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Uma trajetória em meio às transformações do mundo contemporâneo: entrevista com Janette Friedrich

DIVERSO E PROSA

Uma trajetória em meio às transformações do mundo contemporâneo: entrevista com Janette Friedrich1 1 . Entrevista realizada e editada por Luci Banks-Leite e Maurício Ernica. Transcrição realizada por Flavia Fazion e Emily Caroline da Silva.

Luci Banks-LeiteI; Mauricio ErnicaII

IProfessora do Departamento de Psicologia Educacional (Depe) e membro do Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem (GPPL) da Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, SP, Brasil. lbanks@uol.com.br

IIProfessor do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte (Delart) da Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, SP, Brasil

É com grande prazer que a revista Pro-Posições apresenta esta entrevista de Janette Friedrich, nascida em Potsdam, na Alemanha do Leste, formada em Filosofia pela Universidade de Rostow-sur-le-don, na União Soviética, na década de 1980, e que, desde 1994, trabalha como professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra. Atuou também como Diretora de Pesquisa no Colégio Internacional de Filosofia em Paris e é membro do laboratório "História das teorias linguísticas" do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS-França).

Essa ilustre pesquisadora é bem conhecida entre nós, pois esteve em várias ocasiões em cidades do Brasil, especialmente em São Paulo, para ministrar cursos e proferir conferências, a convite de grupos de pesquisa das áreas de Linguística, Psicologia e Educação. Na abordagem de temáticas diversificadas, tais grupos possuem um ponto em comum: a referência fundamental aos trabalhos dos autores soviéticos que se inserem na perspectiva histórico-cultural - Vigotski, Luria e Leontiev -, aos quais se acrescentam os estudos de Bakthin.

Nesta entrevista, concedida, de maneira informal e amistosa, em abril de 2012, Janette aborda aspectos importantes de sua trajetória como estudante e jovem pesquisadora, durante um período de grandes transformações na União Soviética e nos países do Leste europeu. Dessa forma, nos conduz a um universo de experiências singulares, marcado por acontecimentos de um momento histórico particularmente (in)tenso.

Inserida no campo da Filosofia e atuando na seção de Ciências da Educação da FAPSE, Janette vem realizando, nos últimos anos, estudos sobre três temas: a) a escola sócio-histórica em ciências humanas e seus precursores (L. S. Vigotski, A. N. Leontiev, M. M. Bakhtin); b) problemas epistemológicos das ciências humanas, com um interesse particular pela obra de K. Buhler e A. Schutz; c) aportes da Filosofia da ação às Ciências da Educação.

Entre suas numerosas publicações, duas merecem um destaque especial: a densa apresentação de Théorie du langage, de Karl Buhler - obra de 1934 desse clássico autor do campo das Ciências da Linguagem e da Psicologia - traduzido para o francês e por ela coeditado, lançado em 2009 pela editora Agone, de Marseille. E o livro publicado em português pela Mercado de Letras, em 2012: Lev Vigotski: mediação, aprendizagem, desenvolvimento2 2 . Cf. Nota de leitura em Pro-Posições, v.23, n. 1, Campinas, jan./abr. 2012. .

Pro-Posições - A sua primeira formação foi na Alemanha do Leste e depois na União Soviética, nos anos 1980. Pensamos, então, que você poderia falar do mundo intelectual desses países nessa época e, sobretudo, do lugar que o pensamento russo do início do século tinha nesse mundo. Mais especificamente, como esses autores eram lidos - se eles eram lidos - e quais as questões que as pessoas formulavam a partir deles?

Janette Friedrich- Comecemos, talvez, pelo início, com meus anos de estudos entre 1979 e 1984. Eu tinha 18 anos quando fui estudar na União Soviética. A gente pensava que iria para uma das universidades de Moscou ou de São Petesburgo - Leningrado, na época -, mas nos enviaram a uma outra cidade, Rostow-sur-le-Don. Fomos enviados pela ex-RDA (República Democrática Alemã) para estudar Filosofia nessa cidade que não conhecíamos. Rostow-sur-le-Don está localizada a 1.200 km ao sul de Moscou, já próxima dos Montes Urais, ou seja, na fronteira geográfica entre a Ásia e a Europa. Essa cidade é também chamada "a porta do Cáucaso"; os trens do Mar Negro ao Cáucaso passam todos por Rostow, de forma que, em 9, 10 horas, estávamos na beira do Mar Negro. Ao chegarmos lá, ficamos surpresos, mas percebemos rapidamente que não se tratava nem de uma pequena universidade, nem de uma pequena cidade. De fato, Rostow não é nem Moscou, nem Leningrado, mas é uma cidade com mais de um milhão de habitantes. E, se eu tivesse que descrever a formação que tive lá, durante cinco anos, diria que essa formação teve um caráter clássico.

Quando digo formação clássica, quero dizer, principalmente, duas coisas: primeiramente, a Filosofia foi ensinada através de sua história, sob forma de História da Filosofia, da Antiguidade até os anos 1930; e na área de História da Filosofia Alemã, especialmente, tivemos professores extraordinários. Além disso, "clássico" quer dizer também aprender pela leitura dos textos originais e não somente pelas xerocópias de alguns artigos curtos; assim, lemos livros inteiros de Hegel e de Marx em russo. Em média, liam-se 50 páginas por dia, para preparar os seminários do dia seguinte. Por exemplo, estudamos O capital, de Marx, durante dois semestres, lendo os dois primeiros volumes de um ponto de vista filosófico, um exercício extraordinário para aprender a compreender. O ensino da História da Filosofia parava no início dos anos 1930, de modo que Foucault, Gadamer e outros contemporâneos, eu os li bem mais tarde. Ao mesmo tempo, é necessário relativizar esse termo "formação clássica", pois uma parte de nossos estudos foi atravessada por toda essa trama ideológica da URSS, o que significou que tivemos disciplinas dedicadas ao materialismo dialético, ao materialismo histórico, ao comunismo científico, etc. Esses domínios eram bem vazios e neles reinava um blá-blá-blá ideológico; tivemos que estudar o manual do comunismo científico e outros textos para sermos aprovados nessas disciplinas. Então, você "estudava" essas coisas em um clima totalmente tedioso, pois aí não havia nada para pensar, só dogmas e uma visão do mundo que deveria ser repetida. Eu falo de uma visão do mundo porque se sabia bem que o que se dizia era apenas uma teoria, no mau sentido do termo, pois a realidade era bem diferente do que era descrito.

A vantagem de Rostow-sur-le-Don é que muitos dos ditos dissidentes foram professores lá, o que soubemos somente mais tarde, no decorrer de nossos estudos. Eram, na verdade, pesquisadores que defendiam o que se chama, frequentemente, de marxismo crítico, um marxismo não dogmático. Por essa razão, foram enviados à periferia de Moscou ou de Leningrado, pois nas grandes cidades eram, sobretudo, os pesquisadores fiéis ao regime que ocupavam cargos na universidade. Em Rostow existia uma "escola", isto é, professores que ensinavam o materialismo dialético de uma maneira inteligente, e eles se referiam muito a um filósofo bastante discutido na época: Evald Vasilevic Ilyenkov (1924-1979). Ilyenkov trabalhou em Moscou, ensinou no início dos anos 1950 na Faculdade de Filosofia da Universidade de Moscou, mas, em 1954, foi obrigado a deixar a universidade, pois suas pesquisas sobre Hegel e Marx incomodavam. Até seu suicídio, em 1979, trabalhou na Academia das Ciências e nós, estudantes de Filosofia em Rostow, lemos muito seus trabalhos sobre O capital, de Marx. Ele propunha uma releitura de Marx através do pensamento de Hegel e, além disso, trabalhava também sobre o problema do "ideal". Enfim, Ilyenkov propunha uma filosofia do espírito muito original, sobre a qual discutíamos muito. Pode-se dizer que nós fomos iniciados, em Rostow, a uma leitura inteligente do marxismo através dos textos originais. Em suma, nesse período, aprendi a ler os textos originais de Marx ou A fenomenologia do espírito, de Hegel, e não o que era apresentado nos manuais sobre o marxismo, sobre O capital ou sobre Hegel. Começar pelas fontes, ler os autores e não o que se diz deles; essa atitude, essa maneira de trabalhar adquirida durante meus estudos, é algo que eu jamais abandonei. Parece banal dizer que se aprendeu a LER, mas fico admirada ao me deparar, atualmente, com alunos que, mesmo no final de seus estudos, não conseguem verdadeiramente ler um texto. Essa distinção entre um texto original e as leituras relacionadas a tal texto, bem como a crença de que, ao ler um determinado autor, pode-se sempre encontrar coisas que não foram ainda ditas, eu tento transmitir a meus estudantes. Esse método de explorar um texto e de, ao ler um texto, fazer a sua própria leitura do pensamento do autor, é algo que aprendi durante meus estudos e que me levou a ter uma predileção pela leitura das fontes. Essas leituras nos salvaram, pois, infelizmente, 30% dos estudos eram em domínios muito pouco interessantes, nos quais tínhamos de repetir um conteúdo idêntico ao ensinado. Posso, mesmo, contar uma anedota que mostra que nossos estudos de Filosofia em Rostow tiveram um interesse particular. Um jovem professor que tinha acabado de chegar de Moscou no momento em que começamos os estudos ocupou uma cátedra da Crítica da Filosofia Burguesa, porque em todas as faculdades de Filosofia da URSS existia essa área. Essa dita crítica dizia respeito, sobretudo, à filosofia ocidental do século XX, porque, até o fim do século XIX, a filosofia não era considerada como filosofia burguesa, razão pela qual se liam Hegel, Spinoza, Kant e outros. Mas esse jovem professor era especialista em Husserl e Heidegger, ele traduzia os trabalhos de Husserl para o russo e nós o auxiliávamos nessas traduções, procurando verificar e discutir a escolha dos termos em russo. Ele também deu, nos cursos, uma introdução aos pensamentos de Husserl e de Heidegger, que eram considerados na URSS, nessa época, como os piores filósofos burgueses. Tivemos, portanto, uma primeira formação no campo da fenomenologia graças a esse jovem professor que, agora, bem mais velho, está em Moscou e é presidente da Associação de Fenomenologia Russa, sendo considerado um dos grandes especialistas dessa área na Rússia.

P-P - Evidentemente, todos esses estudos foram em russo, não é?

JF - Desde o primeiro ano, todos os cursos foram em russo. Na RDA, a partir do 5º e 6º ano da escola básica, o estudo do russo era obrigatório. Era a primeira língua estrangeira. Portanto, fizemos seis ou sete anos de ensino de russo na escola. Para as pessoas que desejavam estudar na URSS, havia cursos intensivos no Instituto em Halle; eu, entretanto, me preparei no colégio em Berlim, tendo cursos intensivos com minha professora de russo.

P-P - Quando e como você teve acesso ao pensamento de Vigotski e de outros autores russos do início do século, como Bakhtin, Jakubinski, etc.?

JF - Isso é um pouco difícil, porque, como Vigotski, Volochinov e Bakhtin não são filósofos, eu tomei conhecimento deles de uma maneira indireta. Como disse, um dos grandes mestres de meus professores em Rostow-sur-le-Don foi Ilyenkov, e ele trabalhou principalmente durante os anos 1970, em Moscou, com psicólogos. Essa colaboração relacionava-se com a "experiência de Zagorsk", dirigida por A. I. Mescerjakov e da qual participava também A. N. Leontiev. Ilyenkov trabalhou muito sobre o conceito de pensamento e sobre o conceito de "ideal". Seu objetivo foi o de desenvolver uma filosofia do espírito, responder a questões bem antigas, como: qual é a natureza objetiva do espírito? As ideias existem nas "cabeças" das pessoas ou podem ser localizadas em outro lugar? Pode-se dizer, usando termos modernos, que ele visava criticar o mito da interioridade; nesse contexto, se interessou pelas pesquisas realizadas nesse período em Psicologia, participando e escrevendo sobre sua experiência na escola para crianças cegas e surdas em Zagorsk. Nessa escola, em Zagorsk, dirigida a partir de 1963 por A. I. Mescerjakov, procurou-se encontrar uma resposta à questão: como aparece a consciência nessas crianças que não possuem meios de contato com o mundo nem através da visão, nem da audição e, por conseguinte, nem através da linguagem?

P-P - Essas eram ideias de Ilyenkov?

JF - Sim e não. O projeto de educação específica para crianças foi desenvolvido no início dos anos 1950 por I. A. Sokoljanski e, em seguida, depois de uma formação de educadores, a experiência começou e durou até 1975, ocasião em que houve um colóquio científico consagrado ao desenvolvimento e aos resultados dessa experiência. Ilyenkov visitou, frequentemente, essa escola e acompanhava de perto o que se fazia por lá.

P-P - Você sabe que há um filme, As borboletas de Zagorsk, que apresentamos aos estudantes da Unicamp? Começa com crianças surdas e cegas que se comunicam pela datilologia.

JF - Eu sei que o filme existe, mas não o vi. Em todo caso, a questão central em Zagorsk era: como nasce a consciência nessas crianças que não enxergam o mundo, que têm um acesso reduzido ao mundo? Como se pode fazer nascer nelas a consciência, o pensamento abstrato? Mescerjakov e seus colaboradores enriqueceram e modificaram essa questão, ao se perguntar: quando as crianças entram em contato com os objetos sociais, como conseguem apreender a lógica social encarnada na lógica material? É esse questionamento que foi interessante para Ilyenkov: perceber que cada objeto de nosso mundo social tem uma lógica dupla: uma lógica material, pois o objeto pode ser tocado, enxergado ou ouvido; e, ao mesmo tempo, uma segunda lógica, que é a função desses objetos para os seres humanos. As duas lógicas são, aliás, inseparáveis. A questão era, portanto: como as crianças deficientes conseguem trabalhar com tais objetos enquanto objetos socioculturais? A hipótese é de que não é a palavra, mas a descoberta das duas lógicas existentes em qualquer objeto do mundo humano que é a fonte da consciência humana ou, ao menos, de uma primeira etapa da constituição da consciência. E, em Zagorsk, trabalhou-se sobre a aquisição dessa segunda lógica dos objetos pelas crianças. A criança aprende, como com a atividade realizada com uma colher, a "ver" essas duas lógicas do objeto. Essa capacidade foi denominada por Mescerjakov como sendo já um pensamento, um "pensamento por imagens na ação", segundo ele. Para Ilyenkov, a consciência é claramente definida através dessa segunda lógica, a lógica sociocultural que está encarnada nos objetos do mundo. Lendo os trabalhos desse autor, eu tomei conhecimento de estudos em Psicologia do desenvolvimento, sobre a ontogênese da consciência, e comecei a me interessar por esses problemas de um ponto de vista filosófico. Compreendi rapidamente que essa perspectiva da filosofia marxista crítica, na qual fomos iniciados em Rostow, tinha fortes relações com a Psicologia.

Depois de meus estudos nessa cidade, preparando o projeto para a tese de doutorado, eu continuei a procurar autores psicólogos que pudessem contribuir para aprofundar mais essas questões. Foi então que me deparei com Vigotski, que eu não tinha lido em Rostow. Mas, de qualquer forma, a partir de Ilyenkov, Leontiev e Luria, é um desdobramento lógico encontrar Vigotski, pois eles têm a ver com uma escola de Psicologia soviética: a escola histórico-cultural. Voltei-me, então, para os anos 1920 e descobri que, além de Vigotski, há uma riqueza extraordinária de reflexões em torno de concepções psicológicas sobre a consciência, o pensamento e a linguagem, três áreas que me interessavam muito.

Um outro personagem importante é o filósofo Konstantin Romanovitsch Megrelidze, contemporâneo de Vigotski, expulso da Georgia porque suas ideias não estavam de acordo com as que Stalin desejava que fossem desenvolvidas. Stalin, sendo georgiano, começou por limpar seu próprio país e a capital Tbilissi de todos os intelectuais que não se alinhavam com a sua política. Megrelidze, enxotado de Tbilissi, foi recebido, em Leningrado, por Nikolaj Marr - um dos linguistas mais conhecidos da URSS - que dirigia, nesse início dos anos 1930, o Instituto da Linguagem e do Pensamento na Academia de Ciências. Aliás, Megrelidze foi um dos pesquisadores soviéticos que realizou parte de seus estudos na Europa Ocidental. Frequentou cursos de Husserl na Alemanha, em Freiburg e em Berlim, interessando-se principalmente pela corrente da Gestalt, lá ensinada por Wertheimer e Köhler. Sua principal obra, Os problemas fundamentais da sociologia do pensamento, reflete perfeitamente essa influência do pensamento alemão, ao mesmo tempo que tenta propor um olhar original sobre o problema da consciência. Com Megrelidze, novamente me percebi no cruzamento de diferentes disciplinas, pois há momentos nos quais os filósofos encontram problemas cuja solução é necessariamente ligada à Psicologia; na verdade, há questões nas quais as duas disciplinas se comunicam e devem se comunicar. Em meus trabalhos posteriores, a Linguística começou a desempenhar o mesmo papel que a Psicologia. Isso é algo que atravessa meus trabalhos, pois, tendo passado por uma formação filosófica pura e dura, fui logo atraída para o encontro entre a Filosofia e a Psicologia e continuei a trabalhar lá onde as disciplinas se encontram, pois são confrontadas com os mesmos problemas nos planos teórico e conceitual. O meu trabalho de conclusão do curso de Filosofia, escrito em Rostow-sur-le-Don, que dizia respeito à relação entre o verdadeiro, o belo e o bom nos escritos de Hegel, é um exemplo bastante adequado do meu interesse em articular os diferentes domínios - a teoria do conhecimento, a arte e a ética.

P-P - Falava-se em Pavlov na época de seus estudos?

JF - Sim, claro. Tive uma formação muito complexa e completa. Durante o primeiro ano, tivemos cursos sobre os fundamentos da Fisiologia, e aí eu li o livro de Pavlov sobre os reflexos condicionados. Tive também, nesse primeiro ano, uma iniciação em outras disciplinas, como Matemática Teórica, Fisiologia, História Geral, Física, etc. Isso paralelamente à História da Filosofia, começando, claro, pelos gregos. Conhecia Pavlov, ainda que de forma superficial e, mais tarde, eu o reli, relacionando-o com minhas pesquisas sobre Vigotski.

P-P - De fato, não é muito frequente haver cursos de Fisiologia na formação de um filósofo.

JF - É verdade.

P-P - A sua tese é sobre qual questão?

JF - Minha tese foi escrita entre 1986 e 1990, na Alemanha do Leste, quando tive uma bolsa de doutorado e estive ligada à Universidade de Leipzig, aquela onde W. Wundt criou o primeiro instituto de Psicologia, um lugar paradigmático do nascimento da Psicologia moderna. No primeiro capítulo da tese, tratei de Ilyenkov, Leontiev e Luria - essa escola soviética dos anos 60-70 -; no segundo, de Megrelidze; a terceira parte analisa a obra de Vigotski; e uma quarta parte, acrescentada quando a tese foi transformada em livro, é sobre o círculo de Bakhtin. O livro, em alemão, saiu em 1993 e teve o título de A forma da linguagem. Paradigmas de Vigotski a Bakhtin.

P-P - Antes que você comente um pouco a sua tese, gostaria de ter mais uma informação: você nos falou sobre o caminho que a levou a Ilyenkov, Luria, Leontiev, Vygotsky e Megrelidze, mas falta ainda saber como foi o seu encontro com o Círculo de Bakhtin. Foi durante os seus estudos?

JF - Não. Talvez se falasse um pouco de Bakhtin, mas o encontro, de fato, se deu mais tarde, na Alemanha, enquanto eu escrevia minha tese. Havia uma boa atividade em torno de traduções de Volochinov em alemão, nesse período. Creio que comecei a ler os textos do Círculo de Bakhtin porque havia os livros de Bakhtin e de Volochinov à disposição e porque havia uma importante discussão em torno do formalismo russo e um grande interesse também pelas artes cênicas dos anos 1920 na Rússia - nos interessávamos por Meyerhold, Stanislavski, Maiakovski em Berlim do Leste, onde a vida teatral era rica. Aliás, dois anos antes de iniciar minha tese, eu traduzi, do russo para o alemão, alguns documentos oficiais sobre a política de teatro na URSS dos anos 1920 para o Instituto de Arte Teatral em Berlim. Esse período dos anos 1920 na URSS representava, sem dúvida, uma fonte de inspiração para a arte, mas também para as ciências humanas na Alemanha do Leste. Ao tomar conhecimento do Círculo de Bakhtin, eu achei interessante articular alguns desses trabalhos com as ideias de Vigotski e, nesse sentido, foi principalmente Volochinov e seu livro Marxismo e filosofia da linguagem que eu discuti na tese. Aliás, na Alemanha, esse livro jamais foi publicado com o nome de Bakhtin, como se fez na França.

P-P - Quando você fez sua tese, entre 1986 e 1990, autores como Vigotski, Luria, Leontiev eram lidos no Ocidente, também.

JF - Eu defendi minha tese no inverno de 1991, na Universidade de Humboldt, em Berlim, pouco mais de um ano após a queda do Muro. Leontiev e Luria eram bem conhecidos na Alemanha do Oeste, porque existia uma corrente chamada "Kritische Psychologie" (Psicologia crítica) em torno de Klaus Holzkamp, corrente essa que, sendo de orientação marxista, divulgou os trabalhos de Leontiev, Luria e também Vigotski, traduzidos por membros do grupo. Essa corrente trabalhava muito com um conceito-chave, o de atividade, emprestado de Leontiev. Ao mesmo tempo, em Ciências da Educação, na Alemanha do Leste, havia pessoas, como Lompscher, que também realizavam pesquisas sobre esses três autores soviéticos e os traduziram. Mesmo antes da queda do Muro, pesquisadores dos dois lados - oeste e leste - mantinham contato e discutiam os trabalhos da troika. Enquanto jovem doutoranda, sendo de outra geração, eu não tinha a possibilidade e o privilégio de participar desses intercâmbios e, além disso, minha situação era um pouco particular, porque eu fazia minha tese quase fora das instituições. Não escrevia a tese com especialistas de Vigotski na Alemanha do Leste, porque não me interessava, particularmente, construir uma corrente inovadora ou progressista em Psicologia e os embates ideológicos não me interessavam muito. Escrevia minha tese porque queria mostrar - era um objetivo claro, desde o início - que havia algo como uma ruptura, um corte, uma divergência entre o pensamento dos anos 1920 e 1930 e o dos anos 1960 e 1970 na URSS. Em suma, queria mostrar que a ideia de uma escola sócio-histórica ou uma escola vigotskiana, da qual faziam parte Leontiev e Luria - uma escola única, nascida nos anos 1920, e que continuou, sem interrupção, até os anos 1960, 1970 - era um mito. É verdade, claro, que essa escola nasceu nos anos 1920, quando Vigotski iniciou, em 1924, sua atividade no Instituto de Psicologia em Moscou, e Leontiev e Luria se tornaram seus estreitos colaboradores até sua morte, em 1934. Entretanto, estudando-se seriamente os textos escritos por Vigotski, não se encontram ideias sobre a teoria da atividade, que só foram desenvolvidas por Leontiev a partir dos anos 1930 e foram vistas como uma fiel continuação do pensamento de Vigotski. Minha tese é a de que existe, realmente, uma diferença teórica entre as concepções de Leontiev e de Vigotski; e eu salientei o fato de a obra de Vigotski ter sido apresentada, a partir dos anos 1950, de uma maneira seletiva. A tese teve um destinatário bem claro: a Psicologia crítica da Alemanha do Oeste. Lendo os escritos dessa corrente, no período anterior à queda do Muro - eu os encontrei nas bibliotecas da Alemanha do Leste -, percebi que as propostas dos pensadores russos dos anos 1920 tinham sido pouco apresentadas. Minha tese teve uma dimensão crítica, porque eu queria mostrar que era possível uma leitura do pensamento soviético, diferente daquela que estava em voga naquele momento. O objetivo era assinalar que não se pode realmente falar de uma simples continuidade entre Vigotski e Leontiev. Notei, por exemplo, que Vigotski se interessava muito pela linguagem, que tem um papel importante também nas teorias de Megrelidze, de Bakhtin, de Volochinov, de Jakubinski, etc., mas não tem um papel primordial na teoria da atividade de Leontiev, fato que já havia me intrigado nos textos de Ilyenkov. A hipótese de uma divergência entre a teoria da atividade de Leontiev e as teorias psicológicas dos anos 1920 foi o ponto de partida de minha tese, razão pela qual eu a iniciei pela análise dos trabalhos de Leontiev, Luria e Ilyenkov. O objetivo foi salientar que havia algo de mais rico no pensamento dos anos 1920, quando autores como Vigotski, Volochinov, Megrelidze e outros discutiam o nascimento da consciência. Aliás, no primeiro texto que escrevi em francês, que vem a ser um resumo de minha tese, trato desse tema e tento apontar criticamente o mito de uma unidade epistemológica da escola histórico-cultural soviética3 3 . FRIEDRICH, J. Le mythe de l'unité épistémologique de l'école historico-culturelle soviétique - L.S. Vygotskij versus A.N. Léont'ev. In: BROSSARD, M.; MORO, C.; SCHNEUWLY, B. (Ed.). Outils et signes. Perspectives actuelles de la théorie de Vygotskij. Bern: P. Lang, 1997. p. 19-33. .

P-P - Em seu curso na PUC-SP e em seu livro Lev Vigotski: mediação, aprendizagem e desenvolvimento4 4 . Publicado pela editora Mercado de Letras em 2012. , você, o tempo todo, procura situar a linguagem verbal no mesmo nível de outras possibilidades de construção de instrumentos psicológicos.

JF - Sim, isso mesmo. Quando eu falei de linguagem, no curso, tratava-se da linguagem em sentido amplo. Em minha tese, eu me concentrei muito na linguagem verbal e em suas especificidades, mas, ao retrabalhar o conceito de instrumento psicológico em Vigotski, eu comecei a ver que esse autor situa a linguagem verbal no mesmo nível que a linguagem matemática, os diagramas, os esquemas, etc. São coisas que eu descobri depois, mais tarde. Na tese, eu já me interessava pelo problema da linguagem interior tal como Vigotski o formula. Ele analisa a linguagem interior como um tipo específico de linguagem, com suas próprias características, e não simplesmente como uma linguagem exterior que se realiza simplesmente sem som. E essa análise da linguagem interior me levou a compreender sua maneira de definir a relação entre pensamento e linguagem, o que faz com que não se possa mais atribuir uma superioridade à linguagem verbal.

P-P - Você terminou a tese no momento da queda do Muro de Berlim.

JF - Sim, foi pouco antes da queda do Muro. Eu terminei minha tese em 1990, no verão desse ano.

P-P - Você estava lá durante a queda do Muro?

JF - Sim, estava lá, em Berlim.

P-P - Portanto, ainda com o Muro, ao lado dele. Vendo as imagens da época, do dia da queda, podemos te encontrar? [risos]

JF - [rindo] Não necessariamente. Eu não fui lá no dia exato da queda para ver se poderíamos, verdadeiramente, passar de um lado ao outro, porque eu me disse que, se o Muro tivesse caído, de fato, a passagem ainda estaria aberta no dia seguinte [rindo]. Aquele momento não foi nada óbvio, estávamos um tanto aturdidos. Estávamos contentes, mas, ao mesmo tempo, havia um grande questionamento, uma inquietude muito presente a respeito de aonde nos levaria a queda do Muro. Nos conduziria a quê? O Muro foi construído no ano de meu nascimento, em 1961, eu nasci em janeiro, e eles construíram o Muro em agosto. Quer dizer...

P-P - Uma lembrança, apenas. Me lembro de imagens nos jornais: antes da construção do Muro com tijolos, havia as cercas de arame farpado.

JF - Sim, havia os arames farpados.

P-P - E havia pessoas que tentavam saltar a cerca e eram mortas, houve histórias impressionantes.

JF - Sim, pessoas que saltavam pelas janelas de apartamentos próximos à fronteira entre o setor leste e o setor oeste de Berlim.

P-P - Na década de 1970, atravessei, de automóvel, parte da Alemanha do Leste, dirigindo-me para Berlim. Fui ver o Muro que dividia a cidade, visita indispensável, porque despertava muito o interesse e a curiosidade dos que viviam fora da "cortina de ferro".

JF - Até 1989, a Alemanha do Leste se manteve como uma ilha não muito bonita e não muito luminosa, como se pode ver nas fotos desses tempos. Na rua em que morei no início dos anos 1980, ainda havia marcas de bala da II Guerra Mundial nas paredes das construções. No dia em que o Muro caiu, eu fiquei contente, é verdade, mas, ao mesmo tempo, com 28 anos, eu me interrogava: "Ok! Mas o que vai acontecer?". Imediatamente após a queda, sabíamos claramente que haveria mudanças, que muita coisa iria se transformar, se o Muro fosse realmente aberto, mas não sabíamos o que ia se passar. Há situações na vida que são muito especiais. Nelas, um sentimento, um pressentimento te leva a refletir e você se diz: "Isso é genial, mas bom... veremos". Vivíamos um duplo movimento, o contentamento e a apreensão do "veremos o que vai se passar". Um mundo seria destruído, as mudanças levariam ao desaparecimento de nossas referências. Isso não sabíamos de imediato, mas podíamos pressentir. Quando eu falo das referências, falo daquelas de característica existencial e que fazem parte da essência de toda sociedade, e uma sociedade é sempre muito mais rica do que a imagem que ela oferece de si. As referências são a família, a maneira como a vida familiar existia na Alemanha do Leste, as escolas, o trabalho, a maneira como a vida funcionava nesses domínios, a maneira como nós nos virávamos, como nossa vida estava organizada. E as referências são também as influências culturais, nossa música, nosso teatro; tivemos, na Alemanha do Leste, uma grande tradição que vinha de Bertold Brecht, Anna Seghers, Christa Wolf e outros escritores, uma tradição na qual fomos criados, na qual pensávamos. Eu ia regularmente ao teatro, ao Berliner Ensemble, ao Deutsche Theater, eram lugares onde pensávamos. Por isso, todas essas referências culturais e sociais que construímos, durante o tempo vivido nessa parte da Alemanha, desapareceram com a queda do Muro; não imediatamente, mas pouco a pouco, à medida que a vida cotidiana e a social mudaram, e mudaram radicalmente. Tínhamos toda uma vida para nós. As cidades não eram prisões. Não! Era uma sociedade na qual você vivia e na qual você pensava, e nós pensávamos de maneira bem aberta. Eu aprendi o pensamento crítico no Leste, eu não o aprendi depois da queda do Muro, mas muito antes, com nossos autores, cantores, em nossos teatros... eu não o aprendi no Oeste. Às vezes eu me espanto, mesmo, com a ausência desse pensamento crítico em minha nova vida, nas instituições do Oeste.

P-P - Fala-se bastante de que a Alemanha do Leste era uma sociedade na qual a vigilância do Estado foi bastante intensa.

JF - Sim, é verdade. Mas, ao mesmo tempo, você vive com isso.

P-P - Sim, você vive com isso. Mas você fala muito da possibilidade de pensar criticamente e livremente. Como isso acontecia?

JF - Isso não era muito fácil, normalmente. Mas se você lê, faz seus estudos em Filosofia, lê os clássicos, então você vai sempre ter um pensamento crítico. O que é o pensamento crítico? É o pensamento que se interessa por um ponto de vista, que tenta abordá-lo em sua essência e que o compara com outros pontos de vista. O pensamento crítico, para mim, é isso; a crítica não é dizer "isso é ruim, isso é bom, isso é preto, isso é branco; se é preto, é ruim, se é branco, é bom". Não, o pensamento crítico é um pensamento que é capaz de fazer distinções, situando-se na maneira como o problema é pensado e proposto por um autor e por outro; é o pensamento que aborda os argumentos e sua força explicativa e que interroga, a partir daí, os próprios fatos. Um pensamento crítico, para mim, é, portanto, pensar no interior dos pensamentos dos outros de uma maneira distintiva. Você vê e você pesquisa argumentos para as diferentes posições, você procura separar um argumento de outras posições, e isso te dá um pensamento crítico. Esse pensamento crítico eu o aprendi plenamente na Alemanha do Leste. Ele vem de minha formação filosófica, da literatura, do teatro, da música, que apresentavam um pensamento complexo sobre a vida cotidiana e a vida em sociedade, um pensamento que mostrava múltiplos níveis nos quais você podia navegar. O pensamento crítico é sempre isso, é um pensamento rico, no qual você navega e se orienta. Você não tem necessidade de um professor ou de uma escola para inculcá-lo, afirmando: "você deve criticar isso porque é ruim". O pensamento crítico não é um pensamento que diz "é a ditadura, é preciso se opor". Isso é um pensamento político, um pensamento sempre importante e necessário. Mas você perguntou sobre o pensamento crítico e não sobre o pensamento político, e não se trata da mesma coisa para mim.

P-P - Eu sempre pensei que havia, na Alemanha do Leste, nas instituições de formação, como escolas e universidades, esforços para formar o pensamento das pessoas em uma direção determinada, em posições dogmáticas. Agora você fala de toda essa possibilidade de desenvolver o pensamento crítico...

JF - É sempre esse o problema. Claro que tentavam doutrinar as pessoas e que claro que isso desagradava. Claro, quando estudávamos Filosofia, eles ensinavam a filosofia marxista, e o objetivo era dizer que vivíamos na melhor das sociedades, que estávamos no alto da pirâmide, pois, depois do capitalismo, viria o socialismo; e o ideal era o socialismo, pois o socialismo era o reino da igualdade, da riqueza, da equidade, etc. Quando te dizem isso, mas você vive em Berlim e passa de trem ao lado de Bitterfeld, uma grande cidade com uma indústria química ao sul de Berlim, e ela cheira mal, polui toda a paisagem ao redor; e quando você sabe que a economia funciona no limite e vê seu tio que chega em uma Mercedes, você não vai mais crer no que dizem. Não éramos crentes, e para ser doutrinado é preciso ser crente, é preciso não ver a realidade. Mas, se você vê a realidade, você não vai mais crer que o que te dizem reflete a realidade, porque você vê a realidade. Eu frequentemente pensava no conto de Hans Christian Andersen A roupa nova do rei. Queriam que acreditássemos que o rei tivesse roupa, estivesse vestido, como no conto; e víamos que ele estava nu, que não estava vestido. Você vê isso, apesar de tudo, e desenvolve suas ideias a partir daí. Aliás, eu frequentemente pensei nessa história de Andersen, neste rei em relação ao qual todo mundo age como se estivesse vestido, quando comecei a trabalhar na universidade. Aqui também eu me deparei, de tempos em tempos, com situações nas quais, nos jogos de poder, era utilizado o mesmo método de tentar nos fazer ver alguma coisa que não existia.

Mas vamos voltar ao caso da Alemanha do Leste e a nossas crenças e descrenças. Claro, podia-se pensar que aquele modelo era, apesar de tudo, válido; podia-se imaginar uma sociedade na qual haveria a possibilidade de todos serem iguais, e essa sociedade apresentaria uma alternativa em relação às sociedades ocidentais. Isso é uma outra coisa, uma espécie de terceira via: o socialismo sem doutrinação, o socialismo sem as desvantagens do capitalismo, como a competição, etc. Tenho amigos que, após a queda do Muro, continuaram a pensar e a se dedicar a essa terceira via - uma sociedade socialista que não fosse a que conhecemos, com todos os abusos do stalinismo, da Stasi, etc.; portanto, uma sociedade na qual se pode viver bem e que procura realizar um número de ideais interessantes e sustentáveis.

P-P - Podemos falar de sua saída da Alemanha? Era o início dos anos 1990.

JF - É preciso ver por que eu fui para Paris, por que deixei a Alemanha. Defendi a tese em 1991, diante de uma banca composta por pesquisadores da Alemanha do Leste e do Oeste. Foi muito agradável, foi um momento em que havia uma articulação entre o Leste e o Oeste. Os problemas começaram depois da defesa. Eu trabalhava na Escola Superior de Ciências Econômicas, onde havia ingressado em 1986 para ensinar a filosofia marxista-leninista. Na Alemanha do Leste havia poucos institutos e departamentos de Filosofia, mas havia uma formação obrigatória em todas as universidades e escolas superiores, e em todos os domínios, que se chamava Introdução ao Marxismo-Leninismo. No primeiro ano, havia Filosofia Marxista-Leninista; no segundo, Economia Política; e, no terceiro, Comunismo Científico. Eu trabalhei um ano nessa escola, me afastei por três anos para fazer meu doutorado em Leipzig e depois retornei, já com o título de doutora.

Com a reunificação da Alemanha, em outubro de 1991, um ano após a queda do Muro, o governo de Berlim decidiu que todos os professores que trabalhavam nas seções de marxismo-leninismo seriam licenciados de seus postos a partir de janeiro de 1992. De um dia para o outro, eu perdi meu trabalho.

P-P - Como você disse, vocês não sabiam que mudanças aconteceriam e como elas afetariam suas vidas...

JF - Não prevíamos isso, mas sentíamos que havia coisas que não ficariam tal como eram. Eles fizeram uma reorganização nas universidades da Alemanha do Leste, e com razão, na medida em que havia muitos pesquisadores e professores que não tinham o nível requerido em seus domínios. Isso era claro. Mas, normalmente, esse tipo de reorganização é feita através de avaliações... Em nosso caso, no caso da Filosofia e de pessoas como eu, que trabalhavam nos departamentos de Filosofia marxista-leninista, nós fomos licenciados diretamente, sem avaliação. Por que não se basear em avaliações para fazer as demissões? Ficamos surpresos de ter acontecido assim. Mas, bom... era a lei.

Foi por isso que decidi partir. Conversando com meu orientador, ele me sugeriu que eu fosse para a França, pleiteando uma das bolsas de estudo que esse país oferecia para jovens pesquisadores dos países do Leste. Em Paris, integrei-me ao grupo de pesquisa de Pierre Bourdieu. Depois, enquanto pesquisava nos Arquivos Jean Piaget, em Genebra, conheci Jean-Paul Bronckart, que me convidou para ocupar um posto na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação daquela universidade, integrando seu grupo de pesquisa.

P-P - Uma última questão para terminarmos. Atualmente, com quais questões você trabalha, ao abordar a questão educacional?

JF - Eu poderia dar várias respostas a essa pergunta. Vou me basear na ideia de funcionamento do instrumento psicológico, ideia sobre a qual trabalhei bastante, a partir da obra de Vigotski. Em meu pequeno livro sobre Vigotski, eu procuro mostrar que existe uma espécie de saber atual, como às vezes digo, um saber-fazer que acompanha obrigatoriamente, necessariamente, esse funcionamento. Se eu utilizo um instrumento psicológico, eu devo produzir, ao mesmo tempo, um saber atual sobre o que estou fazendo. Portanto, eu devo pensar matematicamente quando uso um diagrama. Em um diagrama, não se encontra expresso um saber matemático, mas é através e com o auxílio de um diagrama que esse saber é pensado, ganha nascimento e existe, no final das contas. É um saber que se constitui e se realiza ao mesmo tempo em que eu utilizo o diagrama. Isso faz do diagrama um instrumento psicológico, senão ele seria uma simples formação semiótica. Quando alguma coisa funciona como um instrumento psicológico, podemos atestar uma dupla determinação. De um lado, o pensamento é determinado pelo diagrama ou pela linguagem utilizada; de outro lado, é o pensamento que determina o que é pensado através do diagrama, através da linguagem; isso me leva a pensar, por fim, não em determinação, mas em direcionamento. Tal direcionamento é atestável em algo que nomeio de saber atual, quer dizer, um poder saber. Eu sei pensar essa coisa aí com um problema matemático no momento em que utilizo o diagrama. O que quer dizer que esse instrumento depende de uma realização; portanto, de um saber atual ou ainda de um saber fazer. Nisso, há um tipo de saber que me parece interessante de discernir. Não é um saber declarativo, o saber que é expresso na proposição "eu sei que Paris é a capital da França". Não, é um outro tipo de saber, que é necessário e que se mostra na utilização de um instrumento psicológico. Por exemplo, conhecemos algo, um conhecimento sobre a língua, e esse conhecimento é expresso em um manual, um dicionário, etc. É um saber, um conhecimento teórico. Em um curso de língua, nós o aprendemos, aprendemos a sintaxe, a gramática, etc. Esse conhecimento da língua é separado da fala, é separado dos enunciados reais. Diferentemente, o saber fazer é o saber falar. A questão que se coloca é: pode-se explicar esse saber, dizendo que essa criança e esse adulto adquiriram o conhecimento, o saber teórico, o "saber que" da língua; e, depois, que esse saber permitiria a eles saber falar a língua? Isso explica o saber falar? Ou o fato de poder/saber falar é ainda uma outra coisa, e mais do que o saber da língua, do que o conhecimento da língua? Se esse é o caso, trata-se do quê? Se o poder falar, o saber falar não pode ser inferido do saber sobre a língua, ele é outra coisa; então, como o descrever e como o explicar? Gilbert Ryle, um filósofo inglês que discutiu bastante essa distinção entre um saber que (knowing that) e um saber fazer (knowing how), traz uma afirmação de que eu gosto muito. Ele diz que o melhor especialista estrangeiro em francês, que conhece perfeitamente a língua francesa, fala um francês gramaticalmente menos correto que uma criança cuja língua materna é o francês. Como isso se produz? Há o livro célebre de Donald Schön, que, em francês, foi intitulado Le praticien réflexif. A la recherche du savoir caché dans l'agir professionnel. O saber oculto de que Schön fala é justamente o saber fazer, que não pode ser reduzido ao "saber que". O que é esse saber? Como podemos descrevê-lo? Discutindo o funcionamento dos instrumentos psicológicos, tenho a impressão de que podemos encontrar respostas a essas questões. Nesse momento, estou trabalhando com essas questões e preparo um livro sobre esse assunto.

Há uma ligação entre isso e a educação, pois a questão que se coloca é a seguinte: podemos formar pessoas para o saber fazer ou o saber fazer é simplesmente a repetição de atividades profissionais cotidianas, repetições que fazem com que, em um determinado momento, um profissional se torne um bom profissional? Em outro momento, isso dizia respeito às escolas profissionais dedicadas a formar profissionais da saúde, do trabalho social, do ensino primário. Agora essa tarefa é atribuída às escolas superiores e às universidades. Ali onde, em outro momento, ensinava-se o saber teórico, a universidade, deve-se agora ensinar o saber fazer e, por isso, nos confrontamos com esses dispositivos todos, como os estágios, a formação que alterna momentos no mundo do trabalho e momentos na universidade, etc. Mas por que introduzir todas essas profissões na universidade? É porque se acredita que esses dois saberes, o teórico e o prático, tenham ligações entre si? Mas qual ligação existe, verdadeiramente, entre eles? Essa questão não está resolvida, o que faz com que a ideia de uma articulação indispensável entre teoria e prática aguarde ainda uma justificação e sobreviva, em grande parte, como simples crença política. Poderíamos, por exemplo, dizer que, se alguém souber contar boas piadas, mas não souber dizer como ele faz para contar suas boas piadas, esse alguém sabe, apesar de tudo. Por que, então, fazê-lo compreender as leis estéticas que estão na base de sua capacidade de contar boas piadas? Além disso, você pode ensinar a alguém essas leis, essa pessoa pode tê-las aprendido e compreendido, mas isso não significa, automaticamente, que as piadas que ela produzirá farão rir. Então, se há uma diferença entre os dois tipos de saber, é preciso apreendê-la. Isso é objeto de debate atual no domínio da educação, uma discussão que me interessa muito e da qual eu participo.

P-P - Muito obrigado.

  • 1
    . Entrevista realizada e editada por Luci Banks-Leite e Maurício Ernica.
    Transcrição realizada por Flavia Fazion e Emily Caroline da Silva.
  • 2
    . Cf. Nota de leitura em
    Pro-Posições, v.23, n. 1, Campinas, jan./abr. 2012.
  • 3
    . FRIEDRICH, J. Le mythe de l'unité épistémologique de l'école historico-culturelle soviétique - L.S. Vygotskij versus A.N. Léont'ev. In: BROSSARD, M.; MORO, C.; SCHNEUWLY, B. (Ed.).
    Outils et signes. Perspectives actuelles de la théorie de Vygotskij. Bern: P. Lang, 1997. p. 19-33.
  • 4
    . Publicado pela editora Mercado de Letras em 2012.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013
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