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Uma introdução aos sete conceitos fundamentais da docência-pesquisa tradutória: arquivo EIS AICE1 1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

An introduction to the seven fundamental concepts of translative research-teaching: the SIS ACCE file

Resumo

O artigo explicita a problemática do arquivo EIS AICE, na educação da diferença tradutória. Para a docência-pesquisa, propõe os conceitos de Espaços, Imagens, Signos (EIS), como alavancas para transcriar o currículo; e os de Autor, Infantil, Currículo, Educador (unidade AICE), como operadores da didática da tradução. Discute a objetivação científica do bloco EIS AICE, como prática, método e teoria. Assume o funcionalismo puro, para distinguir o valor de uso da sua formação. Conceitualiza esse arquivo como estrutura topológica, que funciona entre leituras e escrituras, traduções didáticas e curriculares. Apresenta vários entendimentos do arquivo-estrutura e esboça um glossário de cada um dos seus sete elementos. Conclui que, na fase atual, EIS AICE chega como um fato e como um feito em nossas vidas profissionais. De sorte que, ao modo de Bashô, onde o texto acaba, é ali que EIS AICE começa, puxando pelos cabelos, mas sem arrancá-los.

Palavras-chave
EIS AICE; arquivo; tradução; didática; currículo

Abstract

This paper presents the issues of the SIS ACCE file in the translative education of difference. For research-teaching, it proposes the concepts of Spaces, Images, Signs (SIS) as levers to transcreate the curriculum; and the concepts of Author, Child, Curriculum, Educator (the ACCE unit) as operators of the translative didactics. It discusses the scientific objectification of the SIS ACCE block as practice, method and theory. It assumes a pure functionalism in order to distinguish the value of its use from its formation. It conceptualizes this file as a topological structure which works between readings and writings, didactical and curricular translations. It presents several understandings of the structure-file, and outlines a glossary of each of its seven elements. It concludes that, in the current phase, SIS ACCE has emerged as both a fact and a feat in our professional lives; hence, in the manner of Bashô, the place where the text finishes is where SIS ACCE starts – by pulling our hair while not pulling it out completely.

Keywords
SIS ACCE; file; translation; didactics; curriculum

Impõe-se a hora de explicitar, outra vez, EIS AICE, como formulação esboçada em nossa analítica de uma didática da tradução e da transcriação do currículo. Parece-nos que o tratamento anterior (Corazza, 2017aCorazza, S. M. (Org.). (2017a). Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo-mar. Porto Alegre: Doisa; UFRGS., 2017bCorazza, S. M. (2017b). Ensaio sobre EIS AICE: proposição e estratégia para pesquisar em educação. Educação e Filosofia, 31(61), 233-262.) aponta para a insistência para que este enigma de pesquisa educacional e de vida docente – imaginado, combinado, composto há algum tempo – seja agora considerado por si mesmo, em sua própria problemática. Problemática ainda descontente com potências iluministas ou com formações substitutivas, que nos deixa dispostos a enfrentar frustrações que, de direito, dela decorrem. Por isso, o esforço deste artigo pertence a todos os envolvidos pelo arquivo EIS AICE; e, caso não seja compartilhado, se perderá – assim como acontece na vida.

Conhecemos o valor que tem a passagem do pensamento de nossas pesquisas e docências por EIS AICE, ao circular por estudos de filósofos, literatos, poetas, cineastas; pela organização de livros, seminários e cursos, orientações e ensino, em nível de graduação e de pós-graduação, que utilizam e invadem campos de saber não filosóficos, até chegar a sua gravitação em nós. O que fazer com essa gravitação produzida pelos grupos de pesquisa Dif – artistagens, fabulações, variações (desde 2002) e Escrileituras da diferença em filosofia-educação (desde 2015)? O que fazer com tantos artigos, livros, projetos, relatórios, dissertações, teses, para além das citações circunstanciais, que advêm do orgulho de integrar uma coletividade amiga e nunca de alguma complacência banal?

Pois essa é a pergunta medular de uma filosofia da docência e da pesquisa tradutórias: o seu valor de uso. O que fazemos, nas aulas e nos currículos, com as críticas ao capitalismo, ao aparato de Estado, às vidas edipianizadas ou fascistas? Como construímos uma política da docência-pesquisa com os conceitos de Espaços, Imagens e Signos de um currículo nômade, de um currículo máquina de guerra ou linha de fuga? Como pensamos Autor, Infantil, Currículo e Educador, operando de modo didático, transcriadoramente, desde uma cadeia de textos dispersos – por vezes claros, por vezes obscuros, frequentemente problemáticos –, com uma voz própria e não repetindo surrados jargões educacionais?

Este artigo convoca a voltar a nossa face – se ela não estiver demasiadamente anestesiada pelas referências e representações – para sete conceitos imediatamente necessários para a experimentação e a criação da pesquisa-docência da diferença, que está em completa e radical ruptura com o conhecimento comum. Em primeiro lugar, ler esses conceitos desde o arquivo por eles constituído, dentre os quais, os três primeiros – Espaços, Imagens, Signos (EIS) – são considerados constituintes de um currículo, enquanto os outros quatro – Autor, Infantil, Currículo, Educador (AICE) – integram uma didática; currículo e didática extraídos de uma invariante do pensamento da diferença, que os busca aqui e acolá, tomando conceitos emprestados de outras áreas (muitas vezes, por adivinhação) para construir o seu arquivamento. Em segundo lugar, o artigo estende uma ponte entre obras aparentemente díspares que constituem a produção dos grupos de pesquisa-docência, que estudam e fazem a diferença em sua relação com a repetição. Em terceiro, propõe-se a expressar a docência e a pesquisa no mundo atual, isto é, na contemporânea sociedade de controle (Deleuze, 1992bDeleuze, G. (1992b). Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In G. Deleuze, Conversações (pp. 219-226) (P. P. Pélbart, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34.), criticando os seus aspectos de nihilismo passivo, máquinas contendo humanos, humanos como mônadas, imagens que remetem a imagens, domínio intersticial e englobante.

Dessa maneira, talvez o artigo consiga mostrar uma docência-pesquisa que suporta o Fora, contra o aberto (não apenas contra o fechado), os intoleráveis, as perdas das conquistas sociais, em favor da terra e do povo sempre por vir; e, junto a isso, nos levar a pensar as experimentações que fazemos e somos, desde o nosso ofício; e como compomos, aí, EIS AICE, de maneira a continuar nos empenhando em suas mutações de arquivo.

Prática, método, teoria

Apenas a objetivação de EIS AICE (a partir daqui grafado EA) nos dá a medida exata de seus conceitos, permitindo dimensionar a prática, configurar o método e definir os problemas em suspensão, numa produção já plena de resultados e de alegrias. Isso porque, afirma Bachelard (2008)Bachelard, G. (2008). Idealismo discursivo. In G. Bachelard, Estudos (pp.77-86) (E. dos S. Abreu, Trad.). Rio de Janeiro: Contraponto.: “nenhuma ideia isolada traz em si a marca de sua objetividade. A toda ideia é preciso juntar uma história psicológica, um processo de objetivação para indicar como essa ideia chegou à objetividade” (p.77).

Mesmo correndo o risco do esquematismo, resumamos este arquivo que, para nós, é EA: uma prática (a docência-pesquisa da diferença); um método (do informe ou Valéry-Deleuze); uma teoria (da tradução transcriadora), inter-relacionada à prática e ao método. Tal como esse conjunto é definido por Althusser (1985)Althusser, L. (1985). Freud e Lacan. In L. Althusser, Freud e Lacan. Marx e Freud (pp. 45-71) (W. J. Evangelista, Trad.). Rio de Janeiro: Graal., em relação à produção da psicanálise por Freud: “conjunto orgânico prático (1), técnico (2), teórico (3) lembra-nos a estrutura de toda disciplina científica” (p. 53).

Embora jovem, o arquivo EA encontra-se avançado e instalado em nossas vidas (inclusive nas vidas práticas) e, nelas, constrói sua posição, produz o seu método e engendra a sua prática. EA não se atém a uma situação pretensamente dual, na qual a fenomenologia ou a moral encontra satisfação de sua necessidade; mas consiste em um efeito prolongado, como um dos efeitos do devir-professor (Corazza, 2013Corazza, S. M. (2013). O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS; Doisa.). Já podemos, hoje, afirmar que nenhuma prática, teoria ou método sai indene do bloco EA, pois, no mínimo, gostamos de lê-lo, escrevê-lo e dá-lo a conhecer. Por isso, EA reivindica, para si, um direito radical à especificidade de seu arquivo, à modalidade da sua matéria e dos seus mecanismos.

Como arquivo, EA nos fornece prática, método e teoria para o exercício da educação; mas apenas formalmente, pois há diversas dificuldades conceituais, que não concorrem para dele fazer um conjunto estável ou fixo, que atenda as exigências científicas. Entre muitas possibilidades, podemos formular várias teses e suas derivadas, entre as quais indicamos as seguintes: a tradução transcriadora não pode ser considerada uma teoria no sentido científico; essa teoria é, meramente, uma transposição metodológica da prática (docência-pesquisa).

Sob aparências respeitáveis (embora vãs), EA permaneceria sem qualquer teoria, como uma simples prática (docência ou pesquisa), que se prolonga em técnicas (regras do método do informe). EA daria, sem dúvida, resultados, muitas vezes, mas nem sempre. Neste caso, o que defendemos como teoria (tradução transcriadora) de EA consistiria em conceitos abstratos ou técnicos, os quais refletem as regras de sua prática (docência-pesquisa); ou seja, simples prática, sem teoria.

Ou, então, a teoria de EA nada mais seria do que uma exposição abstrata, de aspecto teorético, feita na linguagem e pela linguagem, inclusive em seus silêncios, ritmos e escansões. Ou, talvez, EA seja, tão-somente, uma questão de magia, alicerçada no prestígio institucional, que seria a única razão para a sua ocorrência. Como prática educacional, estaria recheada de alguma teoria desconhecida, que apenas ressoa em nossos ouvidos, sem, no entanto, causar nenhuma diferença.

EA poderia, ainda, possuir uma teoria (tradução transcriadora), transformada em método (do informe), que entra em contato prático ou teórico (docência ou pesquisa) com um arquivo científico. Esta tese nos encaminha à declaração rigorosa da cientificidade de EA, que não resolve a questão; pois ainda restaria perguntar: de que tipo de ciência se trata? (Bachelard, 1986Bachelard, G. (1986). O novo espírito científico (A. J. P. Ribeiro, Trad.). Lisboa: Edições 70., 2009Bachelard, G. (2009). A filosofia do não. Filosofia do novo espírito científico (J. J. M. Ramos, Trad.). Lisboa: Editorial Presença.).

Pode acontecer que o arquivo EA, verdadeiramente, só exista na prática e não encerre, em si, nenhum mistério teórico. Se essa tese for exata, também o método não abrigaria nenhum segredo, a não ser por delegação não da prática, mas somente da teoria. O enigma de EA estaria contido apenas no pensamento da tradução transcriadora (Campos, 2013Campos, H. de. (2013). Transcriação (M. Tápia, & T. M. Nóbrega, Orgs.). São Paulo: Perspectiva.). Afinal, “Freud disse e voltou a dizer que uma prática e uma técnica, mesmo fecundas, só poderiam merecer o nome de científicas, quando uma teoria lhes desse, não por simples declaração, mas através de fundação rigorosa, o direito” (Althusser, 1985Althusser, L. (1985). Freud e Lacan. In L. Althusser, Freud e Lacan. Marx e Freud (pp. 45-71) (W. J. Evangelista, Trad.). Rio de Janeiro: Graal., p. 55).

Neste caso, teríamos de voltar à tradução transcriadora, para, aí, buscar a teoria de EA, da qual teria saído tanto a técnica da pesquisa quanto a prática da docência. Outrossim, poderíamos voltar ao nascimento de EA; porém, não atenderemos a esse preconceito filosófico da pureza de uma origem, por um motivo simples: porque não sabemos. Trata-se de um nascimento bastardo, ocorrido em meio a seminários na pós-graduação, aulas na graduação, pesquisas próprias e de vários bolsistas de iniciação científica, orientandos de mestrado, doutorado e pós-doutorado.

Quiçá pudéssemos realizar uma arqueologia de EA, que demonstrasse como a sua juventude é, também, a sua maturidade, diante dos antepassados e dos seus descendentes (Corazza, 2017aCorazza, S. M. (Org.). (2017a). Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo-mar. Porto Alegre: Doisa; UFRGS.), contendo ciências e mitos próprios. O que vemos é aquilo que faz de EA um arquivo, não como resultado de sobras de outras práticas, métodos ou teorias; mas desde a sua singularidade, outorgada por uma docência-pesquisa concebida e praticada como tradução transcriadora.

Contra toda redução ou desvio, que dominam uma grande parte da interpretação teórica da formação de professores, em suas corporações e estruturas, EA carrega a irredutibilidade da perspectiva da diferença, a qual leva, no mínimo, a que os professores interroguem os seus métodos, práticas e teorias, em termos dos motivos para neles acreditar ou deles duvidar. Daí decorre a necessidade de aparar muitos golpes para resistir à caução de filosofias inteiramente estranhas à empresa de EA.

Mas é preciso mostrar, agora, como EA – essa fórmula que, de modo algum, é mágica – efetiva o meio de produção de seus efeitos, isto é, sua passagem pela prática, pelo método e pela teoria. Mesmo se fizermos a abstração de todos os seus conteúdos, EA fica à espreita e de nós se assenhora, designando a nossa destinação forçada; de maneira a existir e agir, em sua familiaridade, por e nessa abstração. Correremos, nesta situação, o perigo de desconhecer o alcance de EA, apenas se lhe opusermos a aparência filosófica dos sete conceitos, sem recorrer à tríade prática-método-teoria.

De sorte que fracassaríamos na busca de EA e, assim fracassando, encontraríamos o nosso próprio lugar na impostura, na cumplicidade ou na denegação dos fascínios imaginários de EA. Neste último drama, a insígnia ou a imagem fantasmática de EA poderia parecer espantosa ou arbitrária, mas todos os professores o atestariam como um fato de experiência. A teoria (eisaiceana) favoreceria, então, aquilo que faz de EA não uma simples especulação, mas uma ciência: “a definição da essência formal de seu objeto, condição de possibilidade de toda aplicação prática, técnica, aos seus próprios objetos concretos” (Althusser, 1985Althusser, L. (1985). Freud e Lacan. In L. Althusser, Freud e Lacan. Marx e Freud (pp. 45-71) (W. J. Evangelista, Trad.). Rio de Janeiro: Graal., p. 68).

Ciência (eisaiceana) feita de concreto e de abstrações que resultam da prática teórica e da prática de aplicação material de EA, comumente chamada prática docente e de pesquisa. As abstrações seriam os conceitos científicos do funcionamento de EA, desde que tal funcionamento carreia a necessidade de abstração, isto é, a própria medida da relação com o concreto de sua aplicação. Como afirma Althusser (1978)Althusser, L. (1978). Sobre o trabalho teórico (J. J. M. Ramos, Trad.). Lisboa: Editorial Presença.: “Diremos que, no sentido exato do termo, não existem senão objetos reais e concretos, singulares. Diremos, simultaneamente, que todo o discurso teórico tem por razão de ser última o conhecimento ‘concreto’ [ênfase no original] (Marx) destes objetos reais e concretos, singulares” (p. 15).

EA não seria, pois, um sentido oculto, a que falta a consciência ou a palavra, nem um fundamento enterrado pelo tempo, que seria necessário recompor ou superar; mas uma dramática estrutural, uma máquina de estrutura, que contém, em si, não somente a possibilidade, mas uma imperiosa necessidade de variações concretas, mediante as quais o arquivo EA existe para todo professor que chega a seu limiar, nele entra e o vive.

Por conseguinte, nossas docências e pesquisas trabalham sobre os efeitos concretos dessas variações, visando delimitar não somente problemas de formação, de definição e de delineamento conceituais, mas novos problemas reais, produzidos pelos esforços de teorização, de prática e de criação de um método. Os problemas das relações entre EA e suas condições de aparecimento, por um lado, e, de outro, suas condições de uso social constituem, entre tantos outros, exigentes eixos de pesquisa e difíceis campos de docência.

Num futuro próximo, não será impossível que certas noções de EA saiam transformadas dessas experimentações atuais, pois elas acabarão por submeter o arquivo a uma determinada imagem dogmática, jurídica, moral e filosófica. Aguardemos a repercussão crítica de EA e suas subversões. Desse modo, manteremos aberta a porteira da pesquisa-docência da diferença, muito mais em termos do não saber do que do saber – ou até mesmo em seus limites.

Funcionalismo em relação ao Fora

Porque valorizam mais a economia do desejo em relação a uma lógica formal da cadeia significante, as docências-pesquisas da diferença vêm se interessando pelo funcionamento de EA. Como vivemos com EA? Como habitamos EA? A que EA serve? Demandam, assim, não uma síntese ideal de recognição do que é identitário, mas uma afirmação posicional de EA, como ato positivo e drama de micromultiplicidades, em meio a problemáticas produzidas pelos movimentos de experimentação didática e curricular.

Contudo, existirá, embutida em EA, uma nova (e escusa) forma de piedade para com os professores? Uma matraqueagem, uma chacota? A quem EA procura humilhar? É dos professores que EA zomba? EA afirma: “marchemos!”, mas não sai do lugar? De modo algum, visto que EA é um objeto-máquina – sem alma religiosa nem personalidade antropomórfica –, um acontecimento do pensamento, uma ars theoretica e política; logo, uma postura de alerta contra os atrativos da acomodação, que resiste ao pensamento unitário, favorece a ação e prolifera o desejo de educar, desprendido da categoria do negativo e dos afetos mórbidos. Desse modo, EA apresenta-se como uma biofilosofia, biopedagogia e biopolítica.

Dotadas de um vitalismo fundamental, às pesquisas e às docências com EA interessa responder às questões: qual é a máquina de EA? Como ela anda? Com quais outras máquinas está conectada? Portanto, enquanto o reino do significante pertence à questão “O que EA quer dizer?”, nossas docências-pesquisas quedam impregnadas de um funcionalismo puro, que não se instala em grandes conjuntos, mas remete a usos que não têm unidade sistemática, referência a metas, nem eficiência. Assim, EA não pode ser formado da mesma maneira que funciona: “A única questão é como isso funciona, com intensidades, fluxos, processos, objetos parciais, todas coisas que não querem dizer nada” (Deleuze, 1992aDeleuze, G. (1992a). Entrevista sobre O anti-Édipo (com Félix Guattari). In G. Deleuze, Conversações (pp. 23-36) (P. P. Pélbart, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34., p. 34).

Em vista disso, podemos indagar se EA encarna o sujeito que falta ao desejo (Deleuze & Guattari, 1976Deleuze, G., & Guattari, F. (1976). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (G. Lamazière, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.) de educar? Ou é o desejo do professor que carece de sujeito físico e se atualiza em EA? Ora, a produção de EA consiste na própria produção desejante do professor, em certas condições, que tem EA como uma entidade maquínica de produção, um produzir sobre o produto curricular e didático. Com base nesse desejo, EA nada mais é do que a vontade de produzir do professor, de afirmar a sua singularidade e potência de autoria.

EA parte de uma teoria das necessidades, sem recorrer à infra nem à superestrutura, sem nenhuma esfera ideológica que esteja cortada da sociedade. Não existe ideologia em EA, pois este bloco é, em si mesmo, um enunciado de organizações de poder – isto é, uma prática, um método e uma teoria. Como parte integrante do mundo de produção educacional, não há, em EA, qualquer desejo de recapitular o campo do currículo ou de organizar um compêndio da memória didática; ao contrário, EA valoriza a potência de esquecê-los, para arriscar-se a produzir – mesmo que, nesse esquecimento, alguns fragmentos sobrenadem.

Como um plano de consistência do desejo do professor, liberto do jogo de representações, com seus rebatimentos e reduções, EA possui um conteúdo histórico-mundial, político, sexual e racial. Sendo uma máquina de guerra crítica e clínica, carrega seus estratos de organização, significação e subjetivação. Selvagem, EA tatua, excisa, incisa, corta, sacrifica, em codificação absoluta, a terra da educação. Bárbaro, faz novas alianças, canaliza os fluxos didáticos que permanecem sobrecodificados, em operações que constituem a essência da máquina do estado déspota. Civilizado, nutre-se de fluxos curriculares decodificados, que ultrapassam os limites das codificações estatais (Deleuze & Guattari, 1976Deleuze, G., & Guattari, F. (1976). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (G. Lamazière, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.).

Sem recorrer ao idealismo, o limite exterior de EA é o senso comum educacional, tecido com tenacidade, por muitos séculos: enquanto EA decodifica a teoria, a prática e o método, esse conhecimento comum axiomatiza as estratificações molares da educação; enquanto EA funciona como máquina de intensidade molecular, o senso comum torna impotente ou denega a produção do desejo de educar, neutralizando a sua vontade de potência. E não é que tratemos de EA, desde um anarquismo simplista, que distingue o molar como o mal e o molecular como o bem; pois sabemos que existem perigos também na molecularidade, como microfascismos e suicídios em seu corpo sem órgãos. Ao sinalizar uma história curricular e didática do poder e do desejo, EA aponta para intervenções pedagógicas, políticas da criação e devires revolucionários.

Ao realizar a escrita deste artigo, EA funciona, sim, como uma sobrecodificação despótica; mas também nos permite criar nomes para os novos fluxos e desejos (eisaiceanos); analisar os agentes da sua integração e potencialidade, os refúgios de má consciência e as nossas impotências. Deleuze e Guattari (1976)Deleuze, G., & Guattari, F. (1976). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (G. Lamazière, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. indagam: “Você não tem vergonha de ser feliz?” (p. 342). Para responder negativamente a esta questão e ser inocentemente felizes, junto a EA, lembramos, sempre, o seguinte vaticínio (para afastá-lo): “em toda parte onde passam um déspota e seu exército, doutores, padres, escribas e funcionários fazem parte do cortejo” (Deleuze & Guattari, 1976Deleuze, G., & Guattari, F. (1976). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (G. Lamazière, Trad.). Rio de Janeiro: Imago., p. 244). Isso porque, somente fora desse cortejo, não precisaremos continuar a ser devotos e, muito menos, suportar as pulsões de morte que pululam em nossa profissão.

Arquivo como estrutura

As pesquisas-docências se perguntam: como o arquivo EA – sendo máquina de produção desejante de educar, via prática-teoria-método – funciona para nós? Obediente à lei de produção da produção, EA corta e é cortado, atribuindo um sentido dinâmico e positivo ao cosmos educacional, desejo físico e social, sujeitos nômades (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Como criar para si um corpo sem órgãos. In G. Deleuze, & F. Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (pp. 9-29) (A. G. Neto et al., Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34.).

Acontece que entendemos o arquivo EA como uma estrutura, no sentido deleuziano (Deleuze, 1998Deleuze, G. (1998). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., 2006aDeleuze, G. (2006a). Diferença e repetição (L. Orlandi, & R. Machado, Trad.). Rio de Janeiro: Graal., 2006bDeleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras.), ou seja, como um “espaço inextenso, pré-extensivo, puro spatium” (Deleuze, 2006bDeleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras., p. 225). Como estrutura topológica, é subsolo (ou porão) para todos os chãos do real; e, ao mesmo tempo, é uma espécie de portal (um portão), que fica e opera – “possibilita, faculta, insta, conforma, atravessa, prolifera e faz viver”2 2 Autoria de Julio Groppa Aquino (USP), em correspondência digital, datada de 19 de janeiro de 2017. – entre as leituras e as escrituras, as traduções curriculares e didáticas, movimentadas na docência-pesquisa da diferença.

Esse portão-porão possui uma relação tão forte com o real e as palavras, que leva EA a ser o primeiro em relação aos seres e às coisas que o ocupam; bem como em relação às ideias que daí advêm. Arquivo que designa (coisas) e expressa (sentidos), não ora de corpos, ora de linguagem, mas que age no seu entremeio, que é onde se gesta o sentido-acontecimento. A superfície desse arquivo-estrutura – como espelho defeituoso, não ideal, mas produtor da dessemelhança e da diferença – é, assim, não só fronteiriça, tanto aos corpos como à linguagem, mas lhes dá sustentação.

Desde tal superfície, como local ou espaço estruturalmente definido, assinalamos as coisas e os seres da didática e do currículo com nomes e verbos, povoando-os de devires que puxam cada uma de suas pontas. Dela, diz Deleuze (1998)Deleuze, G. (1998). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva.:

é como se fossem dois lados de um espelho, mas o que se acha de um lado não se parece com o que se acha do outro....Passar do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão – sem se deter nos intermediários, manifestação, significação. É chegar a uma dimensão em que a linguagem não tem mais relação com designados, mas somente com expressos, isto é, com o sentido.

(p. 27)

As misturas corporais e os acontecimentos incorporais, ocorridos na superfície do arquivo, propiciam a designação de coisas e a expressão de sentido da docência-pesquisa, carregando o devir-corpo e o devir-linguagem de EA e trazendo a necessidade de que o sentido-acontecimento, aí produzido, seja organizado em séries, como indica Sales (2006)Sales, A. C. (2006). Deleuze e a lógica do sentido: o problema da estrutura. Trans/Form/Ação. 29(2), 219-239.:

partindo da acontecimentalização profunda dos corpos, [Deleuze] buscou chegar no nível específico da linguagem de superfície, que passará a pensar segundo uma teoria das séries, ou melhor, segundo sua estrutura, desde que em tal linguagem se evidencie a distinção entre designações e expressões.

(p. 225)

Ou seja, considerando que somente existe “estrutura daquilo que é linguagem, nem que seja uma linguagem esotérica ou mesmo não verbal” (Deleuze, 2006bDeleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras., p. 221), em EA, encontramos uma estrutura da docência-pesquisa, feita linguagem, além de uma estrutura dos corpos, que ali se movimentam e falam por meio de sintomas; e de uma estrutura das coisas, que falam através dos signos.

Dessa maneira, nos deparamos com um real da docência e com um imaginário da pesquisa, embora a estrutura do arquivo pertença ao simbólico; assim, não confundamos essas ordens entre si, desde que é o simbólico, como elemento da estrutura, o objeto da pesquisa-docência. Ao encarnar-se nas imagens e na realidade, segundo séries determináveis, EA vem antes, pois constitui tanto a docência como a pesquisa: “subsolo para todos os solos do real como para todos os céus da imaginação” (Deleuze, 2006bDeleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras., p. 223). Essa estrutura é triádica, já que circula entre as ordens do real e do imaginário, e é mais profunda do que elas: “terceiro ao mesmo tempo irreal e, no entanto, não imaginável” (p. 224). Como arquivo fundamental, EA não compreende uma forma sensível, nem como figura da imaginação nem como essência inteligível.

Funcionando entre a linguagem do currículo e da didática e o corpo do professor, não há uma pregnância – no real ou na percepção – do todo de EA sobre as partes (sejam as duas unidades EIS AICE ou os seus elementos isolados E I S A I C E); ao contrário, esse arquivo-estrutura consiste numa combinatória, numa conjunção, numa combinação, referente a elementos formais que não possuem significação nem conteúdo; não representam realidades empíricas; não repousam em um modelo funcional hipotético; tampouco buscam inteligibilidade atrás de alguma aparência.

EA é um arquivo real, concreto e singular; logo, não se reduz a conceitos estritamente teóricos (que resultam de um puro exercício de abstração formal), tampouco é um objeto empírico (existente, no sentido estrito), desde que não é constituído por dados puros, coisas concretas ou decalques imediatos da realidade. Desse modo, EA determina a singularidade dos seus elementos, os seus traços, as suas determinações, que o qualificam como existente. Como um dos resultados do processo de conhecimento em educação, as pesquisas e as docências com EA não podem prescindir de investigações, inquéritos, experiências, observações, seleções, classificações; tampouco de transformação desses materiais em matéria-prima, derivada de um trabalho ulterior de elaboração.

Afirma Deleuze (2006b)Deleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras.: “ninguém melhor do que Louis Althusser assinalou o estatuto da estrutura como idêntico à própria ‘Teoria’ [ênfase no original] – e o simbólico deve ser entendido como a produção do objeto teórico e específico” (p. 224). Portanto, entendemos que, quando renova a nossa interpretação da docência-pesquisa, o arquivo-estrutura EA é Teoria, que ousa traçar um ponto de partida onde a sua linguagem se faz, ideias são vividas e ações realizadas. O bloco unitário, as duas unidades e os sete elementos de EA estão sujeitos a traduções didáticas e curriculares, que só valem se forem atualizadas em nosso tempo, como um manancial vivo de transcriação.

EA não é definido por realidades preexistentes, às quais remeteria e designaria, extrinsecamente; nem é definido, intrinsecamente, por conteúdos imaginários que ele implicaria e lhe dariam uma significação; é um arquivo local, um lugar, situado em um espaço topológico e relacional. Quando define as determinações de professor ou de aluno, de didática ou de currículo, não as considera como dimensões da experiência empírica ou teorética; mas, antes, como a qualificação de uma posição – do pensamento tradutório e transcriador da diferença –, a qual é ocupada por professores e alunos, por um currículo e uma didática, conforme a ordem de vizinhança, própria desse arquivo-estrutura.

Logo, a topologia transcendental de EA possui prevalência sobre aquilo e aqueles que a preenchem, como afirma Deleuze (2006b)Deleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras.:

O estruturalismo não é separável de uma filosofia transcendental nova, onde os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche. Pai, mãe etc. são lugares numa estrutura; e se somos mortais, é entrando na fila, vindo a tal lugar, marcado na estrutura segundo esta ordem topológica da vizinhança (mesmo quando antecipamos nossa vez).

(p. 226)

Por isso, há, no arquivo, um ponto vazio – uma queima de arquivo? –, graças ao qual há o recomeço e a produção de uma nova estrutura. Deleuze (2006b)Deleuze, G. (2006b). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In G. Deleuze, A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974) (pp. 221-247) (H. F. Japiassú, Trad.) São Paulo: Iluminuras. considera que essa transição do sujeito à práxis é, insistentemente, um jogo de dados para o futuro:

depende da força resistente e criadora desse herói estruturalista [nem Deus nem homem, nem pessoal nem universal], de sua agilidade em seguir e salvaguardar os deslocamentos, de seu poder de fazer com que as relações variem e de distribuir as singularidades, sempre jogando ainda os dados.

(p. 246)

Álgebra, criptograma, jogo, opacidade

Nesse passo, vejamos: definitivamente, EA é o quê? Uma coleção de escritos? Uma disciplina de vocação mais ou menos sistemática, na qual se ordenam os discursos sobre Espaços, Imagens e Signos, para compor um currículo da diferença, bem como são montados os discursos acerca de Autor, Infantil, Currículo e Educador, para compor uma didática da tradução? Trata-se de uma modalidade de pensamento, do tema de uma problematização, de um gênero literário-filosófico? Ou seria, nada mais nada menos, do que uma performance discursiva, que ainda é ou que está deixando de ser possível?

Começando pelo final, de acordo com Poe (2009)Poe, E. A. (2009). A filosofia da composição. In E. A. Poe, Poemas e ensaios (pp.113-128) (O. Mendes, & M. Amado, Trad.). São Paulo: Globo, 2009., em A filosofia da composição, podemos afirmar que, quanto à elaboração do bloco EA, duas posições foram requeridas: “primeiramente, certa soma de complexidade, ou, mais propriamente, de adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de sugestividade, certa subcorrente embora indefinida de sentido” (p. 127). Talvez, na complexidade e na sugestividade da formulação de EA, caibam três tipos: o EA real, o EA imagético e o EA escrito. Se for este o caso, neste momento, EA estaria ocupado pelo escrito, sendo levado pela linguagem, mas, também, lhe oferecendo resistência; e, assim, realizando-se no jogo sutil de imaginação que é a invenção textual.

Seria possível propor um EA infinito, total, do qual todos os outros movimentos de pesquisa-docência se depreenderiam, como uma ferramenta explícita para pensar a educação. Desse modo, EA trataria de recortar e recompor, organizar em uma nova ordem e, daí, extrair o sentido: este seria o projeto. Para tanto, EA classificaria, construiria um inventário, cultivaria o gosto pelas taxionomias, estabelecendo subgêneros e espécies.

Dessa maneira, organizaria um mundo novo, ávido de nomeações, em um ir e vir incessante entre a natureza da pesquisa e a cultura da docência. Haveria, nessa movimentação, um tratamento da docência-pesquisa como ficção e um efeito estético resultante, desde que as classificações áridas denunciassem o desejo recôndito de EA por poesia. Colocadas em cena a linguagem (eisaiceana) e suas máscaras, EA trapacearia e as devolveria ricas e vivas, transformadas em um discurso (eisaceiano), do qual elas representariam um infindável desafio situado no limiar do inteligível.

Poderíamos dizer, inobstante, que EA possui uma extrema transparência, em suas formações curriculares e didáticas já conhecidas. Mas que aí sempre se revela lugar para mais uma palavra, já que nem tudo pode ser dito. É que o bloco EA possui opacidade suficiente para nos manter ocupados. Transparência e opacidade do EIS curricular e do AICE didático, os quais, conectados, outorgam ao bloco a sobrevivência necessária de um ato tradutório de criação; ato que sustenta e repercute uma expressão significante (eisaiceana), que obstaculiza a repetição de clichês, garantindo a EA alguma citação.

A condensação tradutória de EA percorre raciocínios labirínticos do tipo indutivo-dedutivo, os quais delega aos professores a responsabilidade de sua própria abdução; para, só então, aportar no lugar de uma possível significação. Ou, sugerindo um cruzamento vertical-sincrônico, EA conteria, em sua manifestação de frases, outros significantes, a fervilharem em busca de novos significantes, no contínuo da cadeia sintagmática (eisaiceana).

Num gesto extremadamente ecolálico, chamemos EA bloco de pensamento – paragrama, quase signo, compósito textual, uma Gestalt, um conceito (eisaiceano), uma trans-semiótica, um regime ideogrâmico, uma cadeia fônica, um algoritmo –; bloco formado por duas unidades analíticas e operatórias (EIS AICE) – imagens, séries, ideogramas –; e unidades constituídas por sete elementos (E I S A I C E) – partes, figuras, símbolos, células, gramas, pictogramas, grafemas –; sendo EIS uma tradução do currículo da diferença e AICE uma tradução da didática da diferença (Corazza, 2017bCorazza, S. M. (2017b). Ensaio sobre EIS AICE: proposição e estratégia para pesquisar em educação. Educação e Filosofia, 31(61), 233-262.).

Embora possamos, porventura, denominar EA de palimpsesto, como figura poética, que percorre a pele do texto visível para delinear outro olhar, como campo escópico de vários sentidos possíveis; ou mesmo de galáxia significante, como constelação advinda dos seus significantes (eisaiceanos), os quais demandariam a necessidade de fazer um recorte entre os elementos para delimitar o sentido do bloco. Logo, EA seria uma intertextualização, formada pela transcriação específica dos professores, como um caminho da sintaxe tradutória da arte, da ciência e da filosofia, que expressa a tradução da tradição no presente do currículo e da didática.

Entre tantos paradoxos e não sensos (Deleuze, 1998Deleuze, G. (1998). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva.), EA pode ser considerado, também, uma escrita criptográfica, que exige o estudo de princípios e técnicas, por meio dos quais as informações são transformadas, desde a sua forma original, em outra ilegível. Assim, o bloco seria lido apenas pelos destinatários, autorizados ou detentores de sua chave. Envolvendo a matemática e a criptologia, a cifragem de EA requereria um código e sua correlata decifragem, para recuperação do original a partir do texto cifrado. EA consistiria em um ou mais algoritmos, reunidos sob um parâmetro, que leva a sua cifra (letras e grupos de letras) a ser conhecida, mas não a chave real.

Neste caso, à primeira vista, as sete letras, as duas unidades e o próprio conjunto pareceriam impenetráveis. Mas, quando fosse identificada a remissão dos seus símbolos a um alfabeto ou a outro sistema constituído, o enigma deixaria de ser insolúvel, já que todos os criptogramas são, a princípio, decifráveis, visto a sua natureza criada. Por outro lado, como uma forma organizada do caos, EA poderia ressoar uma inteligência tão perfeita, que não conteria, em si, qualquer enigma a ser decifrado – existiria e pronto.

Talvez toda a emoção de EA resida, apenas, na tensão textual que avança pelo bloco, indo de uma unidade ou de um elemento a outro. Logo, quanto mais constatássemos que não conhecemos EA, mais importante seria descobrir aquilo que dele não sabemos, se quisermos sabê-lo. Desejaríamos, decerto, constituir um sistema lógico, mas EA seria feito, apenas, de acontecimentos fortuitos, sem nenhum plano e método, de modo que sua análise ultrapassaria a nossa capacidade, resultando em um legítimo impasse.

Ocorre que EA é pontuado com letras de uma álgebra que lhe é própria, fórmula do arquivo da educação da diferença. A que necessidade corresponde aquilo que, nesse arquivo, podemos denominar edutemas, didatemas ou curritemas (eisaiceanos)? Nossas pesquisas-docências encontram uma necessidade imperiosa de borrar a fantasmagoria, de reduzir a imaginarização correlativa de qualquer compreensão; e, dessa maneira, formalizar a experiência curricular e didática, para lhes atribuir alguns pontos transmissíveis. Pois o dar sentido excessivo, como costuma ser feito na literatura de formação de professores, nos pareceu sempre um ato religioso, como uma maneira de evitar aquilo que é intraduzível em nosso ofício.

EA pode, tão-somente, produzir algum efeito de significação, talvez, similar ao da poesia, como uma centelha criadora; desde que deixemos a palavra criação ligada à metáfora poética, o que a leva a adquirir uma conotação (re)produtiva. Pode ser, também, que EA funcione como Witz, isto é, como um “jogo engenhoso de espírito” (Campos, 2011Campos, H. de. (2011). O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a escritura) In O. Cesarotto (Org.), Ideias de Lacan (pp.169-188). São Paulo: Iluminuras., p.170), mot d’esprit, dito de espírito, chiste, anedota, piada, graça; assim como trait d’esprit, locução que, não contendo a palavra mot, presta-se “à distinção, existente no texto freudiano, entre Worwitz (jogo espirituoso de palavras) e Gedankenwitz (jogo espirituoso de pensamentos)” (Campos, 2011Campos, H. de. (2011). O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a escritura) In O. Cesarotto (Org.), Ideias de Lacan (pp.169-188). São Paulo: Iluminuras., p. 171); ou, então, como lapso, ato falho, sintoma, diz Althusser (1985)Althusser, L. (1985). Freud e Lacan. In L. Althusser, Freud e Lacan. Marx e Freud (pp. 45-71) (W. J. Evangelista, Trad.). Rio de Janeiro: Graal.: “o equivalente em mímica da linguagem da inconsciente, que é, como todos sabem, em sua essência última, Witz, trocadilho, metáfora, fracassada ou bem sucedida: o equivalente da experiência vivida em sua prática” (p. 59).

Esse jogo engenhoso seria um teatro, não de realidade nem de ideias, mas de posições e de locais, como uma fábrica de produção da didática e do currículo tradutórios. Jogo que delira, por meio do arquivo EA, o mundo inteiro e, quando o faz, constrói agenciamentos múltiplos. EA seria, nessa medida, uma possibilidade sempre aberta de reativar a máquina revolucionária, que atesta as capacidades de abertura e de criação dos professores, as quais ajudam a combater os conservadorismos e os retrocessos que nos assombram.

EA pode, ainda, ser pensado como um septograma ou heptagrama, isto é, uma estrela composta por 7 retas e 7 pontas. Como um símbolo mágico, utilizado em muitos rituais de bruxaria, expressaria a harmonia do cosmos, as 7 cores do arco-íris e as 7 zonas planetárias; também ressoariam, nele, a Estrela Élfica, os 7 dias da semana, os 7 chakras, os 7 metais alquímicos, as 7 notas musicais, os 7 planetas antigos – Sol, Lua e as 5 estrelas errantes: Júpiter, Vênus, Mercúrio, Marte e Saturno. Pode, também, configurar o novo sistema solar, distante cerca de 40 anos-luz da Terra, composto por 7 exoplanetas, que orbitam em torno de uma estrela anã e fria.

Junto com Lawrence (1990)Lawrence, D. H. (1990). Apocalipse seguido de O homem que morreu (P. H. Britto, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras., em Apocalipse, podemos pensar que o número 7 de EA seja tributário de um antigo número semissagrado, que junta o 4 e o 3 do cosmo com seu deus:

Os pitagóricos chamavam-no o “número do tempo certo”. Tanto o homem quanto o cosmo têm quatro naturezas criadas e três naturezas divinas. O homem tem suas quatro naturezas terrenas, e mais a alma, o espírito e o eu eterno. O universo possui os quatro quadrantes e os quatro elementos, e mais os três quadrantes divinos de Céu, Hades e o Todo, e os três movimentos divinos de Amor, Conflito e Totalidade.

(p. 106)

Além disso, há uma vantagem das letrinhas (E I S A I C E): elas (quase) não podem servir de apoio interpretativo, embora possam esclarecer o professor em suas ações. Não incidem sobre o que um professor diz e faz, mas sobre o funcionamento do elo social e subjetivo que compõe a docência e a pesquisa tradutórias. Na melhor das hipóteses, podemos nos servir delas para escrever artigos (como este), mas não podemos comunicá-las ou delas fazer regras institucionais. Dessa maneira, a teoria (eisaiceana) não pode ditar regras, só fornecer os eixos que permitem revelar os pontos de articulação de nossas ações como professores.

Em outro compasso, EA pode ser uma noção, uma ideia, um argumento, um erro, um esquecimento; em suma, um capítulo na educação, que evita a parafrenização da linguagem de pedagogos, políticos, militantes, pesquisadores. Isso porque EA luta contra o trabalho de repressão no nível da expressão, cujo objetivo é parar o trabalho de questionamento – trabalho incessante e transbordante, dobrado sobre o movimento real das coisas curriculares e dos seres didáticos.

O desejo de produção, por parte desse arquivo delimitado como EA, poderia funcionar através de sínteses (Deleuze, 1994Deleuze, G. (1994). A filosofia crítica de Kant (G. Franco, Trad.). Lisboa: Edições 70.), cortando e sendo cortado por fluxos do real. EA viraria, assim, uma síntese – não no sentido kantiano da consciência ou de representações do fenômeno –, com sua determinação de espaço-tempo para a diversidade, referida ao arquivo segundo categorias: síntese figurativa (apreensão na intuição); transcendental (reprodução na imaginação); intelectual (reconhecimento da experiência no conceito). Síntese, como uma atividade organizadora, ordenadora e sistematizadora do intelecto dos professores: síntese conectiva de produção (e... e; produzir-produção); síntese disjuntiva de registro (ou... ou; corpo sem órgãos); síntese conjuntiva de consumo (Oh! Era eu!; nomadismo) (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Como criar para si um corpo sem órgãos. In G. Deleuze, & F. Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (pp. 9-29) (A. G. Neto et al., Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34.).

Esboço de Glossário

Vejamos um glossário3 3 Com base em publicações anteriores, os sete vocábulos deste Glossário foram organizados e discutidos durante a realização do Seminário Especial Escrileituras no Observatório: pesquisa, didática e currículo, desenvolvido em 2015/1, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os três primeiros vocábulos – Espaços, Imagens, Signos – foram compilados por Máximo Daniel Lamela Adó, durante a realização do seu Estágio Pós-doutoral Júnior (2014-2015), apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). possível de EA.

Espaços

Trata-se dos Espaços de tradução do currículo da diferença. Espaços operatórios da transposição criativa − inicialmente da arte, da ciência e da filosofia − para o currículo e do currículo. Espaços trans-semióticos e de movimentos de elementos curriculares que não são concebidos como comunicáveis, mas transcriáveis, uma vez que entendemos que a transcriação (haroldiana) engendra o corolário da possibilidade da recriação. Espaços em que se apresentam as seleções de elementos filosóficos, artísticos e científicos nas composições e nas leituras do currículo da diferença. No entanto, espaços que são intermediários, constituídos por uma intersecção de regiões em circulação permanente e que instauram, nesse fluxo, um novo campo de forças. Espaços que são habitados e produzem condições para novamente ser habitados, ao esvaziar-se na constituição de novas margens, as quais, por sua vez, lhes doam novas instâncias habitáveis. Trata-se dos espaços que vão sendo criados, ao figurarem suas possibilidades, como territórios abertos, abrigos e habitáculos.

Imagens

Imagens que doam e captam, produzem e reproduzem, fazem e se refazem, suscitam e são suscitadas; Imagens de pensamento, sonoras, plásticas, visuais, auditivas, cênicas, musicais; Imagens gráficas, ideográficas, videográficas, cinematográficas, fotográficas, literárias, filosóficas, científicas, culturais; Imagens compositivas, combinatórias, complementares, correlacionais; Imagens técnicas, pobres, copiadas, remixadas, coladas, redistribuídas, viralizadas, tomando o segundo elemento da unidade analítica EIS para tratar das traduções do currículo da diferença. As Imagens de EIS são de afecção e percepção, ação e movimento; ar, água, fogo e terra. Imagens que alimentam imagens. O currículo da diferença vale e é tornado sensível aos poderes educacionais, pela multiplicidade das suas Imagens e dos diversos refúgios que elas abrigam, tornando-o cúmplice dessas Imagens. Imagens que desenham uma rede complexa e traçam pistas, engendram palavras, que engendram novas Imagens, sugerindo a incompletude, antes do que a sua possibilidade de conclusão. Imagens ausentes, que presentificam presenças e Imagens presentes que presentificam ausências.

Signos

Os Signos são o terceiro elemento de composição, combinatória e correlacional, da unidade analítica EIS para tratar do currículo da diferença. Seus tipos (verbais e não verbais) prestam-se a ser confrontados pelo currículo, como elementos não de saber abstrato, mas que dizem respeito a um aprendizado espaço-temporal. Tudo aquilo que nos ensina alguma coisa emite Signos. Dos Signos, o currículo extrai unidades e pluralismos. Os Signos são dotados das forças dos encontros, pois constituem a matéria dos mundos, formando sistemas e regimes. Quando encontros ocorrem, podem exercer uma violência sobre o pensamento, que se implica na criação do pensar no próprio pensamento. Nesse enfrentamento, os Signos oferecem-se à transcriação em Ideias. Não remetem àquilo que é representado, mas àquilo que nos põe diante da presença intensa, material e generativa de quatro conceitos, a saber: Autor, Infantil, Currículo e Educador, expressos pela unidade AICE, e trazendo elementos do Fora, do não conhecido e do não domesticado.

Autor

Tratado como ser, indivíduo, pré-individual, impessoal, tomado em segmentos de devir, que são processos de desejo, o Autor, primeiro elemento do AICE didático, é pensado, acima de tudo, como Tradutor, a partir da filosofia deleuziana da diferença; da teoria da tradução transcriadora de Haroldo de Campos; do método do informe de Paul Valéry; e das pesquisas. Extrator de partículas, que não pertencem mais a como vive, pensa, escreve, pesquisa, mas são as mais próximas daquilo que está em vias de tornar-se, e através das quais ele se torna diferente do que é, este Autor-Tradutor da diferença atravessa os limiares do sujeito em que se torna, das formas que adquire, das funções que executa. Entretanto, não se identifica, não imita, não estabelece relações formais e molares com algo ou alguém; mas escreve, lê, interpreta, aprende, compõe, apenas para desencadear devires. Ressalta o seu potencial de variação contínua, desenvolvendo traços fugidios do ensinar, artistar, traduzir. Sabe que engendrar e seguir alguma via de tristeza ou de alegria, de juventude ou de velhice, de ânimo ou de cansaço, de vida ou de morte, é o que configura a covardia ou a coragem de cada tradução da qual é o Autor.

Infantil

O Infantil, segunda figura de AICE: não mais Ser, Uno, Ideia, Eu, alma, espírito, sujeito, pessoa. Não mais modelo, cópia, acidente, matéria, sensível, inteligível, transcendente, fenômeno, coisa-em-si. Não mais espécie e gênero, hipótese e princípio, contradição e mediação. Não mais ciclo, cronologia, evolução, estágio, etapa, fase, idade, geração. Não mais círculo, centro, vida em hierarquia, mundo em ordem. Não mais retidão do pensamento, significante e significado, propriedade e atributo, qualidade e substância, classificação e descrição, categorias e juízo de Deus. Não mais a criança empírica, idealizada, essencial, dotada de características comuns a certo número de indivíduos; não mais a forma criança, destinada a entrar em oposição ou complementaridade, a vir-a-ser ou a deixar-de-ser cada uma das outras formas – bebê, adolescente, jovem, adulto, idoso. Daqui para a frente, apenas um pensamento impessoal, in-consciente e involuntário, que infantiliza como paradoxo, acontecimento, devir. Porque pensa o Infantil, como força ativa e vontade de potência afirmativa, por meio dos corpos – pequenos e grandes, belos e feios, sãos e doentes, velhos e novos –, que povoam sua superfície paradoxal: corpos sem fundo e sem interior, cujo avesso prolonga o direito, cujo interior é revertido no exterior, e vice-versa.

Currículo

Currículo, a terceira célula de AICE: abre a educação para subjetividades esgarçadas e sujeitos desfigurados; metamodeliza figuras emergentes e tipos sociais transitórios; amplia e transborda os viscos dos agrupamentos subjetivos, penetrando em costumes e revirando maneirismos do avesso; estimula processos de minorização e singularização; incorpora zonas de indeterminação, que acompanham formas de organização, e são correlatas à Substância de Spinoza e à Vida para Nietzsche. Arranca o cimento da estupidez corrente; sequestra o desejo do sacrifício e da privação; pela via do sentido, neutraliza o erro e ultrapassa o verdadeiro; nas bordas da individuação e nos planos de vida faz cortes, que incluem o acaso; traça um diagrama suprassensível de forças, que se formaliza num arquivo transaudiovisual; alcança um plano de imanência para o pensamento (sem imagem dogmática, pressupostos implícitos, ideais conciliatórios de bom senso e senso comum), definido tão-somente por sua potência de afirmar algo vital. Confiando que algo passará do seu agenciamento trans-histórico, embora não forneça certeza do que será, um Currículo pensa. Torna o pensamento curricular de novo possível e nele injeta novidades que não podem deixar de ser pensadas. Cai fora das ilusões educacionais de transcendência. Cria a alegria afirmativa de educar. Busca na vida um sentido próximo a ela e distante de convenções. Fornece procedimentos inatuais para que nunca mais tenhamos de tolerar o intolerável.

Educador

O Educador, último elemento de AICE, é aquele personagem que, para educar, pesquisa, procura e cria, para ensinar; ensina, pesquisa, para procurar e, também, para criar. Procura o ato de criação, que faz da pesquisa-docência e da vida de cada Educador uma obra de arte. Educador que cria, traduzindo, porque adota um ponto de vista transcriador. Aquele que raspa, escova, faxina os clichês do senso comum e das formas legitimadas. Educador-Autor, que assume suas traduções curriculares e didáticas, sem apelar para uma instância criadora, superior e extrínseca a ele e a seu fazer. Aquele que considera criação como a liberdade de inventar os próprios problemas. Educador que sabe que criação é sempre processo de autocriação; ou seja, um diferenciar, diferenciando-se. Ao sintonizar os seus atos tradutórios-autorais com o contemporâneo, exercita se interrogar se tudo o que disse, até então, é tudo o que pode dizer; se tudo o que viu, até agora, é, de fato, tudo o que pode ver; se tudo o que pensa é tudo o que pode pensar; se tudo o que sente é tudo o que pode sentir; se tudo o que traduziu é tudo que pode traduzir. Isso é vivido a favor de um tempo, de uma educação e de um povo por vir.

Desnudações epidérmicas sob a camisa desabotoada

O problema maior que se coloca para toda tradução de EA, qualquer que seja a língua de chegada, é justamente a sua metalinguagem (língua-meta). É que este texto tradutório, que aqui finda, fala de EA e é, ao mesmo tempo, uma linguagem (eisaiceana); em outras palavras, este texto é, ao mesmo tempo, um discurso sobre a linguagem de EA e a linguagem do discurso (eisaiceano); ou, ainda: este texto é a linguagem (eisaiceana) que deve falar; e, a um só tempo, é a própria linguagem de EA.

Por esse motivo, o texto em questão insere-se numa empresa pedagógica, que não separa teoria de prática, nem essas de método, para pensar a realidade da docência-pesquisa da diferença. Mesmo que essa docência-pesquisa seja sempre problemática, os delineamentos do texto incluem-se em um discurso teórico, que se faz filosofia e política, construindo um arquivo de conhecimento e de ação, ao redor de EA e da sua linguagem, capaz de produzir distinções. Por isso, não se trata somente de uma questão de estilo (gongórico ou não), mas de uma encenação de EA, feito luta teórica, na qual o trabalho poiético de subversão é elevado.

Temos, assim, movimentos discursivos em três níveis inseparáveis, da teoria, da prática e do método, a todo momento presentes no discurso tradutório (eisaiceano) do pesquisador-professor, sem que haja prioridade de um sobre os outros. Ao ser reformulado como uma escrita de formação, esse discurso deixa fluir a tarefa pedagógica, sofrendo uma recriação linguística (melhor seria escrever linguageira). A tradução de EA fica, assim, correlata à transformação e à transcriação, não se limitando à passagem de uma língua à outra ou de um sistema a outro.

Para que os leitores fossem conduzidos através de uma forma (mesmo que fantástica ou absurda), a tarefa de quem escreve torna-se duplamente delicada: qual linguagem privilegiar? O discurso sobre a linguagem de EA ou a linguagem do discurso (eisaiceano)? Com esse dilema, evitamos o engendramento de uma superteoria, que fixaria a ordem de uma matesis universalis e, ainda, a fixação de uma ordem (ou prática ou teórica ou técnica), que privilegiasse essa ou aquela linguagem; pois o discurso de EA não é a ilustração de um discurso teórico, nem transferência para a teoria de uma prática, nem aplicação de qualquer método, mas uma teoria da prática teórica e de método; ou uma prática teórica da teoria e do método; ou um método da teoria e da prática; e assim por diante.

A tradução transformadora de EA, realizada por este texto, acontece sem perda de informação, quer no nível semântico ou conceitual, quer no nível significante (eisaiceano); desde que a metalinguagem que, inevitavelmente, é utilizada, não implica o empobrecimento do texto original e, sequer, o enfraquece, mas conserva o mesmo alcance, bem como as mesmas dificuldades. Isso porque consiste na expressão de um conjunto de todas as traduções de prática, de teoria e de método que, mesmo díspares entre si, até agora, foram feitas.

Eis, por fim, EA, em sua fase atual de elaboração, possibilidades e glossário. Aqui onde o texto acaba é justo ali que EA começa – ao modo de Bashô (Campos, 1972Campos, H. de. (1972). A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva.; Leminski, 2013Leminski, P. (2013). Bashô: a lágrima do peixe. In P. Leminski, Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias (pp.79-153). São Paulo: Companhia das Letras.; Paz, 1976Paz, O. (1976). Signos em rotação (S. U. Leite, Trad.). São Paulo: Perspectiva.). Escrever sobre EA não limita o nosso poder de agir, não nos desconecta da lateralidade e nem nos paralisa pelo medo, pois ele é um lugar de travessia − por conseguinte, de dúvidas. A multiplicidade do arquivo EA não admite a dicotomia, desde que acena para a transcriação, que é quando o velho já morreu e o novo ainda não pode vir. EA é este fora intervalar do modelo das expressões mórbidas, da servidão voluntária e do enguiçamento do desejo dos professores. EA afirma as linhas minoritárias, positiva o impasse como potência e nos puxa pelos cabelos (mas sem arrancá-los).

A partir de um campo de relações, redes e agenciamentos dos quais participamos, como docentes e pesquisadores, EA nos chega como um fato e como um feito. Por isso, dele, podemos repetir Artaud (2003)Artaud, A. (2003). Van Gogh: o suicida da sociedade (F. Gullar, Trad.). Rio de Janeiro: José Olympio., falando da vida encontrada nas telas de Van Gogh:

Somente a vida pode oferecer desse modo desnudações epidérmicas que falam sob uma camisa desabotoada, e não se sabe por que o olhar se inclina para a esquerda e não para a direita, na direção do montículo de carne crespa. Mas é assim e é um fato. Mas é assim e está feito.

(p. 68)
  • 1
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
  • 2
    Autoria de Julio Groppa Aquino (USP), em correspondência digital, datada de 19 de janeiro de 2017.
  • 3
    Com base em publicações anteriores, os sete vocábulos deste Glossário foram organizados e discutidos durante a realização do Seminário Especial Escrileituras no Observatório: pesquisa, didática e currículo, desenvolvido em 2015/1, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os três primeiros vocábulos – Espaços, Imagens, Signos – foram compilados por Máximo Daniel Lamela Adó, durante a realização do seu Estágio Pós-doutoral Júnior (2014-2015), apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2017
  • Aceito
    30 Maio 2017
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