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O portfólio e a construção de saberes docentes na pós-graduação em saúde 1 1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

The portfolio construction and knowledge of teachers in post graduation in health

Resumo

O atual cenário de mudanças e inovações na formação dos profissionais de saúde desencadeou esta investigação, que teve como objetivo analisar o papel do portfólio reflexivo na construção de saberes docentes no contexto da disciplina Formação Didático-Pedagógica em Saúde, com 68 pós-graduandos dessa área. A pesquisa documental, de natureza qualitativa, contou com análise de conteúdo na modalidade temática, da qual emergiram seis categorias: experiência prévia e construção do portfólio; construção de subjetividade; estímulo à autonomia/autoconhecimento; integração teoria-prática e atuação docente; estímulo à reflexão e à síntese; e mudanças nas concepções de avaliação. Concluiu-se que o portfólio propicia a construção de saberes para a docência numa perspectiva emancipatória, com metarreflexão sobre o processo formativo, implicando o sujeito com sua aprendizagem e com as necessidades de saúde da população.

Palavras-chave
portfólio; docência em saúde; avaliação da aprendizagem; ensino superior

Abstract

A scenario of changes and innovations in the training of health professionals triggered this research that aimed to analyze the role of reflective portfolio in the construction of teaching knowledge, in the context of the Department of Didactic-Pedagogical Training in Health, with 68 graduate students in the health field. With the thematic analysis seven categories: Previous experience and portfolio construction process; Construction of subjectivity; Stimulate the autonomy/self-knowledge; Development of creativity; Integration theory and practice and teaching practice; Development of reflective capacity and synthesis; Changes in evaluation concepts. It was concluded that the portfolio provides the construction of knowledge for teaching, an emancipatory perspective, with metareflection about the educational process, promoting involvement of the subject with their learning and health needs of the population.

Keywords
portfolio; teaching in health; assessment of learning,; higher education

Introdução

As mudanças no perfil dos profissionais da área da saúde, no sentido de atender às demandas sociais e consolidar o Sistema Único de Saúde (SUS), requerem ampliadas reflexões sobre o processo de formação docente no ensino superior, que com frequência priorizam a produção científica em detrimento da profícua aprendizagem da docência, considerada como mera consequência da experiência profissional. Desse modo, inúmeros são os desafios na formação do profissional nas complexas problemáticas atuais em saúde e educação (Batista, 2005Batista, N. A (2005). Desenvolvimento docente na área da saúde: uma análise. Trabalho, Educação e Saúde, 3(2), 283-294.; Mohr, 2011Mohr, A. (2011). A formação pedagógica dos profissionais da área da saúde. In V. Brant, Formação pedagógica de preceptores do ensino em saúde (pp. 53-65). Juiz de Fora: Editora UFJF.; Ribeiro & Cunha, 2010Ribeiro, M. L., & Cunha, M. I. (2010). Trajetórias da docência universitária em um programa de pós-graduação em saúde coletiva. Interface, 14(32), 55-68.).

As políticas indutoras da formação profissional em saúde, incluindo as diretrizes curriculares nacionais (Brasil, 2001Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. (2001, 9 de novembro). Resolução CNE/CES nº 4, de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Diário Oficial da União, seção 1, 38. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
, 2014Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. (2014, 23 de junho). Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação de medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, seção 1, 8-11. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15874-rces003-14&category_slug=junho-2014-pdf&Itemid=30192
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
), demandam estratégias de ensino-aprendizagem centradas nos estudantes que desenvolvam autonomia e metarreflexão sobre o processo de formação. É nessa direção que Ribeiro e Cunha (2010)Ribeiro, M. L., & Cunha, M. I. (2010). Trajetórias da docência universitária em um programa de pós-graduação em saúde coletiva. Interface, 14(32), 55-68. enfatizam a necessidade de superar modelos transmissivos e reprodutores, privilegiando práticas emancipatórias que valorizem a subjetividade, a dúvida e a incerteza como embriões do conhecimento.

Nesse contexto, o portfólio reflexivo pode representar uma alternativa inovadora na construção dos saberes docentes em saúde. Sua elaboração tem grande potencial no processo de formação de professores, já que se baseia no protagonismo do participante, que é envolvido na construção e no compartilhamento de conceitos, reflexões, propostas e ações em um “processo ensino-aprendizagem ativo, cujo enfoque metodológico se baseia na comunicação dialógica entre os diferentes sujeitos; a intenção é que os estudantes desenvolvam além de conhecimentos, atitudes e habilidades” (Cotta, Costa, & Mendonça, 2013Cotta, R. M. M., Costa, G. D., & Mendonça, E. T. (2013). Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Ciência & Saúde Coletiva, 18(6), 1847-1856., p. 1849).

Mathis Behrens (2008)Behrens, M. (2008). Reflexões sobre a síndrome do portfólio. In M. P. Alves, & E. A. Machado, Avaliação com sentido(os): contributos e questionamentos (pp. 153-171). Santo Tirso: De Facto. argumenta que as práticas com o portfólio podem obedecer a finalidades diversas, dada a polissemia conferida ao termo e a multiplicidade de funções que lhe são atribuídas. Estas oscilam entre possibilidades de gestão da carreira, instrumento de avaliação e auxílio à aprendizagem. Também os procedimentos de construção e estruturação desta ferramenta apresentam diferentes formatos, o que demanda clareza sobre o referencial adotado e a intenção do projeto a ser desenvolvido. Uma recomendação importante expressa por Bélair e Van Nieuwenhoven (2012)Bélair, L. M., & Van Nieuwenhoven, C. (2012). O portfólio: uma ferramenta de consignação ou de avaliação autêntica? In L. Paquay, C. van Nieuwenhoven, & P. Wouters (Orgs.). A avaliação como ferramenta de desenvolvimento profissional de educadores (pp. 167-182). Porto Alegre: Penso. é atentar para a relevância da definição de critérios claros para sua construção, acompanhamento e devolutiva.

Em revisão sistemática da literatura, Buckley et al. (2009)Buckley, S., Coleman, J., Davison, I., Khan, K. S., Zamora, J., Malick, S., … Sayers, J. (2009). The educational effects of portfolios on undergraduate student learning: a Best Evidence Medical Education (BEME) systematic review: BEME Guide no 11. Medical Teacher, 31(4), 282-298. indicam que os principais aspectos do uso de portfólios identificados em sua pesquisa foram: maior autoconhecimento e incentivo à reflexão (44 estudos); aprimoramento dos conhecimentos e compreensão (28 estudos); e autonomia dos alunos (10 estudos).

O portfólio pode incluir textos, desenhos, diagramas, rascunhos, possibilitando também que diferentes estilos literários e mídias sejam incorporados, podendo ir além de um registro acadêmico tradicional. Com ele, o processo de construção de um projeto, de uma ação, de um pensamento – os “bastidores” da construção de ideias e construtos – pode ser revelado. Desafios, dificuldades de percurso e possibilidades podem vir à tona, revelando as “entrelinhas” no decorrer dos trabalhos e levando a novas aprendizagens, estimulando a criatividade e construção de novos conhecimentos.

O portfólio neste artigo assumiu a função de ferramenta auxiliar dos processos de ensinar, aprender e avaliar na formação docente em saúde, adotando a reflexão e a criticidade como aspectos centrais de sua construção progressiva e dialógica no decorrer da disciplina. Neste sentido, foi considerado mais que um acúmulo de folhas, porta-documentos ou pasta em que são depositadas as melhores amostras de trabalhos, constituindo-se em registro acompanhado de apropriação crítica de conceitos, opiniões e posicionamentos do sujeito em relação à temática em estudo e seu contexto.

Dessa forma, concebeu-se um trabalho pedagógico de construção de saberes docentes em saúde por meio do uso do portfólio reflexivo que ultrapassasse o sentido de uma coleção estática de atividades acadêmicas ou textos arquivados em uma pasta, valorizando a voz e a autoria dos sujeitos em interação entre eles, com o docente e com o objeto de conhecimento. Assim, o objetivo deste trabalho foi analisar o uso do portfólio reflexivo no processo de construção de saberes docentes de pós-graduandos da área da saúde.

A pesquisa, de abordagem qualitativa, implicou densa partilha de sentidos entre os pesquisadores e o objeto de estudo, buscando extrair significados visíveis e latentes, interpretando e traduzindo de forma cuidadosa um texto com competência científica. Embora esses pesquisadores não sejam neutros, tendo suas crenças e convicções, sua história, constroem novos conhecimentos por meio da pesquisa e dos significados ali engendrados. Dessa forma, a pesquisa qualitativa admite uma realidade fluente e contraditória como a que foi analisada no registro dos portfólios desses pós-graduandos em formação (Chizzotti, 2006Chizzotti, A. (2006). Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis: Vozes.; Ghedin & Franco, 2011Ghedin, E., & Franco, M. A. S. (2011). Questões de método na construção da pesquisa em educação. São Paulo: Cortez.).

A pesquisa qualitativa foi guiada pela análise documental, que incide sobre um objeto específico de estudo – neste caso, os portfólios reflexivos. Lüdke e André (2014)Lüdke, M., & André, M. (2014). Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU. elucidam que a pesquisa documental confronta hipóteses do pesquisador com informações contextualizadas e requer grande investimento de tempo e atenção para selecionar e analisar os dados com rigor científico.

O cenário da pesquisa foi a disciplina Formação Didático-Pedagógica em Saúde e envolveu 68 pós-graduandos (denominados de PG 1 a PG 68) dos cursos de medicina, nutrição, fisioterapia, educação física, biomedicina, psicologia, enfermagem e fonoaudiologia que participaram de três turmas de formação e não possuíam experiência docente. A disciplina foi oferecida pelo Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (Cedess) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) entre 2014 e 2015, tendo como objetivo preparar pós-graduandos para o exercício da função docente. Propunha uma reflexão crítica do papel da docência no ensino da saúde, em consonância com o atual contexto de políticas de saúde e educação.

Ao longo de dez encontros, no período de um mês, com carga horária de 60 horas, houve interação dialógica e reflexiva contínua entre docentes e discentes, por meio de estratégias como mapa conceitual, mesa-redonda, trabalho em pequenos grupos, exposição dialogada e portfólio.

A construção do portfólio partiu de uma sensibilização inicial e definição coletiva da estrutura dos registros, que seriam constituídos dos seguintes itens: apresentação pessoal e profissional, memórias reflexivas dos estudos realizados em cada encontro, práticas pedagógicas e leituras complementares. Os critérios de avaliação, negociados coletivamente, foram a organização do portfólio, a qualidade das produções, o aprofundamento teórico-prático das reflexões e a construção processual durante a disciplina. A elaboração do portfólio compreendeu também uma avaliação parcial dialogada, uma avaliação entre pares e um registro conclusivo final da proposta de formação docente.

A análise de conteúdo, na modalidade temática, foi utilizada com o propósito de atingir os significados manifestos e latentes dos sujeitos. Os dados coletados nos portfólios foram pré-analisados e as unidades de contexto foram identificadas, passo fundamental para situar o pano de fundo das mensagens a serem decodificadas e ancorar posteriormente a compreensão e o significado das unidades de registro, que constituem o menor recorte de ordem semântica advinda do texto, representadas por uma palavra, frase ou oração das quais foram apreendidas as categorias (Minayo, 2004Minayo, M. C. S. (2004). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec.), organizadas em tabela Excel.

Houve nesta pesquisa cuidado com os aspectos éticos, condicionando a participação dos pós-graduandos ao aceite e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp (Processo nº 0692/2010).

Resultados e discussão

A partir da análise realizada foram identificadas seis categorias: experiência prévia e processo de construção do portfólio; construção de subjetividade e desenvolvimento da criatividade; estímulo à autonomia e ao autoconhecimento; integração teoria-prática e atuação docente; desenvolvimento da capacidade reflexiva e de síntese; e mudanças nas concepções de avaliação.

Experiência prévia e processo de construção do portfólio

O portfólio constituiu uma ferramenta nova para grande parte dos pós-graduandos, que desconheciam seu potencial em sala de aula como instrumento mediador da construção de conhecimentos no ensino superior em saúde. O contato inicial gerou sentimentos de medo e apreensão, como apontam as expressões dos pós-graduandos que constituem as unidades de contexto e de registro (em itálico):

Por se tratar de uma ferramenta “nova” [o portfólio], pouco difundida no ensino superior aqui no Brasil; para mim foi uma novidade utilizá-lo para avaliar, especialmente porque a princípio não fazia muita ideia de como desenvolvê-lo. (PG 16)

no momento inicial do curso, em que foi proposta a entrega do portfólio, o qual representava algo extremamente novo, hostil e causador de angústia. (PG 11).

Apenas um participante, formado em ciências biológicas, tinha experiência prévia com o uso do portfólio no papel de docente:

Enquanto professor de ensino fundamental II, trabalhei com “diário de bordo”. Professores e alunos postavam suas ponderações num blog. Era uma importante ferramenta, pois fazíamos com que os alunos lessem e escrevessem enquanto eu avaliava as impressões sobre as aulas. Percebi que já trabalhei com portfólios sem saber. (PG 21)

Apesar das dificuldades iniciais, os participantes relataram um processo gradativo de apropriação e identificação do seu percurso de aprendizagem na elaboração do portfólio, que foi facilitado pela troca de experiências durante a avaliação coletiva parcial realizada com a estratégia de Grupo de Verbalização e Grupo de Observação (GVGO). A ambiência de diálogo, respeito e parcerias entre colegas favoreceu a continuidade do processo de elaboração:

Particularmente minha participação no grupo de verbalização na avaliação parcial me propiciou inúmeras reflexões sobre minha prática de elaboração do portfólio. […] os dados coletados foram socializados e a partir de tal ponto foi possível refletir sobre o processo construtivo individual e coletivo. (PG 2)

No livro A formação social da mente, Vygotsky (1998)Vygotsky, L. S. (1998). A formação social da mente (6a ed.). São Paulo: Martins Fontes. afirma que o processo de construção do conhecimento acontece primeiro no plano interpessoal para, depois, acontecer no plano intrapessoal – a aprendizagem ocorre quando a pessoa internaliza o que já foi vivenciado externamente em forma coletiva. A relação do sujeito com o conhecimento é viabilizada pela linguagem, de modo que o conhecimento se constrói nas relações interpessoais.

Hoje sei que portfólio como dito várias vezes por mim e também por diversos colegas de disciplina não é um aglomerado de papeis e sim algo muito rico que faz com que você trabalhe com a informação para que a transforme em conhecimento e faz “cair por terra” aquelas ideias antigas de aluno passivo e que só quem sabe é o professor. Foi muito libertadora esta experiência! (PG 55)

O portfólio representou um desafio inicial para os participantes, mas foi entendido para além do simples cumprimento da tarefa a ser entregue ao final do curso. Ele requereu uma mediação dialógica entre discentes e docentes no processo de construção dos conhecimentos, com possibilidade de trocas e reorientações no percurso das ações numa perspectiva formativa (Villas Boas, 2005Villas Boas, B. M. F. (2005). Portfólio, avaliação e trabalho pedagógico. Campinas: Papirus.).

Constatou-se que o portfólio reflexivo propiciou, desde o início, momentos inusitados de aprendizagem ativa, a princípio desafiadora pela falta de experiência da maior parte dos pós-graduandos. Permitiu desta forma problematizar e construir dialogicamente saberes docentes que envolveram desde o planejamento e estruturação da ferramenta em si até a vivência de estratégias inovadoras imbricadas com o ensino nas ciências da saúde. Uma perspectiva de avaliação da aprendizagem também começou a ser delineada pelos professores em formação por meio do portfólio reflexivo:

Para mim o portfólio foi muito enriquecedor, tanto como pessoa como quanto aluno ou até futuro docente. Como pessoa, pois nele me expressei de diversas formas e em diversos assuntos; como aluno, pois pude me aprofundar nos temas propostos, também tirei dúvidas e levantei questionamentos e como docente descobri e percebi nele uma estratégia muito promissora e inovadora de avaliação. (PG 15)

A importância de incentivar o diálogo, a colaboração e o trabalho coletivo, em que alunos e professores constroem conhecimentos de forma compartilhada, vai ao encontro do que afirmam Ruiz-Moreno, Leite e Ajzen (2013)Ruiz-Moreno, L., Leite, M. T., & Ajzen, C. (2013). Formação didático-pedagógica em saúde: habilidades cognitivas desenvolvidas pelos pós-graduandos no Moodle. Ciência e Educação, 19(1), 217-229. sobre o papel da comunicação nos ambientes que lidam com a saúde. No modelo pedagógico vigente na maioria das escolas, o estudante é visto como receptor de conteúdos cuja tarefa é assimilar e reproduzir, em vez de problematizar, analisar, refletir, discutir e conversar. Qualquer curso da área da saúde que prima pela formação de profissionais deve propiciar o desenvolvimento, nos estudantes, de competências cognitivas e sociais que os ajudarão a lidar com as necessidades da população. Entre estas, destacam-se as habilidades de se comunicar, cooperar e atuar em equipe multi e interprofissional, como também o inter-relacionamento com pacientes, familiares e comunidade (Abensur, Carvalho, & Ruiz-Moreno, 2015Abensur, P., Carvalho, G., & Ruiz-Moreno, L. (2015). O processo de formação didático-pedagógica em saúde: aprendizagens percebidas na voz dos pós-graduandos. ABCS, 40(3), 158-163.; Casanova, Batista, & Moreno, 2018Casanova, I. A., Batista, N. A., & Moreno, L. R. (2018). A educação interprofissional e a prática compartilhada em programas de residência multiprofissional em saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 22(Supl. 1), 1325-1337. doi:10.1590/1807-57622017.0186
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.01...
).

Construção de subjetividade e desenvolvimento da criatividade

A formação dos profissionais de saúde tem sido pautada num comportamento fragmentado, que dicotomiza corpo e mente, razão e sentimento, ciência e ética na busca de eficiência técnico-científica que nem sempre considera a humanização dos sujeitos. Em contrapartida, a elaboração do portfólio pelos pós-graduandos evidenciou um processo de valorização da diversidade e construção de subjetividades, favorecendo a tomada de consciência sobre o processo de construção e integração de saberes:

Estou consciente de que o meu texto não é o mais objetivo e conciso que alguém possa ler. Mas deixo claro que essa foi uma escolha minha, de deixar as ideias, pensamentos e até desabafos surgirem, para poder analisar o momento que estou vivendo. Tenho certeza que, embora os assuntos de aula não estejam didaticamente separados, eles estão consolidados na minha mente. (PG 12)

Ao participar da primeira socialização dos portfólios, pude observar as diferentes formas como cada um vai construindo esta trajetória. É lindo perceber as diferenças ao aprofundar a compreensão sobre cada conteúdo apresentado! Cada um do seu jeito vai também desvelando seu próprio ser. (PG 43)

O fato de se poder escrever livremente e colocar em determinado assunto uma visão própria, ou inserir uma experiência é de grande utilidade, pois dessa forma o conhecimento é realmente construído e enraizado pelo sujeito […]. A questão de tornar o aprendizado algo pessoal, ao escrever o portfólio, não simplesmente repetir aspectos técnicos é algo que posso imaginar que seja muito eficaz para o aprendizado de um determinado tema ou habilidade, pois torna o material muito mais pessoal e de certa forma até autora. Deve ser muito mais fácil construir habilidades dessa forma. (PG 41)

De resultado original, cada portfólio evidenciou diferenças e peculiaridades de cada sujeito na construção de seu conhecimento de maneira singular e identitária:

Para mim o portfólio é uma maneira criativa de construção da aprendizagem. […] Sem dúvida, será uma ferramenta que irei utilizar muito daqui para frente, não pensando como futura docente, mas como prática contínua da minha formação. O Portfólio é uma expressão da alma! (PG 31)

Divago em meu portfólio, nele coloco questões, opiniões do que gosto e acho mais relevante. Também no final de cada aula gosto de colocar um desenho que resume tudo o que eu falei. (PG 15)

O uso de diferentes mídias na construção de um portfólio reflexivo ampliou a potencialidade expressiva e criativa do instrumento. Villas Boas (2005)Villas Boas, B. M. F. (2005). Portfólio, avaliação e trabalho pedagógico. Campinas: Papirus. ainda acrescenta que cada portfólio é uma criação única porque o próprio aluno escolhe as produções que incluirá e insere suas reflexões sobre o desenvolvimento da aprendizagem, o que permite à “educação por meio de portfólios” criar “um cenário de aprendizagem em que o aluno, mediante a criatividade”, torna-se “o agente de sua própria aprendizagem” (Cotta et al., 2013Cotta, R. M. M., Costa, G. D., & Mendonça, E. T. (2013). Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Ciência & Saúde Coletiva, 18(6), 1847-1856., p. 1854).

Construir competências para o ensino superior, bem como para a profissionalidade em saúde, hoje, demanda habilidades que acionem comportamentos criativos para resolução de problemas diferenciados e com recursos humanos e materiais cada vez mais escassos. A elaboração do portfólio esteve fundamentada no protagonismo e na criatividade do estudante, que é envolvido na construção de conceitos, reflexões, propostas e ações num processo ensino- aprendizagem ativo. Com um enfoque metodológico baseado na comunicação dialógica entre os diferentes sujeitos, pretendeu-se que os estudantes desenvolvessem um leque de conhecimentos, atitudes e habilidades com criatividade e não como meros reprodutores de ideias e práticas (Alarcão, 2003Alarcão, I. (2003). Questões da nossa época: Vol. 8. Professores reflexivos em uma escola reflexiva (6a ed.). São Paulo: Cortez.; Cotta et al., 2013Cotta, R. M. M., Costa, G. D., & Mendonça, E. T. (2013). Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Ciência & Saúde Coletiva, 18(6), 1847-1856.).

A aprendizagem dos saberes docentes evidenciou a relevância de aproximar o educando do objeto do conhecimento de maneira personalizada e criativa. Os estudantes são diferentes e aprendem de maneira singular, o que nos faz repensar instrumentos de ensino e avaliação concebidos apenas de forma padronizada. O indivíduo que aprende e apreende o saber necessita de alto grau de implicação com o objeto do conhecimento, o que nos faz refletir sobre as abordagens empiristas e tecnicistas, distanciadas das narrativas e histórias de vida dos sujeitos, avançando na direção da humanização na formação em saúde.

Ao discutir a relação do sujeito de aprendizagem com o objeto do conhecimento por meio da escrita reflexiva, ocorre uma apropriação dos saberes como se fizessem parte das narrativas de vida e profissionalidade de cada pós-graduando num processo intersubjetivo:

O ato de escrever desencadeia um processo metacognitivo, no sentido em que há uma distanciação e se constrói um enredo das experiências pedagógicas vividas. A escrita permite um recuo relativo aos acontecimentos vividos, refletir sobre eles e perspectivá-los. Assim se opera uma objetivação dos acontecimentos que, contados […] se transformam numa história.

(Behrens, 2008Behrens, M. (2008). Reflexões sobre a síndrome do portfólio. In M. P. Alves, & E. A. Machado, Avaliação com sentido(os): contributos e questionamentos (pp. 153-171). Santo Tirso: De Facto., p. 155)

Estímulo à autonomia e ao autoconhecimento

Na visão de Boaventura de Sousa Santos (2003)Santos, B. S. (2003). Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez., todo conhecimento é autoconhecimento, pois o objeto estudado não é mais que a continuação do sujeito. Na visão dos participantes da pesquisa, este processo foi facilitado durante a experiência educativa:

O portfólio é uma ferramenta de avaliação e de autoconhecimento. (PG 23)

Reconheci que o portfólio assume características inerentes à minha personalidade e ao meu perfil profissional… permite a avaliação de múltiplas competências que extrapolam a mera capacidade de apreensão individual de conteúdo. (PG 24)

As aulas e o portfólio me levam à autorreflexão de visão de mundo, do método pessoal de aprendizado e como eu posso usar esse conhecimento para ensinar o próximo. (PG 50)

ficou ainda mais claro para mim o caráter de autoavaliação do portfólio reflexivo. A partir deste momento, passei a mudar a maneira como eu processava a informação recebida em cada encontro, fazendo um esforço para realizar anotações e reflexões logo em seguida à aula. (PG 57)

A valorização da autonomia e do autoconhecimento na construção de saberes durante a formação docente é relevante para reorientar as práticas em saúde. O exercício da autonomia permite tomar consciência da situação pedagógica e/ou profissional de forma mais proativa e resolutiva, o que pode trazer benefício direto às complexas situações profissionais em saúde no cotidiano.

Com a mudança do paradigma político-ideológico na formação e assistência à saúde no Brasil, aprofundada pela implementação do SUS, o processo de formação docente nas instituições de ensino superior requer profundas alterações. Neste sentido, uso do portfólio pode favorecer processos formativos tanto na graduação quanto na pós-graduação e na educação permanente em serviço, com ênfase na aprendizagem autônoma e na autoavaliação.

É difícil conceber ações de promoção de saúde que envolvem circulação de saberes entre pacientes, familiares, equipe e comunidade sem repensar as tradicionais relações de poder entre estes sujeitos e a necessidade de propiciar ações democráticas e transformadoras.

Integração teoria-prática e atuação docente

A profissionalização docente envolve considerar a complexidade dos cenários reais no processo formativo. Nesta pesquisa, os participantes, alguns deles já inseridos nos cenários educativos e de assistência à saúde, revelaram diferentes níveis de articulação entre a prática profissional na área e o uso do portfólio reflexivo, destacando ademais a sua utilidade na atuação docente considerando a devolutiva de estudantes e pacientes:

Pude fazer conexão com minhas práticas diárias e aplicar os ensinamentos no dia-a-dia. […] Por associá-los tão profundamente às minhas angústias profissionais, tenho certeza que não os irei esquecer. (PG 12)

li sobre o assunto e consegui aplicar com meus alunos de uma forma adaptada, percebi que é uma forma eficaz de comunicação e consegui tomar atitudes que promovam o aprendizado […] já estou recebendo deles os primeiros feedbacks. (PG 19)

Como ganho, sem dúvida também, é agora a oportunidade que tenho de utilizar desta técnica, antes não conhecida, com meus pacientes e futuros alunos. (PG 15)

Vi a possibilidade de nós pós-graduandos, futuros professores, vivenciarmos esta prática para que possamos compreender e propor práticas avaliativas mais dinâmicas e voltadas para uma abordagem formativa. (PG 48)

A intenção do trabalho pedagógico numa perspectiva integradora entre a teoria e a prática dos pós-graduandos em saúde expressa o papel do portfólio na construção dos saberes docentes em um ambiente capaz de

implicar o estudante no seu desenvolvimento profissional e na qualidade do seu desempenho, no questionamento permanente da práxis e, em consequência, numa investigação – ação que promova avanços em espiral do saber docente […] afinal […] hoje mais do que nunca, o questionamento da práxis é imprescindível à tomada de consciência de que a aprendizagem tem de ser encarada como um desafio constante.

(Tracana & Lamas, 2011Tracana, M. G., & Lamas, E. P. R. (2011). Autoformação continuada: contributos do relatório final de estágio/portfólio. In M. P. Alves, M. A. Flores, & E. A. Machado, Quanto vale o que fazemos? Práticas de avaliação de desempenho (pp. 153-175). Santo Tirso: De Facto., p. 163)

Ao discutir a unidade teoria-prática na formação de professores, Pimenta (2012)Pimenta, S. G. (2012). Formação de professores: identidades e saberes da docência. In S. G. Pimenta (Org.), Saberes pedagógicos e atividade docente (8a ed., pp. 15-34). São Paulo: Cortez. afirma que os currículos desses cursos precisam captar na práxis do docente os conflitos, os confrontos, os pontos de resistência, as possibilidades de avanço para que então se possa identificar a reprodução das práticas e apontar não somente o que deve ser mudado, mas para onde o que está mudando pode ser direcionado.

Na profissionalização docente é importante desenvolver propostas nas quais a própria vivência constitua conteúdo de aprendizagem segundo a expressão dos próprios participantes. Tardif (2000)Tardif, M. (2000). Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, 13, 5-24. acrescenta que no processo de formação de professores é preciso integrar a diversidade dos saberes requeridos para o desempenho da função docente que dizem respeito ao modo como este se apropria do “ser professor” – saberes específicos das áreas de conhecimento, saberes pedagógicos e saberes da experiência do professor. Neste sentido, as expressões dos participantes parecem indicar uma apropriação e instrumentalização do uso do portfólio de forma a propiciar processos formativos mais amplos, que consideram a voz dos estudantes/pacientes numa perspectiva transformadora da realidade.

Estímulo à reflexão e à síntese

As potencialidades do portfólio em relação ao desenvolvimento processual da atitude crítico-reflexiva e a construção de novos conhecimentos ancorados nos conhecimentos prévios, tanto no nível individual como coletivo, foram ressaltadas:

Por meio da elaboração do meu portfólio, aprendi a construir uma consciência crítica e a expor o meu ponto de vista através de reflexões feitas depois de cada aula. (PG 23)

Foi uma forma de sintetizar diariamente os assuntos abordados em aula. Oportunidade de refletir aula a aula, sobre o que estamos aprendendo: comparar com conhecimentos prévios, concordar, discordar, instigar curiosidade sobre o tema e busca de novas informações. (PG 12)

As possibilidades são muitas, pois todo processo reflexivo gera autonomia, criticidade, organização, determinação, aprendizado, entre outros. (PG 62)

Os processos cognitivos de organização, argumentação, crítica, reflexão, entre outros, configuraram um processo de aprendizagem significativa. Foi possível observar nos relatos que o portfólio como estratégia de ensino, aprendizagem e avaliação oportunizou o pensamento divergente na construção de novos significados e sentidos na pós-graduação em saúde. O portfólio possibilita assim um diálogo construtivo entre pensamento e ação sobre os saberes da docência em gestação durante a formação didático-pedagógica, acreditando que

o processo de formação de professores deve emergir de um processo de investigação/reflexão em que o pensar e o fazer são entrelaçados pelo diálogo e a argumentação. O projeto de formação deve ser, portanto, um processo que reflita a realidade interna dos atores envolvidos embora referenciada a um contexto social mais amplo, o da escola onde desenvolvem a sua formação.

(Moreira & Ferreira, 2011Moreira, J. R., & Ferreira, M. J. (2011). Os webfólios como contributo para o desenvolvimento profissional docente e como dispositivo de avaliação. In M. P. Alves, M. A. Flores, & E. A. Machado (Orgs.), Quanto vale o que fazemos? Práticas de avaliação de desempenho (pp. 177-195). Santo Tirso: De Facto., p. 189-190)

Na visão de Rangel, Nunes e Garfinkel (2006)Rangel, J. N. M., Nunes, L. C., & Garfinkel, M. (2006). O portfólio no ensino superior: práticas avaliativas em diferentes ambientes de aprendizagem. Pro-Posições, 17(3), 167-180., esta ferramenta imprime um movimento de construção e desconstrução do conhecimento que considera que o sujeito que aprende é um sujeito histórico e social. Neste caso, o modelo proposto, utilizando o portfólio, “insere-se numa perspectiva crítica que encaminha o estudante a perceber que o entorno – a sala de aula, as relações e os vínculos que estabelece – seja no meio acadêmico ou fora dele, produz sentidos que atravessam a sua forma de aprender” (Rangel et al., 2006Rangel, J. N. M., Nunes, L. C., & Garfinkel, M. (2006). O portfólio no ensino superior: práticas avaliativas em diferentes ambientes de aprendizagem. Pro-Posições, 17(3), 167-180., p. 170).

Tendo a disciplina Formação Didático-Pedagógica em Saúde a intenção de formar novos conceitos e práticas para a docência universitária no campo, os saberes dialógicos e libertários ali trabalhados repensam pedagogias para contextos formais e não formais de exercício docente, seja em laboratórios, clínicas, hospitais ou unidades básicas de saúde:

Minha experiência com portfólio foi excelente, o fato de poder colocar nele sua reflexão além de falar sobre conteúdos faz com que de fato você liberte sua mente e aumente sua capacidade de pensar. (PG 55)

o portfólio foi uma ferramenta de organização do pensamento. (PG 1)

A apropriação reflexiva e crítica das competências pedagógicas em saúde é um aspecto estruturante da constituição do perfil docente e foi valorizada pelos participantes. Estudos sugerem que o uso de portfólios melhora o feedback aos alunos e tutores, dando mais consciência das necessidades dos alunos e ajudando-os a lidar com situações incertas ou emocionalmente exigentes, preparando-os também para as configurações da pós-graduação, em que a prática reflexiva é necessária (Buckley et al., 2009Buckley, S., Coleman, J., Davison, I., Khan, K. S., Zamora, J., Malick, S., … Sayers, J. (2009). The educational effects of portfolios on undergraduate student learning: a Best Evidence Medical Education (BEME) systematic review: BEME Guide no 11. Medical Teacher, 31(4), 282-298.).

Mudanças nas concepções de avaliação

A avaliação como medida apresenta em seus aspectos ontológicos e epistemológicos alguns pressupostos distintos com relação à visão de mundo e de homem, e também de educação e avaliação. Ao acompanharmos os relatos dos pós-graduandos, encontramos em suas expressões marcas visíveis da vivência com um sistema de avaliação de natureza classificatória e punitiva, em que as provas pontuais representaram o final de um percurso educativo e raras vezes foram concebidas como diagnóstico para melhorias e investimentos contínuos.

O processo de construção do portfólio e as reflexões permitiram alargar esses conceitos e considerar a avaliação a serviço da aprendizagem, um trabalho que pode desencadear reorientações contínuas da apreensão dos saberes e o uso de diferentes instrumentos:

a utilização do portfólio como forma de avaliação e o fato da atual educação brasileira não fazer uso dessa e [de] outras estratégias de avaliação, levando sempre a prova escrita a ser rotulada como a única forma de avaliação. Avaliação é um assunto que nunca dei muita importância até o início […] deste curso, e também desconhecia outros métodos de avaliação além da famosa prova escrita. (PG 16)

permite avaliar o aluno em vários momentos, sendo bem interessante essa troca direta com o docente, já que a partir das anotações do professor nos sentimos estimulados a buscar e investigar mais e escrever melhor. (PG 57)

A proposta da avaliação formativa ou a serviço da aprendizagem, com toda beleza e transparência do significado que o próprio termo encerra, ainda representa na atual realidade educacional uma “utopia”. Há escassez de propostas, de práticas e relatos de experiência para validar e legitimar ainda mais os conceitos delineados na literatura educacional. São exíguos os modelos operacionais vigentes, o que dificulta ainda mais a própria atuação do professor. Afinal, como esclarece Hadji (2001)Hadji, C. (2001). Avaliação desmistificada. Porto Alegre: Artmed., os docentes ainda apresentam medo e resistência ao se defrontar com o processo de avaliação formativa por desconhecer modelos operacionais nessa direção.

Encaro o portfólio como uma das tantas formas que o docente tem de não ver o aluno como “bom” ou “ruim”, atribuindo-lhe um valor de 0 a 10, ou conceituando-o como “A”, “B” e assim por diante, mas sim, o portfólio ultrapassa esses muros rígidos de categorização assumindo o sujeito que aprende como em constante PROCESSO. Um sujeito atuante e transformador. (PG 31)

Entendo que os melhores métodos para avaliar o desempenho do aluno permitem ter uma visão holística do processo ensino-aprendizagem oferecer condições para uma espécie de diagnóstico. (PG 5)

a avaliação avalia o estudante, mas também o professor, lhe dá um feedback. A prova faz parte da avaliação, mas não pode ser a única forma de avaliar. Existem vários instrumentos de avaliação, […] e, a partir de seus resultados devemos intervir para a melhora. (PG 15)

cheguei à conclusão de que não há um instrumento ou método que seja absolutamente superior aos demais para a avaliação, mas sim que há vantagens e desvantagens inerentes a diversos métodos e que o bom senso do professor e o seu entendimento global sobre a realidade/contexto sociocultural da turma também são importantes para nortear a escolha do melhor método. (PG 19)

Urge estabelecer uma abordagem avaliativa coerente com o dinamismo e a flexibilidade das metodologias ativas de ensino em sala de aula, mas também consciente dos intervenientes políticos e sociais nela imbricados. É preciso optar por uma variabilidade didática de ensino e intervenção em processo, por um diálogo e relação professor-aluno de confiança, integrando-a no processo educativo diário e em todo movimento característico dos percursos de ensinar e aprender. Essas ações serão verdadeiramente emancipatórias se nossos estudantes se tornarem protagonistas de sua aprendizagem e da construção de uma vida melhor (Zukowsky-Tavares & Prata-Linhares, 2013Zukowsky-Tavares, C., & Prata-Linhares, M. (2013). Portfólio digital: contribuições para uma avaliação formativa. In: M. A. Pimenta, S. A. Pimenta, Avaliação em perspectiva: da concepção à ação (pp. 83-108). Campinas: Alínea.).

A tomada de consciência de potencialidades e limites, de suas conquistas em termos de conhecimentos, habilidades e atitudes e das lacunas que demandam verdadeiro fortalecimento torna-se essencial numa perspectiva de avaliação a serviço da aprendizagem. E esse exercício da criticidade levou o pós-graduando a uma reflexão que pode ultrapassar os muros da instituição:

Foi interessante notar como essa ferramenta permite que se enxergue o processo do aluno, algo tão difícil de observar quando nos referimos aos processos de avaliação. Eu consigo destacar diversos benefícios com a construção de um portfólio: incentiva a produção acadêmica e profissional; permite a organização da produção individual; auxilia na construção e formação de opinião; desenvolve a formação pessoal como ser humano; otimiza a observação do avanço do aluno em termos de aprendizagem; possibilita a expressão escrita auxiliando no desenvolvimento da comunicação […] arrisco dizer que o portfólio possibilita ainda que os alunos desenvolvam a habilidade de serem mais proativos, pois eles é que deverão se engajar na busca por temas interessantes que os caracterizem. Isso equivale a dizer que a construção do portfólio é personalizada e individualizada do que você pensa, sente e faz. Isso levanta um ponto fundamental dos métodos de avaliação até hoje vigentes nos nossos moldes educacionais: a avaliação que resultará na nota do aluno. (PG 31)

Cientes das demandas concretas da realidade social no campo do binômio saúde-educação no Brasil, inferimos que a reflexão e criticidade vivenciadas pelos pós-graduandos no uso desse instrumento potencialize caminhos em direção às transformações preconizadas pelas diretrizes curriculares nacionais nos cursos da área da saúde coerentes com os princípios do SUS, no sentido de considerar os sujeitos de forma holística e comprometida com a realidade em que estão inseridos.

Precisamos quebrar paradigmas, remexer estruturas, desconstruir o estático. Vivemos em uma sociedade que se orienta pelas aparências e julgamos tudo o que nos cerca como se tratássemos de peças em exposição, inertes e permissivas. Sejamos vorazes, surpreendentes e vivos! (PG 30)

Considerações finais

Na disciplina Formação Didático-Pedagógica em Saúde, oferecida pelo Cedess/Unifesp, o uso do portfólio apontou possibilidades e limites como estratégia formativa para construção de saberes docentes imbricados em um contexto de mudanças paradigmáticas na formação docente em saúde que avançam para um modelo pedagógico emancipatório. Descortinou-se mais uma oportunidade de dialogar, problematizar, refletir, estudar, redigir, propor, criar e tomar consciência da função docente no bojo de intensas mudanças curriculares em função das necessidades sociais contempladas pelo SUS.

A diversificação de modos e práticas de formação estimulou novas interfaces do professor com o saber pedagógico e científico. O estudo, a discussão com os pares e o formador, em plena articulação com as práticas educativas, levaram a experimentação, inovação e novos modos de trabalho pedagógico associados a uma reflexão crítica da realidade.

A proposta educativa da disciplina foi desenvolvida na direção oposta da rotina e sequência didática de apresentação de conteúdos e realização de exercícios de fixação, seguidos de prova. Rompendo com um corpo de atividades tradicionalmente reproduzidas nas salas de aula do ensino superior, a pesquisa aqui discutida apresentou e discutiu o portfólio como um caminho para a construção de competências pedagógicas docentes na qual as próprias estratégias didáticas vivenciadas se constituíram em conteúdos de aprendizagem num ambiente cordial e de respeito mútuo.

A utilização do portfólio agregou valor à formação do docente em saúde na medida em que ofereceu subsídios, de forma contínua, organizada, paulatina e reflexiva, para a construção de saberes didáticos e pedagógicos relevantes para a atuação docente no ensino superior. Foram estabelecidos novos saberes relativos ao planejamento e à execução de estratégias ativas de ensino e avaliação, com intensa vivência da criatividade e do pensamento reflexivo e divergente na elaboração e escolha das ações profissionais e educativas. A valorização das interações na construção compartilhada do conhecimento e posterior internalização dos aspectos pessoais e individualizados, bem como a autonomia e criticidade na tomada de decisões, foram essenciais para o processo de apreensão de competências pedagógicas e docentes.

Os relatos dos pós-graduandos evidenciaram o processo crítico que vivenciaram durante a disciplina, propiciando-lhes um novo entendimento sobre a docência, a ressignificação dos processos de aprender, ensinar e avaliar e a importância de estabelecer conexões interdisciplinares entre a saúde e a educação, favorecendo um processo de profissionalização docente diante dos desafios de ampliação e consolidação do SUS.

  • 1
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2017
  • Revisado
    12 Jul 2018
  • Aceito
    01 Ago 2018
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