Acessibilidade / Reportar erro

Por uma pedagogia da esperança e da autonomia na era da cultura digital1 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Lídia Orphão (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br 3 3 Este artigo foi elaborado por meio de recursos proporcionados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Bolsa Produtividade em Pesquisa, proc. 309549/2017-5) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por meio do Programa Institucional de Internacionalização (PrInt) (proc. 88887.465605/2019-00)

For a pedagogy of hope and autonomy in the era of digital culture

Resumo

Os autores deste ensaio bibliográfico dedicam-se a oferecer argumentos para uma reflexão crítica sobre a relação professor (a)-estudante-conhecimento no contexto da cultura digital. Paulo Freire é nosso interlocutor, por meio de suas obras pós-exílio, sobretudo a “Pedagogia da Esperança” e a “Pedagogia da Autonomia”. A “Pedagogia da Esperança” retoma as bases epistemológicas presentes na “Pedagogia do Oprimido, enquanto a “Pedagogia da Autonomia” sintetiza o ato de ensinar em diálogo direto com educadoras e educadores. Concluímos que a relação entre professor (a) e estudantes, em torno do conhecimento, pode ser reconfigurada nos tempos da cultura digital a partir destas contribuições. Não se trata apenas de denúncia, mas também do anúncio: transformar dificuldades em possibilidades.

Palavras-Chave
cultura digital; relação professor-aluno; Paulo Freire; pedagogia da esperança; pedagogia da autonomia

Abstract

This bibliographic essay sought to provide arguments for a critical reflection on the relationship teacher–student–knowledge in the context of digital culture. For that, it will focus on the works of Paulo Freire produced after his exile, especially the “Pedagogy of Hope” and the “Pedagogy of Autonomy.” The first work recovers the epistemological bases present in the “Pedagogy of the Oppressed,” while the second one synthesizes the act of teaching in direct dialogue with educators. These contributions allow the reconfiguration of the relationship established between teacher and students around knowledge in the era of digital culture. Beyond denunciation, it addresses the announcement: turning difficulties into possibilities.

Keywords
digital culture; teacher-student relationship; Paulo Freire; pedagogy of hope; pedagogy of autonomy

Introdução

Há um certo consenso que pode ser observado nas mais variadas definições sobre o período histórico atualmente vivenciado. Nos termos sociedade da informação, sociedade em rede e sociedade da cultura digital, observa-se a presença de um denominador que lhes é comum: o fato de que se trata de um período revolucionário.

Não se pode asseverar que todas as características da revolução microeletrônica foram totalmente identificadas, haja vista o fato de que, da atual relação entre as relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas, derivam-se produtos que revolucionam as relações sociais de uma maneira caracterizada, há bem pouco tempo, apenas em romances de ficção científica. Seguramente, um destes produtos tecnológicos é a chamada internet das coisas (internet of things – IoT), que possibilita um tipo de comunicação entre objetos e entre objetos e pessoas, a ponto de fazer, por exemplo, com que alterações bioquímicas no organismo de um indivíduo propenso a sofrer um ataque cardíaco sejam interpretadas por nanosensores instalados em seu corpo e imediatamente transmitidas ao aparelho celular de um médico (Miorandi et al., 2012Miorandi, D., Sicari, S., De Pellegrini, F., & Chlamtac, I. (2012). Internet of Things: Vision, applications and research challenges. Ad Hoc Networks, 10(7), 1497-1516.). Ora, este mesmo médico, ao receber em seu celular tais informações, as comunica imediatamente ao seu paciente da seguinte forma: “Venha imediatamente para o hospital, pois você sofrerá um infarto a qualquer momento”. Não é fortuita a dificuldade, cada vez mais frequente, de se discernir as linhas fronteiriças entre o que é ou não ficção científica.

São cenas como esta que se tornam cada vez mais corriqueiras nestes tempos das tecnologias da IoT e de reconhecimento facial. Evidentemente, a esfera da educação não poderia ser excluída de tal contexto. Há anos, a China, por exemplo, investe maciçamente recursos na produção de pesquisas de IoT que viabilizem a chamada comunicação ubíqua entre objetos e entre objetos e seres humanos, inclusive em ambientes escolares (Gómez et al., 2013Gómez, J., Huete, J. F., Hoyos, O., Perez, L., & Grigori, D. (2013). Interaction system based on Internet of Things as support for education. Procedia Computer Science, 21, 132-139.; Koo, 2015Koo, S. G. M. (2015). An integrated curriculum for Internet of Things: experience and evolution [Artigo apresentado]. Frontiers in Education Conference, Massachusetts, Washington, DC.; Ning & Hu, 2012Ning, H., & Hu, S. (2012). Technology classification, industry and education for future: Internet of things. International Journal of Communication Systems, 25, 1230-1241.; Zhang, 2012Zhang, T. (2012). The Internet of Things promoting higher education revolution [Artigo apresentado]. Fourth International Conference on Multimedia Information Networking and Security, Washington, DC, United States.). Já em relação à tecnologia de reconhecimento facial, é possível instalar, em salas de aula, câmeras cujos softwares são capazes de identificar e classificar algoritmicamente os comportamentos dos alunos e alunas, de tal modo que tais julgamentos apareçam simultaneamente nos computadores dos professores e professoras presentes nestas mesmas salas de aula, e também nos celulares dos pais (Sutherland, 2008Sutherland, J. (2008). Directive decision devices: Reversing the locus of authority in human-computer associations. Technological Forecasting & Social Change, 75(1), 1068-1089.).

Diante do desenvolvimento tecnológico, proveniente da revolução microeletrônica, tornam-se cada vez mais notórias as transformações radicais nas relações desenvolvidas também na esfera educacional, o que demanda a necessidade de se repensar quais seriam as implicações ético-morais, afetivas, cognitivas, culturais e políticas consubstanciadas ao atual contexto da comunicação ubíqua.

Desta forma, pretende-se argumentar que os modos como Paulo Freire reencontrou as bases epistemológicas presentes na Pedagogia do oprimido, na sua obra não por acaso intitulada: Pedagogia da esperança, e a forma como ponderou, na Pedagogia da autonomia, sua última obra em vida, sobre as relações entre os agentes educacionais no ato de ensinar e aprender, produzem conceitos relevantes para que se possa refletir sobre como elementos fundamentais do processo educacional-formativo, tal como a relação entre professor(a), estudantes e conhecimento, são, por assim dizer, reconfigurados nos tempos da cultura digital.

Dito de outra maneira: para que se possa refletir criticamente sobre as metamorfoses presentes na dimensão educacional, notadamente no modo como na cultura digital se desenvolve a relação professor(a)-estudante-conhecimento, há que se considerar a maneira como Paulo Freire revitaliza, na Pedagogia da esperança e na Pedagogia da autonomia, sobretudo a categoria educação bancária e outras, tais como: hospedagem do opressor, educação bancária, ideologia autoritária, relação dialógica entre professor(a) e estudante, saberes de experiências feitas, autonegação, relação oprimido(a) – opressor(a), sonho, utopia, dimensões ética e estética da relação professor(a) e estudante, inédito viável, respeito e testemunho de si diante dos(das) estudantes, crítica da pretensão da neutralidade do processo de ensino e aprendizagem, a superação do senso comum, autoridade do(da) professor(a), diretividade do(da) professor(a), crítica ao machismo e ao racismo, entre outros conceitos. Tomemos alguns dos conceitos e preceitos trazidos na Pedagogia da esperança e na Pedagogia da autonomia para o diálogo que desejamos desenvolver.

Da educação bancária à pedagogia da esperança

Um dos principais conceitos elaborados por Freire tanto na Pedagogia do oprimido, quanto na Pedagogia da esperança, é o da chamada educação bancária, que foi assim definida por Freire na Pedagogia do oprimido:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fixadores das coisas que arquivam.… Educadores e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão de educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.

(Freire, 1978Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra., p. 66)

No lugar da busca conjunta e inquieta pelas causas históricas, por meio das quais os objetos estudados foram produzidos, realiza-se a transmissão bancária de informações de cima para baixo, por assim dizer. Os objetos de estudo são apresentados aos educandos(as) como se fossem absolutos propícios a serem classificados e fixados mnemonicamente de acordo com a constatação definitiva de que: “É assim que tem de ser”. De fato, as raízes positivistas da educação bancária tornam-se patentes, sobretudo pela sua característica de se fundamentar numa perspectiva de educação que desconsidera a relação entre o desenvolvimento cognitivo e os contextos sociais que o originaram e que o atualizam (Gómez, 2008Gómez, J., Huete, J. F., Hoyos, O., Perez, L., & Grigori, D. (2013). Interaction system based on Internet of Things as support for education. Procedia Computer Science, 21, 132-139.; Wolf, 2016Wolf, M. Paulo Freire und die Kritische Theorie. (2016). [Tese de doutorado, Universität Heidelberg]. Arquivo da Universität Heidelberg. https://archiv.ub.uni-heidelberg.de/volltextserver/23682/
https://archiv.ub.uni-heidelberg.de/voll...
).

Em vez de comunicar-se com os alunos e alunas, o que implicaria em testemunhar corajosamente a própria escolha no ato de ensinar determinado conteúdo, de modo que o(a) estudante se sentisse estimulado(a) a reelaborar sua cognoscitividade em relação ao objeto mutuamente estudado, o educador(a) como que deposita tal conteúdo que deverá ser recebido, mecanicamente memorizado e arquivado pelo estudante. Ao proceder desta forma, o(a) educador(a) também se arquiva, haja vista que não se sente incitado a rever suas próprias considerações sobre tal objeto.

É interessante salientar a definição feita por Freire sobre o que os(as) estudantes submetidos a um sistema de educação bancária são convertidos: meras incidências, ou seja, simples ocorrências. A fixação de conteúdos mecanicamente memorizados os transmuda em participantes supérfluos no transcorrer do processo de ensino e aprendizagem. Trata-se de uma fixação de conteúdo que não fixa e, portanto, não consolida a identidade do educando(a) como significador(a) crítico(a), e sim como alguém que pode ser caracterizado como desesperançado(a) e submisso(a). Exatamente a desesperança e submissão tendencialmente podem fazer com que o(a) estudante desenvolva ressentimento em relação ao professor(a) que se aferra aos princípios da educação bancária, de tal maneira que este ressentir se metamorfoseia, com o tempo, em ódio ao professor(a). E quando este ódio não pode ser expresso, muitas vezes por medo de sofrer alguma retaliação, então se consolida um térreo fértil para vicejar o que Paulo Freire denominou como hospedagem do opressor: o estudante poderia concluir que, se internalizasse em silêncio a opressão, futuramente teria a oportunidade de manifestá-la quando se tornasse um professor(a) – opressor(a) inclinado(a) às práticas da educação bancária.

Não se pode deduzir que o(a) estudante transformado em objeto de educação bancária inevitavelmente hospedará o professor(a)-opressor(a) dentro de si, como se fosse uma relação de causa e efeito, pois são muitas as nuances cognitivo-emocionais presentes em tais relações. Contudo, pode-se identificar a propensão de que ocorra tal processo de internalização, pois a dessensibilização, decorrente do fato do(a) estudante se tornar submisso e desesperançado(a), pode fazer com que se desenvolvam o ressentimento e o ódio em relação ao professor(a), o mesmo professor(a) que passa a ser gradativamente hospedado como agressor(a) pelo corpo discente que poderá futuramente reproduzir a condição de opressão no papel de novo agressor. Da mesma forma, a educação bancária de metodologia positivista, que desconsidera o fato do desenvolvimento cognitivo depender das condições contextuais que o produzem, também tende a propalar estereótipos sexistas, sobretudo quando atitudes discriminatórias são reforçadas por um tipo de currículo cujas premissas androcêntricas são depositadas ao alunado na forma de valores eternos (Gomez, 2008Gomez, J. (2008). El amor em la sociedade del riesgo: Una tentativa educativa. El Roure, 2008.). Contrapondo-se à educação bancária, na Pedagogia da esperança, Freire assim se põe:

Ensinar e aprender são assim momentos de um processo maior – o de conhecer, que implica em re-conhecer. No fundo, o que eu quero dizer é que o educando se torna realmente educando quando e na medida em que conhece, ou vai conhecendo os conteúdos cognoscíveis, e não na medida e em que o educador vai depositando nele a descrição de objetos, ou dos conteúdos.

(Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra., p. 47)

No transcorrer deste mesmo processo, o educador(a) também se reconhece diante da maneira pela qual os educandos(as) apresentam suas considerações críticas sobre o conteúdo estudado. Consequentemente, “ao ensinar, o professor ou professora reconhece o objeto já conhecido. Em outras palavras, refaz sua cognoscitividade na cognoscitividade dos educandos” (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra., p. 81). E quando o(a) educador(a) se comporta desta forma, são geradas condições para que também potencialmente se consolide a esperança de que o indivíduo submisso se emancipe de sua condição de ser menos, por meio de um processo formador de cognoscitividades mutuamente elaboradas.

O modo como Paulo Freire recupera e critica as principais características da educação bancária na sua Pedagogia da esperança remete o raciocínio para a análise da atualidade do processo de memorização de conteúdos, sobretudo na sociedade da cultura digital que fomenta a produção de novas formas de esquecimento, na medida em que se torna possível lembrar-se de tudo. Evidentemente, a memorização de conteúdos sempre foi considerada como um elemento de fundamental importância durante as etapas dos processos de ensino e aprendizagem.

Na leitura dos compêndios de história da educação e das práticas pedagógicas, notabilizaram-se os empregos dos mais variados procedimentos didáticos capazes de recrudescer a capacidade mnemônica dos(das) estudantes em relação aos conteúdos aprendidos nas salas de aula. Para que este objetivo fosse alcançado, tornaram-se comuns os exercícios de práticas de violências físicas e/ou psicológicas nos corpos e mentes dos alunos e alunas.

Contudo, se a memorização dos conteúdos estudados nas salas de aula foi, em muitas ocasiões, historicamente obtida por meio da utilização de objetos que mesclavam o sofrimento físico com a humilhação psíquica, tal como no caso das palmatórias, não se pode desconsiderar o fato de que a memorização destes mesmos conteúdos também foi possível por meio do incentivo à participação ativa dos(das) educandos(das) na ressignificação tanto de sua cognoscitividade, quanto da do educador(a). Ou seja, se o educador(a) considerasse o(a) estudante como participante ativo no processo de reelaboração cognitiva e afetiva do objeto estudado, então haveria condições propícias para que fosse revigorado o significado etimológico da palavra: decorar, ou seja, guardar algo no coração.

Se, bem como alertou Freire na Pedagogia da esperança (1997), o saber só existe na invenção, na reinvenção, na busca inquieta pelas respostas das perguntas reciprocamente feitas pelos educadores(as) e educandos(as), isto ocorre porque tal procura também se sustenta numa relação respeitosamente afetuosa entre tais agentes educacionais.

Mas como se pode pensar o fortalecimento deste vínculo entre o desenvolvimento das capacidades mnemônica, cognitiva, afetiva e a autodisciplina necessárias para que se desenvolva o processo de ensino e aprendizagem, na sociedade em que a faculdade da concentração se arrefece cada vez mais, tamanho o bombardeamento constante de estímulos audiovisuais? Voltaremos a esta questão mais adiante, após nossa incursão em considerações de Freire sobre a educação bancária na Pedagogia da autonomia.

Da educação bancária à pedagogia da autonomia

Na Pedagogia da autonomia, os conceitos são sintetizados em assertivas sobre o ato de ensinar, e, portanto, sobre a relação entre educadores(as) e estudantes, em torno do ato de conhecer. Os subtítulos dos três capítulos desta obra são bastante reveladores do diálogo que Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra. busca estabelecer com educadores e educadoras e que nos servem para desenvolver uma reflexão crítica sobre a educação em tempos de cultura digital. No primeiro capítulo, “Não há docência sem discência”, ele afirma que ensinar exige: rigorosidade metódica; pesquisa; respeito aos saberes dos educandos(as); criticidade; estética e ética; corporificação das palavras pelo exemplo; risco, aceitação do novo e rejeição de qualquer forma de discriminação; reflexão crítica sobre a prática; reconhecimento e assunção da identidade cultural.

No segundo capítulo, “Ensinar não é transferir conhecimento”, ressalta que ensinar exige: consciência do inacabamento; reconhecimento de ser condicionado; respeito à autonomia do ser do educando; bom senso; humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos(as) educadores(as); apreensão da realidade; alegria e esperança; convicção de que a mudança é possível. Exige-se curiosidade presente nos atos de ensinar e aprender. No terceiro capítulo, “Ensinar é uma especificidade humana”, Freire então enfatiza que ensinar exige: segurança, competência profissional e generosidade; comprometimento; compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo; que exige liberdade e autoridade; tomada consciente de decisões; saber escutar; reconhecer que a educação é ideológica; que exige disponibilidade para o diálogo e, por fim, querer bem aos estudantes. O tema da ética universal do ser humano articula os capítulos e suas subseções da Pedagogia da autonomia. Apresentando-o como um livro esperançoso, Freire (2007)Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra. afirma o humano como uma presença consciente no mundo e, portanto, responsável por seu movimento neste mundo; reconhece condicionantes genéticos, culturais e sociais a que estamos submetidos, mas destaca que somos condicionados, e não determinados. Podemos ou não ser éticos, exatamente por sermos condicionados, mas não determinados. Porém, ele assevera que, na prática educativa, há de se ter dever de ser ético:

É que me acho absolutamente convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana. É que, por outro lado, nos achamos, ao nível do mundo e não apenas do Brasil, de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética de mercado, que me parece ser pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, com sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade, mas não é uma virtude. Não podemos aceitá-la.

(Freire, 2007, p. 17)

Da educação bancária, descrita na Pedagogia do oprimido e retomada na Pedagogia da esperança, Freire (2007)Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra. sintetiza sua crítica a ela no capítulo II da Pedagogia da autonomia, sob o mote de que “… ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (p. 47). Assim, traz para leitores e leitoras a necessidade de quem ensina, de quem educa, considerar de partida o(a) educando(a) como cognoscente, sujeito de história própria, capaz de comunicação, no mundo e com os(as) outros(as). Reconhecer essa condição do ser dos(as) educandos(as) significa reconhecê-los(as) como gente, portanto, da mesma natureza que educadores(as). Além disto, entender que o conhecimento, desdobrado em objetos cognoscíveis, ou seja, passíveis de análise e compreensão humana, devam ser compreendidos como criação humana, em contexto, portanto, possíveis de serem analisados, criticados, recriados e produzidos.

Freire exemplifica seus argumentos referindo-se ao uso de conjunções na maneira de uma pessoa expressar seu pensamento, de fazer seus argumentos: o uso é que dá o sentido de seu pensamento, e ao analisá-lo desvela-se esse sentido – por vezes, por trás de um aparente elogio expressa-se, na verdade, racismo, sexismo, classismo4 4 A conjunção da frase: Maria é negra, mas bondosa e competente (Freire, 1996, p. 133) reafirma o preconceito de que negros não podem ser assim identificados, a não ser em algumas exceções, tal como no caso de Maria. ; ou, em outras situações, expressa-se uma relação de compromisso; ou, ainda, uma visão de transformação e não de congelamento da realidade.

Como nos demais capítulos do livro, Freire (2007) afirma que há um pensar certo sobre a educação, sobre o conhecimento e sobre a construção da autonomia de estudantes na relação educador(a)-educandos(as)-conhecimento. A responsabilidade de educadoras(es) sobre o domínio do conhecimento, e a disposição em escutar os(as) estudantes em sua forma de pensar sobre o conhecimento unem-se ao rigor metódico: “O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das fórmulas preestabelecidas, mas seria a negação do pensar certo se pretendêssemos forjá-lo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo. Sem rigorosidade metódica não há pensar certo” (Freire, 2007, p. 49).

A consciência do inacabamento e a do condicionamento, que o educador pernambucano trata na Pedagogia da esperança como responsáveis, respectivamente, pela curiosidade humana e pelo desejo de transformação, são retomadas na Pedagogia da autonomia para reafirmar a ideia de que sabemos coisas, mas não sabemos tudo, e que o humano, ao intervir no suporte, criou o mundo, e, portanto, pode transformá-lo – não de maneira voluntariosa, mas de maneira eticamente comprometida. Assim, o futuro, a história, não é um dado-dado, mas uma possibilidade pela qual se tem de lutar. O inacabamento é que torna possível a aprendizagem. O condicionamento forja a leitura de mundo possível de ser ampliada, transformada e superada pela prática dialógica.

Chega-se, então, ao que entendemos ser o coração da Pedagogia da autonomia: “Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando”:

… o professor autoritário que, por isso mesmo, afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto, tanto quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano – a de sua inconclusão assumida em que se enraíza a sua eticidade. É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência.

(Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 60)

Diante das observações críticas de Freire, presentes em sua Pedagogia da autonomia, aflora a seguinte questão: De que modo a eticidade, vigente na relação presencial professor(a)-estudante-conhecimento, poderia ser revitalizada na sociedade na qual a digitalização das relações humanas se espraia para praticamente todas as esferas do mundo da vida? Também esta questão será respondida a partir do próximo tópico deste artigo.

A cultura digital e a esperança pedagógica de outra relação professor(a) - estudantes em torno do ato de conhecer

De acordo com o raciocínio desenvolvido por Paulo Freire, o mero acesso à informação não significa produção imediata de conhecimento. Entretanto, não há como desabonar o fato de que o acesso contínuo a qualquer tipo de informação, a qualquer momento, também suscita transformações profundas não somente em relação ao acesso, como também quanto à produção e difusão do conhecimento. Assim, “divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado” (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 33). É por isso que se faz necessária a lembrança do seguinte pensamento de Herbert Marcuse, cujas considerações sobre a técnica como produção histórica humana foram também prezadas por Freire:

A técnica impede o desenvolvimento individual apenas quando está presa a um aparato social que perpetua a escassez, e esse mesmo aparato liberou forças que podem aniquilar a forma histórica particular em que a técnica é utilizada. Por esse motivo, todos os programas de caráter antitecnológico, toda a propaganda a favor de uma revolução antiindustrial servem apenas àqueles que vêem as necessidades humanas como subproduto da técnica. Os inimigos da técnica rapidamente se aliam à tecnocracia terrorista.

(Marcuse, 1999Marcuse, H. (1999). Tecnologia, guerra e fascismo (Maria Cristina Vidal Borba, Trad.). Editora Unesp., p. 101)

Consequentemente, considerar a técnica como produção histórica compele o(a) educador(a) crítico(a) a sopesar a respeito de seu atual duplo caráter da seguinte maneira: por um lado, na sociedade onde predomina a chamada memória digital, que permite fazer com que nada seja olvidado, novas formas de esquecimento são efetuadas quando as informações sobre qualquer indivíduo são arquivadas, acessadas e apartadas do contexto histórico no qual foram engendradas. Em vista disto, os indivíduos podem ser hodiernamente julgados por atos cometidos há anos, pois são desdenhadas as relações entre tais atos e os momentos históricos nos quais foram realizados, de tal maneira que se produz uma situação conveniente para a composição de rótulos, estereótipos e julgamentos preconceituosos. A recuperação do nexo espaço-temporal se faz necessária para que não sejam cometidas injustiças quanto às avaliações de comportamento, bem como atribuições equivocadas das responsabilidades dos atos cometidos.

A fragmentação, decorrente da ruptura do nexo espaço-temporal das informações fazem com que elas passem a ser consideradas como verdadeiras em si, independentemente dos contextos históricos em que foram produzidas. Exatamente esta fragmentação fomenta o aparecimento de julgamentos categóricos que podem fazer com que os rótulos sejam implacavelmente atribuídos às pessoas, engendrando-se situações convenientes para a produção e reprodução de atitudes preconceituosas. Justamente neste sentido se renova, na cultura digital, o conceito de educação bancária, pois quando as informações são depositadas desta forma, educadores(as) e educandos(as) se arquivam acriticamente, pois não se estimulam a fazer com que ocorra a reflexão sobre a relação entre as informações e o contexto histórico no qual elas foram constituídas.

Por outro lado, este mesmo arquivamento de informações pode proporcionar a renovação da reflexão crítica quando educadores(as) e educandos(as), ao se arquivarem, compartilham, no transcorrer da troca de considerações sobre determinado objeto, suas respectivas ressignificações, suas cognoscitividades. Neste sentido, os conteúdos postados nas próprias plataformas digitais fomentam a discussão e a elaboração crítica conjunta das informações que, ao serem relacionadas entre si, podem se metamorfosear em conceitos cientificamente comprovados. Ou seja, as postagens sobre certos assuntos seriam, necessariamente, referenciadas por resultados de pesquisas já publicados e comprovados, de tal modo que esta tecnologia de memória aumentada proporcionaria o incremento de reflexões e práticas científicas mutuamente compartilhadas em escala global (Barthel, 2013Barthel, R., Leder Mackley, K., Hudson-Smith, A., Karpovich, A., de Jode, M., & Speed, C. (2013). An internet of old things as an augmented memory system. Personal and Ubiquitous Computing, 17(2), 321-333. https://doi.org/10.1007/s00779-011-0496-8
https://doi.org/10.1007/s00779-011-0496-...
). De acordo com esta perspectiva de análise, a produção coletiva de dados postados nos arquivos virtuais poderia redimensionar o próprio conceito de produção acadêmica. Ao considerar o arquivo virtual não como um lugar específico, Featherstone, no texto: “Archiving cultures”, assim o reflete como um tipo de espaço que expande as possibilidades retóricas e estiliza a vida pública virtual da seguinte forma:

Se o ato de escrever cada vez mais se torna uma rede dinâmica de símbolos visuais e verbais, então a mescla hiper ou multimídia, resultante de informações alfabéticas, icônicas e acústicas, auxiliará a concretizar não apenas um dos mais longevos sonhos das artes visuais relativo à intercambialidade de formas por meio da digitalização, como também alterará a natureza da produção e da recepção acadêmica e intelectual; algo que terá um amplo alcance de implicações para o futuro da universidade. Desta forma, como arquivar tais produções textuais de hipermídia torna-se uma questão candente. Por meio de seu nível maior de transitividade e interatividade, estas produções fazem com que o texto eletrônico assuma algo do dinamismo do texto oral e ameaçam abolir a autoridade da edição fixa.

(Featherstone, 2000Featherstone, M. (2000). Archiving cultures. British Journal of Sociology, 51(1), 161-184. https://doi.org/10.1111/j.1468-4446.2000.00161.x
https://doi.org/10.1111/j.1468-4446.2000...
, pp. 176-177)

Justamente esta consideração sobre como arquivar as produções textuais de hipermídia é renovada nos tempos da pandemia da COVID-19, sobretudo de pensarmos sobre como os arquivamentos afeitos às práticas de ensino remoto emergencial proporcionaram transformações profundas nas interações e ações realizadas entre professores(as) e estudantes. Ao considerarmos estas reflexões sobre o sentido do ato de escrever na cultura digital, é chegado o momento de responder a primeira questão deste artigo anteriormente exposta: “como pensar o fortalecimento do vínculo entre o desenvolvimento das capacidades mnemônica, cognitiva, afetiva e a autodisciplina necessárias para que se desenvolva o processo de ensino e aprendizagem, na sociedade na qual a faculdade da concentração se arrefece cada vez mais, tamanho o bombardeamento constante de estímulos audiovisuais?”

Na sociedade da cultura digital, o significado da expressão: arquivar-se não precisa ser exclusivamente associado com a denominada educação bancária, que se trata de uma fixação mnemônica de conteúdo que não fixa e que solapa as bases da relação professor(a)-estudante-conhecimento. Arquivar-se pode também se atrelar ao sentido de uma prática coletiva de coleta, classificação e intepretação de símbolos visuais e verbais que são relacionados entre si, desencadeando, assim, a produção de novos conhecimentos (Beer & Burrows, 2013Beer, D., & Burrows, R. (2013). Popular culture, digital archives and the new social life of data. Theory, Culture & Society, 30(4), 47-71. https://doi.org/10.1177/0263276413476542
https://doi.org/10.1177/0263276413476542...
). Evidentemente, as transformações advindas de tal processo ubíquo de digitalização não se restringem ao círculo da produção acadêmica, pois elas também se fazem presentes na maneira como a própria relação entre professor(a) e estudante radicalmente se modifica em todos os níveis de ensino. Mais uma vez, a forma como Paulo Freire refletiu sobre as características de tal relação possibilita fazer com que sejam produzidos insights sobre quais seriam as idiossincrasias de tal vínculo nos tempos da cultura digital. Afinal, não se pode apartar o desenvolvimento tecnológico de sua dimensão ético-política, sendo que esta relação foi observada por Freire da seguinte forma:

O progresso científico e tecnológico que não corresponde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior.

(Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 130)

Não foi fortuita a preocupação de Paulo Freire, em seu último livro, de destacar a relevância de se pensar o desenvolvimento tecnológico não como um fim em si mesmo, mas sim como meio portentoso para a promoção de uma existência humana digna. Para tanto, tornar-se-ia fulcral a necessidade de que a troca incessante de informações, viabilizada pelo acesso cada vez mais constante à televisão, facultasse o incremento de debates contínuos sobre tais informações: “O mundo encurta, o tempo se dilui, o ontem vira agora. Debater o que se diz e o que se mostra na televisão me parece algo cada vez mais importante” (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 139). Estas palavras foram ditas no final da década de 1990. Já no atual tempo da computação ubíqua e da proliferação incessante de fake news, elas adquirem um vulto agigantado, haja vista o fato de que, em tempos pandêmicos, a postagem e repostagem de tais notícias falsas podem condicionar a possibilidade de se viver ou morrer. Diante deste quadro de bombardeamento praticamente ininterrupto de estímulos audiovisuais, o ato de concentrar-se no debate e na recuperação do nexo espaço-temporal das informações digitalmente obtidas se transforma em algo decisivo não só para o fortalecimento do pensamento conceitual, como também de uma prática ético-política que renova criticamente a relação professor(a)-estudante-conhecimento.

Seguindo esta linha de raciocínio, nos diálogos estabelecidos com o educador estadunidense Ira Shor, Freire enfatizou a importância do professor(a) compreender o contexto social no qual se insere como condição de desenvolver as bases teórico-metodológicas do que ele definiu como educação libertadora: “A educação libertadora é, fundamentalmente, uma situação na qual tanto os professores, como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes”. (Freire, 1987Freire, P., & Shor, I. (1987). Medo e ousadia: O cotidiano do professor. Paz e Terra., p. 46)

A ênfase na palavra: ‘tanto’ não foi aleatória, pois ela expressa a perspectiva de Freire de que os(as) professores(as) devam se ressignificar, na medida em que interagem com seus alunos na análise de um objeto de estudo. Justamente esta ressignificação identitária adquire contornos inauditos na sociedade da atual comunicação e compartilhamento de informações feitas em tempo real e praticamente sem fronteiras espaciotemporais. Historicamente, pode-se asseverar que, antes da chamada revolução microeletrônica, prevaleceu a situação na qual o professor(a), de certa maneira, se responsabilizava pelo controle do acesso às informações que seriam apresentadas aos(às) estudantes durante as atividades do cotidiano escolar.

A título de ilustração, embora Herbart (1776-1841) e Rousseau (1712-1778) fossem identificados, respectivamente, como dois dos principais nomes das denominadas pedagogias humanistas tradicional e moderna, ambos caracterizaram a figura do educador(a) como imprescindível para que os(as) estudantes internalizassem a disciplina necessária que os capacitaria a focar a atenção nos conteúdos apresentados pelos educadores(as). Por mais que seus respectivos procedimentos didáticos fossem divergentes, ambos os pensadores acentuaram em seus escritos que o educador(a) representaria uma figura de autoridade cujo domínio dos conteúdos estudados fomentaria nos(as) estudantes o desejo de que chegaria o dia em que fariam o mesmo, de tal forma que, em alguns casos, tornar-se-iam também educadores(as) num futuro não tão distante.

A admiração dos(as) estudantes em relação ao domínio dos conteúdos e da entrega do professor(a), presente no ato de ensinar, tenderia a encorajar a atitude de que valeria a pena desenvolver os tirocínios físico e mental indispensáveis para que se concentrassem no aprendizado do que fora apresentado nas salas de aula. Evidentemente, este processo de aprendizagem não pode ser definido como uma espécie de rua de mão única, pois também os professores(as) se ressignificam mediante o decorrer dos diálogos e das intervenções apresentadas pelo corpo discente, tal como foi dito anteriormente.

Ao debater com Ira Shor sobre a relevância do professor(a) ser identificado e se identificar como figura de autoridade, Paulo Freire ressaltou a diferença entre os sentidos de autoridade e autoritarismo: “A questão para mim, no entanto, é que a autoridade saiba que seu fundamento está na liberdade dos outros; e se a autoridade nega essa liberdade e corta essa relação que a embasa, então creio que já não é mais autoridade e se tornou autoritarismo” (Freire, 1987Freire, P., & Shor, I. (1987). Medo e ousadia: O cotidiano do professor. Paz e Terra., p. 115). Neste mesmo livro, Paulo Freire reitera o tema da autoridade do professor(a) ao refletir sobre uma suposta relação de igualdade absoluta entre os agentes educacionais: “o educador continua sendo diferente dos alunos, mas – e esta é, para mim, a questão central – a diferença entre eles, se o professor é democrático, se seu sonho político é de libertação, é que ele não pode permitir que a diferença necessária entre o professor e os alunos se torne ‘antagônica’” (1987, p. 117). Na leitura desta citação, destacam-se as aspas da palavra: antagônica. Provavelmente, Freire optou por grafá-la desta forma com o escopo de realçar o fato de que ser professor(a) não implica que sua afirmação como tal, diante dos alunos, necessariamente tenha que se pautar numa relação destituída do respeito amorosamente mútuo. Pelo contrário, numa linguagem habermasiana muito próxima ao pensamento de Freire, o reconhecimento dos(as) estudantes da autoridade do professor(a) não deve ser balizado pela imposição arbitrária de uma opinião.

Na verdade, de acordo com Habermas: “Em contextos de ação comunicativa, só se pode ser considerada imputável a pessoa que, como participante de uma comunidade de comunicação, seja capaz de orientar seu agir segundo pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas” (Habermas, 2019Habermas, J. (2019). Teoria do agir comunicativo: Racionalidade de ação e racionalização social. WMF Martins Fontes., p. 43). Para que as pretensões de validade do professor(a) possam ser intersubjetivamente reconhecidas é preciso prevalecer uma relação respeitosa, por meio da qual os agentes educacionais sejam capazes de efetivamente se comunicar, de reciprocamente respeitarem os respectivos tempos das falas e das escutas e de fazê-lo com pretensão de validade, ou seja, contemplando verdade, retitude e veracidade em seu diálogo.

Exatamente esta relação respeitosa, fundamentada também no professor(a) que decide testemunhar suas escolhas perante o corpo discente, permite fazer com que o professor(a) torne-se consciente de que as bases de uma relação dialógica com os(as) estudantes sejam alicerçadas no respeito às suas intervenções, as quais são, em muitas ocasiões, divergentes das opções manifestadas pelo corpo docente. Portanto, ser diretivo não significa inevitavelmente ser autoritário. No entanto, Freire pontuou em sua Pedagogia da esperança, que a diretividade docente pode sucumbir ao autoritarismo da seguinte maneira: “No momento, porém, em que a diretividade do educador ou da educadora interfere na capacidade criadora, formuladora, indagadora do educando, de forma restritiva, então a diretividade necessária se converte em manipulação, em autoritarismo”. (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra., p. 79)

Ou seja, no desenrolar do ato de ensinar, é preciso estar ciente, e também sentir, a premência de não se atrelar ao anseio de ser professoral no sentido de ser o senhor(a) da verdade; de não solapar as atitudes indagadoras e criativas dos educandos(as), de modo a abrir o espírito para que também se aprenda, na medida em que os alunos e alunas se sintam encorajados(as) a testemunhar suas escolhas desprovidos de quaisquer indícios de soberba intelectual. Exatamente neste ponto situa-se a resposta da segunda questão feita no final do tópico deste artigo sobre a concepção de educação bancária na Pedagogia da autonomia, a saber: de que modo a eticidade, vigente na relação presencial professor(a)-estudante-conhecimento, poderia ser revitalizada na sociedade na qual a digitalização das relações humanas se espraia para praticamente todas as esferas do mundo da vida? A reposta desta questão açula a reflexão sobre a possibilidade da eticidade também se expressar em ambientes no quais a relação professor(a) – estudante-conhecimento se realize em ambientes educacionais a distância. O fato de que em toda comunicação secundária, mediada pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, está presente o anseio de que a comunicação primária presencial se concretize não dirime a possibilidade de que a relação entre a formação moral do estudante e a própria experiência educativa ocorra a distância, de tal maneira que esta experiência deixa de ser exclusivamente treinamento técnico. De acordo com Paulo Freire:

… transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substancialmente formar.

(Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 33)

Desta forma, o que realmente importa é a possibilidade de que professores(as) e estudantes testemunhem a si próprios também no ambiente virtual. O professor(a) que, mesmo a distância, virtualmente se torna presente, por meio da sua conduta de efetivamente dialogar com os(as) estudantes, ressignifica o sentido libertário do corporificar-se na cultura digital, que foi assim expresso por Freire: “Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo” (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 34)

Propriamente esta reflexão de Freire sobre a relação entre diretividade, liberdade e relação dialógica possibilita ponderar sobre a revitalização destes conceitos no contexto da cultura digital, principalmente a respeito do papel do(da) professor(a) quanto ao processo de sensibilização que permita fazer com que a formação moral seja um elemento constante no processo formativo. Consequentemente, surgem duas outras questões: 1) De que forma o professor(a) pode exercer sua diretividade não restritiva, na sociedade em que quaisquer informações podem ser acessadas em quaisquer momentos e lugares?; 2) Como o(a) professor(a) poderia se ressignificar como autoridade admirada pelos alunos e alunas, uma vez que atualmente parece prevalecer, em certas ocasiões, a percepção de que o professor(a) e o ambiente escolar não são mais imprescindíveis, haja vista a defesa intransigente do chamado homeschooling?

Quanto à primeira questão, é interessante salientar a presença, em muitas situações, de um gap, de um hiato geracional no que diz respeito ao uso das mídias digitais. Por exemplo, um indivíduo com mais idade pode considerar como desrespeitosa a atitude do adolescente de digitar e enviar mensagens de texto com seus celulares enquanto ambos conversam. Já o mesmo adolescente, amparado pela justificativa de que se trata de uma opção pessoal, pode conceber seu comportamento multitarefa como absolutamente adequado, pois avalia ser capaz de realizar, com a mesma competência, várias tarefas ao mesmo tempo (Clark, 2011Clark, L. S. (2011). Digital media and the generation gap. Information, Communication & Society, 12(3), 388-407. https://doi.org/10.1080/13691180902823845
https://doi.org/10.1080/1369118090282384...
). Decerto que a figura do professor(a) não poderia ser apartada deste tipo de conflito.

Frente a este quadro, é interessante mencionar a pesquisa feita por Chen, cujos dados foram publicados no artigo de instigante título: “Por que os(as) professores(as) não praticam aquilo que acreditam quanto à integração tecnológica”. Ao entrevistar professores e professoras tailandesas, Chen observou a presença da seguinte contradição: a dificuldade dos educadores(as) em lidar com a utilização das tecnologias digitais, principalmente os celulares, em suas atividades de ensino, embora a maior parte reconhecesse a importância do emprego de tais tecnologias nos ambientes escolares. Ou seja, eles e elas têm consciência de que muitas benesses pedagógicas poderiam ser obtidas por meio do uso de celulares, computadores, tablets etc., mas, na sua maioria, resistem em proceder desta forma (Chen, 2010Chen, C. H. (2010). Why do teachers not practice what they believe regarding technology integration? The Journal of Education Research, 102(1), 65-75. https://doi.org/10.3200/JOER.102.1.65-75
https://doi.org/10.3200/JOER.102.1.65-75...
).

As explicações das razões de tal resistência poderiam ser delimitadas às dificuldades operacionais concernentes ao manuseio de tais aparelhos. Contudo, talvez esta explicação não seja a única possível, mas sim a constatação de que, se procedessem desta forma, poderia ser inaugurada uma relação dialógica com os alunos e alunas que abalaria os alicerces da forma como o corpo discente identificaria o professor(a) como figura de autoridade. Pois, como o professor(a) poderia assumir publicamente suas dificuldades de manuseio e compreensão dos recursos das tecnologias digitais de informação e comunicação e, ainda assim, continuar a ser identificado como uma autoridade educacional pelos estudantes? Sendo assim, haveria o receio de que a sinceridade de sua autoanálise, afeita à própria relação dialógica, modificasse radicalmente os vetores do sentido de autoridade educacional que prevaleceu até o advento da revolução microeletrônica. Daí a predisposição destes professores e professoras de se aferrarem ao sentido vertical desta relação, de tal maneira que fariam o possível para conservar a antiga ordem intelectual hierárquica verticalizada que historicamente prevaleceu nas suas relações com alunos e alunas. Ao procederem desta forma, comportam-se na contramão do denominado giro dialógico (Flecha et al., 2001Flecha, R.; Gómez, J., & Puigvert. L. (2001). Teoría sociológica contemporánea. Paidós.), fundamentado nas presenças do diálogo, da reflexão e no compartilhamento das tomadas de decisões. Com efeito, os professores(as) “não representam mais a autoridade incondicional que representavam há algumas décadas, e as crianças e os jovens, enquanto estudantes também querem ter poder decisório, não aceitando tudo o que a professora ou o professor lhes diz” (Mello et al., 2020Mello, R. R, Braga, F. M., & Gabassa, V. (2020). Comunidade de aprendizagem: Outra escola é possível. EDUFSCar., p. 39).

Na verdade, a impossibilidade de se conservar o vetor vertical da ordem intelectual hierárquica entre professores(as) e estudantes – vetor este representado pela educação bancária pautada na transmissão de informações depositadas por professores(as) do alto de seus pedestais – pertence a um espírito objetivo de um tempo, a uma cultura, que impulsiona para o estabelecimento de uma relação dialógica entre os agentes educacionais esteada num outro tipo de vetor quanto ao trato com estudantes: o da diretividade horizontal. Ou seja, a tomada de posição do professor(a), que expõe diretamente suas escolhas a respeito do mundo da vida diante dos(das) estudantes, é feita de uma tal maneira que ele ou ela reconheçam que os conteúdos, referentes ao estudo de um determinado objeto, não são de sua exclusiva propriedade, mas sim devem ser compartilhados com os estudantes, os quais também se sentem estimulados a utilizar os recursos digitais para apresentar ao professor(a) informações até então desconhecidas. Desta troca de informações podem ser elaborados novos conceitos que exortam os agentes educacionais a refletir eticamente sobre as consequências de seus comportamentos em relação ao outro, engendrando-se a denominada formação digital (Nida-Rümelin & Weidenfeld, 2018Nida-Rümelin, J., & Weidenfeld, N. (2018). Digitaler Humanismus: Eine Ethik für das Zeitalter der künstlichen Intelligenz. Piper.; Grimm et al., 2019Grimm, P., Keber, T. O., & Zöllner, O. (2019). Digitale Ethik: Leben in vernetzten Welt. Reclam.). Ou seja, um tipo de formação cujo aprendizado dos conteúdos digitalmente assimilados não pode jamais se despegar das discussões sobre os juízos e práticas morais dos educadores(as) e educandos(as), tal como sempre argumentou Paulo Freire em seus escritos.

Ao incentivar a participação ativa dos estudantes, alusiva à reflexão do vínculo entre ética e conhecimento, o professor(a) estabelece, mediante o uso dos recursos digitais e dos ambientes virtuais com seus(suas) estudantes, um novo tipo de contato corporal com as ideias, tal como foi anteriormente destacado. Da troca de informações pode ser suscitado o movimento que faz com que novos conceitos sejam mutuamente produzidos, revitalizando-se, no contexto da cultura digital, a ressignificação dos agentes educacionais, de tal modo que um “ensinando, aprende; outro, aprendendo, ensina” (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 69).

Seguindo esta linha de raciocínio, eis que se apresenta a resposta da segunda questão. Na sociedade de acesso e compartilhamento on-line de informações mais do que nunca se faz necessário que os educadores(as) estejam abertos a incorporar os saberes de experiências feitos dos educandos(a), de tal maneira que se consolide uma relação dialógica, cuja horizontalidade possibilita fazer com que a diretividade do(a) professor(a) não seja percebida como restritiva, e sim como um profissional que passa as ser valorizado justamente porque os alunos(a) o(a) veem como alguém cujo domínio de determinado conteúdo é apresentado junto ao convite de trabalho mútuo de elaboração conceitual, um trabalho feito com e não para o corpo discente. Se primar esta relação dialógica entre os agentes educacionais, então origina-se um clima cultural democrático que faz com que se torne impreterível a defesa do processo de socialização na e da instituição escolar.

Exatamente este tipo de socialização escolar, fundamentada na troca de pontos de vista que podem ser respeitosamente divergentes entre si, é evitada na situação do denominado homeschooling, cujo desenvolvimento das etapas do processo de ensino e aprendizagem tornam-se responsabilidade dos pais e mães, com os auxílios de um professor(a) particular em alguns casos e da Internet. Viver e ser educado numa espécie de bolha podem ser também insuflados por meio do uso das tecnologias digitais da informação e comunicação, as quais, neste caso, são empregadas para confirmar opiniões idiossincráticas das figuras parentais, ao invés de otimizarem condições para que se estabeleçam relações dialógicas com outras pessoas com pensamentos e modos de agir distintos, ou seja, em diversidade. É por isso que o sentido da palavra diálogo não pode ser exclusivamente entrelaçado com a palavra técnica (sendo este o sonho do ideário homeschooling), como se se restringisse instrumentalmente ao objetivo de se obter um determinado resultado, ou uma tática, uma vez que isto

.… faria do diálogo uma técnica para a manipulação, em vez de iluminação. Ao contrário, o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos… o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os seres humanos se encontram para refletir sobre a realidade tal como a fazem e re-fazem.

(Freire, 1987Freire, P., & Shor, I. (1987). Medo e ousadia: O cotidiano do professor. Paz e Terra., p. 122-123)

A ênfase atribuída à natureza histórica do dialogar aduz o raciocínio para outra relevante contribuição de Freire na Pedagogia da esperança: a crítica à suposta neutralidade existente nas relações entre professores(as) e estudantes. Quando os educadores(as) se limitam a se reconhecer como meros transmissores de conteúdos e, portanto, se recusam a expor suas escolhas diante dos(as) estudantes, então, corre-se o risco de racionalização das relações de dominação e de exploração em todos os níveis, como se fossem acontecimentos cuja inevitabilidade transcenderia seus condicionantes históricos, de tal forma que se transformariam numa espécie de absolutos. Foi por isso que Paulo Freire categoricamente asseverou: “Não há nem jamais houve prática educativa em espaço-tempo nenhum de tal maneira neutra, comprometida apenas com ideias preponderantemente abstratas e intocáveis” (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra., p.78).

Em vista deste contexto, torna-se dever ético dos educadores(as), mediante seus próprios testemunhos de escolhas, manifestar o respeito às diferentes ideias e posições dos educandos(as). “Tão importante quanto ele, o ensino dos conteúdos, é o meu testemunho ético ao ensiná-los”, afirmou Paulo Freire (1996, p. 103)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.. É por isso que a teoria e a prática educacional freirianas tornaram-se alvos de ataques dos partidários do movimento: “Escola sem partido”. Criticar a suposta neutralidade na educação não significa louvar doutrinações político-partidárias, tal como acusam os partidários deste movimento. Pois a objeção à suposta neutralidade se pauta na coragem de ousar saber e expressar esta atitude para que os julgamentos de valores sejam assumidos em defesa da efetivação dos direitos humanos, da vida (Kant, 1985Kant, I. (2005). Textos seletos (F. S. Fernandes, Trad.). Vozes.).

Possível conclusão

Neste momento, é pertinente acentuar a autocrítica feita por Freire sobre a forma como desconsiderou o fato da linguagem, como construção histórica que é, mediar em si determinadas ideologias de poder. Não é inconsequente a opção de se escrever a palavra “homens” e defender a justificativa de que as mulheres também estão incluídas neste vocábulo masculino. Ao criticar a presença de uma linguagem machista expressa na frase: “Quando falo homem, a mulher está incluída”, Freire observou o seguinte em sua Pedagogia da esperança: “Como explicar, a não ser ideologicamente, a regra segundo a qual se há duzentas mulheres numa sala e só um homem devo dizer: ‘Eles são trabalhadores e dedicados?’” (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra., p. 67).

Não é possível, portanto, simplesmente utilizar-se de uma regra gramatical para confirmar a suposta legitimidade de, numa sala com centenas de mulheres e um só homem, afirmar que todos, e não todas, deveriam ser considerados. Seguindo a linha de raciocínio de Freire, caberia a pergunta: por que os homens não se sentem incluídos na frase: “As mulheres são seres humanos com direitos e deveres”, ao passo que as mulheres impreterivelmente devem se reconhecer na frase: “Os homens são seres humanos com direitos e deveres?”.

Na medida em que a expressão da linguagem materializa e propala juízos de valores, torna-se crucial a defesa radical da crítica à ideologia machista, uma vez que não se trata de: um problema gramatical, mas ideológico. A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra., p.67-68).

A imprescindibilidade da recriação da linguagem adquire contornos decisivos, sobretudo na sociedade cujas relações entre as pessoas se digitalizam cada vez mais. Uma vez que a lógica de comunicação binária dos algoritmos, engendrados pelos softwares de tecnologias tais como a da IoT e do reconhecimento facial, parece se consolidar hegemonicamente, nota-se também o modo como esta lógica se espraia para todas as relações, de modo a açular tanto a possibilidade de se recuperar, classificar e interpretar espacial e temporalmente informações que dialogicamente se transformam em conceitos, quanto a tendência de se promover o pensamento binário de que só existem o nós e os outros, bem como o aceite inconteste de fragmentos de informações descontextualizadas entre si. As mesmas informações que não podem ser identificadas como neutras, mas sim como as fake news que realmente são. Pois é no atual contexto da cultura digital que a educação bancária não se limita às relações instituídas entre professores(as) e estudantes nos ambientes escolares, mas sim se espraia como o espírito objetivo de um tempo, impregnando tanto a forma (fragmentada) como o conteúdo (impositivo) das informações e de seus modos de circulação. Este tipo de design técnico-econômico das notícias falsas deve ser cada vez mais criticado e combatido, exatamente porque ele referenda, cada vez que se faz presente, a afirmação de discursos e procedimentos autoritários e discriminatórios (Steinmaurer, 2016Steinmaurer, T. (2016). Permanent vernetzt: Zur Theorie und Geschichte der Mediatisierung. Springer VS.).

Diante deste quadro, recriar freirianamente a linguagem, nos tempos da cultura digital, pressupõe assumir categoricamente a resistência à propagação de fake news, na medida em que tal procedimento se ampara na defesa radical do combate ao pensamento estereotipado e aos comportamentos preconceituosos, discriminatórios, sexistas, machistas, homofóbicos e racistas. Além disso, em tempos de comunicação ubíqua, nos quais os indivíduos majoritariamente expõem narcisicamente seus likes e dislikes como afirmações impositivas e autossuficientes, é preciso voltar a saber escutar, pois “O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente” (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 113).

Se for considerado o sentido freiriano de comunicação dialógica, há uma possibilidade de permanência do sonho de que as atuais práticas coloniais não grassem na quantidade e na velocidade de disseminação das fake news. Pois a tecnologia digital, como um processo social que é, pode ser utilizada para concretizar o inédito viável de uma sociedade na qual predomine um clima cultural compatível à atuação, cada vez mais constante, de indivíduos, cujas práticas materializem tanto a aspiração de efetivamente ser mais dialógico, quanto a defesa radical da educação libertadora, por meio da qual educadores(as) e educandos(as) críticos reciprocamente se ressignifiquem nas formas de outras cognoscitividades (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra.). Autor e autora deste ensaio vêm experimentando tais ressignificações junto a estudantes de graduação e pós-graduação, na medida em que se frutificam momentos profundos de generosidade e diálogo intergeracional no meio digital da educação remota. Mais do que ideias, são vivências que nos dizem que a pedagogia da esperança e a pedagogia da autonomia são possíveis quando realmente constituídas com os e as estudantes.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Lídia Orphão (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Este artigo foi elaborado por meio de recursos proporcionados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Bolsa Produtividade em Pesquisa, proc. 309549/2017-5) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por meio do Programa Institucional de Internacionalização (PrInt) (proc. 88887.465605/2019-00)
  • 4
    A conjunção da frase: Maria é negra, mas bondosa e competente (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 133) reafirma o preconceito de que negros não podem ser assim identificados, a não ser em algumas exceções, tal como no caso de Maria.

Referências

  • Barthel, R., Leder Mackley, K., Hudson-Smith, A., Karpovich, A., de Jode, M., & Speed, C. (2013). An internet of old things as an augmented memory system. Personal and Ubiquitous Computing, 17(2), 321-333. https://doi.org/10.1007/s00779-011-0496-8
    » https://doi.org/10.1007/s00779-011-0496-8
  • Beer, D., & Burrows, R. (2013). Popular culture, digital archives and the new social life of data. Theory, Culture & Society, 30(4), 47-71. https://doi.org/10.1177/0263276413476542
    » https://doi.org/10.1177/0263276413476542
  • Chen, C. H. (2010). Why do teachers not practice what they believe regarding technology integration? The Journal of Education Research, 102(1), 65-75. https://doi.org/10.3200/JOER.102.1.65-75
    » https://doi.org/10.3200/JOER.102.1.65-75
  • Clark, L. S. (2011). Digital media and the generation gap. Information, Communication & Society, 12(3), 388-407. https://doi.org/10.1080/13691180902823845
    » https://doi.org/10.1080/13691180902823845
  • Featherstone, M. (2000). Archiving cultures. British Journal of Sociology, 51(1), 161-184. https://doi.org/10.1111/j.1468-4446.2000.00161.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1468-4446.2000.00161.x
  • Flecha, R.; Gómez, J., & Puigvert. L. (2001). Teoría sociológica contemporánea. Paidós.
  • Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido Paz e Terra.
  • Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança. Paz e Terra.
  • Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.
  • Freire, P., & Shor, I. (1987). Medo e ousadia: O cotidiano do professor Paz e Terra.
  • Gomez, J. (2008). El amor em la sociedade del riesgo: Una tentativa educativa El Roure, 2008.
  • Gómez, J., Huete, J. F., Hoyos, O., Perez, L., & Grigori, D. (2013). Interaction system based on Internet of Things as support for education. Procedia Computer Science, 21, 132-139.
  • Grimm, P., Keber, T. O., & Zöllner, O. (2019). Digitale Ethik: Leben in vernetzten Welt Reclam.
  • Habermas, J. (2019). Teoria do agir comunicativo: Racionalidade de ação e racionalização social WMF Martins Fontes.
  • Kant, I. (2005). Textos seletos (F. S. Fernandes, Trad.). Vozes.
  • Koo, S. G. M. (2015). An integrated curriculum for Internet of Things: experience and evolution [Artigo apresentado]. Frontiers in Education Conference, Massachusetts, Washington, DC.
  • Marcuse, H. (1999). Tecnologia, guerra e fascismo (Maria Cristina Vidal Borba, Trad.). Editora Unesp.
  • Mello, R. R, Braga, F. M., & Gabassa, V. (2020). Comunidade de aprendizagem: Outra escola é possível EDUFSCar.
  • Miorandi, D., Sicari, S., De Pellegrini, F., & Chlamtac, I. (2012). Internet of Things: Vision, applications and research challenges. Ad Hoc Networks, 10(7), 1497-1516.
  • Nida-Rümelin, J., & Weidenfeld, N. (2018). Digitaler Humanismus: Eine Ethik für das Zeitalter der künstlichen Intelligenz Piper.
  • Ning, H., & Hu, S. (2012). Technology classification, industry and education for future: Internet of things. International Journal of Communication Systems, 25, 1230-1241.
  • Steinmaurer, T. (2016). Permanent vernetzt: Zur Theorie und Geschichte der Mediatisierung Springer VS.
  • Sutherland, J. (2008). Directive decision devices: Reversing the locus of authority in human-computer associations. Technological Forecasting & Social Change, 75(1), 1068-1089.
  • Wolf, M. Paulo Freire und die Kritische Theorie (2016). [Tese de doutorado, Universität Heidelberg]. Arquivo da Universität Heidelberg. https://archiv.ub.uni-heidelberg.de/volltextserver/23682/
    » https://archiv.ub.uni-heidelberg.de/volltextserver/23682/
  • Zhang, T. (2012). The Internet of Things promoting higher education revolution [Artigo apresentado]. Fourth International Conference on Multimedia Information Networking and Security, Washington, DC, United States.

Editado por

1
Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2021
  • Aceito
    18 Out 2021
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br