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Alfabetização na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)1 1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Douglas Mattos (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar como a alfabetização é articulada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovada pelo Conselho Nacional de Educação em dezembro de 2017. Adota, como metodologia de estudo, a pesquisa documental, pois analisa documentos/textos produzidos por órgãos diretores e encarregados da educação, respectivamente, no Brasil e no mundo. Conclui que o modelo de alfabetização funcional adotado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura para subsidiar programas e projetos de alfabetização de adultos, compatível com a noção de competência adotada na BNCC, reduz a alfabetização ao desenvolvimento da consciência fonológica, à aprendizagem da técnica da escrita com o objetivo de formar pessoas adaptadas à ordem social e ao modelo produtivo vigentes.

Palavras-chaves
alfabetização; modelo funcional de alfabetização; Base Nacional Comum Curricular; texto

Abstract

The aim of this paper is to analyze how literacy is articulated in the National Common Core (BNCC4 4 Translation of the term National Common Core - Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - in Portuguese ) approved by the National Education Council in December 2017. Documentary research is the methodology used to examine documents/texts produced by both administrative agencies and officials in charge of education, in Brazil and in the world, respectively. It concludes that the functional literacy model, adopted by Unesco for Education, Science and Culture to subsidize adult literacy programs and projects, which is compatible with the notion of competence adopted by the BNCC, reduces literacy to the development of phonological awareness and to the learning of writing technique with the aim of educating people adapted to the prevailing social order and productive model.

Keywords
literacy; functional model of literacy; National Common Core; text

Considerações iniciais

Entre os vários artigos publicados em livros e revistas científicas sobre as versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), destacamos os artigos de Mortatti (2015)Mortatti, M. R. L. (2015). Essa Base Nacional Comum Curricular: mais uma tragédia brasileira? Revista Brasileira de Alfabetização, 1(2), 191-205., “Essa Base Nacional Comum Curricular: mais uma tragédia brasileira?”, e Gontijo (2015)Gontijo, C. M. M. (2015). Base Nacional Comum Curricular (BNCC): comentários críticos. Revista Brasileira de Alfabetização, 1(2), 174-190., “Base Nacional Comum Curricular (BNCC): comentários críticos”, por discutirem especificamente a alfabetização. Essas duas autoras se posicionam criticamente a respeito da versão da BNCC que, em 2015, estava em construção e aberta a análises, comentários, sugestões e propostas, por meio da plataforma Consulta Pública.

A primeira autora, a partir de diálogo com Geraldi (1984 citado por Mortatti, 2015Mortatti, M. R. L. (2015). Essa Base Nacional Comum Curricular: mais uma tragédia brasileira? Revista Brasileira de Alfabetização, 1(2), 191-205.), critica o ecletismo conceitual da BNCC, com graves inconsistências e incoerências, fato resultante da reafirmação do construtivismo, teoria no campo da alfabetização que se tornou hegemônica por sua adoção em programas governamentais e políticas públicas, como verdade científica e autoexplicativa, “misturada” com o uso de terminologia (apenas) característica de outro campo teórico-conceitual e de outra opção política: o interacionismo linguístico.

Gontijo (2015)Gontijo, C. M. M. (2015). Base Nacional Comum Curricular (BNCC): comentários críticos. Revista Brasileira de Alfabetização, 1(2), 174-190., por sua vez, a partir de estudos realizados no campo da história da alfabetização no Brasil, assinala que a elaboração de uma base não é nova. De acordo com a pesquisadora, em outros momentos de nossa história, foi possível identificar iniciativas dos órgãos gestores da educação básica nacional com esse propósito. No entanto, somente a partir da década de 1990, a proposição de um currículo comum nacional passou a ter como objetivo central a construção de metas de qualidade. A autora conclui que, a despeito do alardeado objetivo de melhoria dos índices educacionais, o alinhamento entre a Base Nacional Curricular, versão 2015, e a avaliação tem gerado certo empobrecimento do que é ensinado nas escolas públicas.

Assim, considerando a necessidade de aprofundar reflexões acerca da alfabetização na BNCC, este texto tem por escopo central analisar como a alfabetização é articulada no texto da BNCC, aprovado pelo Conselho Nacional de Educação no final do ano de 2017.

Talvez não seja necessário retomar os fundamentos gerais da BNCC, pois outros/as autores/as já trilharam esse percurso, a saber: Macedo (2016)Macedo, E. (2016). Base Nacional Comum: a falsa oposição entre conhecimento para fazer algo e conhecimento em si. Educação em Revista, 32(2), 45-68. doi:10.1590/0102-4698153052
https://doi.org/10.1590/0102-4698153052...
, Marsiglia, Pina, Machado, & Lima (2017)Marsiglia, A. C. G., Pina, L. D., Machado, V. O., & Lima, M. (2017). A Base Nacional Comum Curricular: um novo episódio de esvaziamento da escola no Brasil. Germinal: marxismo e educação em debate, 9(1), 107-121. doi:10.9771/gmed.v9i1.21835
https://doi.org/10.9771/gmed.v9i1.21835...
, Bittencourt (2017)Bittencourt, J. (2017). A Base Nacional Comum Curricular: uma análise a partir do ciclo de políticas. In Anais do XIII Congresso Nacional de Educação (pp. 553-569). Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba. Recuperado de https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24201_12678.pdf
https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2...
e Carvalho & Lourenço (2018)Carvalho, J. M., & Lourenço, S. G. (2018). O silenciamento de professores da Educação Básica pela estratégia de fazê-los falar. Pro-posições, 29(2), 235-258.. Contudo, gostaríamos de problematizar a noção de competência, pois esta serve de sustentação para a proposição dos objetivos/direitos de aprendizagem e desenvolvimento descritos no texto da BNCC, articulando metas para a educação básica e, também, para cada etapa desse nível de ensino.

Competência, na BNCC (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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), “é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (p. 6). Essa definição remete, então, à ideia de que a escola básica deve tornar os indivíduos capazes de utilizar conhecimentos, habilidades, atitudes e valores na solução de demandas da vida cotidiana, promover o exercício da cidadania e o ingresso no mundo do trabalho. Dessa forma, o aprendido na escola precisa ter uma aplicabilidade ou utilidade prática e, portanto, a escola deverá estar a serviço da sociedade, respondendo às suas demandas, sem questioná-las, passando a ideia de que é justa, igualitária e fundada na valorização de todos os seres humanos.

Acreditamos que a noção de competência, conforme adotada na BNCC, está diretamente ligada ao modelo funcional de alfabetização adotado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para subsidiar programas e projetos de educação de adultos em todo o mundo, agora alastrado por toda a educação básica e, consequentemente, para o processo inicial de alfabetização de crianças nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim, a despeito do aparente caráter transformador, a BNCC pretende reduzir o que é aprendido nas escolas públicas a um aparato técnico que serve de base para a perpetuação das relações sociais e de produção existentes na sociedade contemporânea. O escrito na parte introdutória do texto da BNCC reforça essa hipótese, pois é mencionado que

a BNCC reconhece que a “educação deve afirmar valores e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” …, mostrando-se também alinhada à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU)

(Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 6).

Apesar de a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU, 2015Organização das Nações Unidas. (2015). Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Recuperado de https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/
https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2...
) anunciar que será assegurada educação inclusiva, equitativa e de qualidade no que se refere à educação de crianças e à alfabetização de adultos, estabelece como metas a serem atingidas, até 2030:

4.1 … garantir que todas as meninas e meninos completem o ensino primário e secundário livre, equitativo e de qualidade, que conduza a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes

4.6 … garantir que todos os jovens e uma substancial proporção dos adultos, homens e mulheres estejam alfabetizados e tenham adquirido o conhecimento básico de matemática (p. 23).

Conforme esse trecho da Agenda 2030, a meta que diz respeito à educação das crianças é distinta da meta concernente aos jovens e adultos. Para as primeiras, deverá ser garantido, até 2030, ensino primário e secundário que leve a resultados relevantes e eficazes atestados pelos exames de avaliação em escala internacional. Para os jovens e adultos, serão proporcionadas alfabetização e aprendizagem de conhecimentos básicos de matemática. Se o eixo central da Agenda é educação inclusiva, equitativa e de qualidade, por que garantir aos jovens e adultos (homens e mulheres) somente alfabetização e conhecimentos básicos de matemática, sem mencionar a garantia do ensino secundário/médio? Quais são as aprendizagens relevantes e eficazes que serão ensinadas para as crianças (meninos e meninas) para viverem em 2030? De certo modo, a BNCC responde a essas duas questões, pois os objetivos de desenvolvimento e aprendizagem estabelecidos nesse texto, para o ensino fundamental, estão dirigidos à formação das crianças, dos jovens e dos adultos.

No que tange à avaliação dos resultados, a BNCC está bastante afinada com a Agenda 2030, pois parte de objetivos de aprendizagem e desenvolvimento bastante detalhados que servirão de indicadores para a construção de itens de testes, ou seja, para mensuração dos resultados da aprendizagem. O fato de a BNCC ter a avaliação como um dos principais horizontes para a sua formulação tem consequências sobre o modo como o conhecimento é concebido, ou seja, como um conjunto de habilidades, atitudes e valores que tem serventia, principalmente para o desenvolvimento econômico. Para ser medido por meio de itens de testes, precisa, ainda, ser tratado como técnica, ser único para todos e todas e observar graus de aprofundamento de acordo com a etapa da educação em que será transmitido.

A partir dessas primeiras ponderações, buscamos, neste artigo, em primeiro lugar, tecer reflexões sobre o modelo de alfabetização funcional adotado pela Unesco nos anos de 1960. Em segundo lugar, analisamos os desdobramentos desse modelo sobre o modo como os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento são traçados na BNCC para o processo de alfabetização, reduzindo-o à aquisição de uma técnica. Por último, reforçamos, por meio da análise de como o texto é pensado, que a ênfase da alfabetização na BNCC é no ensino da técnica da escrita, portanto, nos aspectos mecânicos do ler e escrever.

Considerando o nosso objetivo central – analisar como a alfabetização é articulada na BNCC –, escolhemos, para o desenvolvimento do estudo do qual se originou este artigo, a pesquisa documental, pois analisa documentos produzidos por órgãos diretores e encarregados da educação, respectivamente, no Brasil e no mundo. Porém, é necessário realçar, com fundamento na concepção de linguagem de Mikhail Bakhtin (2003)Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (Trad. Paulo Bezerra, 4a ed.). São Paulo: Martins Fontes., que entendemos documento como enunciado/texto, ou seja, como resposta a uma cadeia discursiva mais ampla que se realiza ao longo da história e também no tempo presente. Pensado como resposta, evidencia uma posição, mesmo que esta tenha prevalecido, por meio da utilização de mecanismos de poder e de discurso que diluem/escondem as possíveis oposições. O corpus discursivo que integra as análises contempladas neste artigo é, então, composto pelos seguintes textos: BNCC, aprovado em 2017, e relatórios e atas de reuniões realizadas pela Unesco.

Modelo funcional de alfabetização

No período de 9 a 19 de setembro de 1965, foi realizado, em Teerã, o Congresso Mundial de Ministros de Educação para Erradicação do Analfabetismo. Esse congresso reconheceu que o analfabetismo era um atentado à dignidade humana e que impedia o desenvolvimento econômico. Conforme assinalado pelo então diretor geral da Unesco, René Maheu, “reciprocamente, a alfabetização é um fator de desenvolvimento” (Unesco, 1968, p. 10, tradução nossa). Sublinhou, ainda, o diretor que essa posição remetia à noção de alfabetização funcional, que vinha sendo adotada pela Unesco. Esse congresso, no entanto, era, em sua opinião, o marco da adoção desse conceito que relacionou alfabetização e desenvolvimento social, individual e econômico, e analfabetismo e subdesenvolvimento, requerendo dos países pobres ações que pudessem aumentar os índices de alfabetismo.

O relatório final desse congresso colocou a alfabetização, principalmente dos adultos, como requisito para a modernização e para o desenvolvimento da sociedade, dos indivíduos e do sistema econômico. A principal finalidade da alfabetização funcional era formar mão de obra escolarizada para atuar de forma mais produtiva na indústria. Desse modo, a alfabetização funcional consistiria apenas no ensino da leitura, da escrita, do cálculo, abrangendo a capacitação para o trabalho com vistas a maior produtividade.

O texto produzido pela Unesco denominado La alfabetización funcional: cómo y por qué, além de explicar em que esse modelo consistia, ou seja, em “qualquer operação de alfabetização concebida como um componente dos projetos de desenvolvimento econômico e social” (Unesco, 1970b, p. 9, tradução nossa), tinha a finalidade de demonstrar a superioridade desse modelo distinguindo-o do modelo de alfabetização tradicional. Assim, na perspectiva da Unesco, esse último se limitava a ensinar adultos a calcular, a ler, a escrever para fins de comunicação, e seus métodos de ensino eram uniformes e prescritos externamente. Por sua vez, na alfabetização funcional, o ensino da leitura, da escrita e do cálculo não poderia ocorrer desintegrado da formação profissional, e seus métodos deveriam ser variáveis e flexíveis, conforme a diversidade de objetivos pretendidos.

Nessa direção, para propor um novo modelo de alfabetização (o funcional) como base dos programas de alfabetização de adultos, a Unesco criticou o modelo de alfabetização tradicional e, consequentemente, seus objetivos, métodos e formas de organização. Apesar de não ter orientações claras de como esse novo modelo pudesse ser desenvolvido na prática, acreditava que o modelo “tradicional” não permitiria o alcance do objetivo de formação de mão de obra adaptada ao modelo econômico vigente.

Ainda de acordo com o texto da Unesco (1970b)Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1970b). La alfabetización funcional: cómo y por qué. Paris: Autor., a novidade do conceito e a necessidade de uma definição prática de alfabetização tinham relação com a pluralidade de interpretações, muitas vezes contraditórias, até então adotadas nos países para alfabetização funcional. Havia lugares em que era entendida com base na aplicabilidade em situações práticas dos conhecimentos de leitura, escrita e cálculo. Outros consideravam que bastava a sua realização nos espaços de trabalho ou que as palavras escolhidas para o aprendizado da leitura e da escrita fizessem parte do vocabulário técnico utilizado no meio profissional para ser considerada funcional.

Apesar da adoção do modelo de alfabetização funcional para adultos, no texto intitulado La alfabetización 1967-1969: los progresos de la alfabetización en el mundo (Unesco, 1970aOrganización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1970a). Alfabetización 1965-1967: los progresos de la alfabetización en el mundo. Paris: Autor.), composto a partir das respostas a um questionário encaminhado pela Unesco aos países-membros, esse organismo afirmou a existência, no final de década de 1960, de uma crise educacional expressa nos índices mundiais de analfabetismo, porque a expansão do sistema educacional nos países em desenvolvimento não acompanhou o aumento da população decorrente da elevação dos índices de natalidade e de sobrevivência. No referido texto, foi assinalado ainda que muitos países consideravam os programas de alfabetização um esforço inútil e, por isso, argumentavam em favor da expansão do ensino primário como forma de eliminar o analfabetismo na sua origem. Opondo-se a esse posicionamento, a Unesco mencionou que, em país socialista, como a Rússia, Anatoly Vasilyevich Lunacharsky havia proclamado que

“a luta contra o analfabetismo e a ignorância não pode reduzir-se a organizar a educação escolar das crianças, adolescentes e jovens. Também os adultos deverão ser resgatados da humilhação que significa ser incapaz de ler e escrever. As escolas de adultos devem ocupar lugar proeminente no planejamento educacional”

(citado por Unesco, 1970aOrganización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1970a). Alfabetización 1965-1967: los progresos de la alfabetización en el mundo. Paris: Autor., p. 25, tradução nossa).

Ao mencionar a posição advinda de um país socialista, a Unesco buscou demonstrar que, independentemente de posições político-ideológicas, havia uma ampla aceitação do seu modelo de alfabetização funcional. Com esse propósito, chegou a citar, no texto, Mahatma Gandhi, apontando que este dizia que o analfabetismo, na Índia, precisava ser “erradicado” e que a alfabetização não deveria se restringir ao conhecimento do alfabeto, mas deveria promover a aprendizagem de conhecimentos úteis.

Em nossa opinião, no entanto, o foco no modelo de alfabetização funcional para adultos não criava contradições com a alfabetização de crianças, pois os dois últimos anos da escolarização primária, conforme orientações da Unesco (1972a)Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1970a). Alfabetización 1965-1967: los progresos de la alfabetización en el mundo. Paris: Autor., deveriam ser destinados ao treino para o trabalho. A polêmica tinha mais caráter econômico, ligado ao financiamento internacional da educação, pois, nessa época, estava direcionado para programas e projetos de alfabetização de adultos.

É necessário acrescentar que o conceito de alfabetização funcional sofreu modificações no curso de sua adoção pela Unesco. Inicialmente, como mencionado, ele mantinha relação somente com o desenvolvimento econômico e a produtividade. Assim, de acordo com esse organismo, era possível estimar que a alfabetização funcional e seletiva, ou seja, realizada em centros onde pudesse ser mais aproveitada em prol do desenvolvimento, proporcionaria benefícios: a) para os indivíduos, que poderiam melhorar a sua produtividade e, consequentemente, aumentar seus salários; b) para os setores produtivos, que poderiam reduzir custos; c) para o país, que aumentaria o produto nacional bruto, como as rendas públicas, e diminuiria a importação.

As críticas a esse modelo apareceram no texto da Terceira Conferência Internacional sobre a Educação de Adultos, realizada em Tóquio, no período de 25 de julho a 7 de agosto de 1972. Conforme registros produzidos dessa reunião, muitos oradores expressaram desacordo com o uso do termo “alfabetização funcional”, porque a finalidade da alfabetização subordinaria “o adulto, exclusivamente, aos mecanismos econômicos e de produção, sem levar em conta a sua implicação social e cultural” (Unesco, 1972bOrganización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1972b). Tercera Conferencia Internacional sobre la educación de adultos. Paris: Autor., p. 12, tradução nossa).

Diante da necessidade de responder às críticas, passou-se a enfatizar a ideia de que a alfabetização dos adultos, além de ocorrer em contextos econômicos, acontecia também em contextos sociais e culturais. Assim, qualquer tentativa de “erradicação” do analfabetismo teria que levar em conta esses últimos contextos, pois os analfabetos tinham interesses diversos na aprendizagem da leitura e da escrita. Conforme apontado pela Unesco (1972a)Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1972a). La alfabetización 1969-1971: los progresos de la alfabetización en el mundo. Paris: Autor., as pesquisas realizadas por antropólogos e sociólogos indicavam que “os programas de alfabetização deveriam levar em conta a atitude do analfabeto com relação à educação de adultos, suas esperanças, suas aspirações e a aplicação que poderia fazer dos conhecimentos adquiridos” (p. 40, tradução nossa).

Os escritos e os ensinamentos de Paulo Freire sobre o significado social e cultural da alfabetização, baseados nas experiências realizadas no Brasil e no Chile, conforme salientado pela Unesco, consideravam a alfabetização “como um processo graças ao qual o analfabeto adquire consciência de suas faculdades criadoras e chega a considerar a alfabetização como um instrumento que servirá para a libertação” (Unesco, 1972aOrganización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1972a). La alfabetización 1969-1971: los progresos de la alfabetización en el mundo. Paris: Autor., p. 42, tradução nossa). Com relação a essas ideias, argumentou que, se a alfabetização permitisse que o analfabeto tivesse um papel ativo na sociedade, esta última também precisaria estar disposta a aceitar essa nova condição. Porém, nem sempre isso ocorria, pois, conforme experiências observadas em alguns países, mesmo quando os trabalhadores tinham consciência de suas obrigações e direitos sociais, participavam de forma mais ativa nas organizações sociais e eram capazes de analisar as condições em que viviam, não havia aumento de seus salários.

É necessário acrescentar que, em 1975, aconteceu, em Persépolis, o Simpósio Internacional de Alfabetização. Esse Simpósio foi realizado a partir de uma proposta apresentada pelo governo do Irã na 16ª Reunião da Conferência Geral da Unesco, que ocorreu em Paris, em outubro de 1974. Conforme declaração aprovada no Simpósio, o analfabetismo no mundo aumentava, refletindo “o fracasso das políticas de desenvolvimento indiferentes ao homem e à satisfação de suas necessidades essenciais” (Oficina de Educación Iberoamericana, 1975Oficina de Educación Iberoamericana. (1975). Simposio Internacional de Alfabetización. Persépolis: Plana., p. 3, tradução nossa). Mesmo sabendo dos avanços da alfabetização, esta, em muitos países, não ajudou a melhorar as condições de vida das pessoas, pois elas não adquiriram “meios para a tomada de consciência dos problemas da sociedade em que vivem e de seus próprios problemas, nem os meios para resolvê-los ou para participar realmente de sua solução” (Oficina de Educación Iberoamericana, 1975Oficina de Educación Iberoamericana. (1975). Simposio Internacional de Alfabetización. Persépolis: Plana., p. 3, tradução nossa), havendo, inclusive, uma tendência à desalfabetização.

Os programas bem-sucedidos vincularam-se às necessidades vitais e de participação dos seres humanos nas mudanças da sociedade. Dessa forma, esses não se limitaram ao ensino da leitura, da escrita e do cálculo, subordinados somente às necessidades de crescimento desvinculadas da finalidade humana dos processos educativos. Para a Unesco, no entanto, considerando o tempo e os esforços empreendidos pelo trabalhador na sua alfabetização, os resultados dos questionários evidenciavam que era razoável esperar interesse na alfabetização, quando proporcionava claramente melhoria na produtividade e nos rendimentos dos trabalhadores.

Ao projetar o futuro do modelo de alfabetização funcional, a Unesco salientou que a avaliação continuaria desempenhando uma função central nos projetos compreendidos no modelo de alfabetização funcional, apontando os resultados e constituindo-se na base para novos projetos. Nesse sentido, haveria crescimento do apoio da Unesco aos estudos sobre alfabetização de adultos, difusão dos resultados e avaliação de projetos. Outra perspectiva diz respeito à aplicação dos métodos e técnicas do modelo de alfabetização funcional em outros setores da educação. Nessa direção, a última Conferência Geral da Unesco, realizada em 1970, recomendou aos Estados-membros e ao diretor geral da Unesco, na resolução referente à alfabetização,

que favoreçam a realização de investigações e de experimentos relativos à adaptação dos novos métodos e técnicas de alfabetização funcional ao ensino regular e sistemático e seu emprego nos projetos experimentais, encorajando a fomentar a educação permanente e a reestruturar os sistemas tradicionais de ensino. Assim, nos próximos anos, poderá ocorrer uma ampliação das atividades do Programa Mundial de Alfabetização, assim como uma aplicação mais extensa do método funcional para a educação

(Unesco, 1972aOrganización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1972a). La alfabetización 1969-1971: los progresos de la alfabetización en el mundo. Paris: Autor., p. 54, tradução e grifo nossos).

Dessa maneira, a Unesco almejava, na década de 1970, ampliar a adoção do modelo funcional de alfabetização para toda a educação, tornando-a apenas um elemento dependente da ordem social, econômica e cultural, e responsável pela reprodução, na escola, das atitudes, comportamentos, conhecimentos e valores necessários ao crescimento e fortalecimento econômico.

A Ata da 20ª Reunião da Conferência Geral da Unesco (1979)Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (1979). Actas de la Conferencia General: 20a reunión. Paris: Autor. reiterou a necessidade de os governos intensificarem esforços para a alfabetização de suas populações, levando em conta, dentre outras, as seguintes considerações: (i) a luta contra o analfabetismo é uma responsabilidade para a qual é necessária vontade política e mobilização de recursos; (ii) a alfabetização deve inspirar-se nos objetivos do desenvolvimento econômico, social e cultural, pois este constitui condição essencial para a plena participação dos indivíduos e grupos na vida da sociedade e na definição do seu destino.

Dessa forma, indiferente às polêmicas em torno do modelo de alfabetização funcional, a Unesco o manteve porque era essencial para fundamentar as estatísticas internacionais. Graff (1995)Graff, H. J. (1995). Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização (Trad. Tyrza M. Garcia). Porto Alegre: Artes Médicas. salientou as dificuldades na definição e mensuração da alfabetização, principalmente, em nossa opinião, com relação à medição da sua funcionalidade, ou seja, das mudanças na participação nos grupos e nas comunidades dos quais as pessoas fazem parte e na eficiência no setor de trabalho. Desse modo, como demonstram, por exemplo, os itens dos testes da Provinha Brasil e da Avaliação Nacional de Alfabetização, as avaliações, pelo menos em nível nacional, têm se dedicado a medir conhecimentos relacionados à técnica da escrita, pois o conceito de alfabetização como aquisição do código escrito está na base do modelo funcional, ou seja, o que se pretende é a aprendizagem de conhecimentos mínimos de leitura e escrita que permitam a adaptação à sociedade e ao modelo produtivo.

Alfabetização na BNCC

Podemos admitir que as expectativas da Unesco se concretizam na BNCC se considerarmos o seu atrelamento às avaliações internacionais, o fato de adotar a noção de competência que reduz o conhecimento a uma técnica para aplicação em contextos situados principalmente no meio profissional e a forma como o componente curricular “língua portuguesa” é articulado, especificamente, a alfabetização nos dois primeiros anos do ensino fundamental4 4 É preciso lembrar que os “objetivos de conhecimento” relativos à aprendizagem do código escrito não são especificados na BNCC nem para a educação das crianças nem para a de jovens e adultos. .

Conforme escrito no texto da BNCC, nesses anos iniciais, serão aprofundadas “experiências com a língua oral e escrita já iniciadas na família e na Educação Infantil” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
http://bit.ly/2PFK5qq...
, p. 85). De modo geral, os eixos de integração que orientam o desenvolvimento e a aprendizagem da língua portuguesa são a oralidade, a análise linguística/semiótica, a leitura/escuta e a produção de textos. Esses eixos devem proporcionar a ampliação das capacidades de uso da língua/linguagens, tanto em leitura como em produção, em práticas situadas de linguagem. Os campos de atuação em que as práticas de linguagem se realizam são, conforme o texto da BNCC, no que diz respeito aos dois anos iniciais: vida cotidiana, artístico-literário, estudo e pesquisa, e vida pública.

As diversas práticas letradas em que as crianças se inseriram ao longo de sua vida social e na Educação Infantil também serão, de acordo com a BNCC, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, “progressivamente intensificadas e complexificadas, na direção de gêneros secundários com textos mais complexos” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
http://bit.ly/2PFK5qq...
, p. 85). A correlação entre esses gêneros ou textos com as práticas denominadas situadas é muito forte e a sua aprendizagem deve proporcionar “a consciência e o aperfeiçoamento das práticas situadas” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
http://bit.ly/2PFK5qq...
, p. 85). As práticas letradas em que as crianças foram inseridas na educação infantil são mencionadas como: “cantar cantigas e recitar parlendas e quadrinhas, ouvir e recontar contos, seguir regras de jogos e receitas, jogar games, relatar experiências e experimentos” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
http://bit.ly/2PFK5qq...
, p. 85).

Dessa maneira, o que se espera é a alfabetização das crianças nos dois primeiros anos do ensino fundamental, devendo esta ser o foco da ação pedagógica. Porém, ela fica reduzida à aprendizagem da técnica da escrita com finalidades ligadas à aplicação em situações práticas. É necessário lembrar que, no modelo funcional ou na perspectiva do letramento (termos que, em nossa opinião, têm o mesmo significado), a alfabetização, entendida como aquisição do código escrito ou de habilidades de codificação e decodificação, é a base para a atuação em contextos situados e, também, para a mudança dos contextos dos quais as crianças fazem parte. Nessa perspectiva, as habilidades de codificação e decodificação abrangidas pela alfabetização, conforme discriminadas no texto da BNCC, nos dois primeiros anos do ensino fundamental, são as que seguem:

  • diferenciar desenhos/grafismos (símbolos) de grafemas/letras (signos);

  • desenvolver a capacidade de reconhecimento global de palavras (que chamamos de leitura “incidental”, como é o caso da leitura de logomarcas em rótulos), que será depois responsável pela fluência na leitura;

  • construir o conhecimento do alfabeto da língua em questão;

  • perceber quais sons se deve representar na escrita e como;

  • construir a relação fonema-grafema: a percepção de que as letras estão representando certos sons da fala em contextos precisos;

  • perceber a sílaba em sua variedade como contexto fonológico desta representação;

  • até, finalmente, compreender o modo de relação entre fonemas e grafemas, em uma língua específica (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
    http://bit.ly/2PFK5qq...
    , p. 89).

Os elementos descritos na transcrição demonstram que, nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, a ênfase é na aquisição do código escrito. Nesse sentido, o único eixo privilegiado, em todos os campos de atuação, é a análise linguística. Excetuando a primeira habilidade a ser trabalhada no processo de alfabetização, as demais têm norteado métodos, cartilhas e livros didáticos organizados de acordo com os métodos analíticos e os sintéticos. A ênfase nessas habilidades, ao longo da história, não tem resultado na alfabetização plena das crianças.

Apesar da preocupação com o uso, na sociedade, de textos compostos com diferentes linguagens (semioses), esse aspecto não tem lugar na alfabetização. Pelo contrário, as crianças, na fase inicial de aprendizagem do código escrito, precisam distinguir desenho de escrita. Essa distinção foi problematizada na pesquisa de Góes e Gontijo (2017)Góes, M. S., & Gontijo, C. M. M. (2017). Relações entre desenho e escrita no processo de produção textual. Revista Educação Unisinos, 21(2), 223-232. doi:10.4013/edu.2017.212.11
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ao evidenciarem, a partir de pesquisa empírica, que é uma criação escolar resultante de investigações que privilegiam as relações entre unidades da fala e unidades da escrita, esquecendo-se de que a maioria dos textos que circulam na sociedade conjugam várias linguagens para produzir sentidos.

Se a ênfase é na análise linguística, a produção e a leitura de textos e, consequentemente, a alfabetização como processos de produção de sentidos são secundarizadas, postergadas para um momento em que as crianças já passaram pelo processo básico (alfabetização), ou seja, “de construção do conhecimento das relações fonografêmicas” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 87) no português brasileiro. Infelizmente, tal compreensão do processo de alfabetização é um enorme retrocesso com relação aos estudos da linguagem e, mais especificamente, no que diz respeito ao ensino da linguagem escrita nas escolas públicas.

Por outro lado, ao diferenciar alfabetização e ortografização, a BNCC reduz a alfabetização ao treino da consciência fonológica. Nesse sentido, a alfabetização se restringe à aquisição da base alfabética (realizada nos dois primeiros anos de escolarização), ou seja, à compreensão do caráter alfabético da escrita. A ortografização, compreendida como processo complementar da alfabetização, se prolonga pelos anos subsequentes do ensino fundamental e corresponde ao domínio da ortografia da língua portuguesa.

Segundo Delfior (1998, p. 11)Delfior, S. (1998). Conocimiento fonológico y lectura: el paso de las representaciones inconscientes a las conscientes. Revista Portuguesa de Pedagogia, 32(1), 5-27., em sentido amplo, consciência fonológica é a “habilidade para identificar, segmentar e manipular, de forma intencional, as unidades constituintes da linguagem oral”. Os estudos relativos a essa questão, apesar de divergirem em alguns aspectos, estão de acordo que a consciência silábica e fonêmica é requisito para o bom desempenho na aprendizagem da leitura e da escrita. Desse modo, podemos inferir, a partir dos objetivos traçados para a alfabetização na BNCC, que esta fica restrita ao treino da consciência fonológica, ou seja, ao treino das habilidades de segmentar e de identificar sons da língua oral, visando à descoberta de seus correspondentes gráficos.

Na contramão dessa perspectiva, acreditamos nas capacidades das crianças de produzir e ler textos no processo inicial de alfabetização. Confiamos nas suas possibilidades de aprender a ler e a escrever na e com a diversidade de linguagens que compõem os textos. Para isso, no entanto, seria necessário que a produção de textos, assim como defendido por Geraldi (1991)Geraldi, J. W. (1991). Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes., tivesse lugar central no processo inicial de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, e não o treino da consciência fonológica.

Noção de texto na BNCC

Ao analisarmos os conceitos que sustentam o ensino da língua portuguesa e o processo de alfabetização na BNCC, nos deparamos com uma miscelânea de ideias que produzem equívocos e falta de consistência conceitual. Esse documento anuncia que, assim como outros documentos curriculares, principalmente os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa,

assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses

(Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 63).

Também se fundamenta em conceitos tais como: “práticas de linguagem, discurso e gêneros discursivos/gêneros textuais, esferas/campos de circulação dos discursos” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 63). Essa montagem conceitual não se expressa nos objetivos que são traçados para os anos iniciais do ensino fundamental, porque a “palavra” continua a ser unidade de ensino privilegiada. Essa escolha pode ser explicada pelo fato de esta unidade ser mais facilmente decomposta e composta com a finalidade de levar as crianças a segmentar, identificar e manipular sílabas e fonemas e seus correspondentes gráficos, isto é, contribui para o desenvolvimento da consciência fonológica, processo sobre o qual se restringe a alfabetização.

A indicação dos textos a serem utilizados nessa fase também tem esse objetivo. No primeiro e no segundo ano, é sugerido o trabalho com quadrinhas, parlendas, trava-línguas, cantigas, letras de canção, entre outros “gêneros” do campo da vida cotidiana. Para os demais campos de atuação, são sugeridos textos curtos. São poucos os objetivos ligados à produção de textos. Esses dois elementos denotam a pouca centralidade do texto e, sobretudo, da produção de textos no processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa nos dois anos destinados à alfabetização.

Para demonstrar o que foi dito, tomaremos os quadros que descrevem, na BNCC, as práticas de linguagem e seus respectivos campos de atuação e objetos de conhecimento:

Quadro 1
Práticas de linguagens e seus respectivos campos de atuação e objetos de conhecimento

É necessário notar que os eixos de integração passam a ser denominados práticas de linguagem que, por sua vez, compreendem a leitura/escuta, escrita, oralidade, análise linguística e semiótica. Dessa forma, o eixo produção de textos é substituído pelo eixo escrita. A oralidade não está presente no campo de atuação artístico-literário, o que nos parece bastante estranho.

Para cada prática de linguagem, são definidos objetos de conhecimento. Em nota de rodapé, há a seguinte explicação para essa expressão: são “entendidos como conteúdos, conceitos e processos –, que, por sua vez, são organizados em unidades temáticas” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 26, grifo nosso), a partir das quais são definidas as habilidades a serem alcançadas em cada ano.

Com relação à escrita, são relacionados os seguintes objetos de conhecimento: escrita autônoma, escrita compartilhada e produção de textos. Desse modo, as escritas contarão com a ajuda do/a docente e/ou colegas, pois, conforme adverte a BNCC,

os processos de alfabetização e ortografização terão impacto nos textos em gêneros abordados nos anos iniciais. Em que pese a leitura e a produção compartilhadas com o docente e os colegas, ainda assim, os gêneros propostos para leitura/escuta e produção oral, escrita e multissemiótica, nos primeiros anos iniciais, serão mais simples, tais como listas (de chamada, de ingredientes, de compras), bilhetes, convites, fotolegenda, manchetes e lides, listas de regras da turma etc., pois favorecem um foco maior na grafia, complexificando-se conforme se avança nos anos iniciais

(Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 29).

Dessa forma, os textos que circulam na vida cotidiana ganham destaque na alfabetização, tais como “as cantigas de roda, as receitas, as regras de jogo etc.” (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Autor. Recuperado de http://bit.ly/2PFK5qq
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, p. 29). A escolha desses textos visam a proporcionar o foco na representação escrita da palavra, unidade de ensino na alfabetização. Dessa maneira, podemos inferir que o objetivo central da alfabetização é propiciar a aprendizagem da consciência fonológica e da técnica da escrita, visando a sua aplicação em práticas situadas. As habilidades traçadas para cada objeto de conhecimento são indicadores para a construção dos itens dos testes.

Diferentemente da BNCC, e na perspectiva do que foi proposto por Geraldi (1991)Geraldi, J. W. (1991). Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes., a centralidade da produção de texto está fundamentada no campo dos direitos humanos e nas teorias do discurso que definem o texto/enunciado como unidade da comunicação discursiva. No campo do Direito, diz o primeiro princípio da Declaração de princípios sobre a liberdade de expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2000)Comissão Interamericana de Direitos Humanos. (2000). Declaração de princípios sobre a liberdade de expressão. Recuperado de http://bit.ly/2PeCujF
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, em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000: “A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas. É, ademais, um requisito indispensável para a própria existência de uma sociedade democrática” (s. p.).

Uma das formas de tornar efetivo o direito à liberdade de expressão na escola é proporcionar situações em que as crianças produzam textos (orais ou escritos, por meio do trabalho de escritura e de leitura). A livre expressão é um direito de todas as pessoas, portanto, também das crianças em fase de alfabetização. Geraldi (1991)Geraldi, J. W. (1991). Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes. apontou as motivações para a escolha do texto como unidade de ensino-aprendizagem da língua em qualquer etapa da escolarização. São motivações de caráter ideológico, pois, ao produzir textos orais e escritos, os/as estudantes que frequentam, principalmente, as escolas públicas podem contar suas histórias, de suas famílias e de sua comunidade, expor suas formas de pensar e ver o mundo.

Paulo Freire (1996)Freire, P. (1996). Educação como prática da liberdade (22a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. defendeu a educação/alfabetização como prática de liberdade, tendo a realidade dos/as estudantes como ponto de partida para a produção do conhecimento. A produção e a leitura de textos afirmam a educação como prática de liberdade e se contrapõem ao discurso da escola sem partido, à tentativa de atribuir à educação escolar um caráter pretensamente neutro, instrumental, cuja finalidade é formar pessoas para responder demandas sociais e econômicas em práticas situadas ou de atuação. Nesse sentido, se contrapõe ainda à demanda de formação de indivíduos passivos, com excelentes capacidades de se adaptar às condições impostas pelo mercado, mas incapazes de atuar coletivamente na construção de uma sociedade fundada na justiça social.

As práticas de produção e leitura de textos levam os futuros trabalhadores a questionar os conhecimentos veiculados na escola, a ter dúvidas e a fazer perguntas sobre o seu lugar e os seus direitos. A BNCC, na perspectiva do modelo funcional de alfabetização, não pretende formar adultos que viverão num futuro em que, de fato, saibam produzir textos, porque este conhecimento pode levá-los a se questionar, como no poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, de Bertolt Brecht (1986)Brecht, B. (1986). Perguntas de um trabalhador que lê: poemas (Trad. Paulo Cesar Souza). São Paulo: Brasiliense.: “Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas? / Nos livros estão nomes de reis; / os reis carregaram pedras? / E Babilônia, tantas vezes destruída, quem a reconstruía sempre?” (p. 167).

Considerações finais

O modelo funcional de alfabetização é mantido, atualmente, nos documentos da Unesco, órgão encarregado da ONU para traçar as políticas mundiais de educação. Assim, é

o alfabetizado funcional a pessoa que pode empreender aquelas atividades em que a alfabetização é necessária para a atuação eficaz em seu grupo e comunidade e que lhes permita continuar valendo-se da leitura, da escrita e da aritmética para seu próprio desenvolvimento e da sua comunidade

(Infante & Letelier, 2013Infante, M. I., & Letelier, M. E. (2013). Alfabetización y educación: lecciones desde la práctica innovadora en América Latina y el Caribe. Santiago, Chile: Unesco., p. 19, tradução nossa).

À primeira vista, esse modelo nos parece revolucionário, na medida em que aponta para o desenvolvimento de uma alfabetização com vistas à realização de ações, especialmente para inserção dos sujeitos no mundo do trabalho e nas atividades cotidianas realizadas em seu grupo social. Todavia, não podemos esquecer que a formação humana não deve ser pensada apenas como fator que possibilite o desempenho de atividades produtivas. Por isso, entendemos que essa perspectiva se coaduna com um modo de conceber os seres humanos que os reduz a meros executores de tarefas, ou seja, funda-se numa concepção que abstrai a capacidade humana de agir como um sujeito crítico no mundo. As crianças, adolescentes, jovens e adultos precisam da escola como espaço formativo que lhes possibilite refletir sobre a vida, onde tenham a oportunidade de se constituir como sujeitos que duvidam, questionam, contradizem, concordam, interpelam e, desse modo, podem, coletivamente, transformar a sociedade.

A educação, assim como a alfabetização, é um bem público, portanto, dever do Estado e direito fundamental de todos e todas. A garantia de educação pelo Estado é uma das condições para a construção de uma sociedade justa, livre e solidária. Por isso, precisamos lutar coletivamente por uma alfabetização plena. Em termos conceituais, diferentemente do que pressupõe o modelo funcional e, portanto, a BNCC, a alfabetização precisa ser pensada como uma prática sociocultural em que as crianças, adolescentes, jovens e adultos, por meio do trabalho integrado com a produção de textos orais e escritos, a leitura, os conhecimentos sobre o sistema da língua portuguesa e das relações entre sons e letras e letras e sons, exerçam a criticidade, a criatividade e a inventividade, isto é, pratiquem na escola a cidadania.

Diante da preocupação com a avaliação, é necessário questionar as suas finalidades, a proposição de conceitos universais de alfabetização e, principalmente, o modelo funcional que visa unicamente a adaptar as pessoas à ordem econômica, social e política vigente. De acordo com o nosso ponto de vista, tanto no passado como no presente, os conceitos de alfabetização, assim como a avaliação da alfabetização, servem apenas para conformar todos os processos alfabetizadores a uma mesma lógica, contribuindo para manter um modelo econômico baseado na exploração dos indivíduos, na manutenção das desigualdades e, consequentemente, na falta de justiça social.

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    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Douglas Mattos (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Translation of the term National Common Core - Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - in Portuguese
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    É preciso lembrar que os “objetivos de conhecimento” relativos à aprendizagem do código escrito não são especificados na BNCC nem para a educação das crianças nem para a de jovens e adultos.

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Referência consultada

  • Geraldi, J. W. (Org.). (1995). O texto na sala de aula São Paulo: Ática.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2018
  • Aceito
    14 Mar 2019
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