Acessibilidade / Reportar erro

Reflexões sobre a regulação e a heterotopia nas aulas de Educação Física

Resumo

A cada dia a escola se depara com maiores dificuldades para lidar com o modo como as crianças e os jovens se apresentam em seu interior. A indiferença deles em relação às estratégias de regulação da conduta promovidas pela maquinaria escolar indica o esgotamento das metas e das análises dela que visam ao controle disciplinar e moral. A partir da noção de heterotopia apresentada por Michel Foucault, este artigo, focalizando as aulas de Educação Física, propõe outras formas de narrar as relações de força que operam o cotidiano escolar considera que, por promoverem e ocuparem espaços heterotópicos como forma de resistência às práticas escolares de regulação, as crianças e os jovens potencializam a diferença, a vida e fomentam novas formas de pensar o espaço-tempo escolar.

Palavras-chave
Educação Física; heterotopia; diferença; resistência

Abstract

Every day, school faces many challenges when dealing with the way children and adolescents present themselves. Their indifference regarding the conduct regulation strategies promoted by the school system indicates the exhaustion of the school’s goals and analyses related to disciplinary and moral control. Based on the definition of heterotopia elaborated by Michel Foucault, this article proposes different ways to refer to power relations that are present in the school routine, with a focus on Physical Education classes. It considers that, by promoting and presenting heteropic roles for resistance to school regulatory practices, children and adolescents reinforce this difference, the life, and favor new ways to consider school space-time.

Keywords
Physical Education; heterotopia; difference; resistance

Escola, governo, heterotopia

A escola moderna pode ser compreendida como o principal dispositivo da Modernidade para disciplinar os corpos, tornando-os dóceis politicamente e úteis economicamente, ou seja, sujeitos governáveis (Varela & Alvarez-Uria, 1992Varela, J., & Alvarez-Uria, F. (1992). A maquinaria escolar. Teoria e Educação, (6), 68-96.). Com Foucault (2012)Foucault, M. (2012). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Petrópolis., é possível dizer que a escola se tornou uma instituição de sequestro dos infantis, que, mediante mecanismos de controle do tempo e do espaço, de técnicas disciplinares como a vigilância hierárquica, o exame e a sanção normalizadora, cria e aplica sistemas de classificação, seleção e hierarquização dos sujeitos, evidenciando seus jogos de poder e uma complexa rede de saberes que circulam em seu cotidiano. Nessa linha, a escola é abarcada como uma maquinaria, que, por meio de técnicas de governo das condutas dos indivíduos, produz e reforça tanto o sujeito moderno como a sociedade moderna.

Seja por meio do adestramento ou da subjetivação, os dispositivos pedagógicos fazem com que o sujeito escolar estabeleça relações consigo mesmo e, ao mesmo tempo, se torne objeto de conhecimento e passe a ser problematizado a partir de parâmetros normatizados. No interior do processo de escolarização, o escolar aprende a expressar-se, narrar-se, julgar-se, ver-se, destarte aprende tanto a ser governado como a governar a si mesmo (Larrosa, 1994Larrosa, J. (1994). Tecnologias do Eu. In T. T. d. Silva (Ed.), O sujeito da educação: estudos foucaultianos (pp. 35-86). Petrópolis: Vozes.). Para o encontro entre as técnicas que governam o sujeito e as que ele utiliza para governar a si mesmo, Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território e população. Cursos doCollege de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes. denomina “governamentalidade”.

Em seus escritos, Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território e população. Cursos doCollege de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes. considera que a Modernidade é o momento da emergência da governamentalidade, uma racionalidade governamental. Afirma que é a partir das táticas gerais dessa racionalidade que podemos compreender a sobrevivência e o funcionamento do Estado. Denomina “governamento” um modo específico de governar a população estabelecida na Europa ocidental, a partir dos séculos XVI e XVII. Dominante nos países capitalistas, desde o século XVIII, essa técnica de poder está centrada mais nas disposições das coisas do que na imposição de leis aos homens. Essas se tornam também ações táticas. A finalidade do governamento, explica, está nas coisas que ele dirige. O bom governo é aquele que dispõe de meios e coloca em ação estratégias que levam os sujeitos à consecução de determinadas finalidades. É o conjunto de práticas e rituais institucionais orientados por algumas metas e ancorado em processos de reflexão e análises contínuos que faz com que os procedimentos governamentais produzam os efeitos esperados na população.

Em resumo, a governamentalidade é compreendida como uma técnica de gestão, técnica de controle social que tem por alvo, como explica Foucault, a população, os indivíduos, os grupos de indivíduos, a multiplicidade de indivíduos.

O visível abrandamento das técnicas disciplinares nas escolas em relação às que a caracterizaram nos últimos dois séculos tem proporcionado queixas docentes, que atribuem a esse fato uma das possíveis causas da indisciplina discente (Aquino, 2011Aquino, J. G. (2011). Da (contra)normatividade do cotidiano escolar: problematizando discursos sobre a indisciplina discente. Cad. Pesqui., 41(143), 456-484.). No entanto, a escola ainda é vista como a principal instituição socializadora capaz de produzir sujeitos disciplinados, autônomos e moralmente autodirigidos (Popkewitz, 1999Popkewitz, T. S. (1999). Reforma educacional e construtivismo. In T. T. da Silva (Ed.), Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu (pp. 95-142). Petrópolis: Vozes.) e, por isso, se mantém como instância que tem por principal função governar as condutas dos alunos. A escola é decididamente um espaço de governamentalidade

Na crítica que dispara em relação à rigidez das formas de regulação da escola, do governo das condutas que promove, Gallo (2013)Gallo, S. (2013). Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In G. Transversal (Ed.), Educação menor: conceitos e experimentações (pp. 75-88). Curitiba: Prismas/Appris. aponta que nela tudo é planificado e controlado. Afinal, a produção de um sujeito autônomo passa pela ação de dirigir e controlar as pessoas para que atinjam esse fim. Mesmo estando diante de novas pedagogias e formas de organização, a escola não abandona as velhas técnicas disciplinares, mas incorpora outras. O resultado, explana, é que, apesar das variações, o modelo de escola de hoje ainda é o modelo platônico que lhe deu origem.

Para superar essa condição ou ao menos desestabilizá-la, Gallo (2013)Gallo, S. (2013). Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In G. Transversal (Ed.), Educação menor: conceitos e experimentações (pp. 75-88). Curitiba: Prismas/Appris. propõe uma educação menor, que, em termos deleuzianos, seria “suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos” (p.4). Para engendrar novos acontecimentos, sugere que a escola crie heterotopias, termo cunhado por Michel Foucault em conferência promovida para arquitetos em 1967.

Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária. apresenta essa noção a fim de questionar a rigidez com a qual a sociedade moderna significou seus espaços. Em oposição à noção de utopia, que significa não espaço ou o que jamais terá lugar, propõe a noção de heterotopia (hetero = outro + topia = espaço) para pensarmos espaços que coabitam com aqueles que foram institucionalizados. Espaços que existem em todas as culturas, que são as contestações dos espaços onde vivemos. Com isso, defende que haja outros espaços nos quais todas as representações estariam presentes. Espaços que, sem dúvida, promoveriam fragmentações de sentidos e, com isso, disputas e conflitos decorrentes da transgressão de seus limites simbólicos. Cabe explicar que:

a transgressão é um gesto relativo ao limite... transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível.

(Foucault, 2009bFoucault, M. (2009b). Prefácio à transgressão. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol.III: estética, literatura, pintura, música e cinema (p. 28-46). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 32)

O filósofo francês assevera que transgredir não é do jogo das oposições, tampouco da ordem do escandaloso, do subversivo, da dialética ou da revolução. A transgressão afirma o ilimitado. Ela acentua que os limites estabelecidos podem ser atravessados e revertidos em novas experiências – experiências-limite. Aquelas que, por transgredir, balançam, provocam, desestabilizam, desnaturalizam qualquer tentativa de certezas e, por isso, de fixação da identidade, do mesmo. A transgressão rompe com qualquer barreira e indica que qualquer determinação de um espaço puro não se sustenta.

Para Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária., as heterotopias são espaços que poderiam ser “localizáveis”, mas estariam fora de qualquer significação definitiva. Seria um tipo de espaço marcado por superposições de espacialidades e por competições que se sucedem no tempo. Espaços que funcionam em condições contra-hegemônicas. As heterotopias, afirma, são lugares de passagem. Lugares onde se está e não se está, como os cemitérios. Lugares onde é possível viver o si mesmo e, ao mesmo tempo, ser o Outro, como nas festas de carnaval. Podemos assim dizer que as heterotopias são espaços de transgressão da norma, a qual insiste em aprisionar identidades.

Como sabemos, o projeto moderno se ancora na busca do universal e na afirmação da identidade das coisas do mundo. Por conta disso, a razão ocidental expurgou o outro, a multiplicidade, a diferença1 1 Adotamos a noção de diferença em seu sentido pós-estruturalista de variação aberta, que não permite a captura do significante por uma identidade plena. Hall (2000) explica que a identidade é construída por meio da diferença e não fora dela, e toda identidade, disciplinado/indisciplinado, por exemplo, só se constitui em relação com um Outro. “o exterior constitutivo”(p.106). com aquilo que lhe falta, no meio de relações específicas de poder. Para o autor, a identidade se ancora e tenta se fixar no momento de exclusão, que ocorre no processo de significação. Disso decorre uma hierarquização e um afastamento entre os polos resultantes das relações, estabelecendo a identidade sem diferenciações, naturalizando-as, e a diferença como negação. A tentativa de normatização da diferença é o que constitui as relações sociais, isto é, a luta pela determinação da identidade de um signo, o seu governo e controle para a definição dos significados, logo, da realidade, do sujeito e da verdade das coisas do mundo. Nessa direção, a escola impõe uma ordem de discurso com vista a garantir a estabilidade da identidade dos signos, mas é constantemente desestabilizada pela diferença. Daí sua força em tentar ajustá-la e deixar de fora dos limites da identidade qualquer ameaça. para as margens da sociedade2 2 Apesar da autocrítica que faz em relação ao uso do termo “exclusão”, Foucault (2015) o justifica como estratégia para escancarar os modos como a sociedade moderna se utiliza de noções psicológicas e sociológicas para classificar delinquentes, minorias étnicas, religiosas, sexuais, entre outros que ficam fora dos circuitos de produção ou consumo como anormais ou desviantes. O termo também é utilizado para classificar os procedimentos “que têm por função conjurar os poderes e os perigos” da materialidade dos discursos, dentre eles a oposição entre a razão e a loucura (Foucault, 2006, p. 9). . No entanto, a partir dos séculos XVII e XVIII, engendraram-se esforços a fim de adestrar o corpo, o comportamento e as aptidões daqueles que escapavam dos processos de normalização.

Estabeleceu-se a vigilância generalizada e constante, de modo que tudo e todos poderiam ser observados. Na mesma linha, notam-se o desenvolvimento e a organização de uma polícia (com a elaboração de uma burocracia estatal, apoiada em um sistema de arquivos e registros, contendo fichas individuais), uma mecânica de localização dos corpos (situando os indivíduos em espaços isolados ou agrupados) para a utilização máxima das suas forças, visando a um maior controle social e à melhoria do rendimento produtivo (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território e população. Cursos doCollege de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes., 2012, 2015).

A questão posta pela governamentalidade favoreceu o surgimento de um corpo de especialistas e a elaboração de um sistema de expertise que produz e dissemina técnicas de governamento e, ao mesmo tempo, delimita seu campo de atuação, como é o caso das ciências psicológicas. Destacamos que nessa racionalidade a infância, como parte de um conjunto maior (a população), passa a ser categorizada, descrita, organizada por meio de estatísticas e se torna objeto de certas instituições. Desse modo, sobre ela se produzem saberes e, com isso, formas de conduzir suas condutas, falas, emoções, etc. que implicam a constituição das subjetividades infantis (Rose, 1999Rose, N. (1999). Governando a alma: a formação do eu privado. In: T.T.da Silva (Ed.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu (pp.30-45). Petrópolis: Vozes.).

Disso decorre a produção de discursos provenientes desse sistema que veiculam regimes de verdade que afetam diretamente a relação que se estabelece com as crianças (Bujes, 2002Bujes, M. I. E. (2002). Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A.). Não à toa, o modo de vê-las, abordá-las, ensiná-las, dizer sobre seu corpo, sua gestualidade, seus comportamentos e projetar seu futuro está imerso em uma racionalidade que se articula à governamentalização do Estado. Isso favorece o exercício do domínio político sobre a população e cada indivíduo, a fim de organizá-los de modo eficiente e com poucos gastos. Por conta disso, um dos objetivos centrais dos Estados-nações modernos foi o de transformar a criança em aluno. Um aluno governado por uma miríade de técnicas disciplinares e imaginado a partir do projeto dos ideais liberais do cidadão moderno (Ramos do Ó, 2009Ramos do Ó, J. (2009). A governamentalidade e a história da escola moderna: outras conexões. Educação & Realidade. 34(2), 97-117.).

Não à toa, para Foucault (2013)Foucault, M. (2013). Os anormais. Cursos do College de France (1980-1982). São Paulo: Martins Fontes., emerge nessa conjuntura o sujeito psicológico. Aquele que pode se sujeitar aos processos de aprendizado e adestramento e, por conseguinte, passível de ser corrigido ao sinal de qualquer desvio patológico por meio de intervenções normalizadoras, como as presentes nos dispositivos de escolarização. Objetivava-se assim ampliar a segurança das populações, isto é, minimizar qualquer risco de crise ou ameaça à ordem estabelecida.

Importante frisar que nas análises foucaultianas a norma contém para si tanto o normal como o anormal. Esse não representa uma ruptura à norma, mas se estabelece a partir dela, da sua referência.

A norma, diferentemente da lei, pretende ser um conceito descritivo: média estatística, regularidade, hábito. Pretende objetividade: justificação racional. Mas o normal é um descritivo que se torna normativo. O normal se converte em um critério que julga e que valoriza negativa ou positivamente. ... em um critério complexo de discernimento: sobre o louco, o enfermo, o criminoso, o perverso, a criança escolarizada.

(Larrosa, 1994Larrosa, J. (1994). Tecnologias do Eu. In T. T. d. Silva (Ed.), O sujeito da educação: estudos foucaultianos (pp. 35-86). Petrópolis: Vozes., p. 76)

Os esforços da sociedade moderna foram para consolidar o espaço do mesmo, do igual, daí a sua institucionalização. A intenção de Foucault com o termo heterotopia é destacar outros espaços para, assim, escancarar e potencializar os espaços silenciados, marginalizados, os espaços do Outro. Sublinha que a heterotopia produziria efeitos tanto de ruptura sobre a ordem vigente como sensações de desconforto para os que a experimentassem. A esse aspecto negativo, Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária. reforça que a heterotopia também causaria a satisfação de alguma necessidade e por isso teria papel destacado nas transformações sociais.

Da ótica da noção de heterotopia, buscamos olhar de outro modo para o interior das relações que ocorrem na escola, especificamente nas aulas de Educação Física (EF). Em nossas observações, evidenciou-se a maneira como os alunos resistem às formas de governo das condutas que a escola impõe aos seus sujeitos por meio das relações saber-poder. Dentre as várias passagens da obra de Foucault (2010)Foucault, M. (2010). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. em que define a noção de poder, neste texto optamos pela definição a seguir:

Enfim, não entendo o poder como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessam o corpo social. ... Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (pp. 102-103)

Como explica Foucault (2010)Foucault, M. (2010). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal., não há como escapar do poder, pois não existe sociedade sem relações de poder. Isso não quer dizer que não é possível resistir ao poder. Para o autor, “onde há poder, há resistência” (p. 105). Não que haja um lugar da grande recusa, mas sim resistências, que são únicas e produzidas no interior das relações de poder. São irregulares, móveis e transitórias. As resistências produzem rupturas, bloqueios, atravessam a vida de todos, recortam os sujeitos e os remodelam. Resistir ao poder implica dizer que existe a possibilidade da liberdade. A liberdade seria para Foucault (1995)Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In P. Rabinow, & H. Dreyfuss,Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica) (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária. recusar o que somos. Isso fica claro quando comenta que:

A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização a que ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individualidade que nos foi imposta há vários séculos. (p. 239)

Se a noção de poder foucaultiana nos remete a pensá-la como relações de força, que produzem afetos e afetam os sujeitos, resistir seria para o filósofo a capacidade que a vida tem de resistir a um poder que quer governá-la. Resistir é criar outras possibilidades de viver. Por resistir, as formas de resistência provocam incessantemente novas correlações de força, novas formas de governo e técnicas de capturas de sujeitos e, por conseguinte, novas estratégias para delas se escapar. No campo da educação isso é mais visível, pois implica conduzir por anos aquele que se educa. O que muda são suas táticas e motivações.

Essas mudanças ganharam força a partir do século XIX, momento em que proliferaram na Europa capitalista as instituições que visavam cuidar das crianças. Emergiu, nos dizeres de Narodowski (1996)Narodowsky, M. (1996). A infância como construção pedagógica. In M. V. Costa, M.V. (Ed.), Escola básica na virada do século: cultura, política e currículo (pp. 107-118). São Paulo: Cortez., o Estado educador, tendo em vista a construção de uma sociedade mais justa. No entanto, as crises geradas pelos processos de urbanização e pelas relações de trabalho não garantiram essa promessa. Surgiram como solução, no final do século XIX e ao longo do XX, as políticas do Estado de Bem-Estar Social, de modo a rearranjar as relações entre produção, administração e questões sociais. No Estado do Bem-Estar, o aparelho estatal é responsável tanto por criar um conjunto de tecnologias de governamento para socializar cada indivíduo, como para regular a vida econômica em nome da segurança e da tranquilidade coletiva. Nesse bojo, a criança passa a ser responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e Estado na expectativa de garantir-lhe o exercício de seus direitos ao bem-estar. No Estado provedor, as políticas para a infância têm funções inclusivas (Bujes, 2002Bujes, M. I. E. (2002). Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A.)3 3 Pode-se dizer que, no Brasil, as políticas do Estado do Bem-Estar Social não se consolidaram. No entanto, após a Constituição de 1988, evidenciaram-se esforços para a sua efetivação, o que implicou a luta pela consolidação dos direitos das crianças. A criança passa a ser vista como cidadã e, em contrapartida, tem que aprender a cumprir seus deveres, compreender e assumir suas responsabilidades sociais. Cabe às instituições educá-la de modo que se torne um sujeito que se autocontrole e se autogoverne. Diante dessa finalidade, a escolarização tornou-se obrigatória e estabeleceram-se, desde a promulgação da LDB 9.394/96, políticas curriculares pautadas na governamentalidade neoliberal. Essas, por sua vez, focam seus interesses em potencializar as capacidades de cada criança e ancoram-se em modelos de gestão empresarial, que invadem as creches, as escolas e os demais lugares por onde as crianças circulam (Bujes, 2000). . Termos pautados na proteção à criança, como gravidez precoce, pedofilia, trabalho infantil tomam a cena, assim como cidadania, autonomia e desenvolvimento ganham destaque em conjunto com aqueles que realçam o desempenho e as metas escolares. Como resultado, geram-se maior cerco e controle a respeito do que as crianças podem e devem fazer, a fim de se alcançar o esperado.

No entanto, as crianças, como alunos, como diferença, vivem experiências transgressoras, experiências-limite e escapam. Ou seja, vivem as experiências que não são aceitas pela escola/sociedade. Mais! Experiências marginais sobre as quais se produzem discursos que as desqualificam e formam saberes que tentam domar sua força perturbadora, a força radical da sua diferença (Larrosa, 1998Larrosa, J. (1998). Pedagogia profana. Porto Alegre: Contrabando.). É aqui, na possibilidade da experiência transgressora do limite que os sujeitos da educação podem se distanciar das normas que produzem o campo de possibilidades de sua atuação e que, ao mesmo tempo, criam brechas e questionamentos a respeito dos seus próprios fins, fomentando resistências.

Por meio de um estudo de tipo etnográfico4(André, 2005André, M. E. D. A. de (2005). Etnografia da prática escolar (12a ed.). Campinas: Papirus.), descrevemos e analisamos o desenrolar dos acontecimentos no contexto escolar. Foi, portanto, por meio dessa “experiência etnográfica”5, especialmente pela sua dimensão imprevisível, (Magnani, 2009Magnani, J. G. C. (2009). Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos. 15(32), 129-156.; 2012Magnani, J. G. C. (2012). Da periferia ao centro. trajetórias de pesquisa em antropologia urbana. São Paulo: Terceiro Nome.) que nos permitiu entender como acontecem as formas de resistência às relações saber-poder promovidas pela escola-docência presentes nas aulas de EF.

A turma acompanhada era composta por 30 alunos e alunas do 5. ano do Ensino Fundamental de uma escola pública, localizada em bairro de classe média, na Zona Sul de uma grande metrópole. O estudo foi realizado em uma sequência de aulas intercaladas e compactadas em um período de oito semanas. Destacamos que não seguimos a cronologia dos acontecimentos. As narrativas das aulas foram justapostas de modo a favorecer a leitura das suas análises. A fim de preservar o sigilo dos participantes da pesquisa, os nomes em tela são fictícios.

Nas análises que efetuamos, as heterotopias descritas estão apoiadas nos escritos de Michel Foucault e para além deles.

Aulas de Educação Física: heterotopias

As aulas de EF observadas ocorreram em duas quadras: uma situa-se ao lado do estacionamento dos funcionários e outra nos fundos da escola. Essa última é delimitada por uma arquibancada na sua entrada, que serve de acesso dos alunos às aulas. Nos fundos e em uma das laterais dessa quadra há árvores em um espaço de terra batida. Do outro lado, o alambrado fecha o perímetro.

Na primeira aula observada, a professora acolheu os alunos na classe, afim de solicitar-lhes que trouxessem para o encontro seguinte informações a respeito do local onde os pais nasceram e quais as brincadeiras que faziam na infância. Essa ação tinha por intenção aplicar as atividades elencadas por meio das histórias de vida dos pais/parentes dos alunos. No percurso, a professora de EF decidiu ir para a quadra, que fica ao lado do estacionamento dos funcionários da escola. Para acessá-la, no caminho, há uma porta que, normalmente, permanece fechada. Aspecto que reforça a disciplinarização dos corpos por meio da delimitação dos espaços. De um lado, o espaço da cognição; do outro, o espaço do movimento. Cabe destacar que esse tipo de controle de circulação está presente na maioria dos relatos que obtemos de graduandos que efetuam seus estágios nas escolas. Isso é indiferente quanto ao sistema de ensino ser público ou privado.

Na parte lateral do estacionamento existe uma pequena mureta, que divide o caminho até chegar à quadra. Sua presença fez com que alguns meninos não andassem em fila, como requeria a docente. Eles optavam por nela se equilibrar, pular esse obstáculo de todas as formas que lhes eram viáveis. A professora não se manifestou. Não insistiu na condução dos alunos pautada na norma e por meio da fila, como costumeiramente se observa nas escolas. Os motivos podem ser vários. Pode ser por ela não perceber, por ela considerar e validar que se trata de uma ação típica de meninos e tida como “natural” da idade ou por ser contrária às normas institucionais, entre outros. Poderíamos analisar seus efeitos e aqui afirmar que seu silêncio favorece a instauração da indisciplina, o reforço de processos de subjetivação masculinizados ou a crença da promoção da propalada autonomia. Porém, seguir por esses caminhos nos afastaria do foco do trabalho: o aluno. Aqui, nos deparamos com a primeira heterotopia da resistência, da transgressão observada.

Como afirma Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária., as heterotopias assumem formas variadas e justapõem lugares incompatíveis. Ao se arriscarem em acrobacias corporais sobre essa fronteira, os alunos denotam resistências às normas estabelecidas em relação às formas autorizadas de translado dentro da escola. Enquanto heterotopia, a mureta é transformada em espaço para contestar sua função arquitetônica planejada para delimitar o espaço. Torna-se outra coisa. Passa a ser um espaço de vivência fugidia, de lazer, um espaço lúdico, ligeiro e fugaz que não permite sequer pensá-la como problema. O que implicaria sua supressão, expansão ou, ainda, cercá-la com algum objeto que impedisse seu “uso” por parte da turma. O que se passa na cabeça e nos corpos dos aventureiros? Quem será que querem ser? Um herói? Um vilão? Ou querem apenas experimentar a si mesmos em espaços outros e de outros modos? Tanto faz! O que importa é a possibilidade que a heterotopia proporciona como experiência de ser criança, diga-se a identidade criança inventada pelos adultos (Foucault, 2009aFoucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.).

Em vários dias de observação, aguardamos na arquibancada a chegada dos alunos. Em todos, ouvíamos, ao fundo, a gritaria da “invasão”. O som da chegada dos alunos era notório. Muito falatório, tom de voz alto, correria, provocações e palavrões marcavam a cena. Sem dúvida, uma experiência de si impossível de transpor para a linguagem escrita (Wacquant, 2002Wacquant, L. (2002). Corpoe alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: RelumeDumará.). Assim que entravam na quadra, especialmente os meninos, certos rituais se repetiam: pulavam os degraus da arquibancada, penduravam-se no travessão do gol e dirigiam-se até a árvore maior, localizada ao final da quadra. Outros retiravam as bolas de um saco postado ao lado do alambrado e começavam a chutá-las. Enquanto a ordem não foi estabelecida, a quadra permaneceu como heterotopia com aspectos de carnavalização das normas. Somente mediante ameaças elaboradas pela docente ou quando de sua ausência, instituídas por um inspetor de ensino, foi que a quadra voltou a ser (para quem?) o que dela se designa formalmente.

A quadra, especialmente elaborada para a prática esportiva e a transmissão de seus valores de eficiência, respeito, competição, mérito, etc., também é uma heterotopia quando tomada para outra coisa. Se a educação é um aparelho poderoso de controle e disciplinarização dos sujeitos, a chegada dos alunos à quadra para a aula de EF faz dela outra coisa, outro espaço. Em suas infinitas formas, parece que, neste momento, ela permite aos alunos escapar das técnicas de captura, estratificação, classificação, hirarquização, enfim, de sujeição e permite a promoção, mesmo que extemporaneamente, de estratégias para escapar das amarras identitárias que a escola quer lhes impor. A chegada da turma faz da quadra a heterotopia de contestação de todos os espaços, tempos e normas escolares. Mesmo quando a quadra assume a identidade fixada com sua finalidade utilitária, a heterotopia por lá permanece virtualmente e retorna materializada para ocupar o seu lugar em outra aula, a cada dia, de outro jeito.

Certo dia, a professora de EF faltou e foi substituída por outra professora. Evidenciou-se que o olhar da professora substituta estava centrado apenas para as meninas, que ocuparam o parquinho – sua heterotopia predileta –, que fica próximo à quadra. Deixou os demais à revelia e a distância. Praticamente todos os meninos se organizaram para jogar futebol. Outros não puderam romper com as fronteiras que a prática corporal do futebol impõe e ficaram à margem, sem serem notados. Estavam ali, mas não queriam. Heterotopia do esquecimento.

Um dos alunos trouxe uma bola pequena com o logotipo de um clube de futebol da Inglaterra. Como consumidores, suas vidas são governadas em torno do desejo de ter. Seus interesses são governados de forma a promover gostos, formas de autoexpressão e incentivar fantasias (Bauman, 2008Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: a transformação das pessoasem mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.; Sarlo, 1997Sarlo, B. (1997). Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte evídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.). Os alunos assumiram-se atletas do Real Madrid e do Barcelona, clubes do futebol espanhol. Ao final da partida, os vencedores enfatizaram que o Barcelona era melhor que o Real tanto na Espanha como nas aulas6 6 Naquela tarde aconteceu o jogo entre Real Madrid e Barcelona pela Copa dos Campeões, e a imprensa brasileira realizou a cobertura dessa partida. . Nesse dia, nenhum aluno subiu na árvore. Não precisaram. A aula, a quadra como heterotopia, permitia outras possibilidades de ser. A quadra era o simulacro dos estádios nos quais os times profissionais se enfrentam. Heterotopia-simulacro.

Como coloca Jameson (1997)Jameson, F. (1997). Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática., as transformações sociais imputadas pela revolução da comunicação e o avanço das mídias na vida das pessoas promovem novas formas de regulação da cultura, que forjam os indivíduos, suas práticas e hábitos sociais em meio ao fascínio que os textos culturais produzidos e comercializados exercem, como é o caso do futebol. No entrelaçamento entre cultura e economia, que produz a espetacularização e o consumo de artefatos culturais também se produzem identificações (Hall, 1997Hall, S. (1997). Centralidade da cultura: notas sobre asrevoluções de nosso tempo. Educação e Realidade, 22(2), 15-46.). Autores como Bauman (1999)Bauman, Z. (1999). Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., Harvey (2009)Harvey, D. (2009). A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre asorigens da mudança cultural. São Paulo: Loyola., Lipovetsky (2012)Lipovetsky, G. (2012). O reino da hipercultura: cosmopolitismo ecivilização ocidental. In H. Juvin, & G. Lipovetsky (Eds.), A globalização ocidental: controvérsia sobre cultura planetária (pp.1-67). Baureri: Manole., entre tantos, se utilizam de palavras tais como liquidez, volatilidade, efemeridade, descartabilidade, instantaneidade, para descrever as experiências que vivemos cotidianamente como um eterno presente, sem passado, nem futuro. O que se percebe é que o sonho de ser jogador de futebol toma conta da vida desses meninos. Suas falas externalizam, de algum modo, desejos de fama e reconhecimento. Transformam as dificuldades do cotidiano de alunos pobres da escola pública em um Olimpo de heróis por meio dos modos de andar, comemorar, provocar e traduzir as formas de ser de seus ídolos. A heterotopia-simulacro é o lugar de vida intensa, porém pouco extensa. Em poucos minutos, por conta da intervenção impositiva do adulto, ela se esvaiu.

Embora os alunos se organizassem para a prática e tentassem garantir harmonia entre todos, a fim de evitar paralisações ou supressões do jogo, as discussões não tardaram a aparecer. Dúvidas e reclamações em relação à aplicação das regras, xingamentos e negociações tomaram a cena. Nada de novo, afinal as ações escolares são sempre vigiadas e conduzidas por experts e vigilantes, que não deixam o dissenso ocorrer, tampouco a se aprender com ele. Fato que percebemos em todo o tempo das observações.

Como os alunos já anteviam, em dado momento, a professora substituta interveio. Adentrou o espaço do jogo e ameaçou um deles: “quero te pôr pra fora faz tempo! Você e o Jonas”. Pela reação do garoto e dos demais, o ato parecia naturalizado. Ele saiu do jogo, mas ficou poucos minutos fora e voltou para o gol como se nada tivesse acontecido. Mais à frente, outra confusão, e a professora exclamou: “você e o Daniel não jogam bola comigo! ”. Fez-se breve silêncio e o jogo se reiniciou com seus sonhos e desejos e a presença dos dois indesejáveis. Nota-se aqui que a relação entre a docente e esses discentes já estava estremecida fazia tempo. Do mesmo modo, nota-se que ela os tem como desordeiros, agressivos, insolentes, belicosos, entre outros adjetivos inventados e categorizados para nomear os sujeitos fora da ordem (escolar).

Outro momento: depois de mais da metade do tempo da aula jogado, a responsável pediu para que deixassem Caio participar do jogo. Esse garoto pertence a outra categoria. Ele é classificado pela escola como alguém que possui um comprometimento físico que limita o uso do corpo em algumas ações, tal como a que o jogo de futebol costumeiramente exige. No entanto, como sujeito da sociedade de consumidores, também se identifica com a prática e com seus adeptos. Apesar de ser marcado culturalmente pela sua condição corpórea, também quer fazer parte dessa sociedade. Quer estar inserido no jogo, dentro da heterotopia-simulacro. O aceite de sua entrada pelos demais alunos não foi forçado. Ele participou em vários momentos do jogo por meio de passes recebidos dos colegas. Sua presença representava um aliado importante para os demais. A inclusão se deu para o jogo acontecer sem cortes ou repressão. Os alunos fazem crer que, por deixar todos jogar, essa atitude seria reconhecida pela professora, e a peleja seguiria tranquilamente, sem interrupções para broncas.

Conforme pontua Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária., as heterotopias não assumem formas constantes. Se, em certo tempo da aula, o jogo, a quadra são heterotopias-simulacros, os antagonismos entre professor e determinados alunos transbordam o espaço. Como se sabe, muitas vezes, a quadra é o lugar em que determinados alunos ocupam o centro. São os habilidosos. Muitos desses são tidos como bagunceiros, ou melhor, perigosos para a ordem escolar. Esses fazem da quadra o que Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária. denominou “heterotopia de desvio”: lugares que as sociedades dispõem em suas margens, reservados aos indivíduos que se comportam de forma desviante em relação à norma. Ora, não é à toa, que muitos alunos se dirigem para a quadra de esportes da escola quando querem “matar” a aula ou lá ficar por se sentirem reconhecidos. Ou, o contrário, pois não são raros os momentos em que “estes” sujeitos escolares são proibidos de a acessar como medida punitiva ou socioeducativa como requerem alguns. Tudo depende das intenções dos sujeitos. Nessa heterotopia, ao mesmo tempo pode-se estar protegido como se estivesse em um castelo fortificado; ou desprotegido, por estar ao ar livre. Afinal, os inspetores de ensino, guardiões da ordem escolar, sabem bem onde encontrá-los. A quadra também é uma heterotopia de passagem (Foucault, 2009aFoucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.).

Mais! Há heterotopias, diz Foucault, que supõem um sistema de abertura e fechamento que as tornam impenetráveis. Podem parecer, muitas vezes, simples aberturas, mas, em geral, escondem exclusões. Todo mundo pode entrar nesses locais heterotópicos. Acredita-se estar dentro, e é justamente por ali entrar que se está excluído. Sabemos bem como o discurso da inclusão, acompanhado do da tolerância, produz o Outro a ser tolerado. A educação conduzida pelo discurso da tolerância produz e reforça a indiferença diante do estranho. Ela tenta evitar a todo o custo a possibilidade de algum mal-estar, materializa a morte do diálogo e negligencia os valores e as forças que produzem classificações negativas (Duschatzky & Skliar, 2000Duschatzky, S., & Skliar, C. (2000). Os nomes dos outros. Reflexões sobre os usos escolares da diversidade. Educação & Realidade 2(25), 163-177.). Em geral, a educação não contribui para os alunos questionarem o modo como aprenderam a falar de si e do outro.

Claro está que a ação docente tenta trazer a diferença para o âmbito do mesmo (Skliar, 2003Skliar, C. (2003). Pedagogia (improvável) da diferença: e se ooutro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A.), para em seguida colocá-la, no mínimo, perto de um desvio de conduta ou eficiência motora e cognitiva tolerável. Assim é o modo costumeiro com que a escola contemporânea aborda a diferença. Colocar e aceitar a diferença por perto permite aumentar o controle sobre ela e, assim, diminuir os riscos de sua ameaça ou o que ela representa. Pode-se dizer, também, que se trata de um empenho em reforçar um estilo de vida consumidor de práticas corporais, mesmo que suas condições de consumo não sejam as melhores. Como argumentam Bauman (1999)Bauman, Z. (1999). Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. e Foucault (2013)Foucault, M. (2013). Os anormais. Cursos do College de France (1980-1982). São Paulo: Martins Fontes., a aceitação da diferença se dá por meio do conhecimento do que estava colocado à margem e decorre na invenção de novas estratégias de classificação ou em formas de inseri-la em uma categoria já existente. O que não significa inclusão. O que acontece, nos dizeres de Veiga-Neto e Lopes (2007)Veiga-Neto, A., & Lopes, M. C. (2007). Inclusão e governamentalidade. Educ. Soc., 28(100 - Especial), 947-963. é, no máximo, uma inclusão excludente.

Na Educação Física, isso vai além. Seus currículos modernos esportivistas, psicomotores, desenvolvimentistas, saudáveis ou críticos afirmam a igualdade, o universal e não percebem a diferença. Pelo contrário, neles ela é tida como incômodo. No limite, sua presença é vista como falta de algo. Daí a importância da escola como instrumento de ajustamento dos sujeitos e a sua intervenção para a compensação das deficiências individuais. Por querer colocar todos na aula, seja do mesmo jeito, seja adaptado à sua prática a partir de padrões de referência, o que se tem é a afirmação de certos corpos e a negação de outros, criando identidades (o normal) e diferenças (o anormal). Aquele que tem que ser valorizado e aquele que tem que ser corrigido ou tolerado nas aulas de EF (Neira & Nunes, 2009Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009). Educação Física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte.).

Como se percebe, na heterotopia do desvio, a professora apenas regulou a conduta dos alunos de forma efêmera. Ou será que os alunos quiseram fazê-la crer que os havia regulado? Tudo é possível!

As aulas foram permeadas por práticas corporais populares tais como jogos de queimada, brincadeiras de pular corda e também por práticas com aspectos funcionais inventadas por professores de EF como o jogo do pebolim humano. Cabe destacar que as práticas corporais populares tiveram maior envolvimento dos alunos do que a prática funcional, talvez em decorrência da falta de sentido da segunda ou, como dizem Carvalho e Pontes (2003)Carvalho, A. M. A., & Pontes, F. A. R. (2003). Brincadeiraé cultura. In A. M. A. Carvalho, C. M. C. Magalhães, F. A. R. Pontes, & I. D. Bichara (Eds.), Brincadeirae cultura: viajando pelo Brasil que brinca (pp. 15-30). São Paulo: Casa do Psicólogo., porque a transmissão vertical das brincadeiras (do adulto para a criança) tem menor eficácia simbólica do que quando é transmitida entre pares. Em geral, em todas as aulas houve muita discussão e negociação entre a docente e uma parcela de alunos, para que as atividades se realizassem do seu modo e no tempo determinado. O resultado sempre acabou em pequenos escapes para as regiões heterotópicas.

Certo dia, a pedido da professora, a inspetora de ensino levou para diretoria os meninos que tumultuavam a aula, impedindo que a atividade proposta seguisse a contento. Antes de sair da quadra, a inspetora dirigiu-se a um dos observadores e comentou: “Em outra escola a pessoa que cuida da biblioteca deu uns tapas nos alunos. Mas também eles testam os nossos limites. Os pais não dão educação e sobra tudo para o professor. Veja esse [apontando para um deles] os pais não deram educação”. Ele não gostou do comentário e respondeu: “a minha mãe me deu educação, sim! ”.

Foucault (1995)Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In P. Rabinow, & H. Dreyfuss,Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica) (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária. explana que as formas de resistência não são do caráter da denúncia moral ou da reivindicação de um direito, mas da ordem das lutas. O objetivo dessas lutas não é atacar determinado grupo, classe ou instituição de poder, no caso em tela a professora e a escola. Trata-se de uma luta contra uma técnica particular de poder que classifica os indivíduos para fixá-los em uma identidade de modo coercitivo. Uma técnica que tenta torná-los certos sujeitos, a fim de impor-lhes uma lei da verdade, que enquadra os indivíduos em uma categoria (aqui se trata do mal-educado). Para tanto, se faz necessário que o sujeito nela se reconheça e que os outros o reconheçam nessa classificação. Somente assim o resultado esperado poderá ocorrer. Na relação de poder estabelecida entre aluno e professora fica evidente a resistência, a luta da criança-aluno contra “aquilo que liga o indivíduo a ele mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão) ” (Foucault, 1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In P. Rabinow, & H. Dreyfuss,Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica) (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 235).

Em um dos momentos de intervalo entre as turmas, a professora ressaltou que uma das dificuldades em se trabalhar naquela escola especificamente é que ela é uma “escola de passagem”. Denomina-a desse modo porque poucos alunos que estão matriculados moram no entorno ou na região próxima. A maioria deles reside em bairros distantes e vem com os pais que trabalham no bairro. Para ela é mais fácil trabalhar numa escola em que os alunos pertencem à mesma realidade. Lidar com a diferença em larga escala parece ser para essa docente uma tarefa hercúlea.

Podemos observar que tanto os comentários da inspetora como o da docente reforçam que os agentes escolares organizam e criam expectativas quanto à prática pedagógica ancorados em modelos ideais de família e de aluno. Além disso, as falas anteriores colocam em circulação e, por isso, reforçam discursos que constituem e constroem as representações negativas das famílias e das crianças pobres e as produzem como problemas a serem enfrentados para a garantia da coesão social na sociedade moderna. Mais um reforço do medo da presença desestabilizante da diferença.

Como afirma Dornelles (2005)Dornelles, L. V. (2005). Infâncias que nosescapam: dacriança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes., ao longo da Modernidade, diversos discursos construídos a respeito da criança produziram verdades e práticas com a finalidade de disciplinar e produzir o sujeito-aprendiz. Não cabe aqui retomar essa genealogia, tampouco a da família moderna, apenas localizá-la. O que importa é atentarmos para os discursos que nos impõem uma generalização do que significa família e o ser infantil. Falas que impedem pensarmos que existem várias infâncias e famílias e compreender o porquê da emergência e da manutenção do modelo padrão e das tecnologias de governo de ambas.

Como coloca Foucault (2010)Foucault, M. (2010). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal., foi a partir das políticas médicas, instaladas na Europa do século XVIII, que a família moderna passou a ser alvo de vigilância intensiva. Ela passou a desempenhar papel central nas estruturas administrativas, articulando os cuidados necessários dos seus membros com as políticas sociais, decorrendo no que denomina “família médica-medicalizante”. A família passou a orbitar em torno dos cuidados com as crianças, o que se transforma em um problema médico, moral, econômico e político, pois significavam o futuro da nação e não poderiam sucumbir às doenças nem aos vícios da sociedade urbana e industrial.

Essas foram as condições que permitiram a constituição da criança como um objeto de saber, que atende a uma vontade de poder. Isto é, a invenção de saberes específicos que permitem definir o que é a infância e quais são as tecnologias adequadas para governá-la. Além disso, são os saberes instituídos a respeito de ambas, que permitem descrevê-las, classificá-las, compará-las, hierarquizá-las. Nesse instante se instaura, também, a diferença entre a família burguesa e a popular; logo, entre as crianças oriundas dessas classes sociais. Eis as condições de possibilidade em que surgem e se propagam os experts autorizados para dizer o que elas podem e não podem fazer, – enfim, aqueles autorizados a dizer como governá-las. O que se percebe na fala da inspetora é a reprodução dos discursos que atribuem às famílias pobres a culpa pelo desvio de comportamento moral da norma instituída do que venha a ser a “boa” educação.

Ao enfatizar que o problema da escola era por conta de ser um local de passagem, a professora também reforça o discurso da culpa da família, porém amplia seu espectro de significação. Ela atribui o problema ao fenômeno da circulação das crianças pobres, que se caracteriza pelo fluxo constante dessas crianças entre lugares diversos, muitos deles entre a casa nuclear e a de parentes, amigos, ou entre os lugares de resguardo e espaços sociais destinados ao seu controle, seja os mantidos pelo Estado ou os organizados pelo terceiro setor, como paróquias e ONGs, que cuidam da sua formação ou até mesmo a rua (Motta-Maués, 2004Motta-Maués, M. A. (2004). Na casa damãe/na casa do pai: anotações (de uma antropóloga e avó) emtorno da circulação de crianças. Revista de Antropologia, 47(2), 427-452.). Afinal, para onde elas vão após o término das aulas, enquanto aguardam o fim da jornada laboral dos pais? Esses discursos, sem dúvida, facilitam a produção de regimes de verdade que afirmam este fenômeno como elemento que dificulta a “boa” educação e afirmam a infância problemática a ser corrigida e, por conseguinte, uma das possíveis causas da indisciplina e da violência dos jovens de hoje.

Como se percebe, entre a vida governada e o governo de si, os alunos não aceitam de bom grado essas identidades. Não à toa, está cada dia mais difícil a escola e seus experts definirem quem eles são, para efetuar suas tecnologias de governo. Não à toa, a escola se transforma em espaço de resistência, espaço outro, heterotopia. Heterotopias da negação da identidade imposta.

Em outro dia, um número expressivo de alunos não estava disposto a fazer a aula. Após quase 20 minutos de atividade, 7 deles, por conta própria, se retiraram para sentar na arquibancada e conversar uns com os outros, abordando diversos assuntos. Alguns foram constantemente beber água. No bebedouro, distante do olhar panóptico da professora e dos agentes da escola, alguns conflitos emergiram. Alguns foram negociados, apaziguados e, por vez, agendados para resolver querelas em outros territórios. Heterotopias de fuga, brigas e acordos.

As meninas também produziram suas heterotopias. Nas aulas observadas em que o conteúdo era o jogo de futebol, deram preferência por ficar no parquinho. Nessas aulas, o parquinho é tomado por elas como um contraespaço. Borram as suas funções e lhe concedem um recorte singular do tempo. Em aulas em que nada lhes convém, fazem dele uma heterotopia do tempo, não ao modo de eternidade ou da festa, como anunciou Foucault (2009a)Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.. Elas criam nesse espaço o tempo da contraconduta, que, para Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território e população. Cursos doCollege de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes., são práticas que ocorrem no interior de movimentos maiores, mas que não buscam promover rupturas com eles. Elas tencionam conduzir a população de outras formas, sem que isso se constitua na necessidade de romper com quem conduz. Logo, não se está contra a conduta. Trata-se de lutas e estratégias para ser conduzido de outras formas. No caso, elas não se sujeitam às situações nas quais as aulas lhes conferem a pecha de ineficazes. Tampouco concedem aos meninos a oportunidade de se afirmarem na condição de dominantes por conta do domínio motor ou capacidade física que a prática corporal apresentada exige. Ficar no parquinho é a recusa do tempo de sujeição ao constrangimento que as aulas da EF normalmente querem impor à diferença (Nunes, 2006Nunes, M. L. F. (2006). Educação Física e esporte escolar: poder,identidade e diferença. Universidade de São Paulo, São Paulo.).

De todas as heterotopias que brotam nas aulas de EF, sem dúvida, as árvores que ficam ao lado e ao fundo da quadra são as que promovem a vida de maneira mais intensa. Cabe destacar que nessa escola há muita área verde e uma quantidade significativa de árvores. Aspecto que realça discursos hegemônicos, como o da qualidade de vida, o da preservação ambiental, tomando a cena escolar. Afinal, não foram poucas as vezes que avisos para que os discentes não permanecessem nas árvores foram ecoados sob o tom da conservação do ambiente, além, é claro, o do perigo.

Nesses recantos heterotópicos, as árvores assumem, temporariamente, diversos significados. Certa vez, um dos alunos explanou: “eu já peguei uma menina aqui”; em outro momento, um dos alunos que estava em cima da árvore, fez gestos para a turma, indicando estar em ato de relação sexual. Constantemente, o que se viu foram ações de escalar, sentar sobre os galhos para assistir aos jogos e correr para fugir ou se esconder dos colegas, da professora e das atividades. Tudo sempre seguido das solicitações e das ameaças da professora para os alunos não subirem ou para descerem das árvores.

Interessante pontuar que o discurso corrente e produtor de verdades a respeito das crianças “de hoje” é aquele que enfatiza que elas não brincam mais ou, pior, que não sabem brincar. Esses discursos são acompanhados de cantilenas saudosistas de um pseudo passado glorioso, que avisam que as “crianças de hoje” não sobem em árvores.

Além das peripécias realizadas nas árvores, foi comum observar nas aulas a presença do temido montinho. Brincadeira comum entre os meninos, que afirma aspectos genderizados da masculinidade. No contexto dessa escola, subir em árvores, amontoar-se em grupo não são brincadeiras adequadas. A questão é outra!

Como percebeu Lemos (2007)Lemos, F. C. S. (2007). A apropriação do brincar como instrumento dedisciplina e controle das crianças. Estudos e pesquisas em psicologia UERJ, 7(1), 81-91., o brincar foi capturado pela lógica da sociedade produtiva. Foi encapsulado em uma dimensão específica no tempo e no espaço. O brincar é legitimado apenas mediante formas organizadas, dirigidas e com metas específicas. Quaisquer desvios causam alardes e o apelo para que experts como, neurologistas, psiquiatras, psicólogos, professores de Educação Física e psicopedagogos atuem para salvar as crianças a tempo da possibilidade do desvio da norma, da ameaça da diferença. Não se pode brincar de qualquer coisa ou a qualquer momento, ainda mais na escola. A depender da sua forma e fim, o brincar é consentido ou bloqueado.

Assevera a pesquisadora que o brincar espontâneo está regulado de tal maneira que ele deve ter um horário definido e não pode ser de qualquer modalidade ou em qualquer lugar, pois tanto o excesso como a falta, a depender da perspectiva, quer seja moral ou tecnicista pode afetar negativamente o desenvolvimento do aluno. Na contemporaneidade, brincar tornou-se um potente instrumento para a gestão calculada das ações mais corriqueiras das crianças. Mas a coisa não é tão fácil assim.

No caso analisado, quando a professora conseguiu dispersar a brincadeira do montinho, muitos escaparam para a árvore. Fazem crer, tal e qual os seriados televisivos e a literatura juvenil que nos encantam com “a casa da árvore”, que elas são as heterotopias inalcançáveis, impenetráveis. Nela o adulto e as coisas de seu mundo não podem entrar. Ao experimentar as infinitas possibilidades de brincar, as crianças podem torná-lo um dispositivo de resistência ao controle social e até mesmo um mecanismo de produção de si mesmo, que amplia a criação de novos mundos, novas formas de pensar, sentir e agir (Lemos, 2007Lemos, F. C. S. (2007). A apropriação do brincar como instrumento dedisciplina e controle das crianças. Estudos e pesquisas em psicologia UERJ, 7(1), 81-91.), mesmo que, na escola, isso seja um lapso do tempo.

Como heterotopias, o muro, a quadra, o parquinho, a arquibancada, o bebedouro e as árvores são locais de contestação de todos os outros espaços e tempos da Educação Física, quiçá também da escola e de seus agentes.

Considerações

Mediante a observação efetuada e as significações engendradas, podemos dizer que as heterotopias inventadas pelos alunos são espaços produzidos em função do contexto em que as aulas emergem. São resultados das condições de imanência das relações de poder-saber que a todos envolvem. Esse outro espaço, em que pese decorrer das condições de existência da cultura escolar, não depende de nenhuma mediação escola-docente ou docente-discente, que normalmente habita os dispositivos de escolarização. Apesar da expectativa, da atenção redobrada e das estratégias de antecipação produzidas pelos agentes da vigilância escolar para a garantia do controle, as heterotopias são imprevisíveis. São acontecimentos. São puros devires.

Notamos como os alunos e as alunas potencializam nas aulas de Educação Física heterotopias plurais e caóticas, distantes de qualquer princípio moral ou universal, e mudam continuamente seu significado. São heterotopias sem centralidade ou grupo dominante. As heterotopias produzidas fazem crer que suprem a necessidade dos sujeitos de resistir aos imperativos da maquinaria escolar.

Como forma de transgressão, nenhum conteúdo pode fechar a heterotopia em seu limite. Ela é um espaço da diferença. Por estarem na escola, produto da Modernidade inventado para a manutenção do mesmo, elas são combatidas por professores e funcionários mediante práticas disciplinares. Não importa a que se destinam. Para os alunos, essas heterotopias são espaços impossíveis de assumir apenas as formas propostas pela escola. Elas não são passíveis de funcionar como fronteiras do espaço físico, aparelhos de produção de talentos esportivos, artefatos de lazer ou decorativos, cercas vivas, etc. São heterotopias indeterminadas. Elas não podem estar dissociadas dos significados e das representações que se desenvolvem nas aulas de Educação Física e em meio às relações de poder que emanam em espaços concretos.

São heterotopias que permitem a experiência de si, mesmo que temporárias e fragmentadas, nas quais se exercita a masculinidade, a feminilidade, a sexualidade, a malandragem, a infância peralta entre outras formas determinadas de ser ou, ainda, a possibilidade de transgredir os limites impostos por essas identidades e criar outras. Enfim, permite viver a experiência-limite, a transgressão. São heterotopias da infância, que, como invenção dos adultos, apronta, desestabiliza e potencializa a vida.

Como estratégias de resistência, como estratégias que permitem as lutas contras as formas de dominação, elas se renovam e se multiplicam a partir das relações que se estabelecem entre cada sujeito. Nessas relações, várias heterotopias podem surgir. Serem vizinhas, sem, no entanto, serem a mesma ou permitirem a inclusão, mesmo que tolerada. O que vimos é que a diferença continua a ser marcada e que a heterotopia não a integra com outra diferença, mas, por conta da concentração de sujeitos diferentes e dos conflitos que isso gera, são capazes de causar contestações, fragmentações e inversões de regras estabelecidas, mesmo que isso não ocorra de forma ordenada (Foucault, 2009aFoucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.).

Percebemos, assim, que as crianças criam e reinventam movimentos de contracondutas que mantêm acesso à produção de novos significados para os mesmos espaços pela incitação de diferentes usos e modos de apropriação. Promovem outras experiências de si e dos espaços que habitam. No caso das aulas de Educação Física, a força pulsante da vida que os espaços heterotópicos induzem mostra-se na ação não planejada sobre as áreas da escola. Nessas, as crianças confrontam as normas escolares e redimensionam a organização socioespacial, arquitetada para garantir o governo das suas condutas. Por outro lado, esses movimentos não são e não podem ser definitivos, pois estarão sempre diante de um trabalho microanalítico, voltado para o controle dos corpos nos espaços e dos vínculos e identificações (temporárias) que se articulam entre espaço, governo, cultura escolar e resistência. Como elemento potente, a heterotopia também está sujeita à força da diferença.

Se, para Gallo (2013)Gallo, S. (2013). Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In G. Transversal (Ed.), Educação menor: conceitos e experimentações (pp. 75-88). Curitiba: Prismas/Appris., a escola precisa criar heterotopias, percebemos que as crianças já se anteciparam às suas intenções. Para elas, a escola, mesmo sendo um espaço de clausura, obrigatório e de controle, já se apresenta como possibilidade heterotópica. Vivê-la, ocupá-la, recortar e transformar o espaço-tempo das aulas e da escola são formas de resistência e possibilidades da vida. No caso em tela, seja, quem sabe, a ação predileta dos escolares indiferentes destes tempos.

  • 1
    Adotamos a noção de diferença em seu sentido pós-estruturalista de variação aberta, que não permite a captura do significante por uma identidade plena. Hall (2000)Hall, S. (2000). Quem precisa deidentidade? In T. T. d. Silva (Ed.), Identidade e diferença: as perspectivas dos estudos culturais (pp. 103-133). Petrópolis: Vozes. explica que a identidade é construída por meio da diferença e não fora dela, e toda identidade, disciplinado/indisciplinado, por exemplo, só se constitui em relação com um Outro. “o exterior constitutivo”(p.106). com aquilo que lhe falta, no meio de relações específicas de poder. Para o autor, a identidade se ancora e tenta se fixar no momento de exclusão, que ocorre no processo de significação. Disso decorre uma hierarquização e um afastamento entre os polos resultantes das relações, estabelecendo a identidade sem diferenciações, naturalizando-as, e a diferença como negação. A tentativa de normatização da diferença é o que constitui as relações sociais, isto é, a luta pela determinação da identidade de um signo, o seu governo e controle para a definição dos significados, logo, da realidade, do sujeito e da verdade das coisas do mundo. Nessa direção, a escola impõe uma ordem de discurso com vista a garantir a estabilidade da identidade dos signos, mas é constantemente desestabilizada pela diferença. Daí sua força em tentar ajustá-la e deixar de fora dos limites da identidade qualquer ameaça.
  • 2
    Apesar da autocrítica que faz em relação ao uso do termo “exclusão”, Foucault (2015)Foucault, M. (2015). A sociedade punitiva. Cursos do College de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes. o justifica como estratégia para escancarar os modos como a sociedade moderna se utiliza de noções psicológicas e sociológicas para classificar delinquentes, minorias étnicas, religiosas, sexuais, entre outros que ficam fora dos circuitos de produção ou consumo como anormais ou desviantes. O termo também é utilizado para classificar os procedimentos “que têm por função conjurar os poderes e os perigos” da materialidade dos discursos, dentre eles a oposição entre a razão e a loucura (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola., p. 9).
  • 3
    Pode-se dizer que, no Brasil, as políticas do Estado do Bem-Estar Social não se consolidaram. No entanto, após a Constituição de 1988, evidenciaram-se esforços para a sua efetivação, o que implicou a luta pela consolidação dos direitos das crianças. A criança passa a ser vista como cidadã e, em contrapartida, tem que aprender a cumprir seus deveres, compreender e assumir suas responsabilidades sociais. Cabe às instituições educá-la de modo que se torne um sujeito que se autocontrole e se autogoverne. Diante dessa finalidade, a escolarização tornou-se obrigatória e estabeleceram-se, desde a promulgação da LDB 9.394/96, políticas curriculares pautadas na governamentalidade neoliberal. Essas, por sua vez, focam seus interesses em potencializar as capacidades de cada criança e ancoram-se em modelos de gestão empresarial, que invadem as creches, as escolas e os demais lugares por onde as crianças circulam (Bujes, 2000).
  • 4
    Segundo André (2005)André, M. E. D. A. de (2005). Etnografia da prática escolar (12a ed.). Campinas: Papirus., “O que se tem feito pois é uma adaptação da etnografia à educação, o que me leva a concluir que fazemos estudos do tipo etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito” (p. 28). Destacamos, entre os elementos que André pontua como sendo de um estudo etnográfico, os que se relacionam com o que fizemos: observação participante; interação entre o pesquisador e seu grupo; ênfase no processo; realização de um trabalho de campo; descrição e análise.
  • 5
    De acordo com Magnani (2009)Magnani, J. G. C. (2009). Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos. 15(32), 129-156. é preciso “distinguir entre ‘prática etnográfica’ de ‘experiência etnográfica’: enquanto a prática é programada, contínua, a experiência é descontínua, imprevista” (p. 136).
  • 6
    Naquela tarde aconteceu o jogo entre Real Madrid e Barcelona pela Copa dos Campeões, e a imprensa brasileira realizou a cobertura dessa partida.

Referências

  • André, M. E. D. A. de (2005). Etnografia da prática escolar (12a ed.). Campinas: Papirus.
  • Aquino, J. G. (2011). Da (contra)normatividade do cotidiano escolar: problematizando discursos sobre a indisciplina discente. Cad. Pesqui., 41(143), 456-484.
  • Bauman, Z. (1999). Globalização: as consequências humanas Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: a transformação das pessoasem mercadorias Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Bujes, M. I. E. (2002). Infância e maquinarias Rio de Janeiro: DP&A.
  • Carvalho, A. M. A., & Pontes, F. A. R. (2003). Brincadeiraé cultura. In A. M. A. Carvalho, C. M. C. Magalhães, F. A. R. Pontes, & I. D. Bichara (Eds.), Brincadeirae cultura: viajando pelo Brasil que brinca (pp. 15-30). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Dornelles, L. V. (2005). Infâncias que nosescapam: dacriança na rua à criança cyber Petrópolis: Vozes.
  • Duschatzky, S., & Skliar, C. (2000). Os nomes dos outros. Reflexões sobre os usos escolares da diversidade. Educação & Realidade 2(25), 163-177.
  • Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In P. Rabinow, & H. Dreyfuss,Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica) (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2006). A ordem do discurso São Paulo: Loyola.
  • Foucault, M. (2008). Segurança, território e população. Cursos doCollege de France (1977-1978) São Paulo: Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2009a). Outros espaços. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol. III: estética, literatura, pintura, música e cinema (pp.411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2009b). Prefácio à transgressão. In M. Foucault (Ed.), Ditos e escritos vol.III: estética, literatura, pintura, música e cinema (p. 28-46). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2010). História da sexualidade I: a vontade de saber Rio de Janeiro: Graal.
  • Foucault, M. (2012). Vigiar e punir: nascimento da prisão Rio de Janeiro: Petrópolis.
  • Foucault, M. (2013). Os anormais. Cursos do College de France (1980-1982) São Paulo: Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2015). A sociedade punitiva. Cursos do College de France (1973-1974) São Paulo: Martins Fontes.
  • Gallo, S. (2013). Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In G. Transversal (Ed.), Educação menor: conceitos e experimentações (pp. 75-88). Curitiba: Prismas/Appris.
  • Hall, S. (1997). Centralidade da cultura: notas sobre asrevoluções de nosso tempo. Educação e Realidade, 22(2), 15-46.
  • Hall, S. (2000). Quem precisa deidentidade? In T. T. d. Silva (Ed.), Identidade e diferença: as perspectivas dos estudos culturais (pp. 103-133). Petrópolis: Vozes.
  • Harvey, D. (2009). A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre asorigens da mudança cultural São Paulo: Loyola.
  • Jameson, F. (1997). Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio São Paulo: Ática.
  • Larrosa, J. (1994). Tecnologias do Eu. In T. T. d. Silva (Ed.), O sujeito da educação: estudos foucaultianos (pp. 35-86). Petrópolis: Vozes.
  • Larrosa, J. (1998). Pedagogia profana Porto Alegre: Contrabando.
  • Lemos, F. C. S. (2007). A apropriação do brincar como instrumento dedisciplina e controle das crianças. Estudos e pesquisas em psicologia UERJ, 7(1), 81-91.
  • Lipovetsky, G. (2012). O reino da hipercultura: cosmopolitismo ecivilização ocidental. In H. Juvin, & G. Lipovetsky (Eds.), A globalização ocidental: controvérsia sobre cultura planetária (pp.1-67). Baureri: Manole.
  • Magnani, J. G. C. (2009). Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos. 15(32), 129-156.
  • Magnani, J. G. C. (2012). Da periferia ao centro. trajetórias de pesquisa em antropologia urbana São Paulo: Terceiro Nome.
  • Motta-Maués, M. A. (2004). Na casa damãe/na casa do pai: anotações (de uma antropóloga e avó) emtorno da circulação de crianças. Revista de Antropologia, 47(2), 427-452.
  • Narodowsky, M. (1996). A infância como construção pedagógica. In M. V. Costa, M.V. (Ed.), Escola básica na virada do século: cultura, política e currículo (pp. 107-118). São Paulo: Cortez.
  • Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009). Educação Física, currículo e cultura São Paulo: Phorte.
  • Nunes, M. L. F. (2006). Educação Física e esporte escolar: poder,identidade e diferença Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Popkewitz, T. S. (1999). Reforma educacional e construtivismo. In T. T. da Silva (Ed.), Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu (pp. 95-142). Petrópolis: Vozes.
  • Ramos do Ó, J. (2009). A governamentalidade e a história da escola moderna: outras conexões. Educação & Realidade. 34(2), 97-117.
  • Rose, N. (1999). Governando a alma: a formação do eu privado. In: T.T.da Silva (Ed.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu (pp.30-45). Petrópolis: Vozes.
  • Sarlo, B. (1997). Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte evídeo-cultura na Argentina Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
  • Skliar, C. (2003). Pedagogia (improvável) da diferença: e se ooutro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A.
  • Varela, J., & Alvarez-Uria, F. (1992). A maquinaria escolar. Teoria e Educação, (6), 68-96.
  • Veiga-Neto, A., & Lopes, M. C. (2007). Inclusão e governamentalidade. Educ. Soc., 28(100 - Especial), 947-963.
  • Wacquant, L. (2002). Corpoe alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe Rio de Janeiro: RelumeDumará.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2017
  • Revisado
    06 Out 2017
  • Aceito
    24 Nov 2017
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br