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O ensino contemporâneo da arte e a hipótese de Bergala: diálogos e convergências

Contemporary art teaching and Bergala's hypotheses-cinema: dialogues and convergences

Resumos

Este trabalho pretende estabelecer um diálogo entre o ensino da arte na contemporaneidade e a Hipótese-cinema de Alain Bergala, que propõe a inclusão do cinema como arte no espaço escolar. Constatamos a existência de pontos de convergência entre as propostas de ensino-aprendizagem da arte desenvolvidas no Brasil na atualidade e o plano elaborado pelo professor e cineasta para as escolas públicas francesas em 2001; e este artigo tece uma reflexão sobre esses aspectos, sob a luz do pensamento do cineasta Jean-Luc Godard, com o objetivo de imaginar novas proposições de arte dentro da escola, a partir da interação das duas propostas.

ensino da Arte; cinema na escola; Hipótese-cinema; arte contemporânea


This work tries to establish a dialogue between contemporary art teaching and Alain Bergala's "Hypotheses-cinema", which proposes the inclusion of cinema as art in the school scenario. We evidence that there are several converging points in the proposals of art teaching developed nowadays in Brazil and in the professor's plan for the French public schools in 2001, and this article presents a reflection on these aspects, illuminated by Jean-Luc Godard's thoughts, intending to conceive new proposals of art inside the school, based on the interaction of both practices.

art teaching; cinema at school; "Hypotheses-cinema"; contemporary art


ARTIGOS

O ensino contemporâneo da arte e a hipótese de Bergala: diálogos e convergências

Contemporary art teaching and Bergala's hypotheses-cinema: dialogues and convergences

Greice Cohn

Membro do Projeto de Pesquisa e Extensão Cinema para aprender e desaprender (Cinead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora e Coordenadora Pedagógica de Artes Visuais do Colégio Pedro II, Campi Escolar Centro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. greicecohn@uol.com.br

RESUMO

Este trabalho pretende estabelecer um diálogo entre o ensino da arte na contemporaneidade e a Hipótese-cinema de Alain Bergala, que propõe a inclusão do cinema como arte no espaço escolar. Constatamos a existência de pontos de convergência entre as propostas de ensino-aprendizagem da arte desenvolvidas no Brasil na atualidade e o plano elaborado pelo professor e cineasta para as escolas públicas francesas em 2001; e este artigo tece uma reflexão sobre esses aspectos, sob a luz do pensamento do cineasta Jean-Luc Godard, com o objetivo de imaginar novas proposições de arte dentro da escola, a partir da interação das duas propostas.

Palavras-chave: ensino da Arte; cinema na escola; Hipótese-cinema; arte contemporânea.

ABSTRACT

This work tries to establish a dialogue between contemporary art teaching and Alain Bergala's "Hypotheses-cinema", which proposes the inclusion of cinema as art in the school scenario. We evidence that there are several converging points in the proposals of art teaching developed nowadays in Brazil and in the professor's plan for the French public schools in 2001, and this article presents a reflection on these aspects, illuminated by Jean-Luc Godard's thoughts, intending to conceive new proposals of art inside the school, based on the interaction of both practices.

Key words: art teaching; cinema at school; "Hypotheses-cinema"; contemporary art.

Introdução

Pretendemos, neste trabalho, estabelecer um diálogo entre o ensino da arte na contemporaneidade e a Hipótese-cinema de Alain Bergala1 1 . Alain Bergala foi redator chefe, crítico e editor da Revista Cahiers du Cinéma, professor de cinema em várias universidades francesas. Atualmente ensina na Sorbonne Nouvelle, Paris III. É também realizador de filmes documentários e de ficção. No livro Hipótese-Cinema, Bergala reflete sobre o projeto de inclusão do cinema como arte nas escolas francesas, programa que foi convidado a desenvolver pelo ministro da Educação, Jack Lang, em 2000. , que propõe a inclusão do cinema como arte no espaço escolar. Identificamos alguns pontos de convergência entre as propostas de ensino-aprendizagem da arte desenvolvidas no Brasil na atualidade2 2 . Focamos o ensino da Arte realizado na Unidade Centro do Colégio Pedro II, uma instituição federal de ensino fundada em 1837, que funciona atualmente como um sistema de ensino composto por catorze e o plano elaborado pelo professor e cineasta para as escolas públicas francesas em 2001. Buscamos, neste ensaio, refletir sobre esses aspectos, sob a luz do pensamento do cineasta Jean-Luc Godard e do filósofo Gilles Deleuze que, entre outros autores, nos permitem imaginar novas proposições de arte dentro da escola, com possíveis interações entre as duas propostas.

1. Conhecendo as duas propostas

1.1. Ensino da arte: um espaço poético

O ensino da arte na contemporaneidade atua como um espaço de mediação e aproximação entre a arte e os estudantes, de forma contínua e processual, objetivando o desenvolvimento estético, poético, cognitivo, afetivo e crítico de jovens e crianças. Para o desenvolvimento de nossos métodos de ensino-aprendizagem, baseamo-nos em algumas fundamentações teóricas, dentre as quais destacamos a Abordagem Triangular, que articula as inter-relações entre o fazer artístico (processo criativo-expressivo), a leitura da obra de arte e de imagens advindas da cultura visual (análise crítico-interpretativa-estética) e a contextualização, tanto sob a perspectiva da produção das imagens (histórica, social, antropológica e estética) como de sua recepção (Barbosa, 2003). Dessa forma, o ensino da Arte pretende possibilitar a compreensão desta como um fazer e também como uma forma de pensar a Arte. Ao definir contexto como campo de estudos, de ação, de intervenção e de diálogo, Lindström (2009) lembra que o professor de Arte deve ser capaz de transformar observadores em participantes. Entendemos essa participação não só no fazer artístico dos alunos, mas também quando estimulamos sua imaginação em direção ao próprio processo criativo vivido pelos artistas. O papel do ensino da Arte, como nos lembra Barbieri (2009), também é trazer à tona a inquietação que mobiliza os artistas quando estão produzindo. Ao invés de apenas revelar o que na obra já se acomodou e foi entendido através dos tempos, o professor deve buscar o que ainda vive na obra, latente e único, para daí propor reflexões e experimentações aos seus alunos - como um investigador, um conscientizador da experiência, um agente provocador. Nessa perspectiva, o ensino da Arte constitui-se como um espaço de mediação entre arte e público, onde mediação significa o desenvolvimento de ações que permitam a aproximação, a participação e a compreensão da arte, associadas ao fazer como criação. Um espaço complexo e desafiador, em que é preciso considerar o aluno e seus processos de aprendizagem, ao mesmo tempo que é necessário também conhecer a arte, sua história, seus contextos de criação e apresentação na sociedade, um espaço de construtivismo social (Parsons, 1999).

Expomos, a seguir, um relato que apresenta os métodos de ensino-aprendizagem desenvolvidos no ensino da arte contemporânea no Ensino Médio de uma escola pública do Rio de Janeiro, onde, há mais de três anos, vêm sendo realizadas parcerias entre escola, galerias, artistas e curadores, para o desenvolvimento de práticas conjuntas.

Abordo a conceituação da arte e a estética contemporânea por meio de aulas expositivas; leituras de textos, apresentação de imagens; visitação a exposições e encontros com artistas. A culminância do curso, que dura um semestre, é a produção de um trabalho plástico, em que o aluno exercita o conhecimento adquirido e tem a oportunidade de elaborar um projeto poético próprio. Existem três momentos cruciais neste curso: a visita à exposição, que traz o encontro matérico com obras de arte; o encontro com artistas; e o momento de produção dos trabalhos plásticos. É a esses momentos que os alunos se referem, quando são perguntados sobre o que foi mais marcante no processo.

Um dos maiores desafios na orientação dos trabalhos é fazer os alunos entenderem a diferença entre o raciocínio realista, pragmático, e o raciocínio poético. Possibilitar uma transformação no olhar do aluno, do olhar pragmático para o olhar poético, tem sido o meu objetivo principal.

Na sala de Artes, sentamos sempre em volta de uma mesa redonda, onde conversamos, por exemplo, sobre as diferenças entre os propósitos de uma feira de ciências e uma mostra de arte. Digo-lhes que ambos podem abordar fenômenos semelhantes (sociais, ambientais, físicos, etc.), mas, enquanto a feira de ciências explicita esses fenômenos, descrevendo-os, uma exposição artística os comenta, levantando, poeticamente, questões sobre eles. Enquanto a ciência pretende responder a indagações, definindo e dando contorno aos fenômenos, a arte faz perguntas, preferindo deixar em aberto esses limites, transgredindo-os, ao abrir espaços imaginativos e subjetivos, espaços de libertação.

O grande desafio que se apresenta, então, para os alunos é, ao traduzir processos imaginativos em formas concretas, serem capazes de fazê-lo de maneira poética e não descritiva, penetrando, assim, no universo evocativo da arte.

Ressalto sempre a necessidade da busca por um diálogo entre forma e conteúdo na elaboração do trabalho, entre "o como" e "o quê", entre meio e mensagem. Quando os alunos compreendem essa relação e quando desenvolvem um olhar mais poético, dão um salto, mudam de lugar, penetram no universo da arte, com entusiasmo e dedicação contagiantes. A partir daí, apresentam-se, então, caminhos diferentes, escolhas diversas. O professor-propositor se torna um orientador, dando suporte e auxiliando o desenvolvimento de trabalhos e poéticas alheias (Cohn, 2010).

Ao fazer da educação uma possibilidade de experiência, o ensino da Arte mostra-se como um aprender em três tempos: aprender, desaprender e reaprender (Fresquet, 2007), no qual o encontro com novas situações estético-afetivo-cognitivas provoca uma desconstrução, uma flexibilização e uma reconstrução de valores, que resultam, juntas, numa vivência transformadora para os alunos. Assim se afirma, dentro de um sistema escolar enrijecido e muitas vezes automatizado, como uma brecha para outro tipo de respiração dentro da instituição; uma respiração poética, que emerge a partir do contato com a subjetividade, a alteridade, a reflexão e a criação provocadas pela experiência com a arte, experiência de simultânea pungência e delicadeza.

1.2. A hipótese-cinema de Bergala

Reconfigurar o espaço escolar a partir da inclusão do cinema como arte, permitindo um encontro com a alteridade através deste e, consequentemente, constituindo um espaço de respiração estética dentro da instituição educativa, são os objetivos principais de Bergala, ao aceitar a proposta do então ministro da educação francês, Jack Lang, para ser conselheiro em cinema no plano Les arts à l'école, em 2000. O projeto de Lang pretendia constituir as aulas como oficinas de projeto artístico, nas quais se estabelecesse uma colaboração entre docentes e artistas de diferentes áreas. Ao aceitar esse desafio, Bergala traça um plano de atividades teórico-práticas a serem desenvolvidas inicialmente em cinco anos, em que um acervo de DVDs seria criado (coleção "L'Eden cinema", composto por cem filmes exemplares da história do cinema), com os seguintes objetivos:

- organizar a possibilidade do encontro com filmes selecionados segundo critérios artísticos, em que se estabeleça uma relação na qual o professor seja um "passador", um mediador;

- possibilitar aos alunos o desenvolvimento do gosto e a aprendizagem do hábito de frequentar filmes;

- propiciar o estabelecimento de conexões e laços entre diferentes filmes, ao contextualizar cada produção dentro de uma linhagem de obras referenciais, possibilitando aos alunos a percepção de um conjunto, de um acervo cinematográfico, e não apenas de obras isoladas.

Ainda como atividade de recepção, paralelamente à videoteca e suas propostas de utilização, materiais em vídeo foram editados com fragmentos de filmes para apreciação e análise nas oficinas/aulas, em que a linguagem cinematográfica poderia ser percebida e analisada, a partir de uma amostragem dialógica e comparativa.

O projeto também envolvia a dimensão produtiva, nas palavras de Bergala, "a passagem ao ato", quando os alunos experimentariam o fazer artístico, colocando-se no lugar dos cineastas e tendo a oportunidade de expressar-se através do cinema. Para a realização desta etapa, estimular a percepção dos alunos sobre o ato de criação vivido pelos cineastas seria fundamental.

Com esse conjunto de atividades, Bergala propunha abrir uma brecha na escola para um contato com o cinema como alteridade; como experiência estética e criativa, de uma natureza diversa da habitual entrada, na escola, desta arte que, na maioria das vezes, se apresenta apenas como um instrumento didático, um veículo de aprendizagem ilustrativo ou evocativo de conteúdos alheios ao próprio cinema. É o cinema como arte, a própria forma-cinema e seu potencial educativo, que está no foco do professor, crítico e cineasta, ao elaborar esse projeto.

2. Diálogos e convergências

Destacaremos, a seguir, alguns princípios que fundamentam o projeto de Bergala e se apresentam como pontos de convergência entre sua proposta e as do ensino da arte no contexto brasileiro atual.

2.1. Cinema-arte como forma que pensa

Bergala parte da premissa de que é preciso propiciar o encontro com o cinema como arte, em que o cinema não estaria na escola como conteúdo ilustrativo/elucidativo para propósitos exteriores a ele, mas como forma que pensa e faz pensar; como obra estranha e provocadora; como espaço poético, capaz de propiciar a seu espectador-aluno uma apreciação subjetivada, imaginativa, criativa e sensível. Esse pensamento fica muito claro, quando ele diz que "é preciso que se ofereça uma abordagem sensível do cinema como arte plástica e como arte dos sons, em que as texturas, as matérias, as luzes, os ritmos e as harmonias contam pelo menos tanto quanto os parâmetros linguageiros" (Bergala, 2008, p.39), o que levaria "a sala de aula a vivenciar a experiência do sensível proporcionada pelas obras" (Leandro, 2010, p.80), onde, em vez da pedagogia com a imagem, simplesmente se vivenciaria uma pedagogia da própria imagem. O grande mestre do cinema russo, Sergei Eisenstein (1990, p.59), já se referia a uma "dramaturgia da forma visual do filme, tão regulada e precisa quanto a existente dramaturgia do argumento do filme", o que é reforçado por Bergala (2008, p.38-39), quando defende que "perde-se uma parte essencial do cinema se não se fala do mundo que o filme nos faz ver ao mesmo tempo em que se analisa o modo como ele nos mostra e reconstrói esse mundo".

Num mesmo sentido, o ensino da Arte vem se afirmando, desde a década de oitenta no Brasil, como área de conhecimento específica, na qual o encontro com a arte e suas abordagens deve ser, em si, o conteúdo e o objetivo a ser trabalhado. Abordamos uma pintura, uma escultura ou uma instalação em sala de aula como obras poético-estéticas portadoras de significados próprios, e não como ilustração de conteúdos alheios à sua constituição. Elas estão ali, assim como os filmes do plano Les arts à l'école, para permitir uma iniciação, uma aproximação e uma compreensão da arte, que resultem em intimidade, em formação de gosto, em construções de novos olhares e em possíveis reinvenções de mundo. A arte é o próprio conteúdo a ser ensinado, e esse conteúdo se traduz em sua própria forma, pois, como nos lembra Godard (apud Histoire du cinéma, 1988-1998), são as formas que nos dizem o que há no âmago das coisas. Por isso, em sala de aula, ressaltamos sempre a necessidade da busca por um diálogo entre forma e conteúdo, quando os alunos estão construindo seus trabalhos plásticos, nas relações entre o como e o quê, entre meio e mensagem. Segundo Bachelard (2008), o mundo não é da ordem do substantivo, mas da ordem do adjetivo. Sendo o adjetivo (o como) o responsável pela subjetividade, pela poética e pela significação de uma imagem, é o como, a forma, que traz o ponto de vista individual, a maneira única de ver e expor uma determinada situação. Portanto, é a forma-arte que precisa ser focada no ensino da arte, seja na experiência do fruir ou do fazer, da mesma maneira que a forma-cinema é o conteúdo a ser revelado aos alunos de Bergala.

2.2. A experiência do fazer na pedagogia da criação

Bergala (2008, p.30) afirma que "a arte não poderia ser concebida pelo aluno sem a experiência do fazer", que comporia, junto com a leitura, a pedagogia da criação. Nas suas palavras,

o segundo aspecto dessa "hipótese-cinema" diz respeito à relação entre a abordagem crítica, a "leitura" dos filmes, e a passagem ao ato, a realização. Estou cada vez mais convencido de que não existe, de um lado, uma pedagogia do espectador que seria forçosamente limitada, por natureza, à leitura, à decriptagem, à formação do espírito crítico e, de outro, uma pedagogia da passagem ao ato. Pode haver uma pedagogia centrada na criação tanto quando se assiste filmes como quando se os realiza. Evidentemente, é essa pedagogia generalizada da criação que seria preciso conseguir implementar numa educação para o cinema como arte. (Bergala, 2008, p. 34, grifos do autor)

Focando, especialmente na passagem ao ato, o fazer, Bergala (2008, p. 171) afirma que "há algo de insubstituível nessa experiência, vivida tanto no corpo quanto no cérebro, um saber de outra ordem, que não se pode adquirir apenas pela análise dos filmes, por melhor que seja conduzida".

Da mesma forma, consideramos o eixo fazer, no tripé ver, contextualizar e fazer, como etapa fundamental para a vivência e a compreensão da arte. É a partir do fazer, do vivenciar, que os significados se revelam, pois "nada tem sentido se não é sentido", como sugere a lendária frase de Spinoza3 3 . O filósofo Baruch Spinoza (1632-1677) nasceu em Amsterdã, Holanda. . O sentido é o vivido, o que é experienciado pela individualidade do próprio corpo, o que perpassa a subjetividade do ser. Através do fazer artístico e da fruição da arte (assim como da recepção fílmica, como defende Bergala), a subjetividade do aluno é tocada e provocada, mas é apenas no fazer que surge a possibilidade de ela expressar-se para além da linguagem verbal. O fazer permite ao aluno entrar em contato com a criação de forma concreta e matérica, estimulando sua percepção e sua reflexão sobre as questões formais inerentes ao fazer/pensar arte. A pedagogia da criação, como defende Bergala, se dá tanto no fruir como no fazer: ambos são indispensáveis ao processo de aprendizagem da Arte, mas o fazer, o colocar a mão na massa, a passagem ao ato, revelam-se, após a reflexão e a análise, como um segundo espaço de transbordamento do que não se pode traduzir apenas em palavras, mas plasticamente, aprofundando e trazendo para outra dimensão o processo criativo-imaginativo.

Godard ressalta o valor do ato, quando diz que, dentro da palavra manifestar, está a palavra mão (Godard, 1989), lembrando que é com as mãos que os homens se manifestam, agem e interferem no mundo. Uma pedagogia criativa, emancipatória e democrática não poderia, portanto, prescindir dessa prática de ação e manifestação. Como pretendemos neste artigo trazer a voz dos estudantes como principais "manifestantes" de uma possível pedagogia emancipatória, apresentamos alguns depoimentos4 4 . Esses depoimentos são respostas às questões de provas escritas no âmbito das avaliações semestrais, nas quais os alunos são perguntados sobre o que foi mais marcante no curso que está finalizando. A partir dos depoimentos-respostas, podemos refletir sobre os métodos utilizados, com vistas à proposição de novas de alunos do Ensino Médio que nos apontam para a relevância dessa experiência:

O que mais me marcou no curso foi a elaboração e construção do trabalho plástico. A exposição foi mais um complemento, para ver idéias além das minhas. Admito que a matéria em si, acho que ano que vem, inevitavelmente, se perderá na minha cabeça, porém o trabalho que eu fiz e o tema proposto, esses sim, ficarão na minha memória. (Leonardo de Araújo Guarino, 2010)

Conhecer o processo de criação de uma artista e, além disso, poder vivenciar esse mesmo processo com uma exposição ao final. Foi uma experiência nova na minha vida. (Carolina Crespo, 2010)

Artes Visuais no 1º ano foi diferente de todas as outras disciplinas desde a 5ª série. Isso porque em Artes, nós produzimos o que estudamos, diferente de Física, Matemática, etc. Também foi muito gratificante ver o nosso projeto virar realidade. (Guilherme de C.A. Santos, 2010)

Foi a realização de um dos poucos trabalhos em que tudo não estava definido e nem era necessário seguir um roteiro. Livre para fazer escolhas, o aluno tem que ter mais responsabilidades, porém quando o trabalho fica pronto existe a realização e o prazer. (Letícia Patino, 2010)

Para mim foi muito marcante ver como um trabalho mexe com a gente, toca, sensibiliza. (Guilherme Machado, 2010)

O que mais me marcou foi a construção do trabalho, porque podemos mostrar algo sobre nós através do mesmo. (Danilo Araújo Pontes, 2010)

Aprendemos que é na arte que podemos nos expressar e ser livres, pois nela não somos obrigados a seguir regras determinadas por outros. (Alex Moraes Rocha, 2010)

Os alunos sinalizam, nos seus depoimentos, para a liberdade de escolha, a autonomia e a sua participação ativa no próprio processo de aprendizagem como atributos da experiência do fazer artístico, o que nos permite reconhecer o caráter emancipatório e democrático dessa experiência.

2.3. A presença do artista no processo educativo

Ao defender o fazer, Bergala (2008, p.30) o atrela à introdução do artista na escola, dizendo que "a arte não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do 'fazer' e sem o contato com o artista, o profissional, entendido como corpo 'estranho' à escola", elemento perturbador de seu sistema de valores, comportamentos e normas. Para o cineasta, a instituição tem a tendência de normalizar, amortecer e absorver o risco que representa o encontro com toda forma de alteridade, para tranquilizar-se. O artista, como elemento exterior à instituição e familiarizado com a instabilidade provocada pelo contato com a arte, teria, então, mais condições de proporcionar novas atitudes nos alunos diante desta. Godard (apud Bergala, 2008, p.30) fundamenta o ponto de vista de Bergala, quando diz que "existe a regra e existe a exceção", sendo a cultura a regra; e a arte, a exceção. O crítico conclui, então, que, se o ensino se ocupa da regra, a arte deve ocupar um lugar de exceção dentro da escola.

Há pouco mais de três anos, adicionamos à já habitual visita a museus ou galerias, os encontros com artistas em nossas práticas de ensino-aprendizagem, e já não podemos mais conceber o ensino da Arte sem essa participação direta e efetiva. Os artistas têm conversado com os alunos, exposto seus processos de criação, compartilhado suas angústias e desafios do dia a dia de trabalho, proporcionando um outro olhar dos alunos sobre sua obra, um olhar que percebe o processo, as dificuldades e as alegrias inerentes ao percurso formador da obra. Os trabalhos plásticos que estes produzem após esse encontro têm revelado influências tanto das obras vistas, como do discurso dos artistas, que é absorvido de forma integrada à percepção das obras. A proximidade com o artista, "o corpo estranho", tem intensificado para os alunos a experiência com a alteridade, indissociável do encontro com a arte, transformando a natureza desse encontro. Os depoimentos dos alunos traduzem melhor nosso ponto de vista:

Para mim, o mais marcante foi ouvir do próprio artista, em pessoa, sobre a sua obra. (Breno de Souza Mendes, 2010)

Não vejo a arte como em alguns anos atrás, uma árvore, um sol e uma nuvem! Nem acho todos os artistas malucos. Passei a entender o motivo, a intenção da arte. (Dan Godoy - T. 2006)

O contato com o artista é, para o aluno, como uma saída da escola, um mergulho numa vida real da qual ele normalmente não participa e, frequentemente, idealiza. O contato direto contribui para desmistificar a figura do artista, o que, ao contrário de banalizar a experiência, resulta num aprofundamento desta. Ao permitir ao aluno uma visualização mais próxima do outro, o encontro provoca sua imaginação e com ela a projeção de si próprio nesse outro lugar, possibilitando voos antes inimaginados. A fala do artista sobre a arte e sobre seu próprio trabalho pode tanto contradizer o discurso do professor, e com isso provocar discussões e questionamentos enriquecedores em sala de aula, como também intensificar esse discurso. A fala do ponto de vista da experiência prática profissional, articulada com a própria obra que está ali presente, pode conferir legitimidade ao que é dito teoricamente em sala de aula, aprofundando a percepção do aluno sobre o que é visto. Das duas formas, tanto contradizendo como ratificando, o encontro com o artista ressignifica a aprendizagem ali proposta, fazendo daquele espaço uma janela conectiva e rizomática5 5 . Para Deleuze e Guattari (1995, p.16), "um método de tipo rizoma é obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros [...] e uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza, onde as leis de combinação crescem com a multiplicidade". com o espaço extraescolar.

A experiência de trabalhar diretamente com o artista em sala de aula é, portanto, transformadora também para o professor, pois, a partir do momento que integra esse "outro" portador de discursos próprios em suas práticas de ensino-aprendizagem, abre espaço para conexões desestabilizadoras e perturbadoras, que inauguram processos imprevistos. Diferentes falas e posturas apresentam novos pontos de vista e possíveis contradições, des-hierarquizando e dinamizando o processo de ensino-aprendizagem, que se torna, então, conectivo, dinâmico e múltiplo, ao mudar necessariamente de natureza, à medida que aumenta suas conexões (Deleuze; Guattari, 1995, p.17); um processo muito bem-vindo num universo pedagógico e criativo que se proponha questionador, investigativo e múltiplo.

2.4. Prazer X aprendizagem na perspectiva docente e discente

Um outro aspecto que gostaríamos de ressaltar no pensamento de Bergala é a vinculação da aprendizagem ao desejo e ao prazer. Ao afirmar que "pode-se obrigar alguém a aprender, mas não se pode obrigá-lo a ser tocado" (Bergala, 2008, p.62) e que "só o desejo instrui" (Bergala, 2008, p.78), Bergala chama atenção para a relação entre sensibilização, prazer e cognição. Apesar de não ser uma novidade para os estudos educacionais, a atenção a essas relações é bastante pertinente na perspectiva do ensino artístico, que, muito por isso, se revela como um espaço diferenciado dentro da escola. Mas essa vinculação não acontece de forma natural, sem o devido esforço, reflexão, elaboração e dedicação por parte do professor, mediador ou "passador"6 6 . "Passador" é uma expressão utilizada por Serge Daney (apud Bergala, 2008, p.44). , como prefere nomear o crítico e professor. Ao referir-se ao professor/passador como alguém tocado, afetado, envolvido e apaixonado pela arte, Bergala chama atenção para o caráter impregnante da paixão do professor. Em suas palavras,

quando aceita o risco voluntário, por convicção e por amor pessoal a uma arte, de se tornar passador, o adulto também muda de estatuto simbólico, abandonando por um momento seu papel de professor, tal como definido e delimitado pela instituição, para retomar a palavra e o contato com os alunos a partir de um outro lugar dentro de si, menos protegido, aquele que envolve seus gostos pessoais e sua relação mais íntima com esta ou aquela obra de arte (Bergala, 2008, p.64).

Reconhecemos, pela nossa experiência, o poder do entusiasmo do professor na transmissão de saberes para os alunos. A alegria, o prazer do encontro com algo que nos move, é algo que contamina quem o presencia. Na perspectiva do encontro com a arte, que envolve a formação do gosto, o professor não se deve furtar a demonstrar seu real interesse e paixão pela arte que lhes apresenta, mesmo porque isso se faz nítido para os olhares atentos e sensíveis dos jovens e das crianças. A própria curadoria de sala de aula, que se traduz nas obras que são escolhidas para estar ali, já revela essa paixão. Se não mantiver acesa a chama do seu interesse pessoal pela arte e não puder compartilhar essa paixão com seus alunos, o professor jamais vai provocar qualquer entusiasmo na apreensão dos estudantes, correndo o risco de acinzentar as experiências compartilhadas em sala de aula. Ao contrário de significar uma imposição do gosto do professor na construção do gosto dos alunos, o que defendemos aqui é o compartilhamento desse gosto; a possibilidade de expressão do entusiasmo subjacente ao encontro com a arte, pois acreditamos que o professor estaria cometendo um enorme erro, se pretendesse manter uma imagem de neutralidade diante de obras de arte ou estilos artísticos, perdendo aí uma enorme oportunidade de dar visibilidade a um dos maiores atributos do encontro com a arte, que é a reverberação desta no nosso ser.

Bergala recorre a Jean-Marie Straub, ao afirmar que, para que um plano valha a pena, é preciso que "alguma coisa queime no plano" (Bergala, 2008, p.50). Queimar tem aí um sentido duplo, o sentido comumente utilizado no cinema para definir o filmar, o imprimir uma imagem na película, o queimar como processo químico que transforma a matéria fílmica; e também o queimar como algo que aquece, apaixona e incendeia, transformando quem assiste ao filme. O que queima é a vida, a presença das coisas e dos homens que o habitam, o que acontece nessa presença. Poderíamos falar, igualmente, em pedagogia, que, para uma aula valer a pena, é preciso que alguma coisa queime tanto no que se mostra ali, como dentro da própria dinâmica e presença dessa aula; e para isso é preciso que algo esteja queimando no professor. Resumindo, é preciso que a aula queime enquanto permite perceber o que queima no interior do que mostra, levando a percepção dos alunos também a queimar em seu ser - isso resultaria numa experiência transformadora.

2.5. Respeitando a sensação de estranheza diante da arte no processo de mediação

Identificamos outro aspecto ressaltado por Bergala que merece especial atenção, quando se tem a intenção de propiciar uma significativa experiência com a arte dentro da escola (assim como fora dela): o respeito ao tempo e ao espaço de recepção de uma obra de arte. Quando afirma que "a arte é o que resiste", Bergala (2008, p.69) chama atenção para o que não se oferece facilmente numa obra, o que não se faz imediatamente visível; para o que nela se demora a revelar. Godard, ao abordar os deveres de um diretor de cinema7 7 . Entrevista a Christophe d'Yvoire (Tirard, 2002, p. 246). , defende que "os verdadeiros filmes são aqueles nos quais há uma espécie de invisível que só pode ser visto através daquele visível [...]" (Tirard, 2002, p. 246); algo que, como ressalta Bergala, necessita ser revelado, que não se explicita imediatamente numa obra, que requer do espectador empenho, paciência, reflexão, um "consentimento"8 8 . Termo empregado por Simone Weil, conforme para poder abandonar a resistência ou a hostilidade inicial provocada pela estranheza da obra.

Bergala também evoca o pensamento de Nietzsche, para quem é necessária a

estranheza da verdadeira obra de arte, que não é imediatamente identificável, que exige um esforço para se revelar a nós lentamente e que é com freqüência um pouco desencorajadora no primeiro encontro, antes dessa estranheza se tornar objeto de ternura (Bergala, 2008, p.71).

Para o filósofo, é preciso que haja empenho e boa vontade no início do nosso encontro com a obra, "para suportá-la, não obstante sua estranheza, usar de paciência com seu olhar e sua expressão, de brandura com o que nela é singular" (Bergala, 2008, p. 71).

Conviver com o sentimento de estranheza diante da arte e fazer desse sentimento um alavancador de processos é uma constante no contexto do ensino da Arte contemporânea. Para um professor ser um mediador, um passador, é preciso que respeite o tempo de "revelação" de uma obra na apreciação de seus alunos. Que ele também consinta, e sem ansiedade, o tempo de suspensão e indefinição que a obra requer para respirar na memória e na imaginação deles. É preciso que o professor acredite no próprio processo de fruição que está proporcionando, ao expô-los às obras de arte, resistindo à tentação de dar respostas apaziguadoras que cessem o desconforto provocado pela indefinição e estranheza então sentidas. Faz-se necessário, portanto, que o professor crie uma atmosfera em sala de aula que garanta a permanência no ar de "uma parte de não-dito, de abalo pessoal que mais tarde encontrará meios para ressoar, ou para tornar-se motor de criação" (Bergala, 2008, p.79), que poderia ser destruído por uma injunção forte demais de dizer tudo.

Ao encorajar seus alunos a suportar esse momento de incertezas, o professor ajuda-os a confiar no próprio processo de significação inerente à fruição da obra e na sua própria sensibilidade, percepção e capacidade de descobrir, sozinhos, o prazer da revelação e do sentimento de ternura que uma obra pode despertar. Nesse encontro paciente com a obra de arte, uma partilha tácita e silenciosa se cria, resultando numa atmosfera de cumplicidade entre professor e alunos que, de forma des-hierarquizada, compartilham a experiência de serem afetados por uma obra de arte.

3. Dialogando com a divergência

Analisamos, até este ponto do trabalho, cinco princípios que consideramos fundamentadores, tanto para o projeto de Bergala como para a nossa experiência com o ensino da Arte, e que nos permitem reconhecer uma convergência entre os dois projetos: [1] O reconhecimento do cinema e da arte como formas que pensam; [2] a importância da experiência do fazer na pedagogia da criação; [3] a necessidade da presença do artista no desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem; [4] as relações entre o prazer e a aprendizagem, na perspectiva docente e discente; e [5] a necessidade do respeito ao tempo de estranheza no contato com a arte. Decidimos finalizar este texto, ressaltando um último aspecto que, ao mesmo tempo que nos aproxima da hipótese de Bergala, nos leva a divergir dela.

Uma das fortes justificativas de Bergala para a relevância do projeto de inclusão do cinema como Arte dentro das escolas é que, para muitas crianças, essa é a única oportunidade de encontro com o cinema; pelo menos de um tipo de cinema que não se encontra com facilidade nas salas de exibição na França. Nas suas palavras, "se o encontro com o cinema como arte não ocorrer na escola, há muitas crianças para as quais ele corre o risco de não ocorrer em lugar nenhum" (Bergala, 2008, p. 33). Mais uma vez, encontramos ecos desse pensamento na nossa realidade, em que observamos que o encontro com a arte, por um conjunto de razões que não caberiam ser analisadas no contexto deste trabalho, não se realizaria para a grande maioria dos estudantes brasileiros, se não acontecesse por intermédio da escola. E os próprios alunos nos trazem essa realidade:

Antes de entrar no CPII (2006) eu não tinha ido a nenhuma exposição de artes. (Ana Paula Borelli, 2006)

Eu nunca havia ido concretamente de corpo e alma a um museu. Ao chegar lá a professora e a arte me fizeram ver tudo de uma maneira totalmente diferente e curiosa. (Jéssica Souza, 2006)

Pretendo continuar a visitar exposições e buscar uma inspiração maior nas Artes Visuais para expor minhas idéias em trabalhos futuros. (Ana Luíza Mazalotti, 2006)

Pretendo ir a mais museus, pois eu nunca ia [...]. (Ana Carolina Paes, 2006)

Ouvir dos próprios alunos o reconhecimento da importância da escola na sua iniciação à arte é comovente e nos obriga, como profissionais do ensino da Arte, ao comprometimento com a garantia da conquista e da preservação desse direito de acesso e contato contínuo com a arte. É justamente a garantia ao acesso que vai sinalizar um ponto de divergência entre a nossa proposta e a de Bergala. Ao condicionar o desenvolvimento de seu projeto de encontro com o cinema como Arte na escola ao estabelecimento de uma situação diversa daquela do ensino curricular normatizado, devendo esse projeto, como já expusemos, ser ministrado por um profissional/artista exterior à instituição, o professor e crítico afirma que "a arte, para permanecer arte, devia permanecer um fermento de anarquia, de escândalo, de desordem, pois a arte é por definição um elemento perturbador dentro da instituição" (Bergala, 2008, p.30); e defende que "tanto para os alunos quanto para os professores, ela deve ser, na escola, uma experiência de outra natureza que não a do curso localizado" (Bergala, 2008, p.30). Assim, ele parte da premissa de que a inclusão de um projeto de cinema como Arte no contexto de uma disciplina escolar, inserida no currículo e ministrada por um professor da instituição, o encarceraria em regras que anulariam sua força e acabariam por neutralizar sua potência.

Reconhecemos que o temor de Bergala tem fundamento, pois são muitos os problemas identificados no sistema educacional das sociedades contemporâneas, mesmo em realidades tão diversas quanto as do Brasil e da França. A mecanização, a homogeneização e a burocratização do ensino, aliadas a outros tantos problemas que não nos caberia analisar neste trabalho, já justificariam a vontade de escapar da situação institucionalizada, como propõe Bergala. Mas, apesar disso, a nossa experiência de mais de dez anos de ensino da Arte inserido no currículo escolar, num país onde a Arte9 9 . Apesar de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 5692, de 11 de agosto de 1971, no seu capítulo I (Ensino de 1º e 2º graus), Art. 7º, determinar obrigatória a inclusão de Educação Artística nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus, somente após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.934/96), no artigo 26A, §1º, ficou determinada a obrigatoriedade do Ensino da Arte (Artes Visuais, Música, Dança e Teatro) na Educação Básica, diferenciando cada modalidade artística como disciplina a ser ministrada por um professor especialista, ao contrário da visão polivalente da Lei de 1971 (Brasil, 2012). é disciplina curricular em processo de regulamentação legal há poucas décadas, permite-nos discordar de sua premissa, e podemos destacar três motivos para isso. Apresentamos como primeiro argumento o que responde ao nosso ponto de vista pessoal e que, estando próximo de nossa experiência, mostra-se válido como primeiro. Este se traduz nos resultados que vimos obtendo na nossa experiência, em que a inserção da Arte como disciplina na grade curricular, apesar de sujeita à ameaça encarceradora já sugerida no próprio termo, não tem impedido o desenvolvimento de experiências significativas de encontro com a arte dentro da escola. As nossas práticas têm nos permitido reconhecer no ensino da Arte um espaço de experimentação poético-estética libertador e instigador, uma brecha para respiração na rígida estrutura escolar, o que nos permite afirmar que sua inclusão na grade curricular não tem impedido que ali se crie um espaço de perturbação, libertação e encontro com a alteridade.

A segunda razão, e de maior abrangência, reside na constatação das diferenças que permeiam a cultura cinematográfica na França e a cultura artística no nosso país. Na França, existe formação em cinema no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e também uma formação universitária pioneira nessa área. Além disso, esse país abriga o polo europeu mais importante de produção e distribuição de cinema, o que contribui para a constituição de uma cultura cinematográfica que vai além do universo escolar. No Brasil, por outro lado, tanto por sua extensão territorial como por razões socioeconômicas e culturais, a maioria das pessoas, mesmo nos grandes centros urbanos, nunca entrou em um museu ou galeria de arte, num processo histórico que inclui várias gerações. A escola ainda é, portanto, para a grande maioria dos brasileiros, a única oportunidade de contato com uma forma de Arte institucionalizada; e, por ser a inclusão do ensino da Arte como disciplina no corpo curricular nacional uma conquista muito recente10 10 . A Arte só foi incluída como disciplina obrigatória em todos os segmentos da educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamen , enfrentando ainda, em alguns lugares, dificuldades de sistematização, o encontro com a Arte nesses contextos ainda requer esforços e luta por efetivação.

A terceira razão que nos leva a discordar da premissa de Bergala reside no reconhecimento da própria sistematização como um aspecto positivo. Os métodos de ensino-aprendizagem da Arte apresentados aqui resultam de mais de dez anos de experiência, pesquisa e reflexão sobre as práticas realizadas no âmbito de uma escola pública do Rio de Janeiro, onde tivemos autonomia para desenvolver processos dinâmicos e interativos entre escola e museus/galerias. A reflexão sobre a própria experiência constitui o que Antonio Nóvoa chama de "conhecimento profissional específico do professor" (Nóvoa, 2007), que deve somar-se ao pedagógico e ao científico (conhecimento próprio de sua disciplina). O conhecimento a que Nóvoa se refere se constrói a partir da própria prática do professor, da experiência e da reflexão sobre a experiência, um conhecimento ao mesmo tempo empírico e teórico, fundamentado e fundamentador, que só pode ser produzido por quem realiza e pensa sua prática. O método de ensino-aprendizagem da Arte exposto no decorrer deste texto é fruto desse conhecimento profissional, e só pôde se desenvolver na medida em que tivemos a oportunidade de repetição e continuidade de realização de nossas práticas. Para Agamben11 11 . Neste artigo, o filósofo reflete sobre o cinema de Guy Debord, no qual "repetição e paragem" são elementos constituintes da técnica composicional de , a repetição não é o retorno do idêntico, mas o que, com força e graça, traz a novidade. "A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna-o de novo possível" (Agamben, 2007). Em educação, tornar de novo possível é fundamental, pois nosso trabalho se faz da reflexão sobre a própria experiência e da possibilidade de transformarmos o que já foi feito a partir da memória do já feito. Como nos lembra Benjamin (apud Agamben, 2007), "a memória é o órgão de modalização do real, aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real".

Bem, repetição e continuidade são atributos da garantia proporcionada pela sistematização da Arte como disciplina dentro da escola. Sem a inserção legal do ensino da Arte no corpo curricular das escolas brasileiras, que garante uma continuidade para as propostas ali desenvolvidas, muitos dos nossos esforços e conquistas estariam, com certeza, expostos à fragilidade e à vulnerabilidade a que estão sujeitas iniciativas valiosas, porém avulsas. Ao dependerem da boa vontade de governos simpáticos ou não a este tipo de iniciativa, algumas propostas poderiam se perder nas curvas de projetos políticos delineados à revelia dos objetivos dos educadores, como aconteceu com o relevante projeto de Bergala. Portanto, é justamente a efetivação do ensino da Arte como disciplina escolar obrigatória no currículo do ensino básico, é a sua situação de "curso localizado" que nos possibilita a continuidade e o amadurecimento de projetos educativos de longo prazo, que podem se recriar e se reelaborar continuamente.

Considerações finais

Concluímos nossa reflexão, trazendo uma proposta que reafirma nossa identificação com o projeto de Bergala e, ao mesmo tempo, levanta uma outra hipótese: a de que é possível promover o encontro com a arte e, inclusive, com a arte enquanto cinema dentro da escola, de forma sistematizada, localizada e mediada por um professor especializado, sem que, com isso, se automatize, se confine ou se estabilize o caráter perturbador, poético e libertador da arte. Quando propomos a inclusão da "arte enquanto cinema" na escola - invertendo a expressão proposta por Bergala12 12 . Bergala propõe a inclusão do "cinema como arte" dentro da escola. -, estamos sugerindo uma experiência de encontro com um campo audiovisual contemporâneo, que dilui as fronteiras entre as artes visuais e o cinema, por apresentar, ao mesmo tempo, o cinema como arte e a arte como cinema. Esse encontro se revela no campo da videoarte, onde há um cruzamento cada vez mais intenso entre a arte contemporânea e o documentário, onde "cineastas que trabalham prioritariamente no documentário criam instalações para serem expostas em galerias ao mesmo tempo em que artistas expandem suas criações para o campo das imagens documentais" (Lins, 2009, p.2), criando

obras que se renovam a partir de estratégias extraídas da arte contemporânea e que propiciam outras maneiras de se relacionar com imagens em movimento, redefinindo temporalidade, espaço, narrativa e impondo modificações à interação mental e corporal do espectador (Lins, 2009, p. 2).

Com essa proposta, pretendemos dar um passo adiante na análise da convergência entre o ensino da Arte contemporânea e a proposta de Bergala, propondo uma efetiva integração da experiência de inclusão do cinema na escola com o ensino da Arte; desestabilizando fronteiras, para potencializar experiências perturbadoras e poéticas dentro do espaço escolar.

Recebido em 16 de agosto de 2011 e aprovado em 17 de maio de 2012.

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  • TIRARD, L. Moviemakers' master class: private lessons from the world's foremost directors. London: Faber & Faber, 2002.
  • 1
    . Alain Bergala foi redator chefe, crítico e editor da Revista Cahiers du Cinéma, professor de cinema em várias universidades francesas. Atualmente ensina na Sorbonne Nouvelle, Paris III. É também realizador de filmes documentários e de ficção. No livro
    Hipótese-Cinema, Bergala reflete sobre o projeto de inclusão do cinema como arte nas escolas francesas, programa que foi convidado a desenvolver pelo ministro da Educação, Jack Lang, em 2000.
  • 2
    . Focamos o ensino da Arte realizado na Unidade Centro do Colégio Pedro II, uma instituição federal de ensino fundada em 1837, que funciona atualmente como um sistema de ensino composto por catorze
  • 3
    . O filósofo Baruch Spinoza (1632-1677) nasceu em Amsterdã, Holanda.
  • 4
    . Esses depoimentos são respostas às questões de provas escritas no âmbito das avaliações semestrais, nas quais os alunos são perguntados sobre o que foi mais marcante no curso que está finalizando. A partir dos depoimentos-respostas, podemos refletir sobre os métodos utilizados, com vistas à proposição de novas
  • 5
    . Para Deleuze e Guattari (1995, p.16), "um método de tipo rizoma é obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões e outros registros [...] e uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza, onde as leis de combinação crescem com a multiplicidade".
  • 6
    . "Passador" é uma expressão utilizada por Serge Daney (apud Bergala, 2008, p.44).
  • 7
    . Entrevista a Christophe d'Yvoire (Tirard, 2002, p. 246).
  • 8
    . Termo empregado por Simone Weil, conforme
  • 9
    . Apesar de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 5692, de 11 de agosto de 1971, no seu capítulo I (Ensino de 1º e 2º graus), Art. 7º, determinar obrigatória a inclusão de Educação Artística nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus, somente após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.934/96), no artigo 26A, §1º, ficou determinada a obrigatoriedade do Ensino da Arte (Artes Visuais, Música, Dança e Teatro) na Educação Básica, diferenciando cada modalidade artística como disciplina a ser ministrada por um professor especialista, ao contrário da visão polivalente da Lei de 1971 (Brasil, 2012).
  • 10
    . A Arte só foi incluída como disciplina obrigatória em todos os segmentos da educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamen
  • 11
    . Neste artigo, o filósofo reflete sobre o cinema de Guy Debord, no qual "repetição e paragem" são elementos constituintes da técnica composicional de
  • 12
    . Bergala propõe a inclusão do "cinema como arte" dentro da escola.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      16 Ago 2011
    • Aceito
      17 Maio 2012
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