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Apresentação do dossiê "Catolicismo e Formação Cultural"

DOSSIÊ: CATOLICISMO E FORMAÇO CULTURAL

Apresentação do dossiê "Catolicismo e Formação Cultural"

Ernesto Seidl

Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia e Ciência Política, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. eseidl@terra.com.br

O dossiê "Catolicismo e Formação Cultural" reúne um primeiro conjunto de resultados de investigações produzidas no âmbito do projeto temático "Congregações Católicas, Educação e Estado Nacional no Brasil", apoiado pela Fapesp. No centro deste projeto está a formação de uma rede de pesquisadores de diversas regiões do País em torno de uma investigação que toma por eixo os efeitos das ações de congregações católicas sobre a construção do espaço cultural. Embora centradas no Brasil, as discussões não se limitam à dimensão nacional, abordando ainda universos de análise e contextos de outros países, e contam também com especialistas estrangeiros ou instalados fora do Brasil, em especial, na França.

As colaborações aqui apresentadas procuram, acima de tudo, firmar um debate que tem por objeto o processo de migração e instalação de congregações religiosas católicas no Brasil e seus múltiplos impactos sobre a esfera da educação e da cultura ao longo de mais de um século. Dentre vários eixos de interesse, destacamos de modo sintético: a) os efeitos da chegada de congregações no momento de construção do sistema nacional de educação e de intensas lutas pela laicização do Estado e da sociedade; b) os desdobramentos das relações entre Estado e Igreja sobre o espaço da educação, como os arranjos e acordos de colaboração, as estratégias de diversificação do sistema escolar católico e a formação de grupos dirigentes; c) as alianças, as disputas e os acordos que oportunizaram o deslocamento das congregações europeias, bem como suas relações com o projeto da Igreja católica para o Brasil, com o processo de romanização da Igreja e com os projetos políticos das próprias congregações em fase de internacionalização; d) o papel das congregações na dinamização do espaço cultural por meio da criação de instituições de ensino (escolas, conventos, mosteiros, seminários), editoras, revistas, museus, obras de arte e estruturas físicas incorporadas ao acervo da cultura contemporânea.

Se a Igreja é um mundo, como escreveu Émile Poulat, ela também está no mundo. Mais do que isso, está em diversos mundos, altamente diversificados do ponto de vista histórico, cultural, político, geográfico e, obviamente, religioso. Logo, qualquer abordagem endereçada seja à instituição católica como um todo, seja a alguma dimensão específica ou, ainda, seja ao catolicismo, não pode deixar de tomar "a Igreja" como produto de um discurso que procura unificar, sob uma mesma palavra, práticas, atores, representações, saberes, papéis e contextos que estão muito longe da homogeneidade tanto interna quanto externamente. As congregações ou ordens religiosas estão, sem dúvida, entre os melhores exemplos da diversidade católica.

Qualquer que seja sua forma canônica, as ordens religiosas representam um agrupamento minoritário de tipo associativo e seus membros não escapam à necessidade de normativização. Por outro lado, a meio termo entre igreja e seita, são dotadas de uma cultura institucional específica e suas propriedades lhes permitem exercerem papel crítico na Igreja, seja como instrumento de protesto ou de reforma de práticas institucionais. A autonomia relativa de que dispõem no seio da Igreja pode representar definições da vida cristã não totalmente ajustadas às representações hierárquicas. Portanto, compreender as especificidades das congregações, em especial as concepções que dão sentido a suas formas de atuação concreta na sociedade e as transformações experimentadas ao longo do tempo, exige colocar em relação pelo menos três dimensões ou escalas. Em primeiro lugar, a Igreja, como instituição internacional, com uma primeira linha hierárquica sediada no Vaticano e detentora de autoridade e de mecanismos de enquadramento únicos, como o monopólio da definição da ortodoxia; em segundo lugar, a escala das ordens, congregações e institutos, parte da instituição maior, porém, em situação peculiar frente à hierarquia romana e aos quadros religiosos regulares ou diocesanos; e em terceiro lugar, uma escala que poderia ser ainda subdividida, que é a dos contextos – geográficos e culturais – continentais (ou subcontinentais, como o caso da "Igreja da América Latina"), nacionais e regionais nos quais se desenrolam as tramas palpáveis do exercício das mais variadas tarefas religiosas, na interação direta entre culturas e indivíduos com experiências, formação e visões de mundo, não raro, muito diferentes.

Desnecessário dizer que a articulação desses níveis de análise implica levantar problemas teóricos e empíricos espinhosos, dificilmente resolvíveis em trabalhos monográficos. A tentativa de enfrentamento dessas questões com pesquisas coletivas, por outro lado, dá maior fôlego à análise e abre em muito o ângulo de perspectiva da Igreja e do catolicismo como fenômenos de altíssima pluralidade, com realidades empíricas muito variáveis.

No presente dossiê, diferentes objetos de análise são abordados a partir de alguns questionamentos comuns. O mais geral deles diz respeito aos efeitos da expansão do catolicismo pelo mundo, fenômeno impulsionado em larga medida pela crise religiosa europeia do século XIX e pelas transformações culturais vindas em sua esteira. Entre seus resultados, a criação de congregações religiosas masculinas e femininas que se instalariam pelos cinco continentes ao longo de décadas – somadas a outras fundadas em solos extraeuropeus – encarna um dos aspectos mais agudos. Logo, é ao mesmo tempo da construção do espaço do catolicismo nacional e internacional e, sublinhe-se bem, do próprio Estado nacional, que se está tratando quando se estudam as condições de formação, difusão, adaptação e ação das congregações instaladas no Brasil e demais países1 1 . Entre 1848 e 1960 vieram para o Brasil 368 congregações estrangeiras. . Uma rápida visão apenas sobre o papel das congregações na constituição do sistema de educação brasileiro bastaria para dar a medida da centralidade do fenômeno.

A atenção dada pelos autores à dimensão histórica e aos contextos enfocados nos artigos aqui apresentados revela preocupação com os longos processos de reconfiguração da Igreja católica. É, sem dúvida, na tensão constante entre as tentativas de enquadramentos institucionais e as redefinições da visão legítima de atuação como profissional da Igreja, de um lado; e a infinidade de atores (do Papa aos diáconos, passando por irmãos e irmãs religiosos, padres e cardeais) e instituições (mosteiros, ordens, institutos, editoras, imprensa, conferências episcopais) em contextos reais de interação com outras esferas sociais (Estado, burocracia, política, ciência), de outro lado, que são devidamente situados os objetos analisados.

Em boa medida, o artigo de Rodolfo de Roux, que abre o dossiê, sintetiza essa perspectiva ao demonstrar com riqueza de detalhes os efeitos da estratégia de longo prazo de romanização católica na América Latina, processo-chave para a compreensão, entre outros aspectos, das transformações nas relações entre poder religioso e Estado no Brasil e da redefinição da autonomia relativa da Igreja após o final do Império. Entre os esforços para a retomada de poder e para a reconquista das mentalidades em terras distantes, um conjunto de medidas de normativização da vida religiosa, como uma cultura eclesiástica mais homogênea e afinada com a cúria romana, maior controle sobre a vida dos padres e intervenção em seminários, esteve na base das fortes mudanças vividas pela instituição nas primeiras décadas do século XX. A forte expansão institucional, marcada pela instalação de enorme contingente de religiosos missionários, as alianças com governos estaduais e com o poder central que garantiriam acesso crucial ao sistema educacional e à esfera da cultura compõem elementos decisivos no reposicionamento da Igreja católica no interior do espaço do poder.

As condições de negociação da Igreja com o Estado, no entanto, variam muito em função dos contextos nacionais, em especial do estado das relações entre política, religião e sistema escolar. Isso é bem evidenciado pelo trabalho de Rebecca Rogers quando a autora aponta, apoiada em fontes históricas muito ricas, o peso do político na capacidade de irmãs missionárias se instalarem de forma durável em um país. Com base em conjunto vasto de casos empíricos em países como Argélia, Congo e Taiti, o artigo explora não apenas as dificuldades (ou facilidades) de implantação de congregações femininas, mas avança em dois outros eixos importantes de discussão, que são as transformações nos modos de atuação das religiosas a partir dos contatos com populações estrangeiras e as tensões internas geradas pela divisão de gênero no seio da Igreja.

Partindo de uma abordagem genética de uma congregação francesa com um ramo feminino e outro masculino – Notre Dame de Sion –, Ângela Xavier de Brito expõe as entranhas do processo de formação de uma instituição religiosa missionária e fornece, justamente, uma visão mais precisa das pouco estudadas lutas de gênero entre profissionais do catolicismo. Embora especializado no ensino, o ramo feminino das irmãs de Sion tem o acesso dificultado às formas mais valorizadas de saber, monopolizadas pelos padres sionenses. Porém, a conjuntura conciliar e cultural de meados do século XX lhes favorece na adoção de estratégias de tentativa de subversão dessa condição, com impactos nas relações internas da congregação e, em especial, nas próprias definições do papel ou da missão das irmãs, visíveis na revisão de seu carisma e no consequente redirecionamento de atividades para a atenção ao "universo judaico".

Se a Igreja está sempre em movimento, talvez seja nos efeitos da migração para o exterior sobre o modus vivendi e operandi de uma congregação que melhor se possa capturar tal dinâmica institucional. O caso da vinda dos padres Saletinos da França para o Brasil é tomado por Paula Leonardi e Letícia Mazochi por um duplo ângulo: o da construção e o da afirmação da congregação em solo francês na segunda metade do século XIX e, em seguida, pelo trabalho de importação e adaptação da devoção saletina ao consumo de fiéis brasileiros a partir do início do século XX. Os esforços para ocupação de um lugar dentro do espaço do catolicismo no Brasil no período – em forte concorrência gerada pela vinda de muitos institutos religiosos – são apreendidos pelo exame do acionamento de instrumentos simbólicos caros ao universo da Igreja: revistas e santuários. O relativo êxito do empreendimento saletino pode ser medido tanto na expansão de sua rede escolar para leigos como na própria atração de candidatos ao sacerdócio nos seminários abertos.

Esta trilha de análise dos investimentos institucionais e dos modos de afirmação social e cultural realizados por congregações no Brasil é ampliada por Agueda Bittencourt em estudo centrado nas editoras católicas. Numerosas e muito variadas em propósitos, produtos e públicos, as editoras, em boa medida, refletem as lógicas de atuação das congregações que lhe mantêm, distribuindo-se em espaços editorial e religioso em expansão e altamente disputados tanto pelas muitas correntes e grupos católicos – carismáticos, Opus Dei, Focolares – quanto por outras denominações evangélicas, pentecostais e neopentecostais. Mais do que produtos rentáveis inseridos numa cadeia econômica diversificada e especializada e a serviço, de algum modo, do catolicismo, a pesquisa indica nuanças das relações entre certos grupos da Igreja, suas opções políticas e teológicas, e a esfera do Estado e da política. Achado esse que reforça a perspectiva de que a Igreja católica no Brasil, em diferentes conjunturas, tem mantido condições de intervir com eficácia no espaço do poder, garantindo parte de uma autoridade capaz de definir e impor visões de mundo e pautas de discussão com forte legitimidade.

  • POULAT, Emile. L'Eglise, c'est un monde: l'ecclésiosphère. Paris: Éditions du Cerf, 1986.
  • 1
    . Entre 1848 e 1960 vieram para o Brasil 368 congregações estrangeiras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
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