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A obrigatoriedade da educação infantil e a escassez de vagas em creches e estabelecimentos similares 1 1 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Resumo

Existe atualmente uma demanda muito grande por vagas em creches e estabelecimentos similares, e a oferta insuficiente acarreta escassez de vagas para o atendimento do direito das crianças que não completaram quatro anos de idade. O presente estudo visou analisar os dispositivos legais, referentes ao direito à educação, à obrigatoriedade do ensino, assim como a responsabilidade do Estado quanto a essa exigência, o sistema nacional de educação e o Plano Nacional de Educação, buscando compreender a dificuldade enfrentada pela sociedade para solucionar esse problema. Se o direito à educação representa um dever da família, do Estado e de toda a sociedade, o que é realmente necessário para concretizá-lo? Concluímos que o ordenamento jurídico brasileiro seria suficiente para viabilizar educação a todas as crianças, mas existe uma distância considerável entre o que está escrito na lei e a possibilidade de o próprio Estado cumprir essa lei, o que define a realidade escolar de boa parte das crianças brasileiras.

Palavras-chave
educação infantil; obrigatoriedade; acesso

Abstract

There is currently a great demand for places in kindergartens and similar establishments, and inadequate supply causes shortage of places for the care of the rights of children who have not completed four years of age. This study aimed to analyze the legal provisions relating to the right to education, mandatory education, as well as the responsibility of the State as to this requirement, the National System of Education and the National Education Plan, seeking to understand the difficulty faced by society to solve this problem. If the right to education is a duty of the family, the state and the whole of society, what is really necessary for its implementation? We conclude that the Brazilian Legal System would be sufficient to enable education for every child, but there is a considerable gap between what is written in the law and the competence of the state itself to comply with this law, which defines the school reality of a large part of Brazilian children.

Keywords
child education; mandatory; access

Introdução

Existe atualmente no Brasil uma grande demanda por vagas em creches e estabelecimentos similares, perante a falta de estrutura para assegurar o direito à educação da população entre zero e quatro anos de idade incompletos. Esse problema não é novidade entre nós, e há muito tempo espera solução.

A Constituição Federal de 1988 (CF) é clara ao tratar do tema, afirmando em seu artigo 205 que a educação é um direito de todos, dever do Estado e da família. Isso será reforçado com relação à criança e ao adolescente, cujos direitos devem ser assegurados pela família, pelo Estado e por toda a sociedade, com absoluta prioridade, à luz do artigo 227.

A mesma CF afirma, em seu artigo 208, inciso I, que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica e gratuita dos quatro aos 17 anos de idade (Emenda Constitucional – EC nº 59, de 11 de novembro de 2009Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009 (2009, 12 de novembro). Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a partir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das Receitas da União incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição Federal, dá nova redação aos incisos I e VII do art. 208, de forma a prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da educação básica, e dá nova redação ao § 4º do art. 211 e ao § 3º do art. 212 e ao caput do art. 214, com a inserção neste dispositivo de inciso VI. Diário Oficial da União, seção 1.). Esse artigo, no inciso IV, também garante o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos (EC nº 53, de 19 de dezembro de 2006Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006 (2006, 20 de dezembro). Dá nova redação aos arts. 7º, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 da Constituição Federal e ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União, seção 1.).

Como se vê, nossa CF não prevê a obrigatoriedade nem a gratuidade para o atendimento da população entre zero e quatro anos, embora conste na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seu artigo 4º, inciso II, atendimento gratuito em creche e pré-escola para crianças de até cinco anos de idade (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (1996, 23 de dezembro). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, seção 1.; Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013 (2013, 5 de abril). Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. Diário Oficial da União, seção 1.).

Tal previsão é perfeitamente adequada ao nosso ordenamento jurídico, mas ainda cabe refletir acerca da obrigatoriedade, que, embora não expressa nos artigos referentes ao tema, há de ser estendida às crianças com menos de quatro anos, à luz da teoria da proteção integral.

A Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, alterou o inciso II do artigo 4º da LDB, buscando adequá-lo ao texto constitucional, e também o inciso I, para afirmar que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos 16 anos.

Diante disso, fica clara a obrigatoriedade da educação para as crianças que já completaram quatro anos de idade, tema tratado pelo presente estudo. O problema abordado aqui diz respeito à população com idade inferior a quatro anos. Procuramos refletir sobre a insuficiência de vagas em creches, pré-escolas e estabelecimentos similares, para compreender a dificuldade em cumprir a lei e avançar na solução desse problema. Para tal, revisamos a literatura e os diplomas legais referentes ao direito à educação, à organização educacional brasileira, incluindo os Planos Nacionais de Educação. O trabalho também recorreu aos estudos de Cury (2008)Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209., Cury e Ferreira (2010)Cury, C. R. J., & Ferreira, L. A. M. (2010). Obrigatoriedade da educação de crianças e adolescentes: uma questão de oferta ou de efetivo atendimento. Nuances, 17(18), 124-145., Cury, Horta e Brito (1997)Cury, C. R. J., Horta, J. S. B., & Brito, V. L. A. (1997). Medo à liberdade e compromisso democrático: LDB e plano nacional da educação. São Paulo: Editora do Brasil. e Saviani (2010Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789., 2012)Saviani, D. (2012). Educação brasileira: estrutura e sistema. Campinas: Autores Associados., que situam perfeitamente a legislação no campo da escola.

A concepção e execução de políticas para atender às necessidades das crianças deixam a desejar, pois medidas paliativas e alterações legislativas já não se mostram suficientes no atendimento do direito à educação dessas crianças. Também a organização da educação brasileira, ainda que tenha buscado a implantação de um sistema nacional, não se concretizou completamente, sobretudo em função das características regionais marcadas pela diversidade de iniciativas, como apontam os dispositivos normativos consultados. O Plano Nacional de Educação (PNE) tem se mostrado insuficiente para enfrentar o problema de ausência de vagas, mesmo garantindo expressamente o direito à educação das crianças e reforçando o comando legal para o atendimento desse direito.

Delimitada a responsabilidade pela educação, por que não caminhamos em direção ao aumento da oferta de vagas na educação infantil? O que é realmente necessário para que possamos avançar nesse sentido?

Do direito à educação

A responsabilidade por garantir e oferecer educação, que é um direito de todos, é compartilhada pelo Estado, pela família e por toda a sociedade. Essa responsabilidade está determinada no artigo 205 da CF, o qual deve ser interpretado junto com o artigo 227, que, com pequenas variações textuais, não lhe retira o sentido ao inverter a ordem (família e Estado), acrescentando a sociedade como corresponsável por assegurar esse direito com absoluta prioridade.

Para compreender a representação da referida prioridade, nos socorremos da definição legal; no Parágrafo Único do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lemos que a garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

(Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (1990, 16 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, seção 1.)

Não se trata de direitos especiais, mas sim de considerar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e, portanto, merecedora de cuidado especial, haja vista a teoria da proteção integral adotada pela nossa CF, cuja expressão se concretiza no ECA. À luz dessa orientação, presente em mais de um dispositivo, pergunta-se: como se justifica a insuficiência de vagas em creches e estabelecimentos similares?

Verifica-se certa estagnação nesse aspecto, traduzida na repetição da letra da lei ao tratar dos princípios que orientarão o ensino a ser ministrado nos estabelecimentos oficiais. Por exemplo, a CF, em seu artigo 206, inciso I, define “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”, o que foi reproduzido em 1990 no artigo 53, inciso I, do ECA, e em 1996 no artigo 3º, inciso I, da LDB, constando ainda na Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, em seu artigo 4º, inciso I, com a seguinte redação: “igualdade de condições para o acesso, inclusão, permanência e sucesso na escola”.

Vale dizer que passados 22 anos da proclamação desse direito pela CF até a promulgação das diretrizes em 2010, seguindo até nossos dias, estamos próximos de 30 anos sem que esse princípio seja integralmente atendido, pois, com relação à educação infantil, a existência de filas aguardando uma eventual possibilidade de matrícula é fato consumado, o que afronta o mandamento legal.

Dentre os princípios segundo os quais o ensino deve ser ministrado, elencados no artigo 206 da CF, o primeiro é a igualdade de condições para acesso e permanência na escola. De acordo com os dispositivos legais mencionados, há espaço para o descumprimento desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro?

Apesar da reprodução textual em vários diplomas legais, a realidade sugere que referidos dispositivos têm se mostrado pouco eficazes, pois é longa a distância entre estes, a existência de vagas em creches e pré-escolas e o acesso a elas. Se cumpríssemos os dispositivos, já teríamos avançado nesse sentido.

No tocante ao direito à educação, verifica-se que as intenções declaradas eram de alcançar os Objetivos e Metas do PNE aprovado para o decênio 2001/2011 pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, a saber: atender 50% das crianças de zero a três anos e 80% das crianças entre quatro e cinco anos até 2011. Evidentemente essa meta não foi atingida, como comprova o texto do PNE aprovado para o decênio 2014/2024 (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 (2014, 25 de junho). Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, seção 1.), que entrou em vigor com atraso de mais de três anos, contendo exatamente a mesma disposição de atender 50% das crianças com até três anos de idade, prorrogada até 2016, o que certamente não foi atingido, como se deduz pela situação deficitária que afeta toda a estrutura da educação infantil no nosso país.

Portanto, são previstos 18 anos para garantir o direito à educação, conforme a CF, e 15 anos de previsão específica em regulamentação para enfrentar o problema, visando atender somente 50% da população nessa faixa etária. Isso nos permite inferir que essa é uma declaração expressa de negação do direito da outra metade dessa população.

Nega-se o direito à educação e, como consequência, fere-se o princípio da igualdade de condições para acesso e permanência no estabelecimento de ensino. Se a responsabilidade pela educação escolar está claramente definida na lei, até quando se suportará essa afronta ao direito de crianças?

Importa frisar que legalmente todas as crianças, independentemente da faixa etária, gozam do direito à educação e, consequentemente, de frequentar creches ou estabelecimentos similares, mesmo antes de completarem quatro anos de idade. Nesses casos é facultado aos pais ou responsáveis matricularem a criança e zelarem pela sua frequência em estabelecimento educacional, o que poderia justificar a ausência da obrigatoriedade para a educação infantil.

Todavia, a CF prevê, no seu artigo 208, inciso IV, o atendimento em creche e pré-escola para crianças de até cinco anos de idade, sem mencionar a obrigatoriedade ou a gratuidade do referido atendimento (EC 53/2006Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006 (2006, 20 de dezembro). Dá nova redação aos arts. 7º, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 da Constituição Federal e ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União, seção 1.).

Já para a educação básica, que engloba, além da educação infantil, o ensino fundamental e médio, são previstas tanto a obrigatoriedade quanto a gratuidade, dos quatro aos 17 anos, conforme o artigo 208, inciso I, da CF (EC 59/2009Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009 (2009, 12 de novembro). Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a partir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das Receitas da União incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição Federal, dá nova redação aos incisos I e VII do art. 208, de forma a prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da educação básica, e dá nova redação ao § 4º do art. 211 e ao § 3º do art. 212 e ao caput do art. 214, com a inserção neste dispositivo de inciso VI. Diário Oficial da União, seção 1.), e o artigo 4º, inciso I, da LDB (1996)Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (1996, 23 de dezembro). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, seção 1..

Como se vê, o legislador constitucional optou pelo critério etário, deixando dúvidas sobre o destinatário do direito à educação que ainda não completou quatro anos de idade. O dever do Estado de atender o direito à educação das crianças com menos de quatro anos será efetivado mediante a garantia de educação infantil em creche e pré-escolas, conforme a CF. Isso nos permite afirmar que, do ponto de vista legal, a oferta de vagas é dever e responsabilidade do Estado, o que não vem sendo plenamente cumprido.

A LDB, por sua vez, ao tratar da obrigatoriedade e da gratuidade, repete o critério etário, limitando-as entre quatro e 17 anos. No entanto, a LDB traz nova organização das etapas do ensino, excluindo a educação infantil como parte integrante da educação básica, em flagrante conflito com o disposto no seu artigo 21, que apresenta três etapas compondo a educação básica, a saber: educação infantil (creche e pré-escola); ensino fundamental e ensino médio.

Contudo, a mesma LDB, alterada pela Lei 12.796/2013, reveste a educação infantil de gratuidade – mantendo o critério etário – para crianças até cinco anos de idade. É de se frisar que a referida alteração não contempla a obrigatoriedade para a educação infantil.

Assim, tal reforma não resolveu a dúvida recorrente quanto ao direito à educação de crianças com até quatro anos incompletos, pois ainda que a lei não mencione essa obrigatoriedade, este direito já vem consubstanciado na interpretação sistemática dos artigos 205, 208 e 227 da CF.

Também o artigo 21 da LDB elimina qualquer justificativa para oferta apenas gratuita e não obrigatória da educação infantil, pois a integra na educação básica juntamente com o ensino fundamental e médio.

A retirada do termo “obrigatoriedade” para o atendimento em creches e pré-escolas não exime o Estado de ofertar vagas. Essas, de acordo com os dispositivos legais, devem ser garantidas com absoluta prioridade, pois todas as crianças, sem exceção, devem ter os seus direitos atendidos, entre eles, indiscutivelmente, o direito à educação, conforme os dispositivos aludidos, sobretudo o artigo 227 da CF.

Conforme já analisado por Cury (2008)Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209., o texto inicial do artigo 208, inciso I, da CF, alterado pela EC nº 14, de 12 de setembro de 1996, perde a obrigatoriedade do ensino fundamental para os que a ele não tiveram acesso na idade própria. Posteriormente, o mesmo inciso da CF sofre alteração pela EC 59/2009, estabelecendo a educação básica gratuita e obrigatória dos quatro aos 17 anos de idade.

Como se vê, o legislador constituinte não estendeu a garantia da obrigatoriedade para as crianças de zero a seis anos de idade, conforme consta no inciso IV do mesmo artigo 208. Mais tarde, a EC 53/2006 alterou esse inciso, reduzindo o limite de seis para cinco anos de idade. Contudo, mesmo com a EC 59/2009, não há menção a obrigatoriedade e gratuidade para essa faixa etária.

Embora a CF não mencione textualmente “gratuidade” ou “obrigatoriedade” para o atendimento em creche e pré-escola, a Lei 12.796/2013 alterou a LDB, fazendo constar no inciso II do artigo 4º: “educação infantil gratuita às crianças até cinco anos de idade”, o que se justifica pela teoria da proteção integral e o consequente atendimento dos direitos das crianças com absoluta prioridade.

A legislação brasileira garante expressamente a gratuidade da educação escolar para todas as crianças. Quanto à obrigatoriedade, esta deverá ser analisada através de interpretação sistemática dos dispositivos referentes ao tema, porque não está escrito que a educação infantil é obrigatória, seja no artigo 208, inciso IV, da CF (EC 53/2006Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006 (2006, 20 de dezembro). Dá nova redação aos arts. 7º, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 da Constituição Federal e ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União, seção 1.), seja no artigo 4º, inciso II, da LDB (Lei 12.796/2013).

No entanto, isso não nos permite afirmar que a oferta de vagas também não é obrigatória, pois, se assim fosse, as crianças de quatro anos incompletos teriam o seu direito recusado, com o que se esvazia o conteúdo da proteção integral dirigida a toda a criança e ao adolescente indistintamente.

Quanto à educação doméstica, é permitida em nosso país somente até a criança completar quatro anos de idade. Depois disso, a criança deverá obrigatoriamente ingressar em estabelecimento oficial de ensino. Mas repita-se: o acesso à creche não pode ser negado.

É necessário que fique claro, de uma vez por todas, que o dever do Estado em ofertar vagas não guarda relação alguma com a falta de obrigatoriedade para a educação infantil. A teoria da proteção integral destinada a toda criança e todo adolescente – reconhecidamente vulneráveis e, portanto, merecedores de atenção especial do legislador – garante com absoluta prioridade o atendimento dos seus direitos, entre eles, a educação.

Assim sendo, haveríamos de concluir que não há como negar a criança matrícula em creches e pré-escola à luz da legislação, bem definida a responsabilidade do Estado pelo atendimento desse direito, expressamente nos artigos 205 e 227 da CF. Todavia, a realidade escolar permanece distante da previsão legal, pois não existem vagas suficientes para atender a demanda no tocante à educação infantil.

Faltam escolas, faltam recursos para contratação, faltam professores – o que, não raro, faz boa parte deles exceder sua jornada normal de trabalho, gerando um custo adicional de horas extras. Há também dificuldades quanto à estrutura física de muitas escolas públicas, e se torna mais difícil enfrentar o problema na medida em que não se apresentam soluções eficazes diante desse quadro.

Mas se não há vaga, se o espaço físico não comporta mais uma criança, será que a eventual decisão judicial de efetivar a matrícula garantirá esse direito ou, em sentido inverso, colocará em risco não só o direito do destinatário da medida judicial como também de todas as outras crianças que lá se encontram? De que adianta a efetivação da matrícula por via judicial, sem possibilidades de atendimento adequado à faixa etária?

É preciso cautela para a correta interpretação da obrigatoriedade da educação infantil. Isto porque a referida obrigatoriedade deve ser considerada como uma via de mão dupla: de um lado, cabe aos pais matricularem os filhos e zelarem pela sua frequência na escola; de outro, o Estado é obrigado a disponibilizar vagas para atender essa parcela da população, o que efetivamente não ocorre.

Esse ponto merece atenção especial. A exclusão da educação infantil da obrigatoriedade do ensino, no artigo 208, inciso I, da CF, e no artigo 4º, inciso I, da LDB, não implica dizer que o Estado está desobrigado de ofertar vagas para a educação infantil. Essa obrigatoriedade resulta da interpretação sistemática de todo o arcabouço jurídico e não pode servir de álibi para a manutenção da insuficiência de vagas.

Além de não servir a essa finalidade, isso ainda se mostra pernicioso, pois eventual decisão judicial, moralmente idônea, juridicamente adequada e fundamentalmente coesa pode frustrar o seu objetivo máximo no exercício da jurisdição que é a distribuição da justiça. Se não há vagas para a demanda de alunos, a decisão judicial que manda matricular, embora adequada, não resolve o problema satisfatoriamente; pelo contrário, cria outro.

O deferimento de pedidos judiciais, obrigando a matrícula, acentua a situação deficitária de toda a estrutura educacional infantil e não assegura o atendimento adequado das crianças. Os professores, por meio de planejamento diário dos conteúdos a serem trabalhados, inclusive quando se utilizam de portfólio individual como forma de avaliação da aprendizagem, necessitam de tempo para olhar a criança, conversar com ela reservadamente, ouvi-la, garantindo assim o atendimento adequado.

Por certo, determinar a matrícula na estrita observância da lei, sem atentar para essas questões causais, fere o direito dessas crianças – que, alheias a toda essa discussão, não podem, em hipótese alguma, permanecer desprovidas dos seus direitos garantidos constitucionalmente.

Voltemos à prioridade absoluta na proteção, na formulação e na execução das políticas sociais públicas e na destinação de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância. Por que esses comandos normativos ainda não foram atendidos com relação às crianças? Também é responsabilidade e dever do Estado ofertar vagas em número suficiente para atender a demanda, o que vem sendo frustrado em flagrante desrespeito à lei.

Do Estado na educação

Para a devida compreensão da responsabilidade do Estado com a educação, é necessário refletir sobre sua figura enquanto um ente jurídico personalizado. Bem-vinda é a definição de Darcy Azambuja (1988)Azambuja, D. (1988). Teoria geral do estado. Rio de Janeiro: Globo., quando diz que o “Estado é a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado” (p. 6).

Não se confunde, portanto, Estado com governo, que é apenas um de seus elementos. O atendimento do bem público é viabilizado por um poder soberano, que garante a governabilidade, pois “… o Estado apenas é verdadeiro Estado quando o poder que o dirige é soberano” (Ferreira Filho, 2011Ferreira Filho, M. G. (2011). Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva., p. 76).

Vale salientar que o poder soberano, cuja função é viabilizar a governabilidade, é uno e indivisível. Assim, distribuem-se funções para o bom e fiel desempenho desse poder. Daí resulta a coexistência do Legislativo, Executivo e Judiciário, interdependentes e harmônicos entre si, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro desde a primeira Constituição republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.

Nesse sentido, quando se fala em Estado é de suma importância entender, dentre todas as funções do poder, quem é o responsável por garantir o direito à educação. Assim, todos os poderes têm sua parcela de responsabilidade no atendimento desse direito, enquanto manifestação do poder soberano conferido ao Estado.

Outra questão relacionada ao Estado está na esfera de competência dos entes federativos (a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios), elencadas na CF garantindo a forma de Estado.

Sistema Nacional de Ensino

O Estado é uma nação politicamente organizada que assume a forma federativa, caracterizada pela descentralização política e administrativa. Daí a distribuição de competências entre a União, estados, Distrito Federal e municípios, resultado da organização do Estado.

Saviani (2012)Saviani, D. (2012). Educação brasileira: estrutura e sistema. Campinas: Autores Associados. sugere em seus estudos a ausência de um “sistema nacional de ensino”, afirmando que, embora a normatização da educação nacional indique intenção de uma sistematização, ela ainda não se efetivou no país. A propósito dessa afirmativa, o autor aponta que a LDB se refere ora a sistemas de educação, ora a sistemas de ensino, além de atribuir organização a sistemas distintos no âmbito estadual e municipal.

Em estudo anterior, Saviani (2010)Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789. já defendia a ideia de que não se instaurou, de fato, um sistema nacional de ensino no Brasil. Mesmo após a CF e a posterior reelaboração da LDB, a criação desse sistema foi inviabilizada por intervenção governamental – que pelo visto preferiu uma lei minimalista, desresponsabilizando, de certa maneira, a União em relação a certos aspectos da educação.

Cury (2008)Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209. e Saviani (2010)Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789. se completam sobre o tema. A propósito, Cury explica que atualmente há um “federalismo cooperativo sob a denominação de regime de colaboração recíproca, descentralizado, com funções compartilhadas entre os entes federativos …” (p. 1201). E questiona: “porque não se afirmar um sistema nacional de educação para o acontecer de uma educação de qualidade?” (p. 1205).

Essa reflexão sobre a questão federativa já havia sido proposta por Cury, Horta e Brito (1997)Cury, C. R. J., Horta, J. S. B., & Brito, V. L. A. (1997). Medo à liberdade e compromisso democrático: LDB e plano nacional da educação. São Paulo: Editora do Brasil., considerando a divisão de competências, característica marcante do Estado federal, que não se apresenta unitário e centralizador. Como consequência disso, os autores argumentam que sistemas estaduais e municipais ofenderiam o aspecto nacional e, em caso contrário, a centralização “passaria por cima do caráter federativo”.

O sistema nacional de educação integra e articula todos os níveis e modalidades de educação, com todos os recursos e serviços que lhes correspondem, organizados e geridos em regime de colaboração por todos os entes federativos, sob coordenação da União, aspecto corroborado pela LDB, em seu artigo 8º (Saviani, 2010Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789., p. 780).

Adiante, nos artigos 16, 17 e 18, a LDB define os sistemas federal, dos estados e do Distrito Federal, e dos municípios, respectivamente (Cury, 2008Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209.). Nessa direção, tanto Cury (2008)Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209. quanto Saviani (2010)Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789. se referem à prioridade dos entes jurídicos ao analisarem o teor do artigo 211, parágrafo 1º, da CF, que estabelece esse regime de colaboração, cabendo à União: “função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios”. Os autores destacam que os sistemas de ensino estaduais e municipais atuam em colaboração recíproca com a União, sendo prioridade daqueles o ensino médio e destes o ensino fundamental.

Entretanto, insta salientar que o parágrafo 2º do artigo 211 da CF, com a redação dada pela EC 14/1996, estabelecera que os municípios atuassem prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. Já a LDB, em seu artigo 11, inciso V, atribui ao município a oferta prioritária somente para o ensino fundamental, além do regime de colaboração entre estados e municípios para oferta do ensino fundamental, como se vê no artigo 10, inciso II.

Essa situação sobrecarrega os municípios, pois, conforme visto, repetem-se as metas dos PNEs, de periodicidade decenal, mantendo até hoje o objetivo de atender apenas 50% da população de zero a quatro anos incompletos, passados 14 anos de previsão específica para atendimento desses direitos, quando da promulgação da Lei 10.172/2001, que estabeleceu o PNE para o decênio 2001/2011.

O prazo para assegurar a oferta de vagas em creche para crianças de até três anos era o ano de 2011, o que não foi atendido, como comprova a repetição da meta na Lei 13.005/2014, que estabeleceu o PNE para o decênio 2014/2024. Nesse plano, o novo prazo estabelecido para alcançar a meta é 2016, o que certamente não se concretizará.

É possível afirmar que houve avanços na oferta de educação infantil, mas insignificantes se comparados à meta estabelecida, que está longe de ser alcançada.

O PNE/2014, implantado com mais de três anos de atraso – mormente no tocante à educação infantil –, sugere uma desatenção do legislador ou desprezo no trato do direito à educação para a população entre zero e quatro anos incompletos, na medida em que ignora o direito de 50% dessa parcela da população.

A LDB, que entrou em vigor em 23 de dezembro de 1996, ao estabelecer no artigo 11, inciso V, a prioridade do município em oferecer o ensino fundamental, desprivilegiou a educação infantil. Isso contraria a CF, em seu artigo 211, parágrafo 2º, com a redação dada pela EC 14/1996, que atribuía aos municípios atuação prioritária também na educação infantil, tendo entrado em vigor no dia 1º de janeiro de 1997, portanto nove dias depois da LDB.

Isso se deve à vacatio legis, ou seja, ao período em que a EC 14/1996 aguardava para entrar em vigor.

A legislação brasileira prevê a coexistência de sistemas de ensino, segundo Cury (2008)Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209., de forma coordenada e descentralizada, em regime de colaboração recíproca; os sistemas devem atuar, entre outros, com unidade, princípios comuns, seguindo Diretrizes e Bases da Educação Nacional e PNE.

O referido autor destaca a dificuldade de administração da educação brasileira, sugerindo a necessidade de um sistema nacional articulado, decorrente da colaboração recíproca entre os entes federativos, tendo em vista o Parágrafo Único do artigo 11 da LDB, que possibilita um sistema único de educação básica, bem como o PNE, o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que apontam nesse sentido (Cury, 2008Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educação &Sociedade, 29(105), 1187-1209.).

Ora, a dificuldade do legislador em atribuir competência prioritária aos municípios tem impacto direto sobre a dificuldade de enfrentar os problemas de vagas que assolam a educação infantil. Quais são as prioridades em relação a essa parte da educação básica? Como se justifica a previsão de atingir somente 50% da população entre zero e três anos na oferta de vagas, quando todas as crianças têm esse direito? Seria a adoção de um sistema nacional de ensino suficiente para garantir os direitos negados às crianças dessa faixa etária, ou isso é possível através do acompanhamento e cumprimento efetivo das metas do PNE?

Direito público subjetivo na educação básica

O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, conforme artigo 208, parágrafo 1º da CF, reforçado pela LDB em seu artigo 5º. O direito subjetivo é a faculdade ou opção que qualquer pessoa tem de invocar a norma a seu favor. Ou seja, é a possibilidade conferida ao particular de acionar o Estado, exigindo dele a prestação da escolarização. Esse poder “… configuraria um autêntico direito subjetivo à educação” (Guazzelli, 1979Guazzelli, E. T. F. (1979). A criança marginalizada e o atendimento pré-escolar. Porto Alegre: Globo., p. 6).

Ao tratarem da obrigatoriedade do ensino, Cury e Ferreira (2010)Cury, C. R. J., & Ferreira, L. A. M. (2010). Obrigatoriedade da educação de crianças e adolescentes: uma questão de oferta ou de efetivo atendimento. Nuances, 17(18), 124-145. afirmam que “a positivação dos direitos é um instrumento para assegurar a sua oferta” (p. 125). Ora, se a CF determina que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito subjetivo, e a LDB assevera que isso se aplica à educação básica – incluindo a educação infantil –, significa que tal direito pode ser exigido do Estado, caso não seja espontaneamente atendido.

Assim, não sendo garantido o acesso à educação, poderá o interessado exigir judicialmente do Estado o cumprimento dessa determinação legal. Ressalte-se, no entanto, que o dever do Estado em ofertar vagas é obrigatório para toda e qualquer criança. Aliás, a educação básica, que comporta a educação infantil como sua primeira etapa, já serve para fundamentar eventual pedido judicial para garantia de igualdade de acesso.

Todavia, convém lembrar que a realidade enfrentada pela educação infantil pública demonstra que medidas judiciais, se não forem acompanhadas de outras providências, não são suficientes para atender o direito das crianças entre zero e quatro anos incompletos. É preciso considerar o número reduzido de creches e de professores para atender essa demanda, assim como a falta de espaços adequados para abrigar crianças. Enfim, trata-se de toda uma infraestrutura deficitária que contribui para agravar o problema, o que merece atenção maior do poder público.

Guazzelli (1979)Guazzelli, E. T. F. (1979). A criança marginalizada e o atendimento pré-escolar. Porto Alegre: Globo. definiu com primor o que ocorre no Brasil quando afirmou que os sistemas educacionais nos países em desenvolvimento estão providos “de boas bases filosóficas, boas leis de educação e belas fórmulas administrativas, contudo há falta de harmonia entre a lei e a prática, entre a teoria e a aplicação, entre o mito educacional e realidade escolar” (p. 7).

A autora destaca o abismo entre a previsão legal e a realidade da educação brasileira, afirmando que a legislação educacional descreve e prevê situações “ideais, por isso, utópicas, mas a práxis é desastrosa” (Guazzelli, 1979Guazzelli, E. T. F. (1979). A criança marginalizada e o atendimento pré-escolar. Porto Alegre: Globo., p. 8), o que permanece até os dias atuais, se considerarmos o problema de escassez de vagas para a educação infantil.

Ao lado da obrigatoriedade da oferta de vagas pelo Estado e da possibilidade de exigência judicial para atendimento dessa oferta, a lei ainda prevê a responsabilização das autoridades, no caso de seu descumprimento, como se vê no artigo 54, parágrafo 2º, do ECA. Ainda assim o problema persiste.

Podemos inferir, com Saviani (2010)Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789., que a insuficiência de vagas em creches e estabelecimentos similares tem como uma de suas causas a descontinuidade das políticas públicas, o que inviabiliza avanços consideráveis na direção de soluções. Com a criação do CNE buscou-se:

A permanência de uma instância de representação permanente da sociedade civil para compartilhar com o governo a formulação, acompanhamento e avaliação da política nacional. … Com isso se pretendia evitar a descontinuidade, que tem marcado a política educacional, o que conduz ao fracasso na tentativa de mudanças, pois tudo volta a estaca zero a cada troca da equipe de governo.

(Saviani, 2010Saviani, D. (2010). Organização da educação nacional: Sistema e Conselho Nacional de Educação, Plano e Fórum Nacional de Educação. Educação e Sociedade, 31(112), 769-789., pp. 773-774)

Mesmo com a instituição do PNE, permanecem as dificuldades no acompanhamento, na fiscalização e no cumprimento das metas e estratégias, estabelecidas inclusive na Lei 13.005/2014, que regulamentou o atual PNE.

Volta-se a indagar: se não há dúvida sobre a quem cabe a responsabilidade de garantir a educação, onde reside a dificuldade em efetivar a transformação tão necessária referente à escassez de vagas em creches, pré-escolas e estabelecimentos similares? É preciso reconhecer que existe um enorme hiato entre a letra da lei e o seu cumprimento.

Certamente a sociedade almeja o atendimento de todas as crianças no seu direito à educação, independentemente da faixa etária, visto ser também responsável por esse direito. Por isso, cabe a toda a sociedade acompanhar, fiscalizar e exigir o cumprimento da lei. Como já afirmado, medidas judiciais determinando a matrícula não resolvem o problema de acesso e permanência na escola; pelo contrário, desrespeitam inclusive o princípio da garantia do padrão de qualidade, constante no artigo 206, inciso VII, da CF.

Considerações finais

Como visto, o ordenamento jurídico brasileiro seria suficiente para viabilizar o direito à educação da população que ainda não completou quatro anos de idade. Tal direito é garantido pela CF a todas as crianças e adolescentes, independentemente da faixa etária. De acordo com a letra da lei, isso deveria ser concretizado na prática, o que não vem acontecendo.

Conforme aludido, a CF preconiza que o ensino será efetivado com base nos princípios da igualdade de acesso e permanência na escola, garantido o padrão de qualidade, o que se traduz na obrigação do Estado de ofertar vagas para tantas quantas forem as crianças que delas necessitem.

A insuficiência de vagas para atender a população de até quatro anos incompletos não se justifica ante a garantia de prioridade, pois a preferência na elaboração de políticas públicas e na destinação de recursos públicos bastaria para garantir vagas a todas as crianças. Isso decorre do princípio da proteção integral, adotado pela CF e regulamentado pelo ECA.

A política pública de educação no Brasil não tem observado o mandamento legal oriundo dessa proteção, a efetivar-se com prioridade absoluta, prevendo destinação privilegiada de recursos para oferta de vagas e não admitindo questionamentos nem quaisquer ações que se afastem dela. Embora estejam bem delimitados a responsabilidade pela educação e o dever do Estado, não caminhamos em direção ao aumento de vagas na educação infantil, pelo menos é o que demonstra o PNE/2014, que repete o contido no PNE/2001.

O princípio da proteção integral não está sendo efetivamente respeitado no enfrentamento da polêmica ausência de vagas para a educação infantil, da mesma forma que os princípios de garantia, igualdade de acesso e permanência na escola e do padrão de qualidade.

A falta de obrigatoriedade expressa nos dispositivos legais não pode se confundir com a não obrigatoriedade para oferta do ensino, uma vez que a educação é um direito de todos e deve ser ofertada pelo Estado, independentemente da faixa etária.

O Estado que não oferta vagas em número suficiente é o mesmo que obriga a matrícula, em estabelecimentos que já se encontram esgotados, sem condições de abrigar mais uma criança. Nessa direção, verifica-se grande descompasso entre as funções do poder estatal no cumprimento do dever relativo à oferta de vagas em creches e estabelecimentos similares.

Ainda são parcos os avanços no atendimento da população entre zero e quatro anos incompletos quanto ao seu direito à educação. Faltam creches; o número de professores é insuficiente, e muitos deles são mal formados; em geral os espaços são inadequados, denunciando urgência na reorganização completa de toda a estrutura da educação infantil, pois o cenário atual fere o direito constitucional das crianças.

É preciso esclarecer de uma vez por todas que a exclusão da obrigatoriedade da educação infantil nos artigos que determinam a obrigatoriedade e gratuidade do ensino, adotando o critério etário (fixado entre quatro e 17 anos), não é suficiente para afastar do Estado o dever de garantir às crianças o acesso à educação e a permanência na escola.

A razão dessa exclusão diz respeito aos pais ou responsáveis, que não são obrigados a matricular os filhos na escola se entenderem e garantirem que essa educação seja oferecida no âmbito familiar. O que não encontra fundamento é usar essa brecha na lei para justificar a ausência do Estado no cumprimento do seu dever de garantir acesso a todas as crianças na educação infantil. Aliás, essa responsabilidade – traduzida no dever de ofertar vagas e fixada em diferentes dispositivos, como visto – não pode ser esquecida pelo Estado, afastando-se toda e qualquer justificativa para frustração desse objetivo.

A descentralização e organização do Estado federativo também não implicam em óbice para o atendimento desses direitos, seja com um sistema nacional de ensino, seja através do PNE; as crianças não podem ter o seu direito negado sob o fundamento de insuficiência de vagas. De nada adianta a previsão no PNE se não se concretizar. É preciso fornecer condições para o efetivo cumprimento das metas estabelecidas e coordenar seu acompanhamento, ou estaremos diante de um engodo, o qual resulta na repetição de metas que não se cumprem.

Ante o descumprimento do dever do Estado referente à oferta de vagas, surge a conclusão devastadora de que cumprir a lei não realiza a justiça. Acreditamos que isso tem relação direta com a quebra dos princípios do ensino no nosso país, quais sejam: princípio da proteção absoluta, que remete à destinação privilegiada de recursos públicos para o atendimento de crianças e adolescentes; o princípio da garantia de acesso e permanência na escola, estabelecendo que todas as crianças tenham direito a uma vaga; e o princípio do padrão de qualidade, que sugere a condição mínima para atendimento das crianças, impedindo a superlotação de creches e estabelecimentos similares.

Todavia, a estrutura da educação infantil no Brasil é deficitária e necessita urgentemente ser revista e ampliada, com construção de novas creches, adequação dos espaços, contratação de professores bem formados e planejamento minucioso, tudo isso no afã de viabilizar a concretização de um sistema que garanta formação adequada para as crianças desse segmento.

Além do acesso a creche, também é preciso assegurar à criança todo o cuidado necessário para a sua formação – que nessa faixa etária exige muita atenção do professor, olhar individualizado, o que seguramente ficaria prejudicado quando um estabelecimento é obrigado por ordem judicial a receber crianças acima de sua capacidade de absorvê-las.

Não é difícil avançar de forma positiva para eliminar o problema da escassez de vagas em creches. Para tanto, é preciso pressionar o Estado por política pública na qual os recursos sejam empregados de maneira eficiente, destinados à construção de novos estabelecimentos que promovam melhores condições para a educação infantil em todo o país.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2016
  • Revisado
    27 Jul 2018
  • Aceito
    16 Mar 2019
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