Acessibilidade / Reportar erro

Estratégias curriculares em espaços escolares* * Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Universal 14/2013 - 473869/2013-6

Curriculum strategies

Resumo

O presente artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa em andamento que tem como objetivo investigar as especificidades curriculares em espaços escolares e não escolares. Este escrito objetiva, especificamente, problematizar um dos espaços escolares conveniados, uma escola pública brasileira, buscando as propostas de currículos ali desenhadas e produzidas. Utiliza-se como metodologia aproximações da genealogia de Michel Foucault e Gilles Deleuze, com o intuito de visibilizar a rede discursiva, os jogos de poder, a produção de currículos específicos e os modos de relação presentes no campo empírico. Que relações seriam possíveis mobilizar nos movimentos curriculares desse espaço escolar? Entende-se, a partir da análise realizada, que os modos atuais de currículo, escola e escolarização não são naturais, mas construções históricas permanentemente refeitas. Dessa maneira, apontam-se movimentos de captura dentro da organização escolar investigada e linhas de fuga que possibilitam aberturas para outras experiências curriculares.

Palavras-chave:
currículo; espaço escolar; governamentalidade

Abstract

This paper discusses curriculum specificities in a Brazilian school in order to identify curriculum proposals designed and produced there. Genealogy has been our methodological option, in approximation to Michel Foucault's and Gilles Deleuze's thoughts to evidence the discursive network, games of power, production of specific curricula and kinds of relationships found in the empirical field. Which relationships could be mobilized in the curriculum movements in that place? The analysis enabled us to understand that the current kinds of curriculum, school and schooling are not natural; rather, they are historical constructions that have been recently redone. The study points out capturing movements in the organization of the investigated school and lines of flight that would favor other curriculum experiences.

Keywords:
curriculum; school place; governmentality

Introdução

O presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa "O currículo em espaços escolares no Brasil e na Colômbia: diferentes relações com o ensinar e o aprender", que tem como objetivo investigar as especificidades curriculares em espaços escolares e não escolares e seus cruzamentos com movimentos escolarizados e não escolarizados. A pesquisa está vinculada a um Mestrado em Ensino, iniciado no ano de 2013. Com o objetivo de problematizar o currículo, a pesquisa propõe investigar dois espaços escolares (uma escola pública brasileira e uma escola colombiana) e dois espaços não escolares (uma organização não governamental e um museu de arte, ambos localizados no Brasil), buscando as propostas de currículos ali desenhadas e produzidas. Problematiza a constituição e a manutenção do modelo disciplinar na escola, utilizando, para tanto, a noção de transversalidade, para refletir sobre a construção e a vivência de outras experiências educacionais, sejam elas em espaços escolares ou não escolares. O material empírico consiste em diários de campo, entrevistas semiestruturadas, documentos e observações.

Para a operacionalização da pesquisa, o grupo de pesquisadores dividiu-se em subgrupos, conforme os espaços definidos para a investigação; ou seja, um grupo preocupou-se em problematizar a escola colombiana, outro ficou responsável pelo museu de artes, um terceiro grupo dedicou-se a explorar uma organização não governamental e, finalmente, o grupo do qual fizemos parte intensificou os estudos do espaço escolar brasileiro.

A metodologia utilizada parte dos estudos da genealogia de Michel Foucault e Gilles Deleuze, propondo-se à análise das condições de ascendência (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Microfísica do poder (26a ed.). Rio de Janeiro: Graal.; Veiga-Neto, 2011Veiga-Neto, A. (2011). Foucault & a Educação. (3a ed.).. Belo Horizonte: Autêntica ) que possibilitam a emergência de discursos em momentos específicos de um determinado tempo. Entendemos, a partir desses autores, que as verdades e suas diferentes configurações são construídas ao longo da história em meio aos jogos de poder, não de forma evolutiva e contínua, mas de forma fragmentária e rizomática (Deleuze, Guattari, 1995Deleuze, G. & Guattari, F. (1995) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (v. 1). Rio de Janeiro: Editora 34.; Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Microfísica do poder (26a ed.). Rio de Janeiro: Graal.).

Os estudos realizados pelo grupo de pesquisa conferiram visibilidade a dois intercessores - espaços e movimentos - que são pontos-chave deste trabalho investigativo. O espaço se refere ao escolar e ao não escolar, e o movimento diz respeito ao escolarizado e ao não escolarizado; todos esses são elementos que produzem educação, tal como nos apontam Corrêa e Preve (2011Corrêa, G. C. & Preve, A. M. H. (2011, dez.). A educação e a maquinaria escolar: produção de subjetividades, biopolítica e fugas. Revista de Estudos Universitários: Biopolítica, 372), 181-202. ), ao indicar que:

viver em sociedade implica estar envolvido por situações de educação, seja de um indivíduo para com o outro, do meio social para com o indivíduo e vice-versa, e ainda, do indivíduo ele mesmo com tudo que o cerca. Educação é qualquer movimento que produz uma modificação. (p. 187)

Entendemos espaço escolar como aquele construído com o objetivo de abrigar ações de ensino e aprendizagem tais como acontecem em escolas, universidades, instituições de ensino de âmbito formal; e espaço não escolar como aquele cuja estrutura e planejamento não foram pensados com o objetivo formal de ensino e aprendizagem, como museus, teatros, bares, parques, ruas - o que não quer dizer que tal processo não aconteça nesses espaços. Já os movimentos escolarizados são as possibilidades/formas de ocupar os espaços, construídas e legitimadas a partir da invenção da escola moderna (Dussel & Caruso, 2003Dussel, I. & Caruso, M. (2003). A invenção da sala de aula São Paulo: Moderna. ; Gauthier & Tardif, 2010Gauthier, C. & Tardif, M.2010 (Orgs.), A pedagogia: teorias e práticas da Antiguidade aos nossos dias. Petrópolis, RJ: Vozes. ), tais como a prática de sala de aula, os modos de regulação na relação professor-aluno, o papel e a postura que a gestão assume no ambiente escolar. Movimentos não escolarizados podem ser entendidos como aqueles que produzem outros modos de ocupar o espaço e outros territórios em educação, adicionando, por um tempo indefinido, novos elementos nas relações e nos jogos de poder, por meio do mergulho no caos (Correa & Preve, 2011Corrêa, G. C. & Preve, A. M. H. (2011, dez.). A educação e a maquinaria escolar: produção de subjetividades, biopolítica e fugas. Revista de Estudos Universitários: Biopolítica, 372), 181-202. ; Deleuze, 2006Deleuze, G. (2006). A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras.). De acordo com Silvio Gallo (2011Gallo, S. (2011). A orquídea e a vespa: transversalidade e currículo rizomático. In E. Gonsalves, M. Pereira & M. Carvalho (Orgs.), Currículo e contemporaneidade: questões emergentes (pp. 37-50). Campinas: Alínea.), tais movimentos provocam o pensamento e colocam o "desafio de pensar e produzir uma educação para além dessa que sofremos e fazemos sofrer no cotidiano de nossas salas de aula" (p. 48). Vale destacar que esses movimentos são possíveis de serem experimentados tanto em espaços escolares quanto em espaços não escolares; misturam-se a esses, ocorrendo em meio aos movimentos escolarizados.

Este artigo tem como objetivo discutir investigações iniciais produzidas em um dos espaços escolares (escola pública brasileira) e analisar as possibilidades dos movimentos escolarizados e não escolarizados naquela organização curricular. Partindo do conceito de governamentalidade (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Microfísica do poder (26a ed.). Rio de Janeiro: Graal.) e da noção de transversalidade do currículo (Gallo, 2000Gallo, S. (2000). Disciplinaridade e transversalidade. In X Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe) Rio de Janeiro. , 2011), operaremos a partir de materiais discursivos gerados no pelo próprio espaço escolar (como o regimento escolar, as agendas do professor e do aluno), além de entrevistas, observações e diários de campo produzidos pelos pesquisadores, compondo uma pesquisa que se aproxima de uma investigação genealógica.

Iniciaremos discutindo os currículos e o espaço escolar a partir de alguns autores, tais como Michel Foucault, Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-Neto, Silvio Gallo e Julia Varela e, na sequência, apresentaremos a metodologia, seguida da análise dos materiais e da discussão dos resultados.

Currículos e espaço escolar

A partir do Renascimento, um processo de "pedagogização do conhecimento", com modificações sucessivas, tem se intensificado até a atualidade. Em meio a esse processo, há a produção de uma nova concepção de infância que divide cada vez mais o mundo dos adultos e o mundo das crianças, postulando a necessidade de ativar outras formas de educação, surgindo, assim, diferentes instituições educacionais. Um dos exemplos são os colégios jesuíticos, que serviram de modelo para as demais instituições escolares, e que almejavam, em seu projeto de formação de bons cristãos, educar em espaços fechados, controlando e organizando, cada vez mais, os saberes que se adequavam à capacidade infantil. Como lembra Varela (1999Varela, J. (1999). O Estatuto do Saber Pedagógico. In T. T. Silva (Org.), O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos (3a ed., pp. 87-96). Petrópolis: Vozes.):

Os saberes tanto da cultura clássica como da cristã, foram desse modo selecionados e organizados em diferentes níveis e programas de dificuldade crescente, ao mesmo tempo em que se viram submetidos a censuras, em função de sua bondade ou maldade em relação à ortodoxia católica, em função, portanto, de seu caráter moral. (p. 88)

Tomando por base o final do século XVIII, esse processo de pedagogização do conhecimento fabricou uma nova configuração, denominada por Foucault (2008Foucault, M. (2008). Microfísica do poder (26a ed.). Rio de Janeiro: Graal.) de "disciplinamento interno dos saberes". Essa reorganização dos saberes, por meio de instituições e sujeitos autorizados, pôs em ação uma série de dispositivos com o propósito de se apropriar dos saberes, de discipliná-los e de colocá-los a seu serviço, estabelecendo uma luta entre poder e saber. Na busca de uma legitimidade científica, exige-se submissão a regras internas, delimitando os critérios que "permitissem selecionar o falso, o não saber e, ao mesmo tempo, definir critérios de cientificidade" (Varela, 1999Varela, J. (1999). O Estatuto do Saber Pedagógico. In T. T. Silva (Org.), O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos (3a ed., pp. 87-96). Petrópolis: Vozes., p. 91).

Nesse jogo, a formação do sujeito passa a ser submetida a um modo específico de organização do poder - o disciplinamento, um poder que individualiza, cronometra, adestra os movimentos, tornando os corpos "dóceis", produtivos e eficientes. A escola, o currículo e a pedagogia passam a funcionar como instituição e, como saber que responde a esse propósito, atuam em conjunto com outros saberes científicos legitimados, como ocorre em uma fábrica, que utiliza o máximo de seu trabalho no controle e na gestão dos homens. No tocante a essa constatação, Gallo (2000Gallo, S. (2000). Disciplinaridade e transversalidade. In X Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe) Rio de Janeiro. ) destaca que

no currículo disciplinar, tudo pode ser controlado: o que o aluno aprende, com que velocidade o processo acontece e assim por diante. Tudo pode ser avaliado: o desempenho do aluno, a "produtividade" do professor, a eficácia dos materiais didáticos, etc.[grifo do autor]. Da mesma forma, todo o processo pode ser metrificado, e o desempenho do aluno traduzido numa nota, às vezes com requintes de fragmentação incorporados no número de casas decimais. (p.17)

Trata-se de um projeto moderno de sociedade e política, interligado ao que se espera de um corpo político-econômico: produtividade, eficácia, desempenho - aspectos ligados à governamentalidade. Como resume Silva (2000Silva, T. T. (2000). O projeto educacional moderno: identidade terminal? In A. Veiga-Neto (Org.), Crítica pós-estruturalista e educação (pp. 245-260). Porto Alegre: Sulinas.): "A educação não está apenas no centro do projeto educacional moderno, ela está no centro dos problemas de governamentalidade do moderno estado capitalista" (p. 253).

A escola moderna, fundamentada em saberes sobre o homem, desempenha um papel na relação entre o saber-poder, produzindo e representando o seu objeto, o sujeito da educação, individualizando-o como aluno, professor, gestor, funcionário. A escola, como um dispositivo disciplinar, forma uma rede que tece subjetividades, que classifica e fixa os sujeitos em categorias, produzindo, graças às políticas governamentais de gestão da população, sujeitos adaptados às novas exigências sociais. Foucault (2008Foucault, M. (2008). Microfísica do poder (26a ed.). Rio de Janeiro: Graal.) explicita o conceito de dispositivo na entrevista que presta à International Psychoanalytical Association (IPA), como:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (p. 244)

Diante desse processo, a escola funciona como condição de possibilidade para que uma população seja governada de uma forma mais econômica e segura. Foucault utiliza o termo "governamentalidade" para referir-se às maneiras de governar. Para o autor, conforme Edgardo Castro, o estudo das formas de governamentalidade implica "a análise de formas e de racionalidade, de procedimentos técnicos, de formas de instrumentalização" (Castro, 2009, p.191CastroE.. (2009). Vocabulário de Foucault - um percurso pelos seus temas, conceitos e autores Belo Horizonte: Autêntica).

A partir do pensamento pós-estruturalista, não entendemos o currículo "simplesmente através de conceitos técnicos como os de ensino e eficiência ou de categorias psicológicas como as de aprendizagem e desenvolvimento ou ainda de imagens estáticas como as de grade curricular e lista de conteúdos" (Silva, 2002Silva, T. T. (2002). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica , p.147). Pensamos o currículo em uma concepção transversal como um discurso, como algo que se produz a partir de ideias, disciplinas, formas de organização, normatizações, regras e interditos; mas também por meio das relações que naquele espaço acontecem, como efeito de resistências, de outras produções possíveis. Assim, compartilhamos com a ideia de que

o currículo pode ser todas essas coisas, pois ele é também aquilo que dele se faz, mas nossa imaginação está agora livre para pensá-lo através de outras metáforas, para concebê-los de outras formas, para vê-lo de perspectivas que não se restringem àquelas que nos foram legadas pelas estreitas categorias da tradição (p.147)

Se até então as formas e as fórmulas prontas garantiam um mundo que parecia estável, um conhecimento que parecia mais concreto, agora, a partir dessas novas imagens ou metáforas, o currículo é impelido a interagir com novos mapas plurais que constituem esse tempo e espaço. Ele é convocado a se tornar mais cultural e menos escolar; torna-se transversalizado, já que necessita apreender as experiências inquietantes e, por vezes, assustadoras, desse tempo que desafia as certezas absolutas, o conhecimento estável e concreto, o tempo linear e o espaço delimitado.

A ideia da transversalidade no currículo, abordada por Gallo (2000Gallo, S. (2000). Disciplinaridade e transversalidade. In X Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe) Rio de Janeiro. ), pode ser aplicada à produção e à circulação dos saberes, desenhando um currículo não disciplinar. Enquanto um currículo disciplinar investe em hierarquias, organizações, planejamentos, determinação de conteúdos, a transversalidade no currículo possibilita uma abertura para uma multiplicidade de saberes, uma aposta na experimentação, possibilitando movimentos não escolares, mas que não escapam de outra forma de governo no espaço escolar.

Partindo da noção de transversalidade no currículo, a escola poderia ser aquilo que Veiga-Neto (2011Veiga-Neto, A. (2011). Foucault & a Educação. (3a ed.).. Belo Horizonte: Autêntica ) propõe, ou seja, uma "dobradiça capaz de articular os poderes que aí circulam com os saberes que a enformam e aí se ensinam, sejam eles pedagógicos ou não" (p. 15). O autor faz uma aposta na escola como um espaço que articula os diferentes poderes com os saberes - pedagógicos ou não - que a produzem e são ali produzidos, possibilitando novos movimentos curriculares (movimentos escolarizados e não escolarizados).

Explorando os materiais: em busca de análises

Ao iniciar a discussão metodológica e os procedimentos de investigação realizados, gostaríamos de discorrer brevemente sobre alguns cuidados na realização de um trabalho que se propõe genealógico. Michel Foucault, ao desenvolver suas pesquisas, não escreveu um manual ou um guia da metodologia que utilizava (Veiga-Neto, 2011Veiga-Neto, A. (2011). Foucault & a Educação. (3a ed.).. Belo Horizonte: Autêntica ). Foucault (2010)Foucault, M. (2010). Ditos e escritos V. Ética, Sexualidade e Política (2a ed.).. Rio de Janeiro: Forense Universitária pretendia que seus estudos servissem como ferramentas que provocassem o pensar, não para que se encontrasse a verdade, mas, sim, para que se evidenciassem suas múltiplas existências. Como ele mesmo proferiu: "Acredito muito na verdade para não supor que haja diferentes verdades e diferentes maneiras de dizê-la" (p. 292).

Para nossa pesquisa, em uma perspectiva pós-estruturalista, tomamos os documentos a serem analisados e o material empírico da pesquisa como uma articulação entre discursos, envolvidos em relações de poder e em jogos de dominação, entendendo junto com Foucault (2002Foucault, M. (2002). A arqueologia do saber (6a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.), "em não mais tratar os discursos como signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações) mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam" (p. 56).

A partir desses conceitos, problematizamos a diversidade de materiais que vêm constituindo este currículo escolar. No caso deste artigo, tomaremos documentos como o regimento da escola, a agenda escolar do aluno e do professor, as entrevistas e as observações realizadas na escola durante o ano de 2013. Partindo de uma inspiração genealógica, cruzamos as informações pertinentes às normatizações da escola, às posturas esperadas de professores e alunos, à arquitetura do espaço escolar e aos objetivos propostos para o Ensino Infantil e Fundamental.

Seguimos com a análise dos dados iniciais da investigação, apontando as (im)possibilidades de movimentos não escolarizados no espaço escolar. Importante ressaltar que as análises realizadas não apenas dizem respeito à escola estudada, de modo singular, mas destacam elementos e movimentos que são pertinentes a outros espaços escolares, igualmente regidos por normatizações, hierarquizações e planejamentos semelhantes.

O espaço escolar que analisamos se constitui em um estabelecimento de ensino público, fundado em 1991, com 530 alunos matriculados no ano de 2013 e que residem, em sua maioria, nos arredores da escola, conforme entrevista realizada com a equipe diretiva. O horário de funcionamento é das 7h às 17h30min e ela se organiza em regime seriado, a partir da Educação Infantil, passando pelo primeiro até o nono ano do Ensino Fundamental.

O logo da escola foi criado a partir de um concurso realizado entre os estudantes, que também votaram na escolha do logotipo oficial que, posteriormente, foi adicionado ao uniforme da escola, item de uso obrigatório, conforme Agenda Escolar do Aluno.

A arquitetura da escola é composta por dois andares, em formato de "U" com a distribuição das salas ao longo dos corredores laterais, no primeiro e no segundo piso. Os espaços de convivência (pátio e quadra de esportes) são alocados no vão central e ao final dos corredores, o que permite uma ampla visibilidade de todos (e por todos) no espaço escolar. A sala dos professores, localizada no primeiro piso, se interliga com a secretaria que, por sua vez, leva à sala da direção. As salas de aula são amplas e quase todas possuem a mesma dimensão, com exceção do Laboratório de Informática, que ocupa o espaço de duas salas de aula. Percebe-se que há uma maior flexibilidade no posicionamento espacial dos alunos nas salas da Educação Infantil e nas dos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Nessas turmas mais novas, foram observadas diferentes organizações espaciais dos alunos; exposições, nas próprias salas ou em espaço externo, de trabalhos e projetos desenvolvidos; espaço para sentar no chão em grupo. Já nas turmas finais do Ensino Fundamental (do 7º ao 9º ano), as carteiras eram alinhadas, de modo que os alunos ficavam em fila, uns atrás dos outros, e havia um número menor de cartazes visualizados e trabalhos expostos.

Entretanto um aspecto que nos chamou atenção nas visitas realizadas à escola, foi o fato de os alunos do último ano, de uma única turma, "personalizarem" sua classe por meio de diversos materiais:

Vamos até as salas dos nonos anos: mostram-nos as classes personalizadas com fotografias, colagens, escritos, poesias. Muitas classes de meninas têm a imagem de Justin Bieber; outras, fotos de eventos sociais, muitas fotos com amigos; poesias, recortes de revista, de jornal. Mostram com orgulho as suas mesas, elas estão encapadas com "contact" para uma maior durabilidade. Contudo, as professoras contam que só é possível fazer isso nas turmas que não têm aula à tarde (pois não dividem a sala com outras turmas) - senão, as classes são estragadas. (Diário de campo, 19/09/2013)

Esse registro nos faz perceber a possibilidade de movimentos não escolares no espaço da escola, uma vez que essa produção dos alunos permite a manifestação de singularidades, em contraposição a um movimento escolarizado que busca uma homogeneidade.

O Regimento da Escola, documento central composto por 265 orientações, tem como finalidade orientar os objetivos da escola, a organização curricular e pedagógica, bem como o ordenamento do sistema escolar. Foi possível perceber que cada série ou grupo de série (Infantil e Fundamental) tem objetivos, ambientes e atividades bem específicas. Verificamos que para cada etapa, Infantil e Fundamental, há um projeto de formação do aluno. Segundo o Regimento escolar, a Educação Infantil tem como finalidade: desenvolver de forma integral a criança até 6 anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social; desenvolver uma imagem positiva de si, atuando de forma cada vez mais independente; descobrir e conhecer progressivamente seu próprio corpo, suas potencialidades e seus limites; estabelecer vínculos afetivos e de troca; observar e explorar o ambiente com atitude de curiosidade; brincar, expressando emoções, sentimentos, pensamentos, desejos e necessidades; utilizar diferentes linguagens, valorizando a diversidade.

Nos objetivos da Educação Infantil, podemos perceber ênfase em um desenvolvimento que seja integral, envolvendo o físico, o psicológico e o social, formando um sujeito que cuida de si, que deve ser independente, com potencialidades e limites, que deve explorar o ambiente, brincar e se expressar. Essa educação, que acontece em espaços fechados, e que se coloca cada vez mais como controladora e organizadora dos saberes, forma o sujeito que, atuando de forma cada vez mais independente e que valorize a diversidade, cumpria com as exigências de um espaço escolar.

Já para o Ensino Fundamental, com duração de nove anos, constam do Regimento Interno os seguintes objetivos: fomentar a formação básica do cidadão; conhecer e valorizar a situação sócio-político-cultural da sociedade; favorecer para que o aluno se sinta integrante, dependente e agente transformador, contribuindo para a melhoria do meio ambiente; utilizar diferentes linguagens; construir conhecimentos, questionando a realidade, utilizando o pensamento lógico, a criatividade e a capacidade de análise crítica; proporcionar oportunidade para que o aluno desenvolva atitudes de solidariedade, humana e de tolerância reciproca; construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país, posicionando-se contra qualquer discriminação; desenvolver o conhecimento ajustado de si; conhecer o próprio corpo e dele cuidar.

A partir dos objetivos gerais da Educação Infantil e Fundamental, podemos observar que há em cada um deles uma proposta de sujeito. O currículo, no momento da Educação Fundamental, não visa apenas ensinar conhecimentos relativos a disciplinas como a História, a Geografia ou a Matemática, mas também como ser um cidadão, como relacionar-se consigo, com o outro, com o meio ambiente, com o país em que vive. Ou seja, da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, amplia-se a noção de responsabilidade do sujeito a ser formado: ele deve agora estar conectado, para além do seu desenvolvimento integral, com o cuidado do próprio corpo, do meio ambiente, da "solidariedade humana e da tolerância recíproca", visando à construção de uma identidade nacional. Em conformidade com a fala do corpo diretivo, em entrevista realizada: "A gente não consegue salvar o mundo, mas a gente faz o melhor que pode".

Os próximos materiais de análise, as agendas de professores e alunos, contêm as regras e as posturas, os deveres de cada um e suas atribuições na vida escolar. Na agenda do aluno há mais orientações e obrigações do que aquelas contidas na agenda do professor. Não se trata de comparar esse material e, sim, de tornar visíveis alguns elementos que aparecem repetidamente para os diferentes atores.

As normas de convivência, na agenda do aluno, são enfatizadas e distribuídas em 37 itens. O primeiro deles ressalta a importância da agenda como meio de comunicação entre "a Família e a Escola", e o segundo se refere aos horários de chegada à escola. Os horários de entrada e de saída são bem delimitados e demarcados, além de bem controlados. A agenda escolar do aluno prevê espaços esquadrinhados para a marcação de chegadas atrasadas e saídas antecipadas, devidamente datadas e assinadas pelos responsáveis na escola e na família. Isso se apresenta, então, como mais uma forma de produzir disciplinamento, de individualizar, cronometrar, adestrar os movimentos, tornando os corpos eficientes e "dóceis".

O quarto item das normas de convivência aponta para a obrigatoriedade do uniforme para todos os alunos, "inclusive nas aulas de Educação Física" (Agenda do Aluno de 2013). O uniforme, composto inicialmente por duas cores, foi criado dois anos após a sua fundação da escola, em 1993. O uso do uniforme obrigatório induz, conforme entrevistas com o corpo diretivo, a um senso de organização e disciplinamento. É destacado pela coordenação da escola como forma de regramento aos alunos, como consta em entrevista: "Eles estão num lugar com regras... depois eles vão ter que aprender a seguir regras" (Entrevista, 24/11/2013). Na agenda, é detalhado em que consiste o uniforme, ocasiões em que deve ser usado, quando pode ser dispensado, providências tomadas e, quando houver infração às normas, "a direção tomará as providências necessárias" (Agenda do Aluno de 2013). Consta ali, igualmente, tal como para as chegadas atrasadas e saídas antecipadas, um espaço com data, que solicita a assinatura da escola e dos pais.

Foi necessário olhar para a agenda dos professores como uma produção local, sem esquecer que esses discursos estão diretamente conectados aos sentidos da escola e do trabalho docente, produzidos a partir de deslocamentos e/ou fixação de certos padrões culturais.

Ao explorar esse material, observamos que a Agenda do Professor está cheia de normas de convivência que orientam o professor desde o horário de início ou de saída das aulas, como também há "lembretes" que colocam o professor como o primeiro responsável pela "disciplina dos alunos". Todas as medidas administrativas descritas na agenda contribuem para a construção de certos significados, operando como um dispositivo escolar, como uma rede que vai tecendo subjetividades, que classifica e fixa o sujeito professor como um sujeito atento (ao espaço do pátio escolar, às dificuldades dos alunos), responsável (entregar e receber seus alunos, fazer a chamada todos os dias), organizado (com o seu material, solicitar fotocópias com 24 horas de antecedência) e que tenha uma postura ética e profissional esperada.

Conclusões

Partindo da análise discursiva dos materiais produzidos pelo próprio espaço escolar (como o regimento escolar, as agendas do professor e do aluno), além de entrevistas, observações e registro de diário de campo, buscamos dar visibilidade às possibilidades de movimentos escolarizados e não escolarizados na organização curricular de uma escola brasileira. Trata-se de destacar não apenas elementos singulares daquela escola, mas aspectos pertinentes a tantos outros espaços escolares.

Conforme a pesquisa "O currículo em espaços escolares no Brasil e na Colômbia: diferentes relações com o ensinar e o aprender" vem avançando e produzindo resultados a partir dos espaços escolares (uma escola pública brasileira e uma escola colombiana) e não escolares (uma organização não governamental e um museu de arte, ambos no Brasil), identificamos que os espaços nem sempre remetem aos movimentos que ali acontecem. Um dos primeiros achados daquela investigação aponta para movimentos escolarizados em espaços não escolares (como, por exemplo, a pedagogização de uma visita a um museu, ao direcionar o olhar, a postura e a interpretação na contemplação de uma obra de arte) e possibilidades de movimentos não escolarizados em espaços como a escola tradicional, como conseguimos perceber na análise realizada neste artigo.

Na medida em que a escola aqui analisada busca uma aproximação do sujeito com um ideal previsto no currículo, ela realiza um movimento escolarizado, conforme o entendimento de Corrêa e Preve (2011Corrêa, G. C. & Preve, A. M. H. (2011, dez.). A educação e a maquinaria escolar: produção de subjetividades, biopolítica e fugas. Revista de Estudos Universitários: Biopolítica, 372), 181-202. ), pois tenta organizar os modos de os sujeitos ocuparem o espaço, sejam eles estudantes, professores, gestores ou funcionários. Um olhar mais detalhado sobre as agendas de professor e aluno e mesmo do próprio regimento da escola aponta para a organização desse movimento escolarizado: a arquitetura escolar, os horários de entrada e saída, as regras estabelecidas no regimento, o uso do uniforme, a disciplina dos alunos, as medidas administrativas.

Foi possível perceber que a escola cumpre com o seu papel de produzir um cidadão que cuida de si, dos outros, do meio ambiente, que aceita a diversidade, regulando e disciplinando seus comportamentos e ações, formando sujeitos adaptados às novas exigências sociais, como Foucault (2006Foucault, M. (2006). Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber (2a ed.).. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2008) define acerca da governamentalidade.

Paralelamente, a escola também possibilita aos sujeitos envolvidos no processo de escolarização movimentos que apontam para uma transversalidade do currículo, por meio de experiências singulares e pela participação comprometida tanto dos estudantes quanto dos docentes, produzindo uma circulação dos saberes na construção de novas experiências curriculares. A participação dos estudantes na criação do logotipo da escola e na personalização da sua própria classe reflete um senso de participação e singularização em um ambiente que, inicialmente, busca homogeneização e padronização. Tais experiências apontam para possibilidades de movimentos não escolarizados na estrutura do espaço escolar.

Referências Bibliográficas

  • CastroE.. (2009). Vocabulário de Foucault - um percurso pelos seus temas, conceitos e autores Belo Horizonte: Autêntica
  • Corrêa, G. C. & Preve, A. M. H. (2011, dez.). A educação e a maquinaria escolar: produção de subjetividades, biopolítica e fugas. Revista de Estudos Universitários: Biopolítica, 372), 181-202.
  • Deleuze, G. (2006). A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras.
  • Deleuze, G. & Guattari, F. (1995) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (v. 1). Rio de Janeiro: Editora 34.
  • Dussel, I. & Caruso, M. (2003). A invenção da sala de aula São Paulo: Moderna.
  • Foucault, M. (2002). A arqueologia do saber (6a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2006). Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber (2a ed.).. Rio de Janeiro: Forense Universitária
  • Foucault, M. (2008). Microfísica do poder (26a ed.). Rio de Janeiro: Graal.
  • Foucault, M. (2010). Ditos e escritos V. Ética, Sexualidade e Política (2a ed.).. Rio de Janeiro: Forense Universitária
  • Gallo, S. (2000). Disciplinaridade e transversalidade. In X Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe) Rio de Janeiro.
  • Gallo, S. (2011). A orquídea e a vespa: transversalidade e currículo rizomático. In E. Gonsalves, M. Pereira & M. Carvalho (Orgs.), Currículo e contemporaneidade: questões emergentes (pp. 37-50). Campinas: Alínea.
  • Gauthier, C. & Tardif, M.2010 (Orgs.), A pedagogia: teorias e práticas da Antiguidade aos nossos dias. Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Silva, T. T. (2000). O projeto educacional moderno: identidade terminal? In A. Veiga-Neto (Org.), Crítica pós-estruturalista e educação (pp. 245-260). Porto Alegre: Sulinas.
  • Silva, T. T. (2002). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo Belo Horizonte: Autêntica
  • Varela, J. (1999). O Estatuto do Saber Pedagógico. In T. T. Silva (Org.), O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos (3a ed., pp. 87-96). Petrópolis: Vozes.
  • Veiga-Neto, A. (2011). Foucault & a Educação. (3a ed.).. Belo Horizonte: Autêntica
  • *
    Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Universal 14/2013 - 473869/2013-6

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2015
  • Aceito
    04 Jun 2015
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br