Acessibilidade / Reportar erro

O potencial educativo dos romances de ficção científica: leituras de Verne, Wells, Asimov e Clarke 1 1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br.

Science fiction novels possibilities for education: reading Verne, Wells, Asimov and Clarke

Resumo

Este artigo foi escrito para divulgar os principais caminhos e resultados de uma investigação acerca do potencial educativo da literatura de ficção científica. Partindo de sete categorias inspiradas na síntese de Pérez, Montoro, Alís, Cachapuz e Praia, da epistemologia de Fourez, e considerando os elementos do texto narrativo, como indicados por Gancho, buscamos compreender a forma como a ciência é representada em quatro romances clássicos do gênero. Dentre os resultados mais importantes destacamos diversas relações entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS), que podem ser exploradas no contexto do ensino de ciências, para a formação do cidadão crítico e reflexivo com relação à própria ciência. Por essa razão, fortes conexões puderam ser traçadas entre esta pesquisa e a discussão que Santos e Mortimer fazem dos pressupostos teóricos da abordagem CTS.

Palavras-chave
ficção científica; concepções de ciência; análise de conteúdo

Abstract

In this article, we share the results of a research about a group of science fiction novels and its possibilities for science education. Pérez, Montoro, Alís, Cachapuz and Praia synthesize seven misconceptions of science that we used to build categories for a content analysis. The epistemology of Fourez was also an important perspective to this work. As a general result, we indicate a number of connections between science, technology and society (STS), that may be explored in science teaching context, in order to promote an education for citizenship. That is why we could establish good connections between this research and the work of Santos and Mortimer, in which they discuss the theoretical assumptions for STS approach.

Keywords
science fiction; conceptions of science; content analysis

Apresentação

A pesquisa à qual nos referimos aqui foi desenvolvida nos anos de 2013 e 2014, e corresponde ao trabalho de mestrado do primeiro autor. Essa investigação foi textual, ou seja, não envolveu a participação de sujeitos, e teve como objetivo conhecer a forma como certos aspectos da ciência são retratados em obras literárias. Um seleto grupo de quatro romances constituiu nosso objeto de estudo: Vinte mil léguas submarinas (Verne, 1870/2012Verne, J. (2012). Vinte mil léguas submarinas (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1870)), A máquina do tempo (Wells, 1895/2010Wells, H. G. (2010). A máquina do tempo (B. Tavares, trad.). Rio de Janeiro: Alfaguara. (Obra original publicada em 1895)), O fim da eternidade (Asimov, 1955/2007Asimov, I. (2007). O fim da eternidade (S. Alexandria, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1955)) e 2001: Uma odisseia no espaço (Clarke, 1968/2013Clarke, A. C. (2013). 2001: uma Odisseia no espaço (F. Fernandes, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1968)). Essa amostra foi selecionada por conter clássicos do gênero ficção científica, que provocam ricas e variadas reflexões sobre a ciência e seu lugar na sociedade.

Há um pressuposto, por trás dessa iniciativa de pesquisa, de que a educação científica deve ser capaz de problematizar a ciência e oferecer ao cidadão em formação caminhos e práticas para lê-la criticamente, considerando sua natureza e seu papel social. Nesse sentido, a literatura ficcional pode ser encarada como um promissor ponto de partida para provocar a reflexão. Seja nos aspectos mais relacionados ao fazer científico ou à natureza do conhecimento, seja nos possíveis elos entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS), a ficção nos traz uma boa variedade de questões que podem servir à finalidade educativa, inclusive numa perspectiva CTS do ensino de ciências.

Vale pontuar, primeiramente, uma razão para pensarmos na ficção científica como um objeto de interesse da área de educação. Roberts (2002)Roberts, A. (2002). Defining science fiction. In Science fiction. London: Routledge., ao discutir a natureza desse gênero literário, descreve-o como um tipo de narrativa capaz de provocar estranhamento no leitor, mas um estranhamento que se origina do mundo real. Nas palavras do autor, “a ficção científica é tão diferente quanto igual [ao mundo real], é descontínua desse mundo, mas também o confronta” (p. 11). Tendo em vista uma postura que considere fundamental que o educador promova confrontos do educando com o mundo, essa característica da ficção poderia então servir a uma educação científica pensada dessa maneira.

Além disso, é necessário destacar uma característica importante do nosso trabalho. Entre as pesquisas que buscam vincular a ficção científica ao ensino de ciências, podemos identificar dois tipos de movimento: o primeiro, presente em trabalhos como os de Piassi e Pietrocola (2005)Piassi, L. P. C., & Pietrocola, M. (2005). Ficção científica no ensino de física: utilizando um romance para desenvolver conceitos. In XVI Simpósio Nacional de Ensino de Física. Cefet, Rio de Janeiro., Piassi (2007)Piassi, L. P. C. (2007). Contatos: a ficção científica no ensino de ciência em um contexto sociocultural.Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo., Ferreira e Raboni (2010Ferreira, J. C. D., & Raboni, P. C. A. (2010). A utilização da obra de Júlio Verne como fonte de possibilidades no ensino de física.InII Simpósio Nacional de Educação e XXI Semana de Pedagogia. Unioeste, Cascavel., 2013)Ferreira, J. C. D., & Raboni, P. C. A. (2013). A ficção científica de Júlio Verne e o ensino de física: uma análise de “Vinte mil léguas submarinas”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 30(1), 84-103. e Ferreira (2013)Ferreira, J. C. D. (2013). A volta ao mundo em oitenta conceitos científicos: Júlio Verne e o ensino de física. In XI Congresso Nacional de Educação Educere. PUC-PR, Curitiba., busca localizar na ficção as possibilidades de contextualizar o ensino de conceitos escolares das ciências; já o segundo, encontrado em pesquisas como as de Piassi (2007Piassi, L. P. C. (2007). Contatos: a ficção científica no ensino de ciência em um contexto sociocultural.Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo., 2011)Piassi, L. P. C. (2011). Robôs e androides: a abordagem de questões sociopolíticas de ciência e tecnologia em sala de aula. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 11(3), 165-184., Gomes, Amaral e Piassi (2010)Gomes, E. F., Amaral, S. C. M., & Piassi, L. P. C. (2010). A máquina do tempo de H. G. Wells: uma possibilidade de interface entre ciência e literatura no ensino de física. Ensino, Saúde e Ambiente, 3(2), 144-154., Oliveira e Zanetic (2008)Oliveira, A. A, & Zanetic, J. (2008). Critérios para analisar e levar para a escola a ficção científica. In XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. UTFPR, Curitiba. e Zanetic (2006)Zanetic, J. (2006). Física e Arte: uma ponte entre duas culturas. Pro-Posições, 17(1), 39-57., encara o texto literário como uma forma de discutir a ciência numa perspectiva mais filosófica ou histórica, explorando suas relações com o mundo. É importante salientar que essa classificação não é fechada, pois podemos encontrar traços de ambos os movimentos em muitos desses trabalhos. No entanto, percebemos que cada relato de pesquisa tende a colocar o foco das análises mais em um ou outro aspecto. O presente artigo diz respeito a um trabalho que se alinha mais ao segundo movimento, sem desconsiderar a importância e a validade das iniciativas do primeiro.

A tese de Piassi (2007)Piassi, L. P. C. (2007). Contatos: a ficção científica no ensino de ciência em um contexto sociocultural.Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. é especialmente significativa dentro dessa temática. Além de ter explorado os dois movimentos citados, o autor trabalhou com estudantes do ensino médio e verificou que a ficção pode beneficiar o envolvimento dos alunos com a ciência, bem como provocar discussões que raramente aparecem de outras formas. Segundo o autor, o próprio conteúdo das obras de ficção é favorável à sua inserção na escola, pois inclui “questões que incomodam ou estimulam as pessoas, e que são questões originadas na ciência e na nossa relação sociocultural com ela” (p. 444).

É nesse caminho que a nossa pesquisa desembocou, em questões estimulantes, provocativas e reflexivas. Apresentamos aqui uma síntese da nossa trajetória de pesquisa e destacamos as principais questões que emergiram desse processo investigativo.

Construindo uma ponte

Uma vez definido o foco de pesquisa, nos deparamos com o desafio de analisar textos literários. Optamos logo no início por realizar uma análise de conteúdo, seguindo as orientações de Moraes (1999)Moraes, R. (1999). Análise de conteúdo. Revista Educação, 22(37), 7-23., uma vez que tínhamos certa clareza do que estávamos buscando nos romances: compreender a representação de ciência. Isso nos sugeria que uma análise de conteúdo de natureza temática poderia ser útil, centrada em aspectos ligados à natureza da ciência.

Além disso, uma possibilidade de definir categorias de análise previamente ganhou nossa atenção. A síntese de Pérez, Montoro, Alís, Cachapuz e Praia (2001)Pérez, D. G., Montoro, I. F., Alís, J. C., Cachapuz, A., & Praia, J. (2001). Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, 7(2), 125-153., que descreve sete visões de ciência, inspirou a definição das nossas categorias iniciais. Isso não significou desconsiderar a emergência de novos aspectos no decorrer da pesquisa. Mas esse movimento nos garantiu uma direção e um quadro mínimo de análise. O referido artigo, ao discutir um conjunto de visões de ciência comuns nas falas de professores, nos inspirou a definir um grupo de aspectos da ciência que poderíamos buscar caracterizar nos romances. O Quadro 1 apresenta essas categorias e as perguntas investigativas que definimos para cada uma delas:

Quadro 1
Categorias prévias da pesquisa e perguntas investigativas

Essas perguntas, que de certa forma já refletem o significado das categorias, formaram uma ponte entre o eixo temático que queríamos investigar e o nosso objeto de estudo – os romances. Elas nos ajudaram a selecionar os trechos dos romances que faziam menção direta ou indireta à ciência e às categorias de pesquisa (etapa de unitarização). A categorização consistiu em classificar as unidades, atribuindo significados a cada uma delas. Esses significados são descrições curtas do que o referido trecho representa com relação à ciência, ou mesmo com relação aos personagens e acontecimentos do enredo.

Alguns trechos, embora não fizessem menção direta à temática da ciência, foram importantes para a compreensão dos romances, por representarem os elementos centrais de cada narrativa. Por exemplo, em Vinte mil léguas submarinas, esses elementos são o submarino Náutilus, o capitão Nemo, o professor Aronnax e o pescador Ned Land. Cada um desses ícones reúne um certo grupo de significados em torno de si, facilitando a organização das análises. Sendo assim, na coluna “classe” dos quadros de unitarização, podemos encontrar tanto as categorias prévias quanto classificações como “Características de Nemo” ou “Concepção de civilizado/selvagem”. Os resultados da seleção e da classificação das unidades foram organizados como no Quadro 2:

Quadro 2
Exemplos de seleção e classificação das unidades

As etapas de descrição e interpretação foram feitas conjuntamente. Produzimos textos que, além de descreverem os principais traços de cada romance, incluem os resultados das nossas reflexões no decorrer de todo o processo de pesquisa. Esses textos, com referência às unidades contidas nos quadros através de um sistema de codificação, revelam o sentido das nossas leituras, culminando em reflexões mais subjetivas.

Vale destacar que o agrupamento das unidades em categorias passou por um momento de atribuição de significados. Ou seja, não classificamos diretamente os trechos extraídos dos livros de ficção, mas os significados atribuídos a eles. Portanto, a interpretação já começou desde o processo de categorização, e permeia, inseparavelmente, a descrição. Em outras palavras, nos textos finais expressamos aquilo que encontramos nos romances e, paralelamente, quais significados atribuímos a cada coisa.

Essa análise de conteúdo, portanto, foi construída em uma abordagem qualitativa, de natureza temática, tendo como eixo semântico a natureza da ciência e adotando a priori um critério orientador da análise. Isso garantiu um grau de validade e homogeneidade das categorias com relação aos objetivos da pesquisa.

Considerou-se a possibilidade de alterações nas categorias no decorrer da pesquisa, no entanto, isso não foi necessário. Elas apenas foram complementadas por outras que fizeram sentido de acordo com a lógica interna de cada romance, suas particularidades de personagens e enredos. É por isso que vale a pena explicitarmos os constituintes de uma narrativa, pois tais elementos foram fundamentais para os resultados da pesquisa.

É válido evidenciar que existe uma lógica permeando a formulação de todas as perguntas investigadoras. Observe-as com atenção e repare que todas elas contêm a palavra “ou” em pelo menos uma de suas orações. Essa partícula tem a função de estabelecer uma oposição, ou antítese, em cada pergunta. A presença dessa oposição de ideias foi intencional e baseada na epistemologia de Fourez (1995a)Fourez, G. (1995a). Idealismo e história humana. In A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências (L. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Unesp., que propõe duas atitudes possíveis perante o conhecimento: a idealista e a histórica.

Segundo Fourez, a postura idealista considera as ideias científicas indefinidamente válidas, conferindo-lhes status de verdade. Idealizar um conceito, uma prática ou paradigma significa desconsiderar a possibilidade de refutá-los. Por outro lado, a postura histórica trata a ciência como uma construção humana, resultante de um processo histórico e culturalmente condicionado. Nessa visão, as ideias perdem o status de verdade, pois são consideradas explicações temporárias e/ou limitadas da realidade. Essa discussão de Fourez nos auxilia na compreensão das nossas categorias de pesquisa. Muitas delas podem dialogar bem com esses dois polos ou posturas do pensamento.

A exceção parece ficar com o caráter integrado da ciência. Essa categoria diz respeito à forma como pensamos ou representamos as especialidades científicas: se isoladamente, conferindo à ciência um caráter analítico e fragmentado; ou se cooperativamente, atribuindo-lhe um caráter mais integrado. Portanto, ela apenas reflete a necessidade do homem de fragmentar o conhecimento, isolando cada área do saber das demais, ou de integrá-lo para explicar o mundo. Se esse conhecimento é idealizado como verdade ou visto como histórico e mutável, isso parece ser independente da dualidade presente nessa categoria. No entanto, todas as outras podem ser pensadas em termos das duas posturas epistemológicas apontadas por Fourez. O Quadro 3 busca expressar essas relações:

Quadro 3
Categorias prévias da pesquisa e atitudes epistemológicas

Na visão histórica, podemos incluir as relações possíveis da ciência com a tecnologia e a sociedade, uma vez que esses elementos representam a cultura humana que circunda e condiciona a produção do conhecimento.

Também é interessante notar como estas categorias de análise guardam relações entre si. Por exemplo, a noção de que um único indivíduo pode produzir os grandes resultados da ciência, isolado de sua comunidade, é vinculada à imagem dos gênios. Tal imagem pode se apoiar muito numa idealização do método científico como um procedimento rígido, único e universal, e também numa visão empírico-indutivista (Pérez et al., 2001Pérez, D. G., Montoro, I. F., Alís, J. C., Cachapuz, A., & Praia, J. (2001). Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, 7(2), 125-153.) segundo a qual a experimentação é pura, objetiva, precisa e imparcial, conferindo ao saber um status de verdade e neutralidade. Desse modo, bastaria ao gênio ser capaz de aplicar o método corretamente – e aí estaria sua genialidade – para que a verdade fosse descoberta. Quando idealizamos o cientista, podemos estar também idealizando o método e as teorias. Essa relação, no entanto, embora seja possível, não é direta ou inescapável.

Por outro lado, se reconhecermos a condição limitada e historicamente situada dos produtores da ciência, acaba sendo natural considerarmos as influências que estes recebem de sua época e cultura na ocasião da produção do saber. A experiência deixa de ser pura e passa a ser tratada como a construção de um olhar pré-orientado, ao menos em parte. O método, nessa perspectiva, não pode mais ser visto como puramente universal, porque isso removeria a possível diversidade de olhares perante a realidade.

É razoável propor que as categorias aqui apresentadas se inter-relacionam. Afinal, o modo como pensamos a produção do conhecimento (se absoluto ou relativo, se neutro ou condicionado) se conecta com o papel ou as questões sociais que atribuímos ou não à ciência e à responsabilidade do cientista. Então todos esses aspectos da ciência guardam pelo menos algumas relações entre si e podem ser avaliados em função da postura que representam, mais próxima do idealismo ou da historicidade da ciência.

Foram essas as considerações que nos ajudaram a formular as perguntas investigativas do Quadro 1, as quais formam nossa ponte entre a teoria e o objeto da pesquisa. Em nossa análise de conteúdo, essas perguntas orientaram a seleção das unidades de significado, ou seja, dos trechos dos romances a serem considerados no estudo.

No entanto, é um equívoco pensar que esse tipo de análise, pura e simplesmente, poderia dar conta de fornecer uma compreensão satisfatória dos romances. Nesta pesquisa foi fundamental considerarmos os elementos constituintes do texto narrativo, ou seja, as personagens, o narrador, o ambiente, o tempo e o enredo das histórias (Gancho, 2006Gancho, C. V. (2006). Como analisar narrativas. São Paulo: Ática.). Mais do que isso, foi até natural que esses elementos ganhassem um espaço importante em nossas análises, pois apenas nesses termos é possível relatar uma narrativa e fazer reflexões sobre ela.

Sendo assim, cada obra literária foi analisada em função de seus pilares centrais, ou seja, dos elementos que assumem os significados de maior destaque para nossa intenção de pesquisa. Além disso, em cada romance as análises foram organizadas e subdividas em termos de elementos próprios da narrativa. As leituras de A máquina do tempo e 2001: Uma odisseia no espaço foram mais facilmente construídas em função de momentos do enredo. Por outro lado, Vinte mil léguas submarinas e O fim da eternidade, pela complexidade ou extensão dos enredos, foram mais facilmente lidos em termos de personagens e ambientes. Isso sugere uma condição da própria natureza ficcional: cada romance apresenta uma lógica interna, uma forma singular de apresentar os fatos e acontecimentos dentro de seu universo.

Desse modo, se por um lado nosso quadro de análise nos garantiu uma direção bem determinada na pesquisa, por outro, a natureza diversa dos romances exigiu-nos uma dose de sensibilidade e flexibilidade para deixarmos os significados internos de cada obra ganharem forma e espaço em nosso texto. Assim foi a nossa trajetória de pesquisa.

Na próxima seção, apresentamos as quatro narrativas contempladas pela pesquisa, para que os leitores deste artigo tenham uma base mínima de contextualização das histórias. Na sequência, discutimos os resultados gerais das leituras e análises realizadas, bem como suas potencialidades para a educação em ciências.

Breve apresentação dos enredos

Vinte mil léguas submarinas (1870)

Nemo é um homem que rompeu com a humanidade. Conhecedor e produtor das ciências, ele construiu o Náutilus, um submarino capaz de desafiar as grandes adversidades da natureza, e viaja com sua tripulação percorrendo as maravilhas submersas de todos os mares do globo. Mas esse capitão é marcado por um profundo rancor contra a sociedade humana, e numa espécie de vingança, faz naufragar navios com a força destrutiva de seu veículo. Quando o misterioso monstro do mar começa a ser temido pelos homens, expedições são organizadas para localizar, identificar e caçar a fera. Com esse propósito, Aronnax, professor do Museu de História Natural de Paris, seu criado Conselho e o pescador e arpoador Ned Land se aventuram na fragata Abraham Lincoln, numa arriscada empreitada pelo oceano Pacífico. No encontro da expedição com o misterioso Náutilus, esses três homens caem no mar e encontram refúgio no que descobrem ser um submarino. É assim que os três companheiros começam uma das mais extraordinárias viagens de suas vidas, percorrendo o globo sob os oceanos, e vislumbrando as conquistas e os limites do Náutilus e de seu capitão.

A máquina do tempo (1895)

Um cientista do século XIX constrói uma máquina do tempo. Sua intenção é viajar rumo ao futuro, para conhecer as grandes mudanças que estão por vir para a humanidade. Ele viaja até os anos 800.000, e esse período lhe parece assustadoramente um resultado da estratificação social de seu próprio tempo – a Inglaterra em plena Revolução Industrial. Sua impressão é de ter encontrado a sociedade em um momento de esplendor em ruínas, como se a conquista da natureza pela técnica e pela ciência já tivesse alcançado o auge em épocas anteriores e se revelado insuficiente para preservar a qualidade de vida. O mundo segregado entre uma subespécie humana ociosa e frágil, na superfície, e uma outra forte, mas oprimida no subsolo, faz o Viajante do Tempo se lembrar da distância entre o capitalista e o operário, em sua época natal. A máquina do tempo se passa em um futuro remoto, mas dialoga diretamente com o leitor em seu tempo presente, na época de sua publicação.

O fim da eternidade (1955)

A Eternidade é uma instituição humana, criada em algum ponto da História, cuja existência ocorre numa dimensão fora do Tempo. Os Eternos, membros da Eternidade, embora sintam os efeitos do tempo fisiológico e envelheçam, não vivem na realidade comum entre os homens. Eles trabalham observando a História para aperfeiçoá-la, por meio de processos denominados Mudanças de Realidade. Seus objetivos são variados, desde o reflorestamento de Séculos que já foram desmatados, visando garantir os recursos naturais para a sobrevivência da espécie, até o impedimento de eventos como guerras ou epidemias. Os Eternos acreditam que estão a serviço da humanidade, intervindo no mundo em nome do bem maior. Objetividade, impessoalidade e neutralidade são os princípios do trabalho deles. Andrew Harlan é membro da instituição que atua observando o Tempo e produzindo relatórios de análise para o planejamento das Mudanças de Realidade. Mas Harlan vive um conflito interno, pois em sua mente coexistem as premissas dos Eternos e também sua condição humana, sua subjetividade e emoção. Quando conhece uma mulher chamada Noÿs Lambent, ele passa a questionar a universalidade e a neutralidade da instituição que o formou.

2001: uma odisseia no espaço (1968)

Essa história percorre uma longa dimensão na escala do tempo, começando no período pré-histórico, alguns milhares de anos antes da atualidade, e avançando até a chamada Era Espacial. Ela também envolve longas distâncias, partindo da Terra e atravessando o espaço interplanetário até a região de Júpiter e Saturno. É uma história da humanidade que se projeta para além de suas fronteiras; um épico da ficção científica que, publicado no contexto da corrida espacial, convida o leitor a uma jornada pela história da evolução da espécie humana, em uma busca contínua pelo domínio da natureza, na qual as conquistas mais futuristas são ecos do passado mais remoto. Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Algumas das questões mais existencialistas do ser humano são contempladas, embora não respondidas, por esse clássico romance de Arthur Clarke.

O que se destaca?

Foram diversas as relações percebidas entre as categorias de pesquisa e as obras analisadas. Para os fins deste artigo, divulgamos os resultados de maior relevância nos romances e para a educação em ciências. Dividimos essa discussão em três tópicos: (1) o fazer científico; (2) poder e ética da ciência; (3) noção de progresso.

O fazer científico

Podemos dizer que o romance de ficção não tende a ser um bom representante do fazer científico, se pensarmos no sentido mais técnico ou laboratorial do termo. Mas esse gênero literário pode nos trazer percepções da forma como as personagens pensam e agem perante o desconhecido. Com muita frequência, as personagens são cientistas, inventores, técnicos, pesquisadores ou professores. E por mais que elas não permaneçam no laboratório durante suas aventuras, acabam revelando a todo instante, em suas falas, pensamentos e ações, a visão de mundo que representam.

Em Vinte mil léguas submarinas, por exemplo, o capitão Nemo e o professor Aronnax são as duas grandes vozes da ciência, e analisam a realidade ao seu redor a partir das teorias e do patrimônio intelectual da humanidade. Eles são culturalmente condicionados, como não poderiam deixar de ser. Além disso, prezam pela eficácia e pela exatidão das medidas, análises e observações, mas também cometem erros.

[Prof. Aronnax] Enquanto eu observava aquela criatura fenomenal, dois jatos de vapor e água foram expelidos de seus respiradouros a uma altura de quarenta metros. Isso me revelou seu modo de respiração e me fez concluir definitivamente que pertencia ao ramo dos vertebrados, classe dos mamíferos, subclasse dos eutérios, grupo dos pisciformes, ordem dos cetáceos, família… Quanto a este ponto, ainda não podia me pronunciar.

(Verne, 1870/2012Verne, J. (2012). Vinte mil léguas submarinas (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1870), p. 60)

A incerteza está presente a todo instante nessa épica jornada, por mais precisos que sejam os equipamentos do Náutilus e os conhecimentos de seu capitão. A precisão da ciência é aclamada pelos sucessos da viagem, mas testada e questionada nos momentos em que o Náutilus quase sucumbe às forças da natureza. Em certo sentido, ela não é suficiente para que o homem atue no mundo: uma dose de poesia, paixão e fé também é necessária.

[Cap. Nemo] Observe – prosseguiu –, ele desperta sob as carícias do sol! Vai ressuscitar em sua existência diurna! É fascinante estudar o funcionamento de seu organismo. Tem pulso, artérias, espasmos, e dou razão a Maury, que nele detectou uma circulação tão real quanto a circulação sanguínea nos animais.

(Verne, 1870/2012Verne, J. (2012). Vinte mil léguas submarinas (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1870), p. 156)

[Prof. Aronnax] E agora, como retraçar as impressões que me deixou aquele passeio sob as águas? Onde encontrar palavras para descrever tais maravilhas!? Quando o próprio pincel não dá conta das sutilezas do elemento líquido, como a pena seria capaz de reproduzi-las?! (pp. 142-143)

Algo semelhante acontece em A máquina do tempo. A ciência que Wells nos apresenta tem uma dimensão humana muito forte, pois não é puro método ou pura lógica: aqui, a inspiração se combina com a razão para que o conhecimento seja possível. Essa ciência não cabe nas páginas de um livro, porque contém “o rosto branco e sincero do homem que contava a história” (Wells, 1895/2010Wells, H. G. (2010). A máquina do tempo (B. Tavares, trad.). Rio de Janeiro: Alfaguara. (Obra original publicada em 1895), p. 36), com suas expressões e inflexões de voz. Ela contém, em última análise, seu próprio criador. Para Wells, não faz sentido pensar a ciência sem o ser humano. O final distópico também sugere um questionamento do modelo de progresso baseado apenas na eficácia dos métodos da ciência e da tecnologia. A eficiência não é posta, portanto, apenas como um ideal do método, mas também como um valor questionável e insuficiente para o bem-estar da humanidade.

O grande triunfo da humanidade com que eu havia sonhado tomou assim uma conformação diferente em minhas ideias. Não fora o triunfo da educação moral e da cooperação entre todos que eu imaginara. Em vez disso, o que eu via era uma verdadeira aristocracia, munida de ciências avançadas e aperfeiçoando até sua conclusão lógica o sistema industrial de hoje. Seu triunfo não tinha sido apenas sobre a Natureza, mas sobre a Natureza e sobre os seus próprios semelhantes. Esta, devo adverti-los, foi a teoria que formulei naquele momento.

(Wells, 1895/2010Wells, H. G. (2010). A máquina do tempo (B. Tavares, trad.). Rio de Janeiro: Alfaguara. (Obra original publicada em 1895), p. 79)

Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, essa eficiência é testada até o seu limite. Os astronautas se aventuram numa jornada espacial e colocam suas vidas totalmente à mercê do computador HAL 9000, que é na obra um ícone da precisão algorítmica e analítica da ciência.

O treinamento do computador HAL para essa missão tinha sido tão meticuloso quanto o de seus colegas humanos … Sua tarefa primordial era monitorar os sistemas de suporte de vida, verificando constantemente a pressão do oxigênio, a temperatura, vazamentos no casco, radiação e todos os outros fatores interconectados dos quais as vidas da frágil carga humana dependiam. Ele podia efetuar intrincadas correções navegacionais e executar as manobras de voo necessárias, quando chegasse a hora de mudar de curso. E podia vigiar os hibernadores, fazendo todos os ajustes necessários em seu ambiente e controlando as pequenas quantidades de fluidos intravenosos que os mantinham vivos.

(Clarke, 1968/2013Clarke, A. C. (2013). 2001: uma Odisseia no espaço (F. Fernandes, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1968), p. 133)

Se em boa parte do enredo o computador HAL garante o sucesso da viagem, trazendo glória à humanidade, em certo ponto uma falha crítica em seu sistema compromete a missão e a vida humana.

Portanto, essas obras de ficção nos trazem, de um lado, a eficácia, a precisão, a exatidão e a objetividade da ciência e da tecnologia como valores constituintes de boa parte de suas personagens e como fontes de sucesso à humanidade. Por outro lado, também levantam o questionamento desses valores, revelando-os insuficientes ou falhos.

Essa contestação de uma visão mais rígida da ciência ganha grandes proporções no livro O fim da eternidade, de Isaac Asimov, obra que conversou bem com quase todas as nossas categorias. Nessa história, a Eternidade é uma instituição na qual os cientistas trabalham fora da dimensão do Tempo, observando e analisando a realidade dos vários séculos, para efetuar as chamadas Mudanças de Realidade – alterações no curso da História com o intuito de aperfeiçoá-la em nome do bem comum de todos os seres humanos. Os Eternos (especialistas da Eternidade) trabalham com as premissas da neutralidade máxima das observações, da supressão das emoções, numa visão extremamente analítica da ciência, que chega a tratar a figura do observador como “meramente um feixe de nervos lógico-perceptivos anexados a um mecanismo de escrita de relatórios” (Asimov, 1955/2007Asimov, I. (2007). O fim da eternidade (S. Alexandria, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1955), p. 24), desumanizando-o completamente. Em síntese, os Eternos são os indivíduos que observam o mundo friamente, e que obtêm desse mundo supostamente a verdade.

Ele queria, desejava muito lhe dizer: não há graça nenhuma na Eternidade, moça. Nós trabalhamos! Trabalhamos para planejar todos os detalhes de todos os tempos, desde o início da Eternidade até onde a Terra está vazia, e tentamos planejar todas as infinitas possibilidades de tudo o que-poderia-ter-sido e escolher um poderia-ter-sido melhor do que aquilo que é, e decidimos onde, no Tempo, podemos fazer uma pequena mudança para transformar aquilo que é naquilo que pode ser, e então temos um novo e procuramos um novo pode ser, e assim continuamente, continuamente.

(Asimov, 1955/2007Asimov, I. (2007). O fim da eternidade (S. Alexandria, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1955), p. 71)

Asimov parece ter construído sua Eternidade como metáfora de uma visão idealista de ciência, para no fim revelar suas crises, sua falibilidade e o caráter ilusório de sua neutralidade.

Portanto, a visão do fazer científico que pudemos perceber nessas obras literárias está muito ligada às concepções de teoria e método e à própria maneira como os produtores da ciência pensam e agem dentro da ficção. O fazer científico não aparece num viés laboratorial, mas pode ser apreendido por meio da percepção de como o cientista atua no mundo. O método científico é valorizado por essas personagens, mas não é apresentado como solução única e ideal dos desafios humanos. Todos os romances analisados, de um modo ou de outro, questionam a neutralidade da ciência.

Poder e ética da ciência

Para Fourez (1995b)Fourez, G. (1995b). Ciência, poder político e ético. In A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências (L. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Editora Unesp., o poder da ciência assume duas dimensões, permitindo ao ser humano controlar a natureza, mas também os seus semelhantes: “Na medida em que a ciência é sempre um ‘poder fazer’, um certo domínio da Natureza, ela se liga, por tabela, ao poder que o ser humano possui um sobre o outro” (Fourez, 1995bFourez, G. (1995b). Ciência, poder político e ético. In A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências (L. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Editora Unesp., p. 207).

Essas duas dimensões podem ser percebidas nos romances da nossa amostra. A primeira está muito ligada às noções de controle, eficácia, conforto e precisão que a ciência e a tecnologia fornecem ao ser humano no enfrentamento das adversidades e das forças da natureza. Também remete à luta pela sobrevivência da espécie, aos recursos materiais de que a humanidade necessita para prosperar e à conquista de novos territórios e ambientes, como o fundo dos oceanos e o espaço cósmico. Nesse sentido, o submarino Náutilus e a nave Discovery podem ser vistos como instrumentos de poder.

Sim, capitão Nemo – respondi –, e o Náutilus prestou-se maravilhosamente bem a todo esse estudo. Ah, que embarcação inteligente! … – Concordo, professor, inteligente, audaciosa e invulnerável! Não teme nem as terríveis tempestades do mar Vermelho, nem suas correntes, nem seus escolhos.

(Verne, 1870/2012Verne, J. (2012). Vinte mil léguas submarinas (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1870), p. 257)

Muitos objetos das narrativas podem ser lidos nessa mesma perspectiva, como os equipamentos de mergulho e as roupas espaciais, as ferramentas rústicas da pré-história ou mesmo as tecnologias mais avançadas de comunicação. De uma forma ou de outra, esse poder permite ao ser humano conhecer os elementos constitutivos da natureza para transformar o mundo ao seu redor e as possibilidades da sua existência.

A segunda dimensão, o poder do ser humano sobre seus semelhantes, diz respeito ao papel da ciência e da tecnologia nas relações sociais e interpessoais, estando fortemente ligada às noções de domínio, política, ética e desigualdade. Ela pode acontecer de forma direta, por meio das tecnologias utilizadas para servir ou dominar o outro – como faz o capitão Nemo com o Náutilus, os Eternos com as Mudanças de Realidade, e os astronautas com a Discovery –, ou de forma indireta, imbricada nas relações sociais de classe – como no caso da sociedade polarizada em A máquina do tempo. Nesse segundo caso, o conhecimento desempenha um papel importante no estabelecimento da ordem (ou da desordem) social; a ciência e a tecnologia se configuram como diferenciadores do capitalista e do operário.

Seja na interação do humano com a natureza, seja nas relações sociais, a ética emerge como uma necessidade na mediação do ser humano com o mundo. Grandes questões éticas permeiam os quatro romances, sempre vinculadas a um questionamento do uso do poder científico e tecnológico.

Na obra de Verne, o professor Aronnax e o capitão Nemo representam dois posicionamentos éticos distintos com relação à ciência: o primeiro acredita em valores morais universais, como a preservação da vida, o pacifismo e o senso de que a ciência deve sempre servir à humanidade; já o segundo apresenta uma postura ética variável e seletiva, sendo o salvador de alguns homens e o carrasco de outros. “O capitão Nemo não se limitava a fugir dos homens! Seu insólito aparelho servia não apenas a seus instintos de liberdade, mas talvez também aos interesses de não sei que terríveis represálias” (Verne, 1870/2012Verne, J. (2012). Vinte mil léguas submarinas (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1870), p. 221).

Nemo utiliza o Náutilus a serviço de seus propósitos pessoais e de seu posicionamento político-ideológico, lutando contra as nações que ele considera opressoras e ajudando os povos oprimidos. A experiência de ler Vinte mil léguas submarinas é marcada por uma sensação de que há nas entrelinhas, no pano de fundo da história e na misteriosa revolta do capitão Nemo o eco das políticas imperialistas praticadas no século XIX.

Nesse aspecto, podemos traçar um paralelo entre a obra de ficção e a realidade da época em que foi publicada. Em seu relato histórico, Wells (2011a)Wells, H. G. (2011a). Os novos impérios ultramarinos do navio a vapor e das ferrovias. In Uma breve história do mundo (R. Breunig, trad.). Porto Alegre: L&PM. nos recorda que essas políticas de imperialismo e dominação já existiam anteriormente, mas sugere que elas ganharam um novo impulso com os avanços tecnológicos do século, que tornaram as viagens de longa distância mais rápidas, seguras e rentáveis comercialmente. No entanto, o ser humano ainda não tinha desenvolvido uma condição ética capaz de mediar essas relações: “Em 1900, passado meio século, toda a África estava mapeada, explorada, estimada e dividia entre as potências europeias” (Wells, 2011aWells, H. G. (2011a). Os novos impérios ultramarinos do navio a vapor e das ferrovias. In Uma breve história do mundo (R. Breunig, trad.). Porto Alegre: L&PM., p. 339). Não é preciso mencionar a escravização e a destruição de parte das culturas africanas, bem como de outros povos, verdadeiros crimes contra a humanidade que aconteceram nesse processo. Uma oposição entre opressores e oprimidos se estabelecia na realidade do século XIX, e essa oposição faz parte, em certo grau, da essência conflituosa do protagonista de Júlio Verne.

De todo modo, na leitura que faz da história, Wells não responsabiliza a ciência e a tecnologia pelos grandes problemas da humanidade, mas associa a elas um papel de intensificar o efeito das ações humanas. Por isso mesmo o desenvolvimento científico, na visão do autor, deve vir acompanhado de um aperfeiçoamento ético e moral:

A revolução mecânica, o processo de invenções e descobertas mecânicas, foi algo novo na experiência humana, e se desenvolveu sem levar em conta as consequências sociais, políticas, econômicas e industriais que pudesse produzir

(Wells, 2011bWells, H. G. (2011b). A revolução industrial. In Uma breve história do mundo (R. Breunig, trad.). Porto Alegre: L&PM., p. 308).

Essa postura do autor se revela em seus ensaios sobre história, mas também em sua ficção. A máquina do tempo foi um dos seus romances que talvez serviu mais intensamente à crítica social. Na obra, Wells é provocativo, parece querer chocar seus leitores, convidando-os a refletir sobre a realidade do trabalhador inglês em seu tempo: “Mesmo hoje, um operário do East End não vive em condições tão artificiais que se vê praticamente sem direito a acesso à superfície natural da terra?” (Wells, 1895/2010Wells, H. G. (2011a). Os novos impérios ultramarinos do navio a vapor e das ferrovias. In Uma breve história do mundo (R. Breunig, trad.). Porto Alegre: L&PM., p. 78). Ele faz, portanto, uma denúncia que se aproxima das de Marx (1996)Marx, K. (1996). Legislação fabril: sua generalização na Inglaterra. In O capital: crítica da economia política (Livro Primeiro, Tomo 2, pp. 107-129, R. Barbosa & F. R. Kothe, trad.). São Paulo: Nova Cultural. e de outros intelectuais desse período, a respeito das péssimas condições de trabalho dos operários no auge da Revolução Industrial. A questão ética que o Viajante do Tempo levanta é acerca da necessidade de o ser humano pensar o papel do avanço técnico e científico nas relações sociais. Mais uma vez, a compreensão da circunstância histórica nos permite ler a ficção com um sentido mais rico, revelando o papel crítico que a arte pode ter na sociedade, incluindo as questões da ciência e da tecnologia e o poder a elas relacionado.

Em O fim da eternidade, esse poder é posto em pauta pela voz de Noÿs Lambent, que Asimov parece ter criado para expressar o questionamento da legitimidade ética dos Eternos, especialistas que se julgam no direito de determinar o futuro da humanidade. A pergunta-chave feita pela personagem, “Não cabe à sociedade resolver seus próprios problemas?” (Asimov, 1955/2007Asimov, I. (2007). O fim da eternidade (S. Alexandria, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1955), p. 116), se aproxima muito da discussão que Morin (2005a)Morin, E. (2005a). Teses sobre a ciência e a ética. In Ciência com consciência (M. D. Alexandre & M. A. S. Dória, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. faz sobre a ética da ciência. Em suas palavras:

A ciência é um processo sério demais para ser deixado só nas mãos dos cientistas. Eu completaria dizendo que a ciência se tornou muito perigosa para ser deixada nas mãos dos estadistas e dos Estados. Dizendo de outra forma, a ciência passou a ser um problema cívico, um problema dos cidadãos. (p. 133)

O ponto de conflito desenhado por Asimov é sobre a capacidade que a ciência adquiriu de delinear os rumos da história e, consequentemente, acaba tocando a relação da ciência com a cidadania. O cidadão é convocado a deliberar os usos do poder científico, na fala de Morin e na ficção de Asimov.

Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, a ciência ganha claramente o status de uma Big Science (Rosa, 2012Rosa, C. A. P. (2012). História da ciência: a ciência e o triunfo do pensamento científico no mundo contemporâneo (vol. 3, pp. 15-24). Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão., p. 23), que resulta de altos investimentos públicos e da cooperação internacional, características próprias da ciência do século XX. O elevado custo da ciência espacial é destacado mais de uma vez na narrativa, o que nos sugere, novamente, o quanto a ciência pode interagir com a esfera da cidadania, ou o quanto ela deveria se tornar cada vez mais um objeto de interesse e conhecimento da população em geral.

Aquela viagem, calculou, iria custar aos contribuintes pouco mais de um milhão de dólares. Se não fosse justificada, ele perderia o emprego, mas sempre poderia voltar à universidade e aos seus estudos interrompidos sobre formação planetária.

(Clarke, 1968/2013Clarke, A. C. (2013). 2001: uma Odisseia no espaço (F. Fernandes, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1968), p. 69)

Nessa obra, o poder da ciência é glorificado em alguns momentos, por conceder ao ser humano a possibilidade de transpor as fronteiras de seu próprio mundo, mas também é questionado por uma série de fatores, entre eles, a insuficiência do saber científico para resolver os problemas humanos; a percepção de uma separação entre as nações ainda mediada pelo poder tecnológico; o risco que o poder bélico representa para a preservação do planeta e da vida.

Com a necessidade de cooperação internacional mais urgente do que nunca, ainda havia tantas fronteiras quanto em qualquer era anterior. Em um milhão de anos, a raça humana perdera poucos de seus instintos agressivos; ao longo de linhas simbólicas visíveis apenas para os políticos, as trinta e oito potências nucleares observavam umas às outras com ansiedade beligerante.

(Clarke, 1968/2013Clarke, A. C. (2013). 2001: uma Odisseia no espaço (F. Fernandes, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1968), pp. 67-68)

Sendo assim, a noção de que a ciência e a tecnologia fornecem poder ao ser humano é muito presente nessas obras de ficção científica, o que possibilita ao leitor refletir sobre os diferentes usos desse poder, e a ética se coloca como uma necessidade primária em todos esses contextos. As questões relacionadas ao poder e à ética da ciência dizem respeito ao aspecto social, categoria que mais se destacou na leitura dos romances em nossa pesquisa.

Noção de progresso

Pensando nas ideias expostas até aqui, não é difícil perceber o quanto essas obras literárias nos conduzem a refletir sobre a noção de progresso. Morin (2005b)Morin, E. (2005b). A ideia de progresso do conhecimento. In Ciência com consciência (M. D. Alexandre & M. A. S. Dória, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. propõe uma crítica consciente desse assunto, segundo a qual não nos basta uma leitura unilateral; ao contrário, o autor defende que o progresso tem caráter bivalente: podemos associá-lo à racionalidade e à ordem, mas também à degradação e à desordem. Essa dualidade pode ser percebida em cada romance aqui referido.

Se associarmos, ainda, à ideia de progresso uma concepção racionalista ou cientificista do mundo – associação esta que se perpetua na contemporaneidade (Rosa, 2012Rosa, C. A. P. (2012). História da ciência: a ciência e o triunfo do pensamento científico no mundo contemporâneo (vol. 3, pp. 15-24). Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão., p. 16) e que, de certa forma, tem espaço nos romances –, veremos que o questionamento feito por esses autores a respeito do progresso passa a significar um questionamento da própria idealização da ciência, da tecnologia e do racionalismo como fontes únicas de desenvolvimento social. Nesse sentido, resgatamos aqui a discussão de Fourez (1995a)Fourez, G. (1995a). Idealismo e história humana. In A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências (L. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Unesp. acerca das atitudes epistemológicas, agora vinculadas à questão do progresso.

Por fim, é importante fazer aqui uma observação cuidadosa, a fim de deixar claro que as leituras apresentadas não implicam a compreensão de uma atitude pessimista ou opositora da ciência por parte dos romancistas. As análises sugerem apenas que, especificamente nessas narrativas, são colocadas questões que contribuem para o desenvolvimento de um olhar crítico para com a ciência e a tecnologia, um olhar que não sucumbe ao pessimismo, mas que também não é excessivamente otimista. De modo geral, os romances nos convidam a uma atitude mais histórica diante da ciência e a uma série de reflexões capazes de problematizar tanto aspectos positivos quanto negativos presentes nas relações CTS.

Relações com a abordagem CTS

Os resultados desta pesquisa sugerem que a literatura, pelo menos um seleto grupo de romances, pode cumprir um papel importante na formação do cidadão, gerando reflexões sobre a natureza da ciência e as relações CTS. Se buscarmos identificar os pressupostos teóricos e as motivações da abordagem CTS no ensino de ciências, veremos que esse tipo de abordagem pode se beneficiar muito das questões postas pela ficção científica.

Santos e Mortimer (2002)Santos, W. L. P., & Mortimer, E. F. (2002). Uma análise dos pressupostos teóricos da abordagem CTS (Ciência – Tecnologia – Sociedade) no contexto da educação brasileira. Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências, 2(2), 110-132. apontam as motivações sociais, históricas e filosóficas dessa proposta no ensino de ciências, entre elas, o fato de que o mundo contemporâneo é muito marcado pela influência científica e tecnológica; a supervalorização do modelo de progresso racionalizado pela ciência; o mito da neutralidade científica; a tese de autores como Habermas e Marcuse de que ciência e tecnologia legitimam uma lógica de dominação; os grandes impactos da ciência e da tecnologia no meio ambiente.

A proposta curricular CTS situa a ética como componente importante na formação do cidadão. Nessa perspectiva, o educando deve desenvolver a capacidade de se posicionar perante questões científicas e tecnológicas. O conhecimento, portanto, é tratado como condição constitutiva da cidadania, e a noção de responsabilidade social é fundamental. A abordagem CTS preza ainda por uma visão de ciência crítica, capaz de desfazer os mitos do cientificismo, compreendendo a tecnologia como conhecimento modificador do mundo e a sociedade como possibilidade do exercício efetivo da cidadania, bem como as relações possíveis entre essas esferas (Santos & Mortimer, 2002Santos, W. L. P., & Mortimer, E. F. (2002). Uma análise dos pressupostos teóricos da abordagem CTS (Ciência – Tecnologia – Sociedade) no contexto da educação brasileira. Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências, 2(2), 110-132.).

Dessa forma, é possível desenhar caminhos interessantes para a abordagem de relações CTS por meio da ficção científica. Os principais resultados desta pesquisa já apontam questões ligadas ao modelo de progresso moderno e aos mitos do cientificismo como reflexões possíveis a partir das leituras. Aspectos éticos no uso da tecnologia estão presentes nos quatro romances analisados; o mito da neutralidade científica é especialmente destacado em O fim da eternidade; e a problemática do poder científico e tecnológico também é uma discussão viável a partir dessas obras, sendo singular em A máquina do tempo, cujo enredo questiona e critica a divisão social do trabalho e a luta de classes.

Mas como a literatura dos séculos XIX e XX pode ser posta a serviço da formação do cidadão do século XXI? A resposta a essa pergunta é relativamente simples: algumas das grandes questões colocadas por essas obras literárias ainda são pertinentes ao mundo contemporâneo.

Considerações finais

Assumindo como meta para a educação que ela se torne cada vez mais reflexiva, a literatura, particularmente a ficção científica, pode servir à formação de cidadãos críticos, mais conscientes a respeito da ciência, de suas limitações e de suas relações com a sociedade. O uso da ficção científica com finalidade educativa, para além dos conceitos escolares das ciências, pode ser pensado com o intuito de provocar nos estudantes reflexões epistemológicas e até sociológicas, bem como de promover debates na perspectiva CTS.

  • 1
    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br.

Referências

  • Ferreira, J. C. D., & Raboni, P. C. A. (2010). A utilização da obra de Júlio Verne como fonte de possibilidades no ensino de física.InII Simpósio Nacional de Educação e XXI Semana de Pedagogia Unioeste, Cascavel.
  • Ferreira, J. C. D., & Raboni, P. C. A. (2013). A ficção científica de Júlio Verne e o ensino de física: uma análise de “Vinte mil léguas submarinas”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 30(1), 84-103.
  • Ferreira, J. C. D. (2013). A volta ao mundo em oitenta conceitos científicos: Júlio Verne e o ensino de física. In XI Congresso Nacional de Educação Educere PUC-PR, Curitiba.
  • Fourez, G. (1995a). Idealismo e história humana. In A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências (L. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Unesp.
  • Fourez, G. (1995b). Ciência, poder político e ético. In A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências (L. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Editora Unesp.
  • Gancho, C. V. (2006). Como analisar narrativas São Paulo: Ática.
  • Gomes, E. F., Amaral, S. C. M., & Piassi, L. P. C. (2010). A máquina do tempo de H. G. Wells: uma possibilidade de interface entre ciência e literatura no ensino de física. Ensino, Saúde e Ambiente, 3(2), 144-154.
  • Marx, K. (1996). Legislação fabril: sua generalização na Inglaterra. In O capital: crítica da economia política (Livro Primeiro, Tomo 2, pp. 107-129, R. Barbosa & F. R. Kothe, trad.). São Paulo: Nova Cultural.
  • Moraes, R. (1999). Análise de conteúdo. Revista Educação, 22(37), 7-23.
  • Morin, E. (2005a). Teses sobre a ciência e a ética. In Ciência com consciência (M. D. Alexandre & M. A. S. Dória, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  • Morin, E. (2005b). A ideia de progresso do conhecimento. In Ciência com consciência (M. D. Alexandre & M. A. S. Dória, trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  • Oliveira, A. A, & Zanetic, J. (2008). Critérios para analisar e levar para a escola a ficção científica. In XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física UTFPR, Curitiba.
  • Pérez, D. G., Montoro, I. F., Alís, J. C., Cachapuz, A., & Praia, J. (2001). Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, 7(2), 125-153.
  • Piassi, L. P. C., & Pietrocola, M. (2005). Ficção científica no ensino de física: utilizando um romance para desenvolver conceitos. In XVI Simpósio Nacional de Ensino de Física Cefet, Rio de Janeiro.
  • Piassi, L. P. C. (2007). Contatos: a ficção científica no ensino de ciência em um contexto socioculturalTese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Piassi, L. P. C. (2011). Robôs e androides: a abordagem de questões sociopolíticas de ciência e tecnologia em sala de aula. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 11(3), 165-184.
  • Roberts, A. (2002). Defining science fiction. In Science fiction London: Routledge.
  • Rosa, C. A. P. (2012). História da ciência: a ciência e o triunfo do pensamento científico no mundo contemporâneo (vol. 3, pp. 15-24). Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão.
  • Santos, W. L. P., & Mortimer, E. F. (2002). Uma análise dos pressupostos teóricos da abordagem CTS (Ciência – Tecnologia – Sociedade) no contexto da educação brasileira. Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências, 2(2), 110-132.
  • Wells, H. G. (2011a). Os novos impérios ultramarinos do navio a vapor e das ferrovias. In Uma breve história do mundo (R. Breunig, trad.). Porto Alegre: L&PM.
  • Wells, H. G. (2011b). A revolução industrial. In Uma breve história do mundo (R. Breunig, trad.). Porto Alegre: L&PM.
  • Zanetic, J. (2006). Física e Arte: uma ponte entre duas culturas. Pro-Posições, 17(1), 39-57.

Obras analisadas

  • Asimov, I. (2007). O fim da eternidade (S. Alexandria, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1955)
  • Clarke, A. C. (2013). 2001: uma Odisseia no espaço (F. Fernandes, trad.). São Paulo: Aleph. (Obra original publicada em 1968)
  • Verne, J. (2012). Vinte mil léguas submarinas (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1870)
  • Wells, H. G. (2010). A máquina do tempo (B. Tavares, trad.). Rio de Janeiro: Alfaguara. (Obra original publicada em 1895)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2016
  • Revisado
    21 Jun 2017
  • Aceito
    28 Dez 2018
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br