rua e, no jardim central, escolhemos as flores da semana.

*

Eram nove horas da manhã quando me dirigi à cozinha para uma xícara de café e distraidamente me pus diante da janela a olhar a rua. Carros passavam nas duas direções. De repente vi chegar à esquina em frente ao nosso edifício um casal de mais ou menos cinquenta anos. A senhora vestia blusa amarela e saia marrom ampla, com bordados em amarelo, sapatos claros modelo de boneca. Levava uma bolsa pendurada ao braço e uma echarpe em tons de marrom. Fazia frio, embora brilhasse um claro sol de manhã nas montanhas. Ventava, especialmente na esquina. A senhora estava acompanhada de um homem vestido de terno preto e gravata, algo surrados. Ambos se postaram na esquina, um de frente para o outro. Confabulavam, parados naquele vento gelado que soprava por ali.

Surgiram duas mulheres, uma vestindo calça azul e blusa vermelha e a outra em discreto traje em tons de bege e marrom, elegante e juvenil ao mesmo tempo. Passaram pelo casal da esquina como se não o tivessem visto. Em seguida aproximou-se um jovem, vestido em roupa discreta e cotidiana, e a mulher de roupa bordada e sapato de boneca ofereceu-lhe um papel. O jovem recebeu-o e seguiu. Outro jovem senhor se aproximou e foi abordado pela mesma senhora. Este interrompeu sua caminhada por um momento e escutou. Enquanto conversavam, passaram mais duas ou três mulheres. Deduzi que ao casal só interessavam os homens. Mas, logo, algumas mulheres também foram abordadas: uma jovem, vestida em traje moderno, saia muito curta, blusa e echarpe bem transadas não se deteve nem recebeu o papel oferecido pelo casal. Penso que se tratava de religiosos ou divulgadores de algum tipo de serviço esotérico. Voltei ao escritório, disposta a seguir observando o movimento da esquina. Interroguei-me sobre o casal e voltei a olhar pela janela. Eles já não estavam lá. A sequência de cenas durou dez minutos e se desintegrou. Segui com as indagações: quem sabe amanhã, com menos vento, eles retornem?

*

Penso que chegou, pelo meio-dia, a vendedora de abacates que há três dias não assumia seu posto. A pequena caixa de madeira, onde ela se acomoda para descansar enquanto vela seu bebê ou mesmo enquanto o amamenta, permaneceu atrás da mureta durante a sua ausência. Não a vi chegar, então, como no sábado também não a vi partir. Quando a avistei, ela conversava com uma senhora de seus 50 anos, que logo se despediu e partiu. Na segunda vez que parei para observá-la, ela estava em pé e carregava seu bebê nos braços. Não usava chapéu. O dia estava meio cinza. Uma jovem parecia estar ali a conversar com a vendedora de abacates, simplesmente. Havia, porém, outra senhora mais ou menos jovem que examinava as frutas. Parecia comprar. Não estava tão só a vendedora hoje.

O sol chegou e vi-a deitando o bebê ao lado dos abacates no carrinho de supermercado. Ele dormiu e ela o protegeu sob o guarda-sol, enquanto ela mesma vestia seu chapéu de mulher da roça e, ao lado do carrinho, parecia admirar seu filho.

Preparei-me para sair, tinha um compromisso às duas horas. Lamentei não poder ficar aqui a acompanhar os movimentos da esquina em dia de vendedora de abacates. Ainda consegui ver o velho que se aproximou do carrinho e logo saiu carregando uma sacola plástica com abacates. Senti certa alegria de assistir mais uma venda. Um último olhar antes de sair e que vi? Dois triângulos alaranjados, no chão, perto da mureta. Observei mais devagar e percebi que eram os sapatos da vendedora que despontavam detrás da mureta onde ela foi se sentar, enquanto o bebê seguia em seu sono inocente de recém-chegado. Tinha que deixá-los, na volta já seria noite e não os veria mais naquele dia.

*

Não os vi chegar. Quando me dei conta, estavam na esquina, já cada um em seu posto: o carrinho com guarda-sol de listras, o bebê em suas cobertas e a mãe ali ao lado, com seu chapéu de feltro, quase masculino. Dois policiais ou guardas municipais em uma moto, parados, observavam a cena. Trocaram algumas palavras com a vendedora de abacates e se foram. Cinco minutos depois estavam de volta e a abordaram novamente. Conversaram. Chamaram por rádio, mudaram de direção e saíram, na contramão, trafegando pela calçada de pedestres. A vendedora permanecia ali. Vendeu abacates a uma senhora, depois a um senhor vestido de terno elegante, carregando sua pasta de trabalho. Naquele dia, sim, a venda me parecia constante. Observei a caixa onde estavam expostas as frutas e vi que já restavam poucas. Uma senhora passou, esfregou as mãos, deteve-se e conversou com a mulher dos abacates, então sentada na caixa de madeira enquanto amamentava seu bebê. Eu estava aqui há muito tempo, não percebi se a vendedora almoçara, já eram duas horas da tarde, ela podia estar com fome. Agora estava acomodada detrás da mureta, eu via somente as suas pernas. Fixei o olhar, e meio corpo masculino assomou, mesclando-se às pernas da mulher. O corpo masculino mostrou-se inteiro. Estava vestido com um macacão azul-marinho em cujas costas estava a sigla ATC. Pensei que fosse alguém da polícia que viesse retirar da calçada a vendedora, seu bebê e seus abacates. Enganei-me. A sigla era da companhia de telefone, como também era dessa companhia a mureta que protegia do vento e do sol a nossa personagem.

*

No dia seguinte eu estava mais livre, podia observar a cena até o final. Fiquei contente e me postei aí como a personagem de Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock. Em poucos minutos percebi que o bebê, alimentado, adormecera. Sua mãe o acomodou na caixa de frutas que lhe servia de berço, embrulhou os quatro abacates que restavam em exposição e os guardou na parte de baixo do carrinho de supermercado. Fechou o guarda-sol e o arranjou também na parte de baixo, deixando apenas o bebê muito próximo de suas mãos, que começaram a empurrar o veículo improvisado. Saíram pela avenida na contramão do trânsito, sem temer o risco que corriam essa mãe e esse bebê. A esquina estava outra vez vazia, e eu a me perguntar se os veria no outro dia.

*

Amanhecemos, minha amiga e eu, com muita vontade de andar e demos um passeio de pelo menos uma hora e meia. Saímos passando pela esquina que estava muito limpa, nem a caixa sobre a qual descansa a vendedoras de abacates estava em seu lugar costumeiro. Seguimos observando as incríveis cores das flores nesta cidade fria, chuvosa, ensolarada e ventosa, rodeada pelos morros que se estendem desde a cordilheira. Todas as cores são fortes, até o branco é intenso. Os pequenos parques que se misturam às ruas criam labirintos agradáveis, talvez por isso tantos pedestres e ciclistas circulem por aqui. Voltamos, já eram umas nove horas, observei que a caixa de madeira, banco da vendedora, não estava ali. Pensei que talvez alguém a tivesse alertado para não voltar. A ideia de que a venda de frutas na rua é uma prática ilegal me mantém apreensiva com a sorte dessa mulher. De repente vi passar uma carroça puxada por cavalo. Havia um condutor, não pude ver se era homem ou mulher. Identifiquei o carrinho de supermercado e tive a certeza de que se tratava da vendedora de abacates. Imaginei que ela guardaria a carroça e logo chegaria empurrando o carrinho, o bebê e as frutas.

Por mais de uma hora permaneci atenta à esquina, queria vê-la chegar. Fracassei. Quando me dei conta, já eram cerca de onze horas e ela já estava instalada. Vendia frutas a uma moça de cabelos longos, que usava um boné branco. Em seguida, vi a vendedora comendo algo. Usava blusa cor-de-rosa e seu inconfundível chapéu de feltro. Tomou o bebê nos braços e o embalou. Andou de um lado para outro da calçada, sempre embalando a criança, que pela primeira vez senti que chorava, ou pelo menos estava indócil. A mãe o desenrolou, voltou a enrolá-lo em sua cobertinha em tons de azul, de bebê pequeno. Avistei sua cabecinha, seus cabelos negros. Assim, com a cabeça fora da coberta, a mãe o acomodou sobre o carrinho ao lado dos abacates. Foram poucos minutos. Novamente ela o tinha nos braços. Sentada sobre a caixa de madeira, seguia balançando o bebê. Tentou acalmá-lo, ofereceu-lhe o seio. Parecia que dormia. Ela estendeu sua própria blusa cor-de-rosa e mais um pano branco para tornar a caminha mais confortável e o acomodou para dormir. Eu já não via sua cabecinha negra. Estava coberta, protegida do vento. A mulher voltou a sentar-se. Mudou de lugar, acompanhou a sombra do guarda-sol de listras. Agora podia vê-la imóvel, por longos momentos, com o olhar distraído a acompanhar o movimento da avenida.

Um carro parou. Era um modelo dos anos oitenta, maltratado, desbotado e sujo, um carro de sítio. Dele desceu uma moça magra e alta, ainda jovem. Trocou algo com a vendedora de abacates, parecia estar comprando, mas logo percebi que não. Fechou a porta do carro e permaneceu sob a sombra do guarda-sol a conversar. O carro se foi, ela ficou. Havia mais uma mulher e duas crianças de uns 3 ou 4 anos no local, todos ali em torno do carrinho de supermercado. Depois de uns dez minutos, todos se foram. Mãe e filho permaneceram em silêncio. É curioso, eu percebia então que não ouvia nada de onde eu estava, a não ser o barulho de carros e carroças que circulavam apressados.

Chegou mais uma mulher. A solidariedade feminina estava muito evidente naquele dia. Aquela que acabava de chegar encontrou a dupla em perfeito idílio. Era hora da amamentação outra vez. A recém-chegada tirou, de uma sacola de listras, uma garrafa de coca-cola e a ofereceu à vendedora de abacates, que começou a beber enquanto observava o filho agarrado ao peito. A mulher que chegou podia ser a avó ou a tia do bebê. Eram muito parecidas, entre si, as duas mulheres. O corpo e o balanço no andar eram idênticos. Ambas pareciam ter uma perna um pouco mais curta do que a outra. Observei mais uma vez e, claro, não havia dúvida, era a avó do bebê. Dos cabelos presos em um rabo de cavalo mole, viam-se os fios brancos brilhando ao sol.

*

Amanheceu fria e chuvosa a cidade. Imaginei que naquele dia não veria ninguém na esquina em frente de casa, a não ser os passantes que seguiam para seus trabalhos, para a escola ou para as compras. Observei o brilho grafite do asfalto molhado. Ressaltavam os traços brancos dos sinais de trânsito, que dividem a rua em duas vias, as setas que indicam a direção do tráfego. Na beira da calçada formava-se uma lagoa. A água da chuva não escoava, a lagoa crescia, já quase tocava um saco de lixo e duas caixas de papelão vazias que repousavam na calçada ao lado de uma lixeira suspensa. Continuou chovendo, e eu imaginei a hora que o lixo sairia flutuando, a colaborar ainda mais com o entupimento dos esgotos subterrâneos. Sempre gostei de ver a chuva, acho que não tem nada mais calmante do que uma chuva mole e continuada. Voltei a olhar pela janela e me encontrei com a vendedora de abacates abrindo o guarda-sol, que então iria funcionar como guarda-chuva. No carrinho, o bebê estava protegido por um guarda-chuva pequeno e escuro. Ela voltou a calçar os sapatos cor de laranja, acho que eram de plástico, mais adequados para a chuva, talvez. O chapéu era o mesmo de todo dia, a roupa um pouco mais pesada para abrigar do frio e da umidade. A calça marrom e o casaco bege compunham bem com os sapatos cor de laranja forte. Imaginei que a umidade e a falta de um par de meias nos pés deviam causar desconforto, mas a vendedora de abacates não parecia abatida. Organizou sua banca e logo passou a embalar o bebê, naquele dia abrigado por um sleeping-bag azul-celeste. Acomodou-se sobre seu caixote de madeira e amamentou o bebê recoberto com um impermeável de estampas em cor-de-rosa. Ele parecia não mais aceitar permanecer totalmente coberto. Mostrou sua carinha minúscula sob os cabelos negros. A mãe, não muito alta, de quadris largos, movimentava-se de forma rústica, com gestos rápidos e fortes. Os cabelos negros e longos pendiam sob o chapéu de cor cinza. A chuva diminuiu, o sol ameaçou sair e o volume de gente passando aumentou. Algumas mulheres pararam, conversaram, e o bebê seguiu mamando. O carrinho de supermercado estava à beira do charco da chuva. Não presenciei nenhuma venda, mas a pilha de abacates diminuiu. Estiou um pouco, o bebê dormiu e foi para o seu berço improvisado em cima do carrinho. As nuvens carregadas anunciavam mais chuva. Como mulher da roça, a vendedora conhecia os sinais da natureza. Organizou os abacates que sobraram na caixa e, para fazê-la caber ao lado do bebê, teve que empurrá-lo um pouco mais. Fechou o guarda-chuva escuro, guardou, já havia fechado o guarda-sol, indicando que partiria em seguida. Voltou a chover. Armou novamente o guarda-sol e partiu sem mais demora.

*

Do meu escritório, no sexto andar, escutei o choro de um bebê. Era ele. Foi a primeira vez que ouvi seu choro. Sua mãe o embalava. Vi que a mãe trocara seu traje costumeiro, estava menos agasalhada, se bem não tivesse tirado o chapéu. Continuava fazendo muito frio, e o vento castigava as pessoas na esquina. Observei que o corpo da mulher agora parecia mais jovem, estava mais composto. A calça cinza estava justa no corpo, ressaltando seus traços fortes. O bebê também estava diferente, estava crescendo. Os recém-nascidos crescem todos os dias. Perguntei-me quanto tempo de vida teria essa criança. Pensei no frio da rua que os assolava desde manhã no trabalho. Eles não tinham dia nem horário fixo para chegar. Eu os via quatro ou cinco dias por semana, em geral entre dez da manhã e duas ou três horas da tarde.

Hoje fiquei sabendo que o bebê tem vinte dias. Eu os tenho observado há pelo menos quinze. Isso quer dizer que sob sol, chuva e vento, com temperaturas que oscilam entre oito e quinze graus, esse par de viventes voltou ao trabalho cinco dias depois do parto desse bebê. A jovem vendedora de abacates passava várias horas em pé, sangrando, na esquina. Cuidava de um bebê, cujo umbigo ainda não estava cicatrizado, que permanecia numa caixa de transportar frutas, ao sabor do vento.

*

Há dias não escrevo, não porque tenha deixado de ver a vendedora de abacates e seu filho recém-nascido. Não escrevi porque as palavras passaram a ser insuficientes. Passei horas assistindo aos movimentos da esquina. Outro dia vi chegar a vendedora e seu bebê acompanhados de um menino de uns doze ou treze anos. Permaneceram na esquina, ao lado do carrinho, à espera das vendas que pingavam devagar, uma a uma. Estava menos frio esse dia. O bebê, entretanto, estava indócil. A mãe passou a maior parte do tempo embalando o filho, enquanto o menino ajudava no atendimento aos clientes e brincava na rua como brincam os meninos, com nada. Não consegui escrever nesse dia. Fiz umas fotos. Escrevi por imagem o que as palavras se negaram a dizer. No dia seguinte, vi chegar a vendedora, novamente só com o bebê. O menino, seu filho ou irmão, talvez um sobrinho, não veio. Estaria na escola? Na outra escola, não na da vida, que é frequentada já pelo bebê. Mas na oficial, que distancia os meninos das meninas, as crianças dos adultos e da rua? Nesse dia fez frio e choveu durante todo o tempo em que estiveram na esquina. Eles não demoraram muito, talvez umas duas horas, e se foram.

Já no outro dia, vi chegar a mulher sem o bebê, pela primeira vez. Eu a vi da janela do salão de beleza onde fui fazer as unhas. Como é regra por aqui, chovia. Esta cidade é o contrário de Luvínia, a seca cidade mexicana de Juan Rulfo. Aqui chove de um momento para o outro. A umidade é a lei. Senti um aperto no coração. Teria o bebê adoecido pela friagem e pela chuva que tomara, no dia anterior? Logo me veio uma ideia melhor: quem sabe a mãe arranjara alguém para ficar com ele, para que pudesse dormir tranquilo e quentinho em sua casa. Pensei que poderia ter ficado com a avó, ou com o menino de outro dia, um seu irmão. Pouco mais tarde voltei a olhar pela janela e a vendedora não estava mais lá. Ela se foi logo hoje. Devia estar trabalhando com o pensamento em casa, a embalar o berço onde dormia seu bebê.

*

Hoje fui surpreendida, depois de uma semana de esquina vazia, por uma cena nova. A vendedora não veio, nem o bebê. Um garoto, quase um mocinho, empurrava o carrinho e estacionava na esquina. Travou as rodas, armou o guarda-sol, expôs os abacates e sentou-se na caixa de madeira. Assumiu o lugar e a postura da vendedora. Lia um jornal velho, já compondo, sem o perceber, o nosso modelo masculino, enquanto vigiava os abacates. Quando ele chegou havia sol. Já estava escuro e começava a ameaçar chuva. O garoto se distraía com o jornal. Era ainda uma criança, mas já crescida. Não parava: sentava, levantava, andava, voltava a sentar-se. Brincava com as próprias mãos ou com o cadarço do tênis, com o zíper do casaco. Um menino expressa uma solidão diferente, solidão de criança. Sua aparência era de quem estava aborrecido. Sentado na banqueta feita de caixa de fruta, debruçou-se sobre o próprio corpo, deixando a cabeça pender sobre os joelhos. Esperava o tempo passar, acompanhava a dança de seus pensamentos. E a vendedora? O que teria acontecido com ela? Estaria o bebê doente? Ou teria chegado uma visita que viera de longe? Ou fora ela quem viajara? Sempre que me deparava com a esquina vazia, nesses dias, pensava no bebê e sua mãe. Claro que poderia ser outro o motivo de a vendedora não ter aparecido. Teria ela encontrado outro ponto de venda na cidade? Estaria fazendo acerto de contas com seus fornecedores, afinal havia aí um comércio, que devia seguir as regras dessa atividade, que fazia circular as mercadorias. Tive vontade de descer, comprar um abacate e perguntar do bebê. Quem sabe mais tarde eu fizesse isso...

*

Deixei essa história descansando por uns dias. Não desci, nem perguntei pelo bebê, nem escrevi sobre a minha nova descoberta. Percebi que não eram só três as pessoas em torno do carrinho de abacates, eram pelo menos quatro. A vendedora, seu bebê, o garoto de uns 10 e o jovem de seus 14 anos. Este último esteve só, na esquina com o carrinho, umas duas vezes seguidas, parecia enfadado, mas permanecia em seu posto. Seguiram-se vários dias de ausência. A esquina vazia, e os transeuntes em seus ritmos próprios pareciam nem perceber que os abacates não estavam ali. A chuva foi constante, mas o sol também deu sua cara por alguns momentos, até por dois dias completos.

Um outro dia surpreendi-me novamente: enquanto realizava uma entrevista, vi chegar o carrinho e instalar-se a vendedora, que se mantinha de costas para mim. Não consegui saber se estava só, no primeiro momento. Observei que estava com o corpo definido, outra vez com a cintura marcada sob a blusa de cor rosa. Já não apresentava os sinais de gravidez recente.

Passaram-se uns dois meses desde que começara a observar a esquina. Onde estaria o bebê?, me perguntava. Naquele dia fazia sol, seria muito adequado passear com o pequeno, mas ela viera só. Quando me detive a observar a cena, vi duas mulheres comprando, ou talvez conversando. A vendedora seguia de costas para mim. Não a vi sentar-se em seu caixote: esteve todo o tempo em pé, apoiada sobre o carrinho de supermercado. As mulheres se foram. Um carro estacionou e alguém comprou abacates. Aqui os abacates fazem parte da dieta tradicional da população, o que torna essa fruta muito procurada. Uma das mulheres que estiveram ao lado da vendedora, pela manhã, voltara agora e estava ali conversando, não parecia ser uma cliente. Lembrava uma empregada doméstica da região, uniforme branco sobre a roupa simples. Não consegui ver o rosto da vendedora de abacates, não soube do bebê nem dos garotos. Tinha pensado sobre a hipótese formulada por uma amiga a quem contara minhas elocubrações sobre a vendedora da esquina. Ela me dissera que as pessoas que fazem esse tipo de negócio mudam sempre de lugar. Hoje estão aqui e amanhã em uma outra esquina e também podem ter outra ocupação, por vezes são informantes de policiais ou de traficantes. Olhei mais uma vez pela janela, tentando tirar minhas próprias conclusões. Talvez eu conseguisse saber algo mais dessas vidas que se iam construindo sob o sol e sob a chuva.

*

Meu tempo estava se esgotando, precisava deixar aquela janela de onde vira o mundo por vários meses. Já sentia saudades dos estranhos que se fizeram íntimos pela convivência quase diária. Voltaram nesse meu último dia, depois de uma semana de ausência. A vendedora novamente usava seus sapatos alaranjados e sua roupa cor-de-rosa, a preferida. Algo sobre o carrinho de supermercado não se deixava ver. Poderia ser o bebê ou um pacote branco, uma sacola grande de compras. Fixei o olhar, algo parecia mexer-se nesse pacote que repousava sobre o carrinho de supermercado. Era ele, via-lhe as mãozinhas inquietas de bebê. Assumira seu posto e seguiria ali, hoje no carrinho, amanhã na calçada, depois de amanhã, quem sabe?

***

Em sucessivas políticas, o poder público, nos países periféricos, vêm pondo em destaque na última década o compromisso com a eliminação dos altos índices de pobreza existentes. No Brasil essas políticas são apontadas como responsáveis pela mudança no quadro social. A extinção da miséria e o combate à fome, temas de campanhas políticas durante todo o século XX, foram elevados à categoria de prioridade nacional e deram origem a numerosos estudos e debates, especialmente entre economistas e sociólogos. Tabelas e gráficos mostram a mobilidade social, os novos índices de consumo e renda da população. Profissionais ligados à saude, à alimentação, à habitação e à educação ensaiam análises do impacto das mudanças econômicas em seus campos de atuação. Uma mescla de entusiasmo e descrença povoa os discursos na grande imprensa. Este, contudo, não é um problema brasileiro, apenas: ele está presente no debate em todos os países, afeta as políticas de imigração e faz avivar velhos nacionalismos que pareciam ultrapassados nestes novos tempos marcados pela globalização dos mercados e do capital.

O dossiê que ora apresentamos traz os olhares de cinco pesquisadores latino-americanos convidados a estudar as relações entre pobreza e educação na cidade. Não são especialistas no tema da pobreza, são pesquisadores da educação que aceitaram fazer este exercício de pensamento e escrita. A proposta foi para que cada autor tomasse o tema desde sua perspectiva de pesquisa. O resultado é um conjunto de estudos e reflexões sobre aspectos da pobreza e da educação na cidade que contemplam o exame de políticas públicas, construções sociais, elaboração e legitimação de discursos e práticas sociais sobre os pobres.

Renata Giovine, em seu artigo: "Escuelas y barrios cercados: entre la contención social y la contención educativa" estuda os efeitos das políticas recentes implantadas na Argentina. Seu campo de observação é a província de Buenos Aires, suas fontes, os documentos que expressam as políticas educativas ali aplicadas, entre 1999 e 2006. A autora propõe-se a compreender

cómo se re-estructura un discurso de orden para el gobierno de la pobreza en el que perviven y se superponen estas lógicas, a la vez de responder a los requerimientos de inclusión en un contexto fuertemente desigual. Una desigualdad más compleja ya no sólo anclada en la clase social, sino diversificada en una variedad de aspectos: geográficos, ecológicos, generacionales, de género, salariales, informáticos, laborales, educativos, entre otros. Pero con un núcleo invariante: la participación -o no- en el mercado, en un momento como el actual en el que el consumo se convierte en una nueva fuente productora de sentido, en uno de los principales referentes identitarios de la niñez y la juventud.

A garantia à educação, um dos direitos básicos da infância e juventude, foi por Giovanna Modé Magalhães e Flávia Schilling examinado, no artigo "Imigrantes da Bolívia na escola em São Paulo: fronteiras do direito à educação", tendo como espaço de observação e análise escolas públicas da cidade de São Paulo. Nessas escolas, na periferia da cidade, filhos de famílias de imigrantes bolivianos convivem com a violência, o preconceito e a desinformação. São imigrantes em situação legal ou sem papéis que, ao fugirem da miséria e da falta de trabalho em seu país de origem, caem em uma situação de miséria associada à desterritorialização e ao estranhamento. A pesquisa que dá origem a este artigo entrevistou pais e professores e traz para a discussão a questão dos direitos humanos e suas garantias no interior de estados burocratizados onde se promove a segregação dos estrangeiros pobres, sem visto, e, portanto, sem direitos para si e para sua prole, nas grandes cidades modernas.

Desde Bogotá, Alvaro Chaustre e Martha Herrera, em "Violencia urbana, memoria y derecho a la ciudad: experiencias juveniles en Ciudad Bolívar", tomam um amplo espaço da cidade, um aglomerado de bairros periféricos e favelas, onde pobreza, violência e solidariedade se misturam, para formar os movimentos dos jovens pelo direito de ir e vir em segurança, pelo espaço urbano. A memória dos deslocamentos de zonas rurais para a zona urbana configura a compreensão da vida social e dos direitos dessas populações. Estudos sobre as questões que afetam a juventude pobre e sua escolarização ressaltam a ausência de políticas eficientes para o atendimento dessa área da cidade. A segregação no espaço da cidade e seus efeitos são discutidos por uma extensa bibliografia tratada nesse artigo.

A compreensão do problema da infância e da pobreza em grandes cidades latino-americanas vê-se ampliada com o estudo histórico a respeito da construção de um pensamento sobre os meninos que vivem na rua, que pedem esmola ou que vivem em regiões de maior pobreza. Apresentado por Yeimy Cárdenas, "Chinos y gamines: imágenes de los habitantes pobres de Bogotá, en la primera mitad del siglo XX" opera tendo a imprensa como fonte e poderá reportar o leitor aos movimentos, congressos e publicações perpetrados pelos higienistas de todos os países latino-americanos, durante a primeira metade do século XX, movimentos estes comprometidos com o branqueamento e purificação da raça, cujos efeitos mais visíveis foram controle e segregação da pobreza. Na escolarização, quando se trata do desempenho escolar, é possível encontrar no discurso dos professores as mesmas imagens dos chinos, dos gamines, dos moleques ou dos pixotes, atribuídas aos filhos das famílias pobres.

Completa este dossiê o artigo de Milton José de Almeida, "Eurípedes e Pasolini. O mundo mítico rural e o mundo objetivo da cidade: educação e passagens". De posse da literatura, das metáforas e de seu espírito criativo, o autor procura "entrelaçar os três temas desse dossiê: educação, cidadania e pobreza e expressá-los com a história de Medeia e Jasão". Alerta que não pretende discutir os temas através da tragédia, mas procurará "mostrá-los para que o leitor o discuta, e não espere, se possível, ver aqui realizado o costume metodológico que faz com que pessoas, atos e coisas expressem conceitos já de antemão definidos". Almeida pensa neste artigo "a transformação do texto literário antigo para 'texto' cinematográfico moderno", um e outro instrumentos de registro da memória e da criação em tempos e espaços distintos.

Enquanto esta revista estava sendo preparada, partiu Milton José de Almeida, de forma silenciosa e discreta, como por tempos viveu. Registrando a inexorável perda, o vazio e a saudade que ficaram, publicamos aqui um de seus últimos trabalhos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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