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A autoridade do professor no contexto da autoridade algorítmica digital1 1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). ,2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Aline Maya (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Resumo

Na história do desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem, a figura do professor sempre se destacou como de fundamental importância para que os alunos desenvolvessem suas capacidades cognitivas, afetivas e éticas. Porém, na sociedade da cultura digital, observam-se indícios de transformações radicais nessa relação, sobretudo porque os alunos acessam as informações, algoritmicamente localizadas, por meio de seus aparelhos eletrônicos, principalmente os celulares. Diante desse quadro, os autores deste artigo têm como objetivo principal refletir criticamente sobre a forma como a autoridade do professor está gradativamente se subsumindo em relação à autoridade algorítmica digital. Conclui-se que a crítica desse processo de subordinação torna-se necessária para que se possa pensar como os professores e alunos podem se tornar autores e artífices do processo de ensino e aprendizagem por meio da tecnologia digital.

Palavras-chave
autoridade; ambivalência de amor e ódio; professores e alunos; algoritmos; cultura digital

Abstract

In the history of the development of the teaching and learning process, the teacher’s figure has always been regarded as having fundamental importance for students to develop their cognitive, emotional, and ethical capacities. However, in the digital culture society, there are indications of radical changes in this relationship, mainly because students access information, algorithmically located, through their electronic devices, especially their cellphones. In this context, the main objective of this article is to critically reflect on how teacher authority is gradually subsumed in relation to digital algorithmic authority. It is concluded that the critique of this process of subordination becomes necessary to think how teachers and students can become authors and architects of the teaching and learning process through the use of digital technology.

Keywords
authority; love and hate ambivalence; teachers and students; algorithms; digital culture

Introdução

A autoridade do professor torna-se cada vez mais objeto de crítica na sociedade contemporânea. Não que isso tenha surgido na sociedade da chamada cultura digital, uma vez que, historicamente, a identificação do professor como figura de autoridade tornou-se alvo de questionamento desde os primórdios da Antiguidade greco-romana. Contudo, é justamente na sociedade atual que a crítica à autoridade do professor atinge contornos inéditos, principalmente pela forma como os questionamentos são cada vez mais expostos nas redes sociais, tais como o Facebook e o YouTube.

No atual contexto, o ineditismo da exposição maciça de imagens e comentários sobre os professores em tais redes sociais ocorre em virtude de o desenvolvimento das forças produtivas, notadamente as de caráter tecnológico, possibilitar fazer com que haja a disseminação ubíqua de informações audiovisuais que contestam a autoridade dos educadores. Exatamente essa propagação contínua de imagens e comentários postados, em muitas ocasiões, de forma depreciativa, ilustra a forma como as relações de amor e ódio entre professores e alunos estão se transformando radicalmente, pois atualmente as informações podem ser obtidas em quaisquer tempos e espaços através do clicar das teclas de um computador, da tela de um celular ou mesmo por meio de um comando de voz.

É como se o professor deixasse de ser necessário, pois o acesso ininterrupto a qualquer tipo de informação, algoritmicamente localizada, proporciona a sensação de autossuficiência mimetizada pelos alunos. Assim, o celular e os alunos parecem compor um só corpo, de modo que talvez não estejam tão distantes da verdade os adolescentes que, ao esquecerem seu celular em algum lugar, afirmam que se apartaram de seu braço ou perna. A sensação de empoderamento prevalecente entre os adolescentes, que mimetizam sua identidade com os aplicativos relacionados às mais variadas funções de seus aparelhos celulares, precisa ser pensada de acordo com as mediações históricas do atual contexto, no qual as relações entre as pessoas cada vez mais tendem a se tornar digitalizadas.

Na verdade, por detrás do fascínio que os celulares ou outros gadgets eletrônicos exercem sobre as pessoas e, principalmente, sobre os alunos, encontra-se uma espécie de confiança tão contundente na aparente infalibilidade dos aparelhos eletrônicos que faz com que haja um tipo de entrega revitalizadora, na sociedade da cultura digital, aquilo que Kant denominou como “estado de menoridade”, no texto “Resposta à pergunta: que é esclarecimento?” (Kant, 2005Kant, I. (2005). Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? In Textos seletos (F. S. Fernandes, trad., pp. 100-108). Petrópolis: Vozes.). Pois é por meio da tutelagem digital que o indivíduo afirma sua condição de menoridade, uma vez que se subordina ao modo como as informações lhe são ofertadas, sem que seja capaz de raciocinar criticamente sobre o quanto, em muitas ocasiões, as chamadas notícias são fake – para fazer uso de um termo da atual linguagem eletrônica.

Mas essa condição de menoridade na cultura digital não pode ser exclusivamente imputada às idiossincrasias de determinado indivíduo, pois se trata de uma sociedade na qual se afirma a denominada “autoridade algorítmica digital”, que também sobrepuja paulatinamente a autoridade dos educadores. Diante desse quadro, os autores deste artigo têm como objetivo principal refletir sobre a forma como a autoridade do professor está gradativamente se subsumindo em relação à autoridade algorítmica digital, que se materializa no atual fetiche tecnológico do aparelho celular. Antes de se elaborarem considerações críticas sobre as características desse tipo de autoridade, é preciso refletir sobre os significados da autoridade do professor, que historicamente se sobrelevaram, nas relações estabelecidas com os alunos, até o período da revolução microeletrônica.

A ambivalência de amor e ódio e a autoridade do professor

Há uma frase de Sêneca, o reitor, relacionada à figura do professor e destacada por Mario Aliguiero Manacorda (1989)Manacorda, M. A. (1989). História da educação: Da antiguidade aos nossos dias (G. L. Mônaco, trad.). São Paulo: Cortez., que pode muito bem ser identificada como uma frase-síntese do espírito de um tempo – no caso, o da Roma antiga: “era vergonhoso ensinar o que era honroso aprender” (p. 78). Ou seja, havia a consciência da importância do aprendizado das letras e da forma como as leis eram elaboradas e difundidas entre os cidadãos livres, mas em relação aos que eram responsáveis pela propagação de tal ensino não se podia asseverar o mesmo. O fato de ser vergonhoso ensinar aludia à condição ontológica do mestre educador: um escravo grego, ou então um grego liberto, que se tornara, portanto, uma espécie de cidadão de segunda classe. Na condição de artífice, o educador escravo ou liberto jamais poderia ser identificado como autor, como uma autoridade responsável por “aumentar a cidade”. Com efeito, foi no contexto da Roma antiga que surgiu o conceito de autoridade, da seguinte forma:

Foi neste contexto que a palavra e o conceito de autoridade apareceram originalmente. A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, “aumentar”, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores.

(Arendt, 2009Arendt, H. (2009). Entre o passado e o futuro (M. W. Barbosa, trad.). São Paulo: Ática., p. 163)

Seguindo essa linha de raciocínio, os autores nobres, socialmente considerados figuras de autoridade, eram os responsáveis pelo “aumento da cidade”, na medida em que seu espírito se materializava tanto na elaboração das leis que regiam o tecido social quanto nas formas arquitetônicas das edificações romanas, por exemplo. Já os mestres educadores, nas condições de escravo e de indivíduos libertos, eram identificados como artífices, como executores das diretrizes elaboradas pelos cidadãos maiores.

Mas, mesmo na condição de artífices, não é possível afirmar que os alunos exclusivamente odiavam seus mestres em função do menosprezo por sua posição social. Ao se depararem com a beleza dos conteúdos que aprendiam, era difícil, senão impossível, apartar a apreensão de tal conteúdo da figura daquele que o ensinava, de tal modo que, mesmo ante a desvalorização que lhe fora socialmente imputada, muito provavelmente o mestre, já nesse período histórico, era identificado como objeto de amor dos alunos.

É interessante observar as diferentes formas pelas quais a relação ambivalente de amor e ódio entre professores e alunos historicamente se transforma, na medida em que se revela pedra angular do processo de consolidação da autoridade dos educadores. Se no contexto social da Roma antiga prevaleceu tal ambivalência de sentimentos, projetada na figura do mestre escravo ou de indivíduos libertos de tal condição, na chamada Paideia cristã da Alta Idade Média, propagada principalmente por Tomás de Aquino, imperaram a figura de Deus como autoridade suprema e a de Cristo como o filho divino que se fez humano, de tal modo que tais figuras deveriam ser identificadas como modelos a serem seguidos, mesmo que seus sequazes fossem cônscios de que jamais seriam capazes de compreender plenamente os desígnios sagrados em decorrência de suas limitações humanas.

Segundo Tomás de Aquino (1988)Tomás de Aquino. (1988). Coleção Os pensadores: Sto. Tomás e Dante (L. J. Baraúna, trad.). São Paulo: Nova Cultural., torna-se claro que “as realidades sensíveis em si mesmas, que fornecem à razão humana a fonte do conhecimento, conservam nelas certo vestígio de semelhança com Deus, embora se trate de um vestígio tão imperfeito, que é incapaz de exprimir a substância de Deus” (p. 67). Porém, mesmo tendo consciência de tal imperfeição, o chamado “pai divino”, representado pelos clérigos responsáveis pela disseminação da palavra sagrada, felicita seus seguidores por tentarem se aproximar o máximo possível do conhecimento da essência divina: “Em tua fé, empreende, progride, esforça-te. Sem dúvida, jamais chegarás a termo, eu o sei, mas felicito-te pelo teu progresso” (Hilário citado por Tomás de Aquino, 1988Tomás de Aquino. (1988). Coleção Os pensadores: Sto. Tomás e Dante (L. J. Baraúna, trad.). São Paulo: Nova Cultural., p. 67).

Se Deus e seu filho foram identificados como autoridades incontestes, sendo, portanto, objeto de admiração plena por parte de seus correligionários, já os padres que os representavam eram os responsáveis pela condução do processo formativo cristão, de tal modo que também nesse caso se revitalizava a ambivalência de amor e ódio entre mestres e educandos, pois tais mestres muitas vezes aplicavam castigos físicos caso seus alunos não se esforçassem no aprendizado mnemônico dos conteúdos estudados.

Porém, mesmo que os alunos sentissem ódio de seus mestres por procederem dessa forma, a internalização da disciplina e, portanto, o reconhecimento da figura de autoridade do clérigo-educador ocorria mediante o aceite da justificativa de que o sofrimento sentido fazia parte do processo educativo, sendo esta a prerrogativa do mestre, pois “a tarefa do sábio é colocar ordem nas coisas” (Tomás de Aquino, 1988Tomás de Aquino. (1988). Coleção Os pensadores: Sto. Tomás e Dante (L. J. Baraúna, trad.). São Paulo: Nova Cultural., p. 59).

Embora num outro contexto histórico, a incumbência do educador de “colocar ordem nas coisas” também pode ser notada numa obra considerada marco da história da teoria e das práticas pedagógicas: a Didática magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos, de Comênio. Publicada no início do século XVII, a Didática magna é considerada o primeiro tratado pedagógico, cujo principal objetivo era “investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atrativo e mais sólido progresso” (Comênio, 1985Comênio, J. A. (1985). Didáctica magna (J. F. Gomes, trad.). Lisboa: Editora da Fundação Calouste Gulbenkian., p. 44). Sabe-se que Comênio enfatizava como principal objetivo do processo educacional que os alunos pudessem, por meio deste, ter capacidade para se aproximar de Deus de forma serena e consciente. E para que os alunos se tornassem disciplinados a ponto de reconhecer a relevância de tal objetivo, Comênio destacou que os açoites e as pancadas não teriam “nenhuma força para inspirar, nos espíritos, o amor pelas letras, mas, ao contrário, têm muita força para gerar, na alma, o tédio e a aversão contra elas” (Comênio, 1985Comênio, J. A. (1985). Didáctica magna (J. F. Gomes, trad.). Lisboa: Editora da Fundação Calouste Gulbenkian., p. 402).

Na verdade, o professor deveria empregar outro método muito mais afeito às condições sociais dos novos tempos. De acordo com o autor da Didática magna, o professor teria muito mais sucesso em estimular a permanência da atenção do aluno nos conteúdos estudados por meio da seguinte repreensão, feita diante do alunado:

“Olha como estão atentos este teu colega e aquele, e como entendem bem todas as coisas! Por que é que tu és assim tão preguiçoso?”; outras vezes suscitando o riso: “Então tu não entendes uma coisa tão fácil? Andas com o espírito a passear?” Podem ainda estabelecer-se “desafios” ou “sabatinas” semanais, ou ainda mensais, para a quem cabe o primeiro lugar ou a honra de um elogio … desde que se veja que isto não vai resultar num mero divertimento ou numa brincadeira, e por isso inútil, mas para que o desejo do elogio e o medo do vitupério e da humilhação estimulem verdadeiramente à aplicação

(Comênio, 1985Comênio, J. A. (1985). Didáctica magna (J. F. Gomes, trad.). Lisboa: Editora da Fundação Calouste Gulbenkian., p. 403)

Comênio percebeu que o impacto da violência psicológica seria muito mais contundente do que os açoites e as pancadas, cujos vergões provavelmente desapareceriam em alguns dias, enquanto as marcas da violência psicológica certamente permaneceriam por muito mais tempo, sobretudo porque foram recebidas diante de outros alunos.

Não que a competição entre os alunos fosse uma novidade absoluta – pois, já no século XII, Abelardo, por exemplo, se destacava como um orador praticamente invencível nas disputas travadas com outros monges –, mas essa ênfase de Comênio sobre a relação que se estabelece entre desejo de elogio, medo do vitupério e da humilhação, e produção de conhecimento inaugura, de certa forma, um novo período na interação professor-aluno e em suas relações ambivalentes de amor e ódio. Nesse sentido, a repreensão e o elogio públicos jamais poderiam ser empregados como se fossem tipos de divertimento ou brincadeiras, mas sim utilizados como recursos didático-metodológicos produtivos e intrinsicamente consubstanciados com o propósito de que os alunos pudessem cada vez mais se concentrar no aprendizado dos conteúdos estudados.

Seguindo essa linha de raciocínio, se o professor torna-se uma figura de autoridade temida e odiada, justamente em virtude do fato de que poderia, a qualquer momento, escolher humilhar um aluno considerado distraído, usando-o como um exemplo a não ser seguido pelos demais, ele também poderia ser identificado como objeto de admiração por parte dos alunos, principalmente pelo elogio publicamente feito em relação àquele que, ao ser selecionado, souber responder de imediato à questão que lhe for feita. Sendo assim, não só esse tipo de reforço positivo, mas também o negativo, para fazer uso de conceitos skinnerianos, seriam de extrema valia para os educadores que desejassem exercer práticas disciplinares nas salas de aula.

Contudo, antes de destacar as ideias de Skinner sobre o papel do professor, seria relevante lembrar o quão influente foi, no século XIX, o pensamento de Johann Friedrich Herbart ao exaltar o professor como símbolo de autoridade frente aos alunos. De fato, o professor deveria ser identificado como o organizador intelectual, moral e estético, de modo que a personalidade do educador seria um fator tão crucial para o alunado quanto os próprios conteúdos que seriam ensinados. Não por acaso identificado como uma espécie de discípulo de Kant, Herbart não aceitava que o aprendizado dos conteúdos estudados fosse apartado de necessária reflexão moral sobre o modo como estes poderiam contribuir para a efetivação de uma conduta ética, a mesma conduta que seria a pedra angular da formação (Bildung) do aluno.

De acordo com Herbart (2003)Herbart, J. F. (2003). Pedagogia geral (L. Scheidl, trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., a própria estruturação do caráter do aluno implicava a possibilidade de que este escolhesse suas formas de conduta de modo absolutamente racional. Para tanto, sua assim denominada “memória da vontade” precisaria necessariamente se pautar na reflexão sobre as consequências de seus comportamentos em relação às outras pessoas. Ou seja, a capacidade de escolha não poderia ser exercida per se, como se para escolher bastasse desejar, sem que houvesse a mínima consideração de seus efeitos para os outros. E, para que o caráter dos alunos pudesse se consolidar por meio da influência da memória da vontade, o professor teria papel de fundamental relevância. Conforme afirma Herbart (2003)Herbart, J. F. (2003). Pedagogia geral (L. Scheidl, trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.:

A educação através do ensino considera ensinamento tudo aquilo que se apresenta ao jovem como objeto de observação. Inclui-se aqui a própria disciplina a que ele é submetido. Esta será muito mais eficiente como modelo de uma energia que mantém a ordem, do que atuaria como inibição direta de maus hábitos…. A simples inibição poderia deixar totalmente impune a própria tendência…. Se o educando, porém, ler no espírito do educador, que repreende a aversão moral, a desaprovação desse prazer e a repugnância a todo o excesso, ele é assim transposto para a opinião deste, não podendo senão considerar as coisas da mesma maneira. (p. 18-19)

Para que a disciplina fosse identificada como modelo de uma energia que mantivesse a ordem, em vez de uma simples inibição direta de maus hábitos, seria preciso que outro modelo de conduta se afirmasse com todas as forças diante do aluno: o professor. Pois é ele quem teria condições morais e intelectuais de, nas palavras de Herbart (2003)Herbart, J. F. (2003). Pedagogia geral (L. Scheidl, trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., apresentar aos alunos os “objetivos do homem futuro” (p. 43). Se o professor pudesse exercer sua superioridade sobre os alunos a ponto de ser identificado como modelo a ser seguido, então se afirmaria uma espécie de força formativa, de modo a fazer com que os próprios alunos considerassem a internalização da disciplina como condição de seu desenvolvimento intelectual, ético e estético. Dessa forma, para Herbart, dever-se-ia respeitar a distância entre professores e alunos, de tal maneira que os alunos se sentissem estimulados a também se tornar futuramente novos educares: “Não é evidente a distância entre o adulto e a criança?… Por isso previnem-se os educadores para que desçam ao nível das crianças e se integrem, custe o que custar, na estreita esfera daquelas” (Herbart, 2003Herbart, J. F. (2003). Pedagogia geral (L. Scheidl, trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 20).

Se para Herbart a autoridade do professor deveria ser fundamentada na distância, que faria com que o aluno reconhecesse o educador como modelo de força formativa, já para Rousseau a relação professor-aluno teria que ter necessariamente outras tonalidades. Para o filósofo genebrino, o professor precisaria se colocar no lugar do aluno para que pudesse não só compreender os motivos pelos quais este não se interessava pelo aprendizado do conteúdo estudado, como também para relacionar o aprendizado de tal conteúdo com o tempo formativo do aluno. Ou seja, se o aluno ainda não tivesse as capacidades cognitivas e afetivas para o aprendizado de determinado tema, então haveria um grande risco de ele apenas repetir as informações que lhe foram transmitidas, sem que as tivesse efetivamente incorporado em sua formação. De acordo com Rousseau (1992)Rousseau, J. J. (1992). Emílio ou da educação (S. Milliet, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.: “Nunca sabemos colocar-nos no lugar das crianças; não penetramos em suas ideias, emprestamos-lhes as nossas; e seguindo sempre nossos próprios raciocínios, com cadeias de verdades só enchemos suas cabeças de extravagâncias e erros” (p. 89).

Adepto do procedimento em que o aluno deveria ser instruído através da denominada “liberdade bem orientada”, ou seja, de um procedimento que fomentasse uma postura de reflexão sobre quaisquer inciativas que fossem feitas pelos alunos, Rousseau redefine o conceito de autoridade do educador, sobretudo pela crítica que lança ao professor que se aferra ao seu pedestal de forma absolutamente soberba e, assim, se afasta de seus alunos. O filósofo é enfático na defesa de uma aproximação respeitosa entre ambos os agentes educacionais:

Gostaria que ele [o professor] pudesse ser ele próprio criança, se possível, que pudesse tornar-se o companheiro de seu aluno e angariar sua confiança partilhando seus divertimentos…. De resto eu chamo governante, de preferência a preceptor, o mestre dessa ciência porque se trata menos para ele de instruir que de conduzir. Ele não deve dar preceitos, devem fazer com que os encontrem.

(Rousseau, 1992Rousseau, J. J. (1992). Emílio ou da educação (S. Milliet, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 28).

Ou seja, o aluno deveria ser estimulado a raciocinar sobre os conteúdos estudados, de modo que tivesse a liberdade de, inclusive, questionar os preceitos dialogados com seu professor. Certamente, essa concepção do professor como promotor da liberdade bem orientada do aluno fez com que este reconhecesse no educador uma autoridade passível de realizar sua autocrítica em virtude da intervenção do próprio alunado. “Viver não é respirar, é agir” (Rousseau, 1992Rousseau, J. J. (1992). Emílio ou da educação (S. Milliet, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 16). Eis uma das principais máximas da concepção pedagógica de Rousseau, de tal maneira que se infere o seguinte: quem vive mais a vida não é quem tem mais anos, e sim quem mais a sente, sendo que os alunos deveriam ser instigados a perceber que a razão só é o que é porque foi impulsionada pelo exercício das paixões naturais. E se o professor atuasse no sentido de aguçar nos alunos o ímpeto pela ação participativa nos assuntos coletivamente debatidos, então haveria uma possibilidade concreta de que estes desenvolvessem uma relação não conflituosa entre a realização de seus desejos e a consciência moral atinente à reflexão sobre as consequências de seus comportamentos.

É interessante notar que, a despeito das diferentes concepções sobre a relação de proximidade e distanciamento entre professores e alunos, tanto para Herbart (século XIX) quanto para Rousseau (século XVIII) o professor ainda era considerado uma figura de autoridade decisiva para o desenvolvimento do processo cognitivo e afetivo dos alunos. Contudo, em meados do século XX, essa situação mudou radicalmente diante da presença cada vez mais constante de tecnologias de ensino, que engendraram as chamadas máquinas de ensinar, cuja atualidade se revitaliza na reprodutibilidade técnica algorítmica.

O professor diante da autoridade dos algoritmos da cultura digital

Ao comparar o quanto as ideias de Darwin e Morse foram importantes para a história da humanidade, Postman (2005)Postman, N. (2005). O desaparecimento da infância. (S. M. A. Carvalho & J. L. Melo, trads.). Rio de Janeiro: Graphia Editorial. observou que, embora a teoria da evolução darwiniana possa ser de fato identificada como revolucionária, ela também se transformou em objeto de contestação de uma multidão imensurável de fundamentalistas religiosos. Já a revolução comunicacional desenvolvida por Morse com o telégrafo elétrico foi um fato irrefutável, pois se Darwin ofereceu ideias incorporadas na linguagem, Morse já “nos ofereceu ideias encarnadas numa tecnologia” (Postman, 2005Postman, N. (2005). O desaparecimento da infância. (S. M. A. Carvalho & J. L. Melo, trads.). Rio de Janeiro: Graphia Editorial., p. 83). Ou seja, se a luta travada pelos fundamentalistas religiosos pode ser caracterizada “como vã e patética não vem ao caso, porquanto simplesmente se pode viver sem acreditar na evolução. Mas todos temos de enfrentar as condições da comunicação elétrica” (Postman, 2005Postman, N. (2005). O desaparecimento da infância. (S. M. A. Carvalho & J. L. Melo, trads.). Rio de Janeiro: Graphia Editorial., p. 83).

De fato, a invenção de Morse transformou a própria natureza da comunicação humana, justamente porque suas ideias foram incorporadas numa tecnologia que torna o ato comunicacional tão impessoal quanto incontrolável: “O telégrafo criou um público e um mercado não só para a notícia, mas para a notícia fragmentada, descontínua e essencialmente irrelevante, que até hoje é a principal mercadoria da indústria da notícia” (Postman, 2005Postman, N. (2005). O desaparecimento da infância. (S. M. A. Carvalho & J. L. Melo, trads.). Rio de Janeiro: Graphia Editorial., p. 83).

De certa forma, pode-se identificar uma situação semelhante em relação ao momento histórico no qual as máquinas de ensino não somente se transformaram numa espécie de apêndice do processo de ensino e aprendizagem, mas também foram incorporadas e, principalmente, consideradas o principal elemento desse processo, ao menos no que concerne ao desejo de seu principal incentivador: o psicólogo estadunidense B. F. Skinner. Para ele, apesar de serem relevantes todas as discussões sobre as melhores metodologias didático-pedagógicas, advindas das mais variadas matrizes epistemológicas, estas seriam, de certo modo, infrutíferas exatamente porque eram produto de discussões. Sua proposta didático-metodológica, por outro lado, seria necessariamente identificada como a mais adequada porque fora incorporada numa tecnologia: a da máquina de ensinar. Foi desta forma que Skinner (1972)Skinner, B. F. (1972). Tecnologia do ensino (R. Azzi, trad.). São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária. descreveu as características dessa máquina:

O aparelho consiste numa caixa de tamanho aproximado de um gravador. Na parte superior há uma abertura, através da qual pode ser visto um problema ou uma questão impressos numa fita de papel. A criança responde movendo um ou mais dos cursores sobre os quais estão impressos os dígitos de 0 a 9. A resposta aparece em furos quadrados picotados no mesmo papel em que está impressa a pergunta. Uma vez que a resposta tenha sido marcada, a criança gira um botão…. Se a resposta estiver certa, o botão gira com facilidade e pode ser adaptado para fazer piscar uma luz ou fazer funcionar algum outro reforçador condicionado. Se a resposta estiver errada, o botão não gira. O aparelho pode vir com um contador que marque as respostas erradas em cada série de passos. (p. 21)

Skinner percebeu, ao longo do tempo, que o reforço positivo que o aluno recebia todas as vezes que acertava uma reposta, tal como uma luz verde, por exemplo, não poderia ser exclusivamente associado a um teste de múltipla escolha, pois este mesmo aluno teria outro nível de desenvolvimento cognitivo caso pudesse compor a resposta: “Uma máquina de ensinar deverá ter várias características importantes. O aluno de preferência deve compor a resposta, em vez de escolher entre alternativas, como num autoavaliador de escolha múltipla” (Skinner, 1972Skinner, B. F. (1972). Tecnologia do ensino (R. Azzi, trad.). São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária., p. 31).

A forma como Skinner destacou o verbo “compor” demonstra sua consciência sobre a importância de que o aluno fosse maquinalmente avaliado por meio de respostas mais complexas, de modo que seria imprescindível que houvesse o desenvolvimento tecnológico necessário para que tais composições de respostas fossem efetivamente avaliadas. A confiança no poderio da máquina de ensinar era tamanha que Skinner (1972)Skinner, B. F. (1972). Tecnologia do ensino (R. Azzi, trad.). São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária. asseverou o seguinte: “Há, portanto, todas as razões para esperar que um controle mais eficaz da aprendizagem humana exija recursos instrumentais. O fato puro e simples é que, na realidade de mero mecanismo reforçador, a professora está fora de moda” (p. 20).

Ou seja, o mecanismo reforçador da máquina seria superior aos possíveis reforços positivos empregados pela professora em relação ao incentivo do desenvolvimento de uma aprendizagem humana mais eficaz. O próprio Skinner reconhece a relevância da professora quanto aos trabalhos elaborados com os alunos. Apesar desse reconhecimento, ele também enfatiza sua posição de que a professora, se utilizasse os recursos da máquina de ensinar, poderia se ocupar com o exercício de “contatos intelectuais, culturais e emocionais” (Skinner, 1972Skinner, B. F. (1972). Tecnologia do ensino (R. Azzi, trad.). São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária., p. 25) com seus alunos. Além disso, a máquina de ensinar teria a vantagem de ter, “acima de tudo, uma paciência infinita” (Skinner, 1972Skinner, B. F. (1972). Tecnologia do ensino (R. Azzi, trad.). São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária., p. 55).

Diante dessa constatação de Skinner de que a máquina de ensinar teria uma paciência infinita em comparação com a paciência finita da professora, poder-se-ia argumentar que ele estaria sendo irônico. Mas não parece ser essa a conclusão mais adequada, pois houve mesmo a defesa da ideia de que um atributo humano, tal como a capacidade de ser paciente ou não diante das atitudes de outrem, poderia ser também imputado à máquina. Sendo assim, não seria surpreendente se fosse atestada a superioridade da autoridade da máquina para ensinar em relação à autoridade da professora diante dos alunos.

Na verdade, essa atribuição de paciência à máquina feita por Skinner ilustra a forma como determinado espírito de um tempo e de uma cultura se materializa inclusive em expressões como esta: ser maquinal se apresenta como desejo cada vez mais espraiado nas mais variadas relações dentro e fora das escolas. E cada vez que o ser humano comparava sua condição de finitude e de fraqueza, decorrente de ser orgânico, com o poder e a resistência da máquina, fomentava-se o aparecimento do que Günther Anders (2002)Anders, G.(2002). Die Antiquiertheit des Menschen I. München: C. H. Beck. chamou de “vergonha prometeica”. Evidentemente, tal expressão remete ao mito de Prometeu, o titã que foi severamente punido pelos deuses olímpicos por ter revelado aos seres humanos os segredos da produção do fogo.

Assim, a crença nos deuses olímpicos foi terrivelmente abalada, uma vez que também os seres humanos, por meio do domínio de tal técnica, como que se tornaram deuses. Só que, diante de tal poder técnico, também os seres humanos começaram a perceber o quão frágeis eram, de modo que Anders utilizou tal metáfora para evidenciar o sentimento de vergonha humano diante do poder e da força de outro produto: o maquinal. Frente ao poderio da máquina, o ser humano como que se incomoda em “apresentar, diante dos olhos dos aparelhos perfeitos, sua patética condição de ser carnal, a imprecisão de sua condição humana. Na verdade, ele tinha mesmo que se envergonhar diante disso” (Anders, 2002Anders, G.(2002). Die Antiquiertheit des Menschen I. München: C. H. Beck., p. 23).

Tanto a filosofia, representada por Kant, quanto a psicanálise freudiana definiram a vergonha como um sentimento moral, na medida em que o indivíduo que se envergonha diante do outro tende a refletir sobre as consequências de suas ações. Há, nesse sentido, a presença de uma autocrítica daquele que se envergonha justamente porque é capaz de ponderar sobre suas próprias limitações, que se tornam visíveis após a prática do ato que engendrou tal sentimento. Contudo, na sociedade contemporânea, o indivíduo que se envergonha de sua falibilidade diante do poder da máquina procura, de todas as formas, instrumentalmente se equiparar à máquina, em vez de realizar a autocrítica sobre essa falibilidade. Em outras palavras, a autocrítica e a capacidade de produção conceitual se arrefecem ao mesmo tempo que recrudesce o sentimento de onipotência narcísica, que é instrumentalmente reforçado pela relação mimética com o poder maquinal. Evidentemente, esse tipo de reificação das consciências é engendrado num contexto social cujas relações de produção determinam a forma como o ethos maquinal se difunde para todas as relações sociais. Não por acaso, já há pesquisas cujo principal objetivo é produzir drogas que reduzam ao máximo o período do sono, de tal maneira que o indivíduo permaneça em estado de vigília e produza o máximo possível, tal como uma máquina que opera incessantemente (Crary, 2015Crary, J. (2015). 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo Jr., trad.). São Paulo: Cosac Naify, 2015.).

A consideração do sono como um momento improdutivo, que “desconecta” as pessoas de suas relações de trabalho, deve ser compreendida como produto da sociedade na qual as próprias relações entre as pessoas tendem a se tornar cada vez mais digitalizadas. E é justamente nessa sociedade da cultura digital que se faz imperativo refletir criticamente sobre como as identidades são digitalmente reconfiguradas. Para Crary (2015)Crary, J. (2015). 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo Jr., trad.). São Paulo: Cosac Naify, 2015.: “Hoje, mais do que pensar sobre o funcionamento e os efeitos particulares das novas máquinas ou redes específicas, importa avaliar como a experiência e a percepção estão sendo reconfiguradas pelos ritmos, velocidades e formas de consumo acelerado e intensificado” (p. 48).

Refletir sobre como a experiência e a percepção estão sendo reconfiguradas implica investigar o modo como um tipo de autoridade está se consolidando na cultura digital, sobretudo por meio do uso dos aparelhos celulares: a denominada autoridade algorítmica digital. De acordo com o dicionário Michaelis, o algoritmo é definido como um “conjunto de regras, operações e procedimentos, definidos e ordenados, usados na solução de um problema, ou classe de problemas, em um número finito de etapas” (“Algoritmo”, 2018Algoritmo. (2018). In Michaelis: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Recuperado de http://michaelis.uol.com.br/palavra/4lD9/algoritmo/
http://michaelis.uol.com.br/palavra/4lD9...
). Quando essa definição é aplicada à esfera computacional, entra em cena a lógica algorítmica, que é justamente a responsável por interpretar o processo pelo qual os computadores realizarão as tarefas que lhes foram programadas. Assim, os algoritmos são os responsáveis por mediar a relação entre seres humanos e máquinas, de tal maneira que eles como que instruem os computadores a concretizar todas as etapas necessárias para a realização de uma determinada tarefa. Ou seja, a denominada “linguagem de programação”, que faz com que o computador seja capaz de compreender as características da tarefa que lhe foi designada, se alicerça fundamentalmente na lógica operacional algorítmica, pois é ela que indica ao programa do computador os procedimentos necessários para a resolução de determinada demanda humana.

É interessante observar que a leitura do conceito de algoritmo pode suscitar a conclusão de que impera o livre-arbítrio do indivíduo em relação ao modo como suas respectivas demandas serão atendidas por meio das operações codificadas feitas pelo computador. Mas, na verdade, a reconfiguração digital da ideologia da personalização se fundamenta no poder social dos algoritmos, que se transformam em instrumentos decisivos de controle e vigilância de empresas gigantes, tais como Facebook, YouTube, Amazon e Google. Para se ter uma ideia do poder dessas plataformas e redes sociais em termos mundiais, cumpre observar o papel determinante do Facebook quando dados pessoais de aproximadamente 90 milhões de seus usuários foram utilizados por uma consultoria política para influenciar as eleições norte-americanas a favor de Donald Trump, que assumiu o posto de 45º presidente dos Estados Unidos em 2017.

Mas, não só empresas se esmeram em criar mecanismos dessa natureza. A China, por exemplo, tem desenvolvido um ranking virtual de crédito social, objetivando cadastrar seus cerca de 1,4 bilhão de cidadãos em um sistema nacional de crédito social até 2020. Esse sistema algoritmicamente controlado, com investimentos que devem girar em torno de US$ 150 bilhões em inteligência artificial até 2030, combina informações de diversas fontes, como sociais, tradicionais e on-line, para determinar o lugar das pessoas na sociedade, dando-lhes ou não acesso a taxas menores em empréstimos, entrada especial em transportes públicos, como trens e aviões, plano de saúde, serviços de internet e desconto em produtos. Tudo em nome do estabelecimento de um modo de vida efetivo para estimular a confiança mútua e reduzir as contradições na sociedade, que deve ser harmoniosa, segundo as diretrizes do governo chinês (Lima, 2018Lima, M. (2018, 15 de abril). Como em episódio da série ‘Black Mirror’, China vai dar notas a cidadãos. Estadão: Link. Recuperado de http://link.estadao.com.br/noticias/geral,como-em-episodio-da-serie-blackmirror-china-vai-dar-notas-a-cidadaos,70002268857
http://link.estadao.com.br/noticias/gera...
, 15 de abril).

Dentre os algoritmos mais conhecidos destaca-se o PageRank, que foi originariamente desenvolvido por Larry Page e Sergey Brin em 1998 (Mager, 2012Mager, A. (2012). Algorithmic ideology. Information, Communication & Society, 15(5), 769-787.). Foi esse algoritmo que possibilitou que o Google, por meio de seus mecanismos de busca, fosse capaz de encontrar, filtrar, classificar e ranquear os websites mais acessados e, assim, associar as respectivas propagandas de determinados produtos a esses websites. Embora em geral seja conhecida a participação dos códigos algorítmicos utilizados para interpretar a linguagem de programação dos computadores, não se tem conhecimento sobre seu modo de funcionamento nos mais íntimos detalhes, sobretudo em relação à maneira pela qual esses códigos fazem com que os mecanismos de busca das empresas de comunicação citadas não só encontrem, como também selecionem, filtrem, classifiquem e ranqueiem quaisquer informações e imagens num grau de precisão apenas imaginado nos romances de ficção científica. O domínio desses gigantes da comunicação sobre a atual tecnologia algorítmica conduz à reflexão sobre o poder social do algoritmo da seguinte maneira:

Quando pensamos sobre o poder do algoritmo, precisamos refletir não somente sobre o impacto e as consequências do código, mas também sobre as poderosas formas por meio das quais noções e ideias sobre o algoritmo circulam pelo mundo social. Nessas noções de algoritmo provavelmente encontraremos racionalidades, produção de conhecimentos e normas mais amplas, uma vez que o conceito de algoritmo exerce influências poderosas e convincentes sobre como as coisas são ou deveriam ser feitas

(Beer, 2016Beer, D. (2016). The social power of algorithms. Information, Communication & Society, 20(1), 1-13., p. 2)

Quanto mais o conhecimento da tecnologia algorítmica permanecer dentro de uma espécie de caixa preta, para fazer uso de uma expressão de Pasquale (2015)Pasquale, F. (2015). The black box society: The secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press., maior será o poder de controle de tais empresas transnacionais em relação a quaisquer tipos de dados obtidos dos bilhões de internautas que não tem consciência, em muitas ocasiões, do modo como suas informações particulares são registradas, classificadas e utilizadas para os mais variados fins. Seguindo essa linha de raciocínio, faz sentido a afirmação de Lash (2007)Lash, S. (2007). Power after hegemony: Cultural studies in mutation? Theory, Culture & Society, 24(3), 55-78. de que “a sociedade da mídia ubíqua significa a sociedade na qual o poder cada vez mais se caracteriza como poder algorítmico” (p. 71).

Desta forma, o procedimento de digitar qualquer palavra no mecanismo de busca do Google, por exemplo, com o intuito de obter informações que lhe sejam associadas, torna-se tão natural que a própria aquisição do conhecimento parece não poder ser feita de outra maneira. É, de fato, sedutora a ideia de que absolutamente todas as dúvidas e questionamentos podem ser dirimidos, bastando simplesmente digitar uma determinada palavra-chave no mecanismo de busca e clicar na tecla enter (entrar). Trata-se mesmo de um convite extremamente atraente, pois é como se esse clique proporcionasse a entrada num mundo que dispensaria não só o esforço da busca pelo conhecimento, como também a reflexão sobre as relações das informações obtidas, uma vez que as diretrizes de tais dados seriam ofertadas de antemão.

Nesse sentido, a sentença “dar um Google” adquire o significado de solucionar quaisquer dúvidas que possam surgir sobre os mais variados assuntos. Não por acaso, Pasquale (2015)Pasquale, F. (2015). The black box society: The secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press. asseverou que “as decisões não são mais feitas com base nos dados per se, mas sim por meio da base de dados algoritmicamente analisados” (p. 21). Ou seja, a maneira pela qual os dados são obtidos, filtrados, classificados e ranqueados pelos códigos algorítmicos está determinando tanto as características atuais da produção das informações como também o modo como algumas delas serão acessadas e outras não. No atual contexto das informações algoritmicamente compostas, a “autoridade é cada vez mais algoritmicamente expressada” (Pasquale, 2015Pasquale, F. (2015). The black box society: The secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press., p. 8). Em outras palavras, é na cultura digital que a autoridade algorítmica se consolida numa velocidade compatível ao modo on-line de obtenção de informações. Com efeito, os algoritmos estão direcionando a forma como as decisões são tomadas, de tal modo que são capazes de “aprender a partir de suas próprias experiências, produzir generalizações fundamentadas no que encontraram e desenvolver estratégias de adaptação como respostas” (Greenfield, 2017Greenfield, A. (2017). Radical technologies: The design of everyday life. London: Verso., p. 213). Trata-se de delegar a alguém ou algo a tarefa de definir um posicionamento que requeira uma reflexão “pessoal”.

Se no século XVIII as crenças e previsões eram justificadas principalmente pelas autoridades, fossem elas religiosas, professorais, ou mesmo ambas, já no início do século XIX as previsões passam a ser fundamentadas em modelos e simulações algoritmicamente calculados, fazendo com que a autoridade seja cada vez mais algorítmica e matematicamente determinada (Mackenzie & Vurdubakis, 2011Mackenzie, A., & Vurdubakis, T. (2011). Codes and codings in crisis: Signification, performativity and excess. Theory, Culture & Society, 28(3), 3-23.). Justamente essa forma de imposição de diretrizes faz com que determinadas informações, que são as mais acessadas, permaneçam presentes na primeira página do Google, por exemplo, fazendo com que a visibilidade decorrente dessa exposição produza uma espécie de círculo vicioso (Bucher, 2012Bucher, T. (2012). Want to be on the top? Algorithmic power and the threat of invisibility on Facebook. New Media & Society, 14(7), 1-17.), pois, quanto mais visíveis tais informações forem, mais terão a possibilidade de serem acessadas e, portanto, selecionadas, classificadas e ranqueadas pelos algoritmos dos mecanismos de busca do Facebook ou do Google.

Diante desse quadro, pode-se ter a falsa impressão de que os algoritmos agem por si sós, ou seja, independentemente da intervenção humana – a mesma intervenção responsável por sua criação e operação. Na verdade, a defesa de uma suposta neutralidade algorítmica se respalda na ideologia de que as máquinas possuem total autonomia em relação às ações de seus produtores. Mas a crítica dessa falsa representação da realidade deve ser feita de forma a questionar como os arquivos de dados são organizados, quem os classifica e quais são os interesses que orientam tal classificação (Beer, 2012Beer, D. (2012). Open access and academic publishing: Some lessons from music culture. Political Geography, (31), 256-259.). É exatamente a crítica da pretensa neutralidade algorítmica que desvela o véu ideológico do poder social da chamada autoridade algorítmica digital.

No entanto, a permanência do, por assim dizer, fetiche tecnológico algorítmico atesta seu poder social, principalmente pelo modo como a reificação das consciências é digitalmente efetivada na sociedade da revolução microeletrônica. De fato, pesquisadores cada vez mais questionam as transformações na própria capacidade mnemônica em virtude do convívio cotidiano com objetos e informações digitalizadas (Van Dijck, 2004Van Dijck, J. (2004). Memory matters in the digital age. Configutations, 12(3), 349-373.; Van House & Churchill, 2008Van House, N., & Churchill, E. F. (2008). Technologies of memory: Key issues and critical perspectives. Memory Studies, 1(3), 295-310.).

Ao que tudo indica, é na sociedade da cultura digital, na qual é possível lembrar-se de tudo, que novas formas de esquecimento são concebidas. E isso ocorre todas as vezes que as informações obtidas são descontextualizadas, ou seja, quando se desconsidera totalmente o fato de que na tessitura de tais informações encontram-se mediadas as contradições humanas, fomentadas por uma determinada cultura, que as engendraram. Se tais mediações históricas são desconsideradas, então as informações obtidas podem muito bem ser empregadas para justificar a disseminação do pensamento estereotipado e de atitudes preconceituosas, fato que renova, na cultura digital, as características da “mentalidade do ticket”, tal como foi denominada por Adorno (1972)Adorno, T. W. (1972). Studies in the authoritarian personality. In Gesammelte Schriften 9: Soziologische Schriften II: Erste Hälfte (pp. 143-508). Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.. Quando tanto as pessoas quanto as situações socialmente produzidas são como que etiquetadas (daí a ideia do ticket), por meio de rótulos que lhes conferem uma sentença de julgamento aparentemente irredutível, fazem-se presentes as condições sociais ideais para que haja a “regressão ao nível infantil da estereotipia e da personalização” (Adorno, 1972Adorno, T. W. (1972). Studies in the authoritarian personality. In Gesammelte Schriften 9: Soziologische Schriften II: Erste Hälfte (pp. 143-508). Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag., p. 346).

Sabe-se que Adorno elaborou o conceito de mentalidade do ticket no contexto da indústria cultural estadunidense de meados do século XX. Nesse sentido, é relevante enfatizar o modo como esse pensador frankfurtiano observou o arrefecimento da consciência moral numa sociedade cuja indústria cultural, por meio de seus mais variados produtos, se fortalecia cada vez mais na condição de determinadora de diretrizes de comportamento:

A decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna da consciência moral, da autoconservação e das pulsões. Para as pessoas na esfera profissional, as decisões são tomadas pela hierarquia que vai das associações até a administração nacional; na esfera privada, pelo esquema da cultura de massa, que desapropria seus consumidores forçados de seus últimos impulsos internos. As associações e as celebridades assumem as funções do Eu e do Supereu.

(Adorno, 1972Adorno, T. W. (1972). Studies in the authoritarian personality. In Gesammelte Schriften 9: Soziologische Schriften II: Erste Hälfte (pp. 143-508). Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag., pp. 189-190)

Já na cultura digital, as decisões e diretrizes de conduta são algoritmicamente calculadas e apresentadas às pessoas, as quais são, em muitas ocasiões, etiquetadas por meio de slogans absolutamente descontextualizados de suas condições de origem, tal como ocorre com os indivíduos que são despedidos ou nem mesmo contratados por empresas em função de imagens e comentários anteriormente postados nas redes sociais. Com efeito, “os algoritmos não são apenas processos computacionais abstratos, mas também têm o poder de determinar as realidades materiais” (Bucher, 2017Bucher, T. (2017). The algorithmic imaginary: Exploring the ordinary affects of Facebook algorithms. Information, Communication & Society, 20(1), 30-44., p. 40) e a vida das pessoas.

No que concerne à relação professor-aluno, talvez seja correta a interpretação de que o arrefecimento da figura de autoridade do professor seja resultante, entre outros fatores, da sensação de empoderamento dos os alunos que, por meio de seus gadgets eletrônicos, notadamente os celulares, podem acessar quaisquer informações algoritmicamente selecionadas, classificadas e disponibilizadas em quaisquer espaços e tempos. É como se os alunos indagassem a si próprios: “para que precisamos de nossos professores, se podemos localizar, por meio de nossos computadores de bolso, qualquer tipo de informação não só na escola, como também em qualquer outro lugar?”. Outra questão derivada dessa seria: “qual é o sentido de se frequentar a escola nos dias atuais?”.

Essas não são questões que suscitam respostas prontas e acabadas, haja vista que as transformações das identidades dos professores e alunos na cultura digital estão acontecendo numa velocidade cada vez maior, o que certamente implicará modificações estruturais dos aspectos cognitivos, afetivos e éticos envolvidos no processo de elaboração de tais identidades. Em relação a essas modificações, cujos indícios já podem ser observados, são já notórias as alterações na capacidade de concentração dos alunos, e também dos professores, nos conteúdos estudados nas salas de aula. Não por acaso, os alunos acessam os dados das redes sociais de que participam mesmo durante as aulas, muitas vezes sob os olhares coniventes dos professores de ensino médio e universitário, por exemplo.

A verdade de que, no caso do ensino universitário, certos alunos acessam o texto que fora selecionado pelo professor para discussão em sala por meio de dispositivos eletrônicos não pode dirimir o fato de que vários outros alunos manuseiam as teclas de seus celulares, notebooks ou tablets para entrar em suas contas de Facebook e WhatsApp, de modo que não mais permanecem nas aulas, embora fisicamente ainda estejam presentes. Há que se ressaltar que muitos professores não resistem ao vício de se sentirem conectados todo o tempo e também acessam suas contas particulares de redes sociais mesmo no transcorrer das aulas.

Frente a esse quadro, não foi fortuita a designação de Christoph Türcke (2016)Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção (J. P. Antunes, trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. de que o déficit de atenção não pode ser consubstanciado exclusivamente nas idiossincrasias psíquicas e biológicas dos que são identificados como seus portadores, pois já é possível distinguir uma cultura do déficit de atenção. Ao que tudo indica, nessa cultura, a “atividade cerebral de uma crescente quantidade de crianças e jovens deixou de corresponder a determinados padrões tradicionais de cultura” (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção (J. P. Antunes, trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 50). Com efeito, a estimulação produzida por meio de choques audiovisuais, que são consumidos de forma praticamente ininterrupta, parece estar fazendo com que haja constantes reinstalações de conexões sinápticas no cérebro, de tal maneira que, diante de “tantas medidas de reconstrução, não se chegue mais à construção e à consolidação de algumas de suas redes neurais, como seu equipamento genético e suas possibilidades de arranjo, afinal, lhe permitiriam” (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção (J. P. Antunes, trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 48).

Evidentemente, diante de tamanha dispersão da concentração face à cultura do déficit de atenção, a sedução das etiquetas algoritmicamente produzidas e disponibilizadas se torna ainda mais presente, pois os algoritmos como que fornecem determinada diretriz, uma linha de conduta que proporciona a sensação de que é possível se aferrar a algo na sociedade, na qual as relações entre as pessoas se tornam cada vez mais aceleradas (Rosa, 2016Rosa, H. (2016). Beschleunigung: die Veränderung der Zeitskulturen in der Moderne. Franfkfurt am Main: Suhrkamp Verlag.).

Essa falsa sensação de segurança promovida pelo acesso à informação, que é instrumentalmente incorporada como slogan, como etiqueta, também parece ser fomentada pelo enfraquecimento da autoridade dos educadores e pelo recrudescimento da autoridade algorítmica materializada nos aparelhos eletrônicos, principalmente nos celulares. É como se o próprio professor estivesse desistindo de propor diretrizes de informações para seus alunos, as quais poderiam conjuntamente ser relacionadas, discutidas e transformadas em conhecimento, para se render ao sortilégio das diretrizes algoritmicamente calculadas e apresentadas de antemão como se fossem, filosoficamente, um tipo de absoluto, verdades em si e por si.

Além disso, há outro aspecto que precisa ser destacado: por meio do uso de tais aparelhos e do acesso contínuo às redes sociais, nota-se que a atual debilitação das linhas fronteiriças entre as esferas pública e privada, que compõem as relações entre professores e alunos, já acarreta dilemas morais inéditos. Esse é o caso dos professores e alunos que, por assim dizer, se conectam por meio do Facebook. Pois como pode um professor avaliar um determinado aluno que é seu “amigo” nessa rede social? E mais: os alunos cujas postagens são mais algoritmicamente destacadas do que outras serão mais “amigos” do professor no Facebook? O fato é que aspectos da esfera privada, tais como a troca de ideias e opiniões, se tornaram “interações algoritmicamente mediadas” pelo Facebook (Van Dijck, 2013Van Dijck, J. (2013). The culture of connectivity: A critical history of social media. Oxford: Oxford University Press., p. 65).

O mesmo raciocínio se aplica no caso das manifestações de cyberbullying feitas pelos alunos em relação a seus professores. São cada vez mais frequentes as postagens, feitas por estudantes do ensino médio e universitário, de imagens e comentários humilhantes sobre seus respectivos educadores. Se as palavras “professor” e “celular” forem escritas nos mecanismos de busca das redes sociais, tal como o YouTube, serão imediatamente acessados dezenas de vídeos e centenas de comentários postados por alunos nos quais os professores são ridicularizados em situações de desespero diante da falta de atenção do alunado, de modo que os educadores retiram o celular das mãos dos alunos e o atiram com toda força em direção ao chão, esmagando-o imediatamente. E se as palavras “teacher” e “cell phone” forem também escritas nesses mesmos mecanismos de busca, serão acessados vídeos postados por estudantes de vários países com imagens e comentários em inglês muito semelhantes àqueles postados por alunos brasileiros. Certamente as demonstrações de ódio dos alunos em relação a seus professores não foram inauguradas na cultura digital. De certa forma, elas se faziam presentes desde a Antiguidade greco-romana, tal como enfatizado na primeira parte deste artigo.

Contudo, é na cultura digital que essas demonstrações são exibidas de tal forma que não mais se restringem ao espaço físico das instituições escolares e seus arredores, mas são acessadas e vistas em quaisquer tempos e espaços. E quanto mais essas imagens e comentários degradantes e humilhantes sobre os professores são não apenas postados, como também visualizados, mais os algoritmos do YouTube, por exemplo, vão destacá-los entre outras imagens e comentários menos visualizados. Desse modo, observa-se uma tendência de acirramento da agressividade de choques audiovisuais, na medida em que os alunos praticantes de cyberbullying contra professores sabem que quanto mais as etapas desse ato planejado forem visualmente chocantes e, portanto, agressivas, mais chances esses choques terão de se tornar “virais”, ou seja, de serem visualizados e curtidos por milhares, ou mesmo milhões de internautas.

Ao que tudo indica, é na cultura na qual as relações entre esses agentes educacionais se digitalizam cada vez mais que os alunos tendem a criticar a imagem do professor, principalmente em virtude de um aspecto: se hoje é possível o acesso a quaisquer informações algoritmicamente calculadas por meio dos aparelhos eletrônicos, tais como os celulares, qual é o sentido da identificação do professor como uma figura de auctoritas? Será que finalmente está se cumprindo aquela previsão de Skinner de que atualmente os professores estariam mesmo fora de moda, sendo uma espécie de versão ultrapassada, uma vez que os algoritmos dos mecanismos de busca do Google seriam reforçadores de comportamentos muito mais eficientes quando comparados aos professores?

Conclusão

Atualmente, faz-se cada vez mais necessário refletir sobre os novos patamares que a relação de ambivalência de sentimentos entre professores e alunos adquire na cultura digital. Foi observado que essa relação determinou as características dos alicerces cognitivos e afetivos presentes na estruturação das identidades dos professores e alunos, inclusive dos atributos da denominada autoridade dos educadores.

Apesar das diferenças didático-metodológicas entre as chamadas pedagogia humanista tradicional (Herbart) e pedagogia humanista moderna (Rousseau), o professor ainda era identificado como uma figura de autoridade decisiva para a promoção do processo de internalização da disciplina, de desenvolvimento da consciência moral e das habilidades cognitivas dos alunos. Em outras palavras, todo o esforço decorrente da internalização da disciplina e, portanto, do desenvolvimento da consciência moral por parte do aluno se alicerçava no sentimento de admiração pela figura daquele que se responsabiliza pela exposição e discussão das informações: o professor. Sendo assim, era como se o aluno dissesse para si: “não é fácil saber controlar a forma de manifestação de meus desejos, pois tenho que pensar nas consequências que isso implica para os outros. Do mesmo modo, também é custoso acostumar-me com o fato de que preciso me concentrar, com todas as forças, no aprendizado e na discussão dos conteúdos discutidos em sala de aula para que o conhecimento possa ser conjuntamente produzido”. Mas todo esse empenho seria recompensado pelo reconhecimento do professor, às vezes simplesmente expresso pelo sorriso do seu olhar diante dos progressos dos alunos.

Seguindo essa linha de raciocínio, o aluno, de certa forma, desejava um dia poder ser como o professor, talvez não no sentido exclusivo de exercer sua profissão, mas sim quanto à aspiração de se tornar um adulto capaz de produzir conceitos, relacionar os acontecimentos passados com os do presente para a concepção de possíveis futuros, e refletir sobre a relação entre seus direitos e deveres de cidadão.

Porém, na sociedade da cultura digital, amplificam-se os indícios de que essa relação de ambivalência está sendo radicalmente transformada. Evidentemente, há uma miríade de fatores de ordem objetiva e subjetiva que determinam as tonalidades dessa transformação. No caso das escolas públicas brasileiras, por exemplo, quaisquer tipos de vínculos estabelecidos entre professores e alunos são dificultados em função da precariedade das condições infraestruturais das instituições e do fato de que muitos educadores precisam lecionar em várias escolas durante a semana para que possam ter recursos mínimos de existência. No que diz respeito ao objetivo deste artigo, foram apresentadas reflexões sobre a forma como a autoridade algorítmica digital está se consolidando diante da denominada autoridade do professor, pois, para os alunos, muitas vezes impera o pensamento de que os educadores não são mais necessários, uma vez que as informações podem ser algoritmicamente obtidas por meio do clique em palavras-chave nos mecanismos de busca das redes sociais, sem que precisem ser relacionadas entre si. E até mesmo os professores agem dessa forma quando se entregam às diretrizes algoritmicamente calculadas e não mais refletem sobre as informações que são reificadamente consideradas verdades irrefutáveis.

Contudo, é justamente na sociedade da cultura digital que a presença do professor se torna imprescindível, na medida em que ele ou ela se transforma em promotor de mediações conceituais. Quando os educadores, conjuntamente com os alunos, relacionam historicamente as informações obtidas na internet e refletem sobre as contradições nela engendradas, então há uma chance de que as etiquetas e os rótulos algoritmicamente obtidos sejam criticamente analisados e questionados quanto à sua pretensão ideológica de neutralidade. Se for assim, tornar-se-ia possível que o professor revitalizasse, por meio do uso da tecnologia digital, sua condição de auctoritas, pois seria uma autoridade fundamentada na condição de que ele ou ela e seus alunos se transformariam em autores e artífices do processo de produção do conhecimento.

  • 1
    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Aline Maya (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2018
  • Aceito
    10 Jul 2018
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