1. Dos direitos humanos à segurança nacional
Vivemos em uma atmosfera política que nos impacta fortemente. Os balanços feitos neste momento trazem a marca da contemporaneidade em que vivemos. Por um lado, temos retrocessos das pautas relativas aos direitos humanos, sociais e inclusivos efetivados a partir de algumas ações – entre elas o esvaziamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e dos ministérios afeitos às políticas da diversidade e dos direitos humanos – realizadas por meio de uma ruptura, pelas elites, do Estado de direito e democrático. E, por outro lado, observamos a emergência, na cena política (pós-2013), de atores sociais que procuram ampliar o espaço do comum e público e das forças que resistem aos avanços das políticas antissociais e econômicas advindas do neoliberalismo. Tais forças são protagonizadas pelos movimentos juvenis, pelos movimentos feministas, universitários, aliados aos outros movimentos sociais presentes na cena política brasileira: o movimento negro, o sem-terra, etc. Nessa atmosfera, pretendemos fazer um pequeno balanço da Educação Infantil de 19952 a 2016, na perspectiva da diferença, ou seja, na perspectiva das concepções alocadas no largo campo teórico das diferenças3: relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade, pós-estruturalistas, pós-coloniais, etc.
Que tipos de avanços tivemos em relação a uma agenda que pretendia incluir as diferenças (raciais, de gênero/sexualidade, étnicas, etc.), seja no campo do currículo, nas marcas sociais e estéticas da escola, seja na inclusão efetiva das crianças negras e indígenas na Educação Infantil?
Se partirmos do campo jurídico, naquilo que afeta diretamente a Educação Infantil, destacamos alguns marcos importantes a partir da década proposta neste artigo: em 1995, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei nº 9.394/96), critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças; os Parâmetros Nacionais de Qualidade em Educação Infantil (Brasil, 2006a); a Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a 6 anos à educação (Brasil, 2006b); a Lei 11.274/06, que alterou a redação dos artigos 29, 30, 32 e 87 da LDB, dispondo sobre a duração de nove anos para o Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 anos de idade; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2010a); o documento final da CONAE 2010 (Brasil, 2010b), que expressa as discussões anteriores à publicação do Plano Nacional de Educação 2014 – 2024 (Lei 13.005/14); a obrigatoriedade, a partir de 2007, do diploma de Ensino Superior para as profissionais que trabalham com a Educação Infantil; as leis 10.639/03 e 11.645/08, que alteraram o texto originário da lei, inserindo, respectivamente, a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena; e, por fim, a Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, que altera a LDB nº 9.394/96 e determina que as crianças com 4 anos devem ser matriculadas na Educação Infantil.
Foi também com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) que a Educação Infantil se tornou parte da educação básica, desencadeando um processo de discussão que perdura até os dias atuais a respeito do currículo4 da Educação Infantil. Surgiu, logo após essa lei, uma primeira tentativa de detalhar o currículo da Educação Infantil segundo o Referencial Curricular para Educação Infantil (Brasil, 1998). Esse documento, apresentado em três volumes, profundamente criticado por pesquisadoras e pesquisadores da Educação Infantil, já apresentava, no interior da Educação, uma discussão das relações étnico-raciais sob a perspectiva da diversidade. Indicava-se a necessidade de adequação da proposta curricular – primeiro, à diversidade cultural e social dos estados brasileiros; e, segundo, às diferenças individuais das crianças em relação à cultura e também às necessidades singulares e às aprendizagens. A diversidade no RCNEI (Brasil, 1998) aparecia enfaticamente sob o título “Respeito à diversidade”, e o texto indicava uma perspectiva de “aceitação” e tolerância. “Aceitar”, tolerar e respeitar as diversidades entre as crianças justificava-se também pela necessidade de cada criança construir sua percepção da diferença existente entre uma e outra – isto é, um processo que buscava a formação da “identidade” da criança, mas mantinha intacto aquilo que forjava as relações desiguais e hierárquicas entre as crianças brancas e as negras. O material em questão também não trouxe uma definição clara a respeito do currículo da Educação Infantil, o que, de alguma maneira, fez com que as orientações fossem seguidas nos moldes e na estrutura das demais etapas da educação básica, com organização de conteúdos e rotinas rígidas.
O que podemos observar, por essas discussões, é que as questões relativas à Educação Infantil e, especificamente, ao currículo da Educação Infantil são tão contemporâneas quanto a discussão da educação das relações étnico-raciais, reatualizadas agora a partir do debate sobre a Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil. A definição mais recente que temos de currículo da Educação Infantil foi dada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (Brasil, 2010), nas quais se considera o currículo como:
Conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (p. 12).
Esse mesmo documento também incorpora a discussão étnico-racial sob a perspectiva da diversidade, mas acrescida de elementos como educação de crianças quilombolas, indígenas, ribeirinhas, etc.
Desde a LBDEN (1996) até os dias atuais, há uma quantidade significativa de documentos publicados pelo MEC que tratam da Educação Infantil. Esses documentos também produzem o currículo, pois orientam as formas de organização física, estrutural, pedagógica ou profissional de toda Educação Infantil. Esse conjunto de dispositivos jurídicos e documentos educacionais procurou equacionar, situar e circunscrever as questões relativas às diferenças/diversidade5. De um lado, ao fazê-lo, esses textos reconhecem que há uma desigualdade de tratamento entre as crianças, por exemplo: negras e brancas, pobres e ricas; e, por outro, ao reconhecer tais desigualdades e diferenças, procura assentá-las de maneira a apaziguar as diferenças para que não façam diferenças e não esgarcem o tecido social e educacional. O fato de o Estado6 brasileiro reconhecer e assinalar a existência da discriminação em suas diferentes legislações e publicações mostra uma mudança política no que tange aos direitos humanos, entre eles o direito das crianças. Entretanto, não avança no que diz respeito a uma compreensão positiva da diferença.
Neste artigo, propomos um debate sobre a Educação Infantil e o campo das diferenças, a partir da articulação entre os resultados de uma pesquisa diagnóstica sobre Políticas Públicas Municipais de Educação Infantil e uma pesquisa documental, focando leis e documentos nacionais que incidem sobre a Educação Infantil a partir de 1995. As instituições de Educação Infantil que tomarem a diferença como aspecto a ser superado manterão sua lógica discriminatória e preconceituosa e a condição desigual na qual vivem as crianças que as frequentam. Há, portanto, que problematizar tal concepção, trazendo para o debate a compreensão da diferença em uma perspectiva positiva, ou seja, diferenças que façam diferenças e que não sejam tomadas como apêndices, mantendo-se intacto aquilo que é visto como central, hegemônico e universal. É de observar que o debate das diferenças étnico-raciais no Brasil foi contido no campo curricular de maneira a realizar uma espécie de justiça cultural, como tropo da justiça social e racial. Tal como Rodrigues e Abramowicz (2013), podemos afirmar que
sob o manto da diversidade, o reconhecimento das várias identidades e/ou culturas é atravessado pela questão da tolerância, tão em voga, já que pedir tolerância ainda significa manter intactas as hierarquias do que é considerado hegemônico. Além disso, a diversidade é a palavrachave da possibilidade de ampliar o campo do capital, que penetra cada vez mais em subjetividades antes intactas. Vendem-se produtos para as diferenças e, nesse sentido, é preciso incentivá-las. Ou seja, a diversidade foi entendida como uma forma de governamento exercido pela política pública no campo da cultura, como uma estratégia de apaziguamento das desigualdades e de esvaziamento do campo da diferença que tem como função borrar as identidades e quebrar as hegemonias. (p. 18.)
Mas destacamos com ênfase que um retrocesso não desprezível ocorre no governo Temer em relação aos governos Lula/Dilma, no que diz respeito aos temas da diferença/diversidade:7 a substituição da secretaria dos Direitos Humanos pela Secretaria da Segurança Nacional. Aquilo que, na diferença, significava diversidade agora significa desvio a ser banido da política pública ou posto a cargo de uma política da segurança, para que as reivindicações e as políticas de reparação e reconhecimento possam ser criminalizadas.
2. Quanto vale a Educação Infantil?
Importa ressaltar que, no período entre a promulgação da Constituição de 1988 até a implantação do FUNDEB8 em 2009, a Educação Infantil obteve aparentemente algumas conquistas dentro da política pública educacional brasileira, mas sempre como uma política menor, se comparada com as outras etapas educacionais9, já que a porcentagem do PIB para a Educação Infantil era de 0,6% em 2013 e cresceu apenas 0,2%, de 2000 a 2013. Destacamos nesse processo a promulgação da Lei 11.274/2006, que ampliou o Ensino Fundamental para nove anos, com a migração das crianças de 6 anos da Educação Infantil para o primeiro ano do Ensino Fundamental10, indicando um processo de antecipação da escolarização e transferência de verbas da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, conforme pontuado por Campos (2012):
No campo da educação infantil, as reações a essa mudança têm sido bastante críticas, revelando preocupação com a escolarização considerada precoce das crianças de seis anos – e até mesmo daquelas de cinco anos −, com a transferência de verbas da educação infantil para o ensino fundamental com a adequação das propostas pedagógicas adotadas pelas escolas ao contingente de crianças mais novas que ingressam na primeira série. (p. 20)
Para melhor compreender a questão, faz-se importante mencionar que o FUNDEB foi instituído em 2007, por meio da Lei 11.494/2007, e que ele previa a distribuição de recursos financeiros a governos estaduais e municipais na proporção do número de alunos matriculados nas respectivas redes de educação básica pública presencial, conforme os dados apurados no censo escolar mais atualizado, mas estabelecia, no § 2º do seu artigo 31, que nesse cálculo seriam consideradas:
I - para o ensino fundamental regular e especial público: a totalidade das matrículas imediatamente a partir do 1.º (primeiro) ano de vigência do Fundo;
II - para a educação infantil, o ensino médio e a educação de jovens e adultos:
a) 1/3 (um terço) das matrículas no 1.º (primeiro) ano de vigência do Fundo;
b) 2/3 (dois terços) das matrículas no 2.º (segundo) ano de vigência do Fundo;
c) a totalidade das matrículas a partir do 3.º (terceiro) ano de vigência do Fundo, inclusive. (Lei 11.494, 2007)
Para além de não considerar a totalidade das matrículas da Educação Infantil nos primeiros anos de sua implementação, a Lei ainda definia em seu artigo 36 um índice segundo o qual uma matrícula na Educação Infantil valeria menos que a matrícula no Ensino Fundamental.
O interesse em aumentar o valor recebido do FUNDEB, atrelado à necessidade de adequação à ampliação do Ensino Fundamental, levou estados e municípios a uma corrida por recursos e a um conjunto de ações, visando antecipar o máximo possível a entrada das crianças no Ensino Fundamental.
Essa migração das crianças para o ensino de nove anos não fazia parte da pauta, nem da agenda de reivindicação daqueles que lutavam pela criança pequena. Isso não quer dizer que haja uma posição contrária a essa proposta de ampliação da universalização do ensino, já que se trata de ampliação de direitos11, e isso, de algum modo, significa, no Brasil, um combate à pobreza, na medida em que incorpora outras crianças, mesmo que em pequena porcentagem, no processo de escolarização.
Do ponto de vista da macropolítica, podemos dizer que essa política vai ao encontro das crianças negras e pobres que são as que estão fora da escola, já que a Educação Infantil é importante para elas, pois a pobreza incide de maneira mais contundente e perversa nas crianças de zero a 6 anos, e com maior intensidade nas crianças negras. Ao ampliar em um ano a escolaridade, incorporamos essas crianças. No entanto, do ponto de vista da micropolítica, é questionável essa proposta que procurou equacionar o “fracasso escolar” ou o desempenho escolar desigual das crianças12, incorporando as crianças pobres e as negras, pois é preciso (re)tornar a discutir o que é o fracasso escolar da escola brasileira em sua complexidade. E esse fracasso já fez com que inúmeras proposições viessem à tona e submergissem no cenário educacional brasileiro: já foram implementados a municipalização, a escola padrão, o ciclo básico, a escola de período integral, o fim das repetências, a aceleração da escolaridade e milhões de outros pacotes e propostas colocadas de cima para baixo; e produzimos alguns fracassos. Na realidade, o que notamos é o desempenho diferenciado entre as crianças negras e as brancas, como aponta o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil: 2009-2010 (Paixão, Rossetto, Montovanele, & Carvano, 2010). A mecânica de funcionamento da escola que exclui as diferenças faz com que as crianças negras tenham um desempenho escolar inferior ao das crianças brancas e, de certa forma, antecipa seu fracasso nesse processo de escolarização que colocou as crianças de 6 anos na escola.
3. A ruptura na Educação Infantil: o atendimento direto prioriza a préescola
A Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, que alterou a LDB nº 9.394/96, diz que as crianças com 4 anos devem ser matriculadas na pré-escola. Esse fato tornou obrigatória para o Estado a oferta dessa etapa de ensino – já estabelecida pela Constituição Federal e pela LDB, mas ainda não atendida em sua integralidade pelo poder público. Desse modo, o documento legal imprime sua concepção e nesse âmbito inicia um processo de escolarização da Educação Infantil que se substancia a partir da implantação de políticas de avaliação, de currículos unificados, de alfabetização, da Base Curricular Nacional para a Educação Infantil, etc. Verifica-se algo que poderíamos denominar de colonização da pré-escola pela escola, de maneira que essa etapa da educação é instada a resolver os problemas cruciais da educação brasileira, como o desempenho escolar deficiente e desigual entre as crianças de diferentes classes sociais, gênero e raças. Além disso, nessa etapa a educação continua a ser vista como um antídoto contra a pobreza. As crianças de 4 anos são incorporadas à educação obrigatória, e as de quatro meses a 3 anos permanecem em espaços educacionais formais e informais, pressionando a demanda por creches13.
Podemos dizer, dessa forma, que vivemos outro patamar “civilizatório e modernizante”, no que se refere à incorporação de direitos pela criança pequena. Esta criança que emerge, neste novo padrão jurídico, como sujeito de direitos tem na creche e na pré-escola os espaços para o desenvolvimento de sua ação como sujeito. Como consequência desse estatuto jurídico, não basta só cuidar da criança, mas é preciso educá-la e, mais ainda, é preciso escolarizá-la, no sentido de que ela precisa aprender a ser aluno(a), a compreender a cultura da escola e tudo o que acompanha o processo de socialização escolar. A pré-escola, fundamentalmente, não pode mais se ater apenas à sua dimensão de cuidado; por isso pertence agora, necessariamente, à educação, que é quem se responsabiliza pela formação para cidadania. É ela quem educa para a autonomia, para a criticidade e para tudo aquilo que é necessário para a “produção de cidadãos”, sujeitos ativos na composição do que podemos denominar de povo. E esse povo é unificado em língua e raça, sexualidade – vide a proibição do debate de gênero na escola, que necessariamente procura homogeneizar as diferenças e universalizar formas de ser e viver. Em relação à criança de 6 anos, não lhe basta somente ser educada, é preciso ensiná-la a ser cidadã, alfabetizá-la. E essa é uma das funções do Ensino Fundamental.
Estudo diagnóstico realizado no município de São Carlos (Abramowicz, 2012; Henriques, 2015) nos mostrou um crescimento significativo da oferta de vagas para as crianças de um a 3 anos nas unidades filantrópicas conveniadas com o poder público municipal e uma diminuição drástica do atendimento das crianças em idade pré-escolar nas referidas instituições, atingindo a nulidade de atendimento nos anos de 2015 e 2016, o que caracterizou uma reorientação no tipo de oferta de vagas entre as unidades filantrópicas e as municipais. Podemos, portanto, concluir que o Estado tem gradativamente negligenciado as creches em favorecimento das pré-escolas e, desse modo, vem comprometendo a qualidade da educação ofertada, pois tem deixado à lógica filantrópica (em geral religiosa) a educação das crianças pequenas. De acordo com Campos (2012), diante
dessas novas formas de segmentação, destacamos aquela produzida pela introdução da obrigatoriedade na educação infantil, que tende a romper com a unidade pedagógica e de gestão arduamente conquistada nessa etapa educativa. Adotada pela maioria dos países da região, tem produzidos efeitos paradoxais e instaurado uma nova dinâmica na composição e gestão dos sistemas educativos. No que se refere ao primeiro aspecto, a focalização no ciclo etário final – 4 a 5 anos de idade – tem induzido ao crescimento das matrículas, verificando-se em alguns países a universalização do acesso. No entanto essa universalização tem sido feita em detrimento da educação das crianças de 0 a 3 anos, destinatárias cada vez mais de programas de caráter assistencial e qualidade precária. (p. 99)
Os dados apresentados convergem para a hipótese de que a divisão da Educação Infantil em creche e pré-escola criou dois universos distintos dentro dessa modalidade de ensino ou duas redes de ensino, e essas distinções estariam se acentuando, na medida em que a obrigatoriedade da universalização da pré-escola começa a ser implementada pelo poder público municipal, embora o documento final da CONAE tenha se posicionado contra essa cisão14.
Em estudo realizado por Campos (2012), também foi possível observar uma tendência semelhante aos dados identificados neste estudo, quando afirma que
o acesso à creche continua sendo muito restrito, especialmente se considerarmos o PNE, que estabelecia a meta de 30% para 2006 e de 50% até 2010. Se compararmos o período de 1995-2009, tanto para creche como pré-escola, podemos observar que o crescimento de matrículas na primeira foi mais do que o dobro 27,8%. Também nas creches encontramos as taxas mais elevadas de atendimento em instituições privadas. (p.100)
Ou seja, sob a pressão para cumprir a obrigatoriedade do atendimento às crianças em idade de pré-escola, o poder público municipal, na tentativa de encontrar formas de suprir tal demanda, ampliou o atendimento de creche por meio de convênio.
No município investigado, além do aumento de oferta de vagas nas creches em suas próprias unidades escolares, houve uma complementação nesse tipo de atendimento, fazendo uso dos convênios, que assumiram quase totalmente a responsabilidade pelo atendimento preferencial de crianças em idade de creche.
Isso revela que a obrigatoriedade está sendo cumprida com o revés para as crianças em idade de creche, que compõem quase exclusivamente a lista de espera por vagas15. Dentre as matriculadas nas unidades filantrópicas conveniadas, quase a totalidade também é composta pelas crianças em idade de creche. E, por sua vez, as professoras das unidades escolares municipais que atuam nas creches são aquelas que possuem o maior percentual de crianças excedentes por turma, contrariando a resolução do Conselho Municipal de Educação, que, ao fixar diretrizes para autorização de funcionamento e supervisão de instituições de Educação Infantil no sistema municipal de ensino do município de São Carlos, regulamenta, em seu artigo 12, os parâmetros de organização de grupos e relação professor/criança16.
Com intuito de observar os efeitos advindos da obrigatoriedade da Lei 12.796/13 na oferta de vagas para as crianças em idade de creche e pré-escola, o diagnóstico, pelo OBEDUC, da rede investigada disponibilizou os seguintes indicadores: aumento de vagas na rede filantrópica para as crianças em idade de creche, acarretando uma diminuição da lista de espera, principalmente para as crianças em idade entre 2 e 3 anos; demanda manifesta para crianças em idade de pré-escola praticamente atendida, indicador que pouco se alterou entre os anos de 2010 e 2014; crescimento de vagas nas entidades conveniadas para as crianças em idade de creche, acompanhado de um aumento significativo na carga de trabalho dessas professoras; aumento considerável do número de crianças por professora, acarretando uma demanda de trabalho maior do que aquela apresentada às professoras da pré-escola; além do que já afirmamos em relação ao crescimento significativo da oferta de vagas para as crianças de 1 a 3 anos nas unidades filantrópicas conveniadas com o poder público municipal e uma diminuição drástica do atendimento das crianças em idade de pré-escola nas referidas instituições.
4. A quem interessa a Base Curricular Nacional da Educação Infantil?
Em recente artigo (Abramowicz, Cruz, & Moruzzi, 2016) defendemos a hipótese de que a proposta de uma Base Curricular Nacional para a Educação Infantil se insere no âmbito das políticas neoliberais de elogio à diversidade e em um processo que vai ao encontro da lógica privatista de educação de construir estratégias educacionais nas quais as diferenças não façam nenhuma diferença; as disputas e as diferenças de concepções fiquem circunscritas ao currículo e possam se organizar em materiais didáticos, educacionais e pedagógicos, a fim de unificar currículos a serem vendidos às redes públicas de Educação Infantil.
Há um problema epistemológico na proposta de BNCC para aqueles que se propõem a pensar a partir do campo da diferença: como se unificam diferenças, como torná-las consenso, quando historicamente foram construídas de maneiras desiguais e hierárquicas, como se colocam a dialogar, em igualdade, forças tão desiguais e diferentes, e por que harmonizar diferenças? Em uma base comum, o que será colocado para fora? Que diferença não fará parte? O que será considerado como comum? Não há consensos possíveis sem exercício de força, saber/poder que estabeleça o que é comum. Sabemos que aquilo que é/foi considerado como patrimônio cultural da humanidade foi acumulado e integrado como patrimônio da humanidade, a partir do desterro de forças e saberes locais “menores”, saberes e formas de vidas tomadas como “subalternas”, por vezes consideradas inferiores. Perguntávamos em outro artigo: “é preciso entender de que maneira é possível a ética universal proposta pelos interculturalistas quando ela já foi rompida pelo colonialismo? ” (Rodrigues & Abramowicz, 2013, p. 29). A ideia subjacente da BNCC é de que há uma unidade possível na multiplicidade e que ela pode ser realizada sem a utilização da força. Nesse viés, o pensamento tem quase a função do Estado: unificar. A segunda ordem, sob a qual se assentam os argumentos aqui delineados, é a ordem das ideias, de que esta “unidade pretendida na multiplicidade” deva estar circunscrita ao currículo, metodologicamente pela via do campo de experiência. A proposta de “convergência” regida por uma normatização curricular busca afastar os conflitos e, assim, as diferenças.
Foucault17 forjou o termo “biopolítica” para designar uma das modalidades de exercício de poder sobre a vida, vigentes desde o século XVIII. A biopolítica é conjugada como metodologia de ação, cujo objeto é a população, e as crianças são objetos permanentes da biopolítica, pois não há territórios mais fugidios do que os das crianças, e é preciso operar sobre eles. É isto o que se pretende: governar as crianças e suas professoras. Há pesquisadoras da Educação Infantil que acreditavam que o conteúdo da BNCC poderia ser disputado, para que se afirmasse um determinado conteúdo, em particular o lúdico, como prioritário na Educação Infantil. No entanto, as concepções não escolarizadas para a Educação Infantil não têm a mesma força e poder político e econômico da concepção privatista da educação que se alia à escolarização das crianças pequenas, ao mesmo tempo em que não há nenhuma necessidade de afirmar tal concepção lúdica já presente nas diretrizes curriculares nacionais, em uma BNCC.
Ao concordarmos e confluirmos para um suposto consenso da aceitação de uma base comum para a Educação Infantil, há uma perda para quem toma a diferença como mote pedagógico/educativo, pois a forma ou “invólucro” no qual se assenta a base, que é o comum e o universal, impõem desde logo um conteúdo que deve ser “homogêneo”, único, comum e universal, pois a diferença não se encapsula, uma vez que sempre difere. Há outra ideia subjacente a essa tentativa de unificar diferenças pela via da cultura, como se fosse possível culturalizar desigualdades econômicas ou sociais. Dito de outra forma, há algo que pensa que é possível realizar uma espécie de justiça cultural, em substituição a uma justiça social, pela via do currículo.
Outro ponto a destacar é que há uma vertente culturalista que coloca a leitura, a escrita e a linguagem como cultura. E dessa forma reafirma a importância da aprendizagem dessa linguagem como aprendizagem cultural e também como ampliação do repertório da cultura. Há um artigo interessante no livro Cartografia do desejo, em que Guattari e Rolnik (1986) começam assim: “o conceito de cultura é profundamente reacionário” (p.15), e eles vão mostrando como a cultura não existe como uma esfera autônoma: ela entra no mercado de poder, nos mercados econômicos, no consumo real das coisas... essa cultura é vendida. Tanto que os grandes conglomerados estão vendendo a cultura ler escrever em apostilas para as prefeituras municipais; essa cultura não está livre dos modos de produção capitalísticos, dos valores de troca e uso, que são da ordem do capital.
Se, para Lazzarato (2011), o “social é introduzido como modo de governo desde que a relação entre a economia capitalista e a política se tornou problemática” (p.16), a educação como uma ramificação do campo social é o local onde é possível uma intervenção, de maneira a produzir, conciliar e/ou responder aos conflitos colocados na sociedade, pela base material, e nas relações sociais.
Michel Vandenbroeck (2009) afirma
porque é precisamente o desacordo que permite a nós refletir sobre as decisões tomadas. Não há nada tão mortal para uma equipe do que o consenso. Com efeito, na prática da educação infantil, é a exceção, a questão ímpar, o inesperado, o “escapamento” que gera debates que faz o “progresso” do profissionalismo. [ênfase no original] Por conseguinte, a discordância é complexa, mas a complexidade é excepcionalmente bem vinda. Não é só na mesmice que nós construímos o que somos, é também graças ao espelho da diferença e da divergência. (pp.13-22)
Há que se afirmar que a multiplicidade é sempre heterogênea, e o que se fere imediatamente, na tentativa de homogeneização, é a diferença. A presunção do comum esbarra naquilo que não é suportável e não pertencente a todos, isto é, o que é colocado no lugar da diferença. A questão apontada é: uma base unificada instaura um modelo e faz tudo caminhar para uma determinada finalidade, subordinada a determinados processos. É preciso enfatizar que a perspectiva universal não é dada a priori, ela foi produzida como verdade e como valor que se supõe e se arroga como universal. O que se quer dizer é que não há o universal que não se faça por meio de saber/poder, e essa é uma perspectiva construída historicamente. O que afirmamos é: uma BNCC pretende expurgar a diferença. E por que a Educação Infantil necessita de uma base comum? A nosso ver, para que um tipo de infância se realize sobre todas as crianças, sem que elas mesmas possam se interrogar sobre ela.
A última versão da base curricular proposta pelo Governo Temer em dezembro deste ano foi assim criticada em rede por Maria Machado Malta Campos (2017):
acho que os principais problemas que afetarão a Educação Infantil não se encontram na parte específica, mas no que se refere aos primeiros anos do Ensino Fundamental. Encurtou-se em um ano a exigência para que as crianças dominem “o sistema de escrita alfabética” entre outras coisas (veja-se o Art. 12 do Cap. IV); embora as/os professoras/es continuem a ser polivalentes – ainda bem – a base continua a ser organizada por áreas do conhecimento desde o primeiro ano, para o qual as crianças de 6 anos e até menos foram transferidas tempos atrás. Entre essas áreas agora temos “ensino religioso”, por resolução da justiça. Como se propõe a ênfase nos dois primeiros anos sobre a alfabetização, na prática a criança vai passar de uma proposta organizada em campos de experiência para o indicado no Art. 12 do Cap. IV: “a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização´, o que inclui `as quatro operações matemáticas”. As pressões sobre a Educação Infantil podem se intensificar mais ainda do que já acontece hoje, agora sobre as crianças de 4 e 5 anos, sem falar naquelas que ainda nem completaram 8 anos [ênfase no original].
5. Educação Infantil e infância
No governo Lula/Dilma tivemos alguns avanços em relação aos temas colocados no âmbito da diferença, não sem muita luta e retrocesso. Um dos principais pontos positivos no processo que podemos denominar ascensão da diversidade na cena pública e social foi a abertura à possibilidade de participação de grupos que até então não participavam da cena pública, bem como a pressão que tais grupos exerceram em prol de outros estilos, critérios e políticas na construção de outro Estado. Neste momento de retrocesso do Estado de direito e democrático em que vivemos hoje, há um refluxo substantivo dessa pauta e da ascensão de todas as formas de fascismos. Novamente se disputa a identidade nacional, de maneira a colocar a diferença e/ou a diversidade como aberração e desvio e, se possível, aboli-las do espaço público e educacional, como ocorreu, por exemplo, na interdição do debate sobre as relações de gênero que tão contundentemente foi colocada no processo de aprovação dos Planos Estaduais e Municipais de Educação; na proibição de falas consideradas políticas/ideológicas pelos professores que agora se apresentam por meio do Projeto de Lei nº 867/2015 e de outros projetos similares que tramitam em diferentes estados e no Distrito Federal; e, por fim, na nefasta proposta ideológica partidária de uma educação sem partido.
E as crianças?
Godard, cineasta franco-suíço, pertencente ao movimento contestatório “nouvelle vague”, dizia que as crianças eram prisioneiras políticas. As crianças são prisioneiras políticas, dizia Godard – mas são prisioneiras de prisioneiros, porque os adultos, por maioria de razão, também são prisioneiros políticos. Peter Pál Pelbart (2016) 18, em carta aos estudantes secundaristas, afirma que nada é mais verdadeiro do que pensar as crianças como prisioneiras políticas:
Não digo apenas na mão das famílias, das escolas, dos psicólogos, dos psiquiatras, dospedagogos, da mídia, do mercado, dos jogos eletrônicos destinados a eles etc…. É justo nos momentos em que a prisão revela sua arbitrariedade, e sua legitimidade é posta em causa, é justamente aí que aparece sua força e fragilidade, seu peso e sua vulnerabilidade, e fica evidente que grande parte de sua eficácia repousa sobre o medo e a intimidação. O mesmo se pode dizer dos secundaristas: no momento em que percebem que estão à mercê das instâncias várias do Estado incumbidas de decidir do seu destino com uma simples canetada, é justo quando percebem o quanto esse poder desmesurado pretende decidir sobre sua vida a mais cotidiana, é então que tudo se revira, pois é quando deixam de estar à mercê porque sentem o intolerável da situação, e não podem fazer diferente senão ir para o enfrentamento, para a resistência ativa e passiva, para as ruas, furando com grande ousadia o bloqueio midiático, o bloqueio militar, o bloqueio jurídico, o bloqueio do medo ou da intimidação. (n.p.)
As crianças não podem fazer esse enfrentamento que os secundaristas fizeram. Então, estão à mercê dos adultos e das forças que querem alfabetizá-las rapidamente, das forças que querem iniciá-las precocemente à lógica do capital, da linguagem hegemônica, do poder, das hierarquias de cor e raça, da heteronormatividade, e tudo isso em nome do “comum” e do universal. Aquilo que escapar ao comum é diversidade e será tolerado, termo em voga em tempos neoliberais. Sob o manto da diversidade, o reconhecimento das várias identidades e/ou culturas vem sob a égide da tolerância, já que pedir tolerância ainda significa manter intactas as hierarquias do que é considerado hegemônico. Além disso, a diversidade é a palavra-chave da possibilidade de ampliar o campo do capital que penetra cada vez mais em subjetividades antes intactas.
Talvez o que as crianças tenham de mais potente seja a infância
O que é a infância? Foucault (1977) se pergunta se infância não constituiria justamente a liberdade de não ser adulto, de não depender da lei e de poder estabelecer relações polimorfas com as coisas, com as pessoas e com os corpos. É isto que a infância não pode mais: produzir o adulto e não ser produzida por ele.
Temos que nos opor às prescrições que estão nas bases de currículos unificados. Mas não tem sido fácil, pois há aqueles que se arrogam capazes de responder e inundam o campo teórico e prático de manuais: ensino de ciências/matemática/português/inglês/judô na Educação Infantil; o que ensinar aos bebês; quem tem medo de ensinar; como ensinar; em que momento; etc. Precisamos nos opor às pedagogias suplicantes e prescritivas. A maior potência e possibilidade de uma criança estão no tempo aión, ou seja, um tempo que é a própria infância. Infância como experiência. O fragmento 52 de Heráclito (2000) diz que “aión é uma criança que brinca (literalmente, ‘criançando’), seu reino é o de uma criança”. Se há uma nova possibilidade de Educação Infantil, é na própria infância que temos que buscar. Assim, concluímos este ensaio, fazendo ressoar a afirmação de Virno (2012): “Não é concebível um pensamento crítico que não seja também, em quaisquer de suas facetas, uma meditação sobre a infância” (p. 34).