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Bebês e adultos no contexto da creche

LEITURAS E RESENHAS

Bebês e adultos no contexto da creche

Lucélia de Almeida SilvaI; Fernanda MüllerII

IMestranda da Faculdade de Educação, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. lucmagalhaes@gmail.com

IIProfessora da Faculdade de Educação, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. fernandamuller@unb.br

GUIMARÃES, Daniela. Relações entre bebês e adultos na creche: o cuidado como ética. São Paulo: Cortez, 2011.

Nos últimos seis anos, precisamente de 2008 a 2013, a Pro-Prosições publicou 33 resenhas, e dentre elas 8 tratam do tema infância1 1 . Vide as resenhas de Finco (2008, v. 19, n. 1), Drumond (2011, v. 22, n. 3), Silva (2011, v. 22, n. 1), Lima (2012, v. 23, n. 3), Santos (2012, v. 23, n. 2), Silva (2012, v. 23, n. 2), Altmann (2013, v. 24, n. 1) e Santos (2013, v. 24, n. 3). . Especificamente sobre bebês, destacamos a resenha da obra Os bebês entre eles: descobrir, brincar, inventar juntos (Stambak et al., 2011)2 2 . Vide Lima (2012, v. 23, n. 3). . Esse breve levantamento nos permite afirmar que, embora 25% das resenhas publicadas no período tenham tratado de obras sobre a infância e a educação das crianças pequenas, somente uma delas deu visibilidade aos bebês.

Certamente, pensar nos mundos sociais dos bebês é um desafio de extrema relevância, o que a própria Pro-Prosições reconhece ao publicar um dossiê específico sobre a temática no último número de 2013. Assim, é também acatando esse compromisso que apresentamos a resenha do livro de Daniela Oliveira Guimarães sobre bebês no contexto da creche. Destacamos dessa obra, para a construção de significados entre criança-criança e adulto-criança, o esforço de agregar teoricamente os campos da pedagogia, da filosofia, da sociologia e da antropologia da infância ao estudo dos bebês no contexto da creche.

As pesquisas acadêmicas têm desenvolvido a ideia de que crianças se apropriam, reinventam e reproduzem a cultura em que estão inseridas. Nesse sentido, as crianças são sujeitos ativos, que "negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si" (Corsaro, 2011, p. 31). Contudo, estudos do tipo estado da arte sobre a produção bibliográfica na temática infância, creche e criança pequena têm nos mostrado que, em comparação com outros grupos de idade, os bebês ainda são pouco estudados, ao menos nos campos pedagógico e sociológico (Furtado, 2013; Silva, 2013).

A obra A relação entre bebês e adultos na creche: o cuidado como ética vem contribuir para a constituição de um campo específico de estudo sobre os bebês em contextos coletivos de educação e cuidado e insere-se no novo paradigma da infância3 3 . Para maior conhecimento sobre os novos paradigmas da infância, vide Prout e James (1999, p. 8). , tão defendido nas pesquisas contemporâneas. Retrata a pesquisa realizada em uma turma de berçário de uma creche pública da cidade do Rio de Janeiro, que contava com 24 bebês de 0 a 12 meses de idade. A pesquisa, de inspiração etnográfica, também se mostrou uma intervenção, dada a inserção da pesquisadora na realidade estudada e sua interferência direta no campo. Guimarães (2011, p. 19) buscou compreender as relações dos adultos com as crianças e das crianças entre si na creche, investigando "tanto a inscrição da criança na cultura quanto as possibilidades criadoras que nascem". Para cumprir seus objetivos, lançou mão de um referencial teórico bastante sólido, que inclui, entre outros autores, Marcel Mauss, Michel Foucault e Mikhail Bakhtin.

A obra está dividida em três capítulos e conclusão. No primeiro capítulo, a autora apresenta um recorte histórico sobre as funções que a creche assumiu no Brasil, sobretudo associadas a ações higienistas. Os dois conceitos mais importantes para essa etapa da educação são o cuidar e o educar, que, historicamente, foram entendidos como separados: a ação de educar associada à instrução e à transmissão de conhecimentos, enquanto o cuidar esteve relacionado às demandas de alimentação, sono, higiene, proteção, disciplina e formação de hábitos. A autora busca superar a distância entre a díade educar-cuidar, mostrando o quanto são interdependentes. Para Guimarães (2011, p. 41), a noção do cuidar, baseada em Foucault, tem relação com uma postura ética: "não só da ação dos adultos sobre as crianças, como também a promoção de uma cultura de si, atenção ao outro, prática de liberdade".

No segundo capítulo, apresenta a metodologia, o cenário e o contexto onde a pesquisa foi desenvolvida. Vale ressaltar que a escolha da instituição se deu por meio de um contato prévio da pesquisadora com a diretora e pela militância de ambas pela Educação Infantil. Guimarães apresenta a sua relação com o contexto e reflete sobre as técnicas e sua conduta na pesquisa. Tomou cuidado ético na inserção e na permanência em campo, não só pelo respeito às crianças, como também pela relação construída com as profissionais da instituição. Considerou as recreacionistas e a diretora da turma como sujeitos da ação, de modo a valorizar a singularidade de cada uma e seu potencial em revisar, permanentemente, as práticas.

A fotografia se mostrou um importante recurso metodológico, e viabilizou o registro dos momentos de interação das crianças com seus pares e das crianças com os adultos. Guimarães (2011, p. 106) adota a perspectiva da antropologia visual, ao reiterar que "a foto começa a falar por si". Esse instrumento, ao mesmo tempo em que permite que a pesquisadora capture uma ação que foge da sua percepção imediata, também produz alterações no comportamento dos sujeitos da pesquisa: "Tenho a impressão de que elas estão fazendo pose para a foto; estão mudando de atitudes" (Guimarães, 2011, p. 107). A fotografia também possibilitou que as profissionais refletissem sobre o seu comportamento, apresentando possibilidades de criação de novas formas de olhar sobre si, de práticas de si, dentro das relações de poder, o que é analisado através das lentes de Foucault.

Em se tratando ainda do contexto, a pesquisa foi realizada na Creche Otávio Henrique de Oliveira, que se localiza na favela Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro. Guimarães recorreu aos estudos de Burgos (2002) para caracterizar a comunidade – em termos sociodemográficos – que tem como perfil a ausência de grupos de traficantes e a presença de uma associação de moradores politicamente organizada. Alguns pontos elencados sobre o contexto da creche e da comunidade são interessantes para reflexões acerca da história da creche no Brasil e de análises de como "a dimensão política [...] atravessa o pedagógico, marcando possibilidades e limites nas práticas com os bebês" (Guimarães, 2011, p. 13). Um deles é a histórica falta de atendimento público que supra a demanda por Educação Infantil. A autora aponta que, segundo os estudos de Burgos (2002), havia apenas duas instituições de Educação Infantil na favela Rio das Pedras, que atendiam apenas 4% da demanda, ou seja, mais de 90% das crianças não tinham acesso ao serviço e, consequentemente, frequentavam estabelecimentos irregulares.

Outra questão identificada no contexto da pesquisa que reflete a realidade brasileira é a falta de formação das recreacionistas. As educadoras geralmente são pessoas da comunidade que têm "jeito" para lidar com crianças. O livro evidencia uma rede de relações no "entrelaçamento de funções que marca a vida dessas mulheres" (Guimarães, 2011, p. 78). As profissionais "participam da vida social das crianças e das famílias além dos muros da instituição" (Guimarães, 2011, p. 78). A instituição adquire um significado relevante para a vida dessas profissionais e para a comunidade, ao estimular que as recreacionistas busquem aperfeiçoar sua formação.

A creche cumpre um papel importante na comunidade, pois garante que os moradores trabalhem e as crianças frequentem um contexto coletivo de educação e cuidado. Dessa forma, a autora expõe como essa rede de relações que envolve a creche é complexa, valendo-se de Graue e Walsh (2003) para relacionar o que acontece nos contextos locais (neste caso, o berçário da creche) com os contextos alargados (a comunidade), a realidade mais ampla das crianças.

O terceiro capítulo discute "os lugares sociais dos bebês na creche" a partir da rotina, do cuidado, dos espaços, dos objetos e da ação das crianças. Na rotina do banho podem ser observadas ações díspares, mas ao mesmo tempo complementares: é esperada das crianças uma sequência de gestos e ritmos repetidos da mesma forma para todas, mas é justamente graças à repetição que pode ser observado "o inesperado, a inovação" (Guimarães, 2011, p. 129). A troca de olhares entre adultos e bebês rompe o automatismo das ações. Ainda neste capítulo, a autora reflete sobre o cuidado como forma de atenção e proteção. Na creche, o cuidar e o educar ainda são entendidos de forma desconexa: o cuidado está ligado à proteção e às funções de maternagem, e isso desvia as educadoras "do que é considerado adequado: educar, ensinar" (Guimarães, 2011, p.145). Para ilustrar, a autora apresenta o episódio em que um dos bebês está sozinho e tenta alcançar a ponta de uma estrela de um móbile, demonstrando que estar sozinho não quer dizer simplesmente ausência de cuidado, mas também pode significar atenção a si, aprendizagem sobre si próprio, o prazer de estar consigo mesmo. Essa ideia se conecta à defesa de Tonucci (2005, p. 70-71), segundo a qual as crianças precisam ficar sozinhas para resolver problemas sem a interferência de um adulto, aspecto fundamental para o seu crescimento e seu desenvolvimento.

Guimarães demonstra como as crianças transgridem a organização dos espaços, enquanto os adultos esperam que elas façam uso deles conforme o seu planejamento. Bebês ocupam o espaço com seu primeiro instrumento, o corpo, e descobrem outras possibilidades não esperadas pelos adultos. Por exemplo, as crianças da creche utilizavam as cadeiras de alimentação para brincar e para se esconder. A autora busca, ainda, no diálogo com Baktin, Mauss e Foucault abordagens que inscrevam a "criança na cultura quanto os movimentos iniciados por ela, que evidenciam construções criadoras, produção de linguagem, novos modos de relação dela consigo mesma e com os adultos" (Guimarães, 2011, p. 191).

A conclusão retoma a problematização das formas tradicionais e dominantes de considerar o bebê um ser frágil e dependente, e reafirma a necessidade de compreender os bebês em seus modos próprios de iniciar e manter contatos, buscando dar visibilidade para a potencialidade e não para o limite. A pesquisa compõe o rol de trabalhos preocupados com a ação dos bebês4 4 . Vide Coutinho (2010). e seus contextos e representa uma importante contribuição ao considerar não só a ação dos bebês, mas o entendimento da construção de significados entre criança-criança e adulto-criança. O olhar sensível da pesquisadora propõe uma necessária leitura do contexto e das relações estabelecidas entre os sujeitos envolvidos, pois é essa relação dialética que ajuda os bebês a construírem outras autonomias: "onde as crianças estão enredadas, para além da família nuclear, promovem outros modos de ser criança, bem como novas possibilidades para o exercício do cuidado envolvendo adultos e crianças" (Guimarães, 2011, p. 200).

Referências bibliográficas

BURGOS, Marcelo B. A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. Rio de Janeiro, PUC-Rio: Loyola, 2002.

CORSARO, William A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011. 384 p.

COUTINHO, Ângela Maria Scalabrin. A ação social dos bebês: um estudo etnográfico no contexto da creche. 2010. 312 p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Minho, Braga.

FURTADO, Michelle Abreu. Creche, bebê e primeira infância: uma revisão bibliográfica em periódicos acadêmicos A1 e A2 (1997-2011). 2013. 91 p. Projeto de Pesquisa (Qualificação de Mestrado em Educação)–Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília.

GRAUE, M. Elizabeth; WALSH, Daniel J. Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

PROUT, Alan; JAMES, Allison. A new paradigm for the sociology of childhood? Provenance, promise and problems. In: JAMES, Allison; PROUT, Alan. Constructing and reconstructing childhood. London: Falmer Press, 1999. p. 7-33.

SILVA, Angélica Aparecida Ferreira da. A primeira infância no contexto de creche: o que tratam as teses e dissertações na área de Educação no período de 1997 a 2011? 2013. 74 p. Projeto de Pesquisa (Qualificação de Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília.

STAMBAK, Mira et al. Os bebês entre eles: descobrir, brincar, inventar juntos. Tradução do espanhol: Suely Amaral Mello; Maria Carmem Silveira Barbosa. Revisão técnica: Ana Lúcia Goulart de Faria. Campinas: Autores Associados, 2011.

TONUCCI, Francesco. Quando as crianças dizem: agora chega! Porto Alegre: Artmed, 2005.

Submetido à publicação em 03 de outubro de 2013. Aprovado em 14 de fevereiro de 2014.

  • BURGOS, Marcelo B. A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. Rio de Janeiro, PUC-Rio: Loyola, 2002.
  • CORSARO, William A. Sociologia da infância Porto Alegre: Artmed, 2011. 384 p.
  • COUTINHO, Ângela Maria Scalabrin. A ação social dos bebês: um estudo etnográfico no contexto da creche. 2010. 312 p. Tese (Doutorado em Educação) Universidade do Minho, Braga.
  • FURTADO, Michelle Abreu. Creche, bebê e primeira infância: uma revisão bibliográfica em periódicos acadêmicos A1 e A2 (1997-2011). 2013. 91 p. Projeto de Pesquisa (Qualificação de Mestrado em Educação)Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília.
  • GRAUE, M. Elizabeth; WALSH, Daniel J. Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
  • SILVA, Angélica Aparecida Ferreira da. A primeira infância no contexto de creche: o que tratam as teses e dissertações na área de Educação no período de 1997 a 2011? 2013. 74 p. Projeto de Pesquisa (Qualificação de Mestrado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília.
  • STAMBAK, Mira et al. Os bebês entre eles: descobrir, brincar, inventar juntos. Tradução do espanhol: Suely Amaral Mello; Maria Carmem Silveira Barbosa. Revisão técnica: Ana Lúcia Goulart de Faria. Campinas: Autores Associados, 2011.
  • TONUCCI, Francesco. Quando as crianças dizem: agora chega! Porto Alegre: Artmed, 2005.
  • 1
    . Vide as resenhas de Finco (2008, v. 19, n. 1), Drumond (2011, v. 22, n. 3), Silva (2011, v. 22, n. 1), Lima (2012, v. 23, n. 3), Santos (2012, v. 23, n. 2), Silva (2012, v. 23, n. 2), Altmann (2013, v. 24, n. 1) e Santos (2013, v. 24, n. 3).
  • 2
    . Vide Lima (2012, v. 23, n. 3).
  • 3
    . Para maior conhecimento sobre os novos paradigmas da infância, vide Prout e James (1999, p. 8).
  • 4
    . Vide Coutinho (2010).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
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