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Lesbofobia familiar: técnicas para produzir e regular feminilidades heterocentradas 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Farah - farahledamaria@gmail.com

Lesbofobia familiar: técnicas de produccion y regulacion de feminidades heterocentradas

Resumo

Este texto tem como objetivo compreender, a partir de narrativas de mulheres lésbicas do interior do estado de São Paulo, os modos como se articulam as performatividades de gênero e as trajetórias educacionais. Para tanto, realizaram-se sete entrevistas abertas de caráter narrativo que foram problematizadas a partir das contribuições dos Estudos de Gênero com Perspectiva Feminista. Com os dados construídos no decorrer deste estudo, chegou-se à conclusão de que a visibilidade e a hipervisibilidade estavam condicionadas às performatividades de gênero das participantes e que suas corporalidades foram observadas, controladas, negociadas, refutadas e educadas de tal modo que a lesbofobia atuou como recurso educativo.

Palavras-chave
lesbofobia; família; masculinidade feminina; resistência

Resumen

El propósito de este texto es comprender, a partir de las narrativas de mujeres lesbianas del interior del estado de São Paulo, los modos como se articulan las performatividades de género y las trayectorias educativas. Para esto, llevamos a cabo siete entrevistas abiertas de carácter narrativo que fueron cuestionadas a partir de las contribuciones de los Estudios de Género con una Perspectiva Feminista. Con los datos construidos en el curso de este estudio, surgió el hecho de que la visibilidad y la hipervisibilidad se vieron condicionadas por las performatividades de género de las participantes y que sus corporalidades fueron observadas, controladas, negociadas, refutadas y educadas de tal manera que la lesbofobia actuó como un recurso educativo.

Palabras clave
lesbofobia; família; masculinidad feminina; resistencia

Abstract

This article has the purpose of understanding, from narratives of lesbians from the interior of the state of São Paulo, the ways in which gender performativity and educational trajectories are articulated. In order to do so, we conducted seven open interviews from a narrative perspective, and these interviews were analyzed from the contributions of Gender Studies with a feminist perspective. Based on the data constructed during this study, we came to the conclusion that the visibility and hypervisibility were conditioned to the participants’ gender performativity, and their corporealities were observed, controlled, negotiated, refuted and educated in such a way that lesbophobia acted as an educational resource.

Keywords
lesbophobia; family; female masculinity; resistance

Introdução

As reflexões apresentadas neste texto têm como objetivo discutir, a partir de narrativas de sete mulheres lésbicas (entre 25 e 34 anos), os modos como se articulam as performatividades de gênero e as práticas educativas lesbofóbicas, no âmbito familiar. Para tanto, realizamos uma investigação de doutoramento, vinculada aos Estudos de Gênero de perspectiva feminista, para a qual recorremos à coleta de entrevistas abertas de inspiração metodológica narrativo-biográfica, colhidas no interior do Estado de São Paulo.

As participantes do estudo aqui discutido foram recrutadas por meio de três estratégias: a) redes pessoais de amizade ou espaços de sociabilidade LGBT no município de Presidente Prudente - SP; b) articulação com grupos de pesquisa ou com ativistas que privilegiam o estudo e o ativismo sobre a diversidade sexual; e c) interações em grupos na internet, exclusivos do público LGBT.

Para a realização das entrevistas, não foram elaborados roteiros fixos ou guiões de pergunta. Os diálogos eram iniciados com a exposição de nossas intencionalidades e das vinculações institucionais. Optamos por não usar o roteiro por duas razões principais: o temor de perder conteúdos importantes diante de perguntas específicas e nosso cuidado em conduzir a pesquisa de modo mais dedicado à escuta e ao olhar. Semelhante a Caetano (2016)Caetano, M. (2016). Performatividades reguladas: heteronormatividade, narrativas biográficas e educação. Appris., queríamos ter nossos corpos dedicados àquele momento, e o simples ato de, durante a entrevista, termos de parar para verificar uma folha com as questões poderia atrapalhar a interação.

Inicialmente tivemos encontros e conversas informais com as participantes para “quebrar o gelo” e para possibilitar a criação de um vínculo com a pesquisadora. No momento da entrevista, devidamente gravada, retomamos as explicações do estudo. Explicitamos que tínhamos interesse em compreender a história de vida de mulheres lésbicas nos espaços educativos. Dito de outro modo, que elas, as participantes, estavam livres para contar, da forma como quisessem e acreditassem ser melhor, como foi a experiência de ser lésbica em casa, na escola, na igreja e na universidade. Algumas entrevistadas tentaram dar linearidade ao relato, passando pela infância, adolescência e vida adulta. Outras descartaram alguns ciclos da vida e optaram por abordar cada instituição separadamente. Por fim, ainda outras mesclavam contexto e tempo.

As participantes do nosso estudo foram: Luna (25 anos), Patrícia (29 anos), Cristiane (31 anos), Jenifer (25 anos), Mia (27 anos), Caroline (29 anos) e Towanda3 3 Nossa pesquisa trabalha com nomes fictícios, e a escolha foi das próprias entrevistadas. O estudo é acompanhado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos brasileiro, CAAE: 68135317.4.0000.5402. (34 anos). Todas são mulheres que se autodefinem lésbicas. Quatro delas consideram suas performatizações de gênero alinhadas às masculinidades, e três, às feminilidades alternativas. Em relação às características étnico-raciais, Caroline e Towanda identificam-se como negras; as demais, como brancas.

Consideramos notório ressaltar que nossa perspectiva teórica − em especial, no tocante às contribuições da filósofa Judith Butler (2004)Butler, J. (2004). Deshacer el género. Paidós. − propiciou-nos pensar, no que tange às entrevistas, a complexidade e a dificuldade que fazer uma investigação qualitativa sobre gênero e sexualidade envolve. Efetivamente porque o tema está alinhado a questões tão íntimas e, por sua vez, tão pouco verbalizadas e “confessas” pelos sujeitos, que o ato de extrair tais relatos não se dá sem uma certa dose de “violência” e dor. As participantes do estudo não são ativistas nem fazem parte de lutas políticas públicas feministas e/ou LGBT – as suas histórias, seus pensamentos e perspectivas, no que diz respeito à lesbianidade, não são habitualmente mobilizados e elaborados discursivamente. Elas confidenciaram à pesquisadora alguns fatos e experiências que, até então, não haviam sido expostos a nenhuma outra pessoa.

Quando se escuta alguém, não se escuta somente o seu conteúdo. A comunicação sobre as ações em sua vida consiste, em si, numa outra ação, a de apresentar aquela vida, e, desse modo, a fala é carregada de expectativas sobre quem escuta. Quando formula a palavra, o sujeito que se submete à escuta do outro deseja que o ouvinte saiba e compreenda o que lhe é dito e, ao mesmo tempo, espera ou teme algum tipo de reação a respeito do que diz (Butler, 2004Butler, J. (2004). Deshacer el género. Paidós.). Butler (2004)Butler, J. (2004). Deshacer el género. Paidós. crê que as palavras faladas podem ser vistas como “oferendas corporais”, elas podem ser indecisas ou convincentes, sedutoras ou sofridas. Em suma, na interação entre ouvinte e confesso, o corpo − atravessado por essas vivências e com toda a sua subjetividade − não está fora de jogo; pelo contrário, está submetido, de certa maneira, ao desnudar-se através da própria fala. Assim sendo, narrar algo pessoal e íntimo é, ao mesmo tempo, expor o corpo que pensou naqueles fatos, participou deles, realizou-os e, em certa medida, trazê-lo de volta para o presente para expô-lo ao olhar do outro. Isso gera tensões no momento da narração porque aquela fala empenhada não teria se encontrado ainda em situação de vulnerabilidade, sendo avaliada por uma outra perspectiva (Butler, 2004Butler, J. (2004). Deshacer el género. Paidós.) e, agora, sujeita às diversas e pequenas reações (ou mesmo pensamentos a respeito) de quem escuta, pode levar, naquele exato momento, à necessidade de uma nova interpretação, escolha e/ou entonação das palavras e dos fatos vividos, para torná-los mais suportáveis de verbalizar.

Na linha de pensamento proposta por Butler (2004)Butler, J. (2004). Deshacer el género. Paidós., podemos afirmar que as narrativas trazidas pela memória, no momento da narração, não são meramente descrições de fatos e situações vividas no percurso dos processos de vida, mas (re)criação e (re)reconstruções de momentos significativos. A narração é meio de produção de significados sobre as experiências. Isso porque, ao narrar o vivido, a pessoa que narra também incorpora, no processo narrativo, a experiência de ser ouvido, pois, da mesma maneira que a experiência alicerça a narrativa, esta também produz a realidade e/ou a incorpora.

Nossa proposta é debater as narrativas sobre as experiências educativas, contextualizadas na família de mulheres lésbicas. Mas o que entendemos por lesbianidade? Sobre o sujeito se considerar como lésbica, concordamos com a autora lesbofeminista Norma Mogrovejo (2006, p. 03)Mogrovejo, N. (2006). ¿Literatura lésbica o lesboerotismo? https://portalweb.uacm.edu.mx/uacm/Portals/3/4%20Documentos/III%20ENCUENTRO%20DE%20ESCRITOR@S%20SOBRE%20DISIDENCIA%20SEXUAL%20E%20IDENTIDADES%20SEXUALES%20Y%20GEN%C3%89RICAS/Identidades%20sexuales%20y%20lesbianismo/norma-mogrovejo.pdf
https://portalweb.uacm.edu.mx/uacm/Porta...
, quando pontua que “[...] decir ‘soy gay’ o ‘soy lesbiana’ es declarar una pertenencia, y asumir una postura específica en relación a los códigos sexuales dominantes”. Tais identidades político-sexuais são culturais, situadas historicamente, encarnadas por nós, dentre uma multiplicidade de possibilidades de vivenciar e representar a nossa sexualidade. Em outras palavras, elas não são atribuíveis a um simples impulso sexual, mas produzidas com e nas relações politicamente assumidas na sociedade.

Buscamos argumentar que as lesbianidades, no espaço das instituições educativas como a família e a escola, seguidas pela igreja e pela universidade, não são primordialmente “toleradas” ou ignoradas, alheias às práticas e ações (hétero) corretivas, principalmente quando interseccionadas com as performatividades de gênero discordantes do padrão de feminilidade hegemônica ou alinhadas às masculinidades femininas.

Para o presente artigo, realizamos um recorte e trabalhamos com as narrativas contextualizadas na instituição familiar. Mostramos, em princípio, o que é a lesbofobia, por meio do debate de autoras ligadas aos Estudos de Gênero com perspectiva lesbofeminista e, em seguida, dialogamos como a lesbofobia pode aparecer, no final da infância, como técnica de produzir e/ou readequar as performatividades ao padrão hegemônico de feminilidade heterossexual.

Lesbofobia, sexismo e misoginia: aspectos conceituais

Quando iniciamos a investigação sobre o tema da lesbianidade nas instituições educativas, logo percebemos que as discussões clássicas sobre a homofobia não seriam suficientes para entendermos as complexidades vivenciadas pelas mulheres dissidentes da sexualidade heterossexual. Foi por meio das leituras e de debates específicos da lesbofobia que encontramos conceitos e a (pouca) produção de conhecimento existente sobre a temática. Apresentamos, nesta parte do artigo, as elaborações e as sínteses conceituais de autoras especialistas no assunto.

Compartilhamos das elaborações teóricas das autoras Crawford (2012)Crawford, C. (2012). “It’s a girl thing” problematizing female sexuality, gender and lesbophobia in Caribbean culture. https://www.caribbeanhomophobias.org/itsagirlthing >.
https://www.caribbeanhomophobias.org/its...
, Gimeno (2010)Gimeno, B. (2010). La doble marginación de las lesbianas (Cap I, pp. 19-26). Laertes., Lorenzo (2012)Lorenzo, A. A. (2012). La construcción cultural de la lesbofobia. Una aproximación desde la antropología (Cap. VII, pp. 125-146). UNAM, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades., Platero (2010)Platero, R. L. (2010). Entre la invisibilidad y la igualdad formal: perspectivas feministas ante la representación del lesbianismo en el matrimonio homosexual (Cap. XX, pp. 85-106). Laertes. e Viñuales (2002)Viñuales, O. (2002). Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra., quando argumentam que a lesbofobia é uma construção cultural cujo núcleo é o sexismo com o qual se articulam a misoginia e a homofobia. Ademais, ela é a grande aliada no processo de desvalorização profunda das mulheres que rompem, de algum modo, com as rígidas normas de gênero, sujeitos que estabelecem alianças entre si e/ou exploram e/ou vivem a sexualidade sem falo. O sexismo não se instala no vazio, não é construído sem um “chão” ou um suporte, pois seu surgimento e sua institucionalização estabelecem uma aliança com a própria misoginia ocidental, que diferenciava o feminino e o masculino em termos de desigualdade (Braidotti, 1994Braidotti, R. (1994). Mothers, Monsters and Machines (Cap. iii, pp. 75-95). Columbia University Press.; Viñuales, 2002Viñuales, O. (2002). Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra.).

Logo, entendemos o sexismo como a organização histórica das relações sociais que ainda é baseada na diferenciação entre homens e mulheres, segundo a qual o feminino é dominado, subjugado e inferiorizado pelo masculino. Trata-se de um conjunto complexo de métodos empregados, no seio das sociedades patriarcais, para manter a situação de inferioridade, de subordinação e de exploração de um gênero (Lorenzo, 2012Lorenzo, A. A. (2012). La construcción cultural de la lesbofobia. Una aproximación desde la antropología (Cap. VII, pp. 125-146). UNAM, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades.). Está em todos os âmbitos da vida e das relações humanas, de modo tal que resulta quase impossível descrever e analisar todas as suas formas de expressão e incidência (Sau, 2000Sau, V. (2000). Diccionario ideológico feminista. Icaria.). Nesse sentido, ele se caracteriza como sendo uma situação/posição que pode ser executada e ocupada tanto por homens quanto por mulheres. Esse quadro ocorre porque, inscrito numa cultura androcêntrica, o sexismo se prolifera no imaginário coletivo e se impõe por meio de um conjunto de representações/apresentações, socialmente partilhadas, de opiniões e práticas que desprezam e/ou violentam as mulheres e/ou o feminino (Caetano, 2016Caetano, M. (2016). Performatividades reguladas: heteronormatividade, narrativas biográficas e educação. Appris.).

Moreno (1986)Moreno, A. (1986). El arquetipo viril protagonista de la história: ejercícios de lectura androcéntrica. Ediciones LaSal. nos indica que o sexismo se expressa na prática, na vida social, em diversos graus, bem como se relaciona com as formas de produção do conhecimento. Ao analisar seus efeitos, é possível identificar visões e representações forjadas do feminino, baseadas em distinções hierarquizantes. A lesbofobia se compõe como um dos elementos de sustentação do sexismo porque auxilia, por meio da violência, a oposição entre os gêneros e a reiteração forçada das práticas educativas heteronormativas.

Assim, as meninas são, no geral, desde cedo, pedagogizadas para “investirem” em si mesmas (no tocante à estética, a comportamentos, a regras) para, no futuro, serem escolhidas por algum homem, bem como para competirem entre si, destruindo a possibilidade do amor entre mulheres. Nas palavras de Molinier e Welzer-Lang (2009)Molinier, P., & Welzer-Lang, D. (2009). Feminilidade, masculinidade, virilidade (Cap. XVI, pp. 122-128). Editora UNESP.:

para as mulheres, a homofobia, menos estudada, assegura,... a produção e a reprodução das fronteiras de gênero que reificam a dominação masculina e a visão bicategorizada de gênero. Sob o pretexto da feminilidade, as mulheres devem escolher uma aparência que assinale sua interiorização dos códigos estéticos pensados pelos homens, e adotar diante deles uma atitude submissa e não concorrencial quanto ao poder. A “lesbofobia” [ênfase no original] designa a estigmatização da sexualidade entre mulheres que escapam ao controle masculino.

(pp. 102-103)

Nessa mesma linha de pensamento, cremos que o controle masculino não poderia se fazer presente nos corpos das mulheres sem o emprego da lesbofobia. É necessário criar mecanismos sexistas que desvalorizem tão severamente o encontro passional, sexual, afetivo, “romântico” e de parceria feminina, de modo que a heterossexualidade não pareça obrigatória, mas o melhor caminho, destino, futuro para as mulheres, como já argumentou Rich (2010)Rich, A. (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, 4(5), 17-44..

O emprego do termo/conceito da lesbofobia para estudar as lesbianidades no campo da educação pode funcionar como auxiliar da crítica geral empreendida pelo conceito de homofobia. Estabelecemos essa conexão por acreditarmos, em consonância com Rubin (1989)Rubin, G (1989). Reflexionando sobre el sexo: notas para una teoría radical de la sexualidad (Cap. X, pp. 113-190). Revolución Madrid., que não devemos restringir a análise da situação das lésbicas em termos de opressão às mulheres heterossexuais. A lesbofobia produz contextos específicos de vulnerabilidade dentro dos quais se instauram comportamentos que vão desde as violências brutais como assassinatos, estupros “corretivos” e assédios sexuais até as hostilizações verbais, micropunições, vigilâncias sutis, movimentos restritivos de controle, (re)educação e (re)adequação às normas, ações que expõem não só as dissidentes sexuais, mas todas as mulheres – mesmo as heterossexuais – não enquadradas nos modelos hegemônicos de feminilidade.

Ainda que compartilhem a mediação do sexismo, a homofobia e a lesbofobia são entendidas, neste texto, como categorias distintas. Em seu sentido geral, a homofobia pressupõe variados castigos e formas de controle para os sujeitos que transgridam as normas de gênero e sexualidade. Poderíamos dizer que um sujeito que se comporta, age e se veste fora de seu gênero e/ou deseja manter relações afetivas/sexuais com sujeitos de mesmo gênero constitui o principal alvo desse tipo de violência. Com as mulheres lésbicas, isso também ocorre, porém há outra faceta bastante grave que não é problematizada: o entendimento histórico e misógino de que as mulheres seriam inferiores.

As mulheres, independentemente de serem lésbicas ou heterossexuais, são orientadas, nas sociedades patriarcais, a se submeterem e estarem disponíveis aos homens, não necessariamente no sentido sexual, mas em temos de obediência, admiração e dependência. E, nesse processo de manter a mulher subserviente e dominada pelo poder masculino, é necessário dispor de modos de subjetivação do feminino fora da autonomia, da confiança e da liberdade. A misoginia tem cumprido com bastante êxito esse objetivo. Ou seja, acreditamos que a violência e a exclusão lesbofóbica não emanem somente da necessidade dupla de produzir sujeitos que respeitem as normas de gênero e de garantir a supremacia cis-heteropatriarcal, pois ressaltamos também que, no próprio processo de “ser” mulher, está implicado um ódio ao feminino (misoginia) e às suas formas de aliança (lesbofobia). Destarte, ainda que uma mulher seja heterossexual e cumpra, de modo razoável, com as expectativas esperadas para o seu gênero, ela terá que negociar com o peso da inferioridade quase irresolvível, constante e alienadora.

Na perspectiva de Viñuales (2002)Viñuales, O. (2002). Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra., a misoginia é um ódio, um desprezo, uma ojeriza às mulheres simplesmente por “serem” mulheres, e sua motivação é infligir violência (física, psicológica, simbólica) aos sujeitos marcados pela identidade feminina, devido à crença histórica de sua irremediável inferioridade. Ela, a misoginia, é tão poderosa e onipresente que, em muitos casos, sua materialização – feminicídios, violência doméstica, abuso sexual intrafamiliar, estupro, processos sutis de humilhações, preterimento – é constantemente justificada, sem muita reflexão, nos discursos cotidianos e, por vezes, por outros sujeitos oprimidos. Para a autora, a misoginia está presente nos comentários, nas piadas e nas atitudes que buscam ridicularizar os sujeitos femininos simplesmente por serem mulheres. No cotidiano, muitos homens heterossexuais e/ou gays fazem comentários humilhantes relativos às lésbicas, a maioria deles relacionada à condição feminina.

Tanto para Viñuales (2002)Viñuales, O. (2002). Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra. quanto para Gimeno (2008)Gimeno, B. (2008). La construcción de la lesbiana perversa: Visibilidad y representación de las lesbianas en los medios de comunicación. El caso Dolores Vázquez – Wannikhof. Gedisa., independentemente de como se conceitualize ou defina a lesbofobia, qualquer desprezo, violência e ridicularização da lesbianidade mascara uma profunda misoginia na vida social. Isso porque, quando a hostilidade contra as uniões entre mulheres se explicita, ela geralmente se baseia na negação da “posibilidad de experimentar la sexualidad, la feminidad, en suma, de celebrar la vida si no es al lado y bajo [ênfase adicionada] la mirada tutelar de un hombre” (Viñuales, 2002Viñuales, O. (2002). Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra., p. 43). “Ao lado” refere-se às parcerias amorosas e sexuais matrimoniais na heterossexualidade. Afinal, como já adiantou Swain (2000)Swain, T. N. (2000). O que é lesbianismo. Brasiliense., duas mulheres juntas “estão sozinhas”, não gozam de validade e de autonomia, não podem contar como simbolicamente relevantes, porque é o homem que legitima a parceria, inclusive sexualmente falando, é o coito (seja anal ou vaginal) que comprova uma relação sexual legítima (natural ou “antinatural”) e, por fim, “sob o olhar” refere-se às performatizações de gênero nos ditames da feminilidade hegemônica.

Os critérios que definem como os corpos femininos devem se apresentar também são construídos por e para a satisfação masculina, objetivando a expulsão e o rechaço da “feiura” nas mulheres (Ponce, 2014Ponce, A. F. (2014). La belleza cuesta. De los TIPs a la cirugía estética. ¿Cuál es la promesa que se persigue? (Cap. IV, pp. 112-151). La Cifra.). Vale lembrar que essa “feiura” é, na contemporaneidade, intimamente associada a ter pelos, à menstruação, ao excesso de gordura corporal, às estrias e à flacidez, aos cabelos brancos, às rugas, aos músculos muito proeminentes, à pele escura, ao ato de falar alto, à masculinidade, entre tantas outras caraterísticas atravessadas pela cor, pela etnia, pela religião, pela classe social, pela idade, pela performatização de gênero etc.

Mediações lesbofóbicas familiares na produção das femilinidades heterocentradas

Somos sujeitos fazedores de gênero, como bem disse Bento (2014), em sua leitura de Butler (2003)Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.. Afinal, desde que levantamos até o momento em que nos deitamos, no curso de um dia, nossas roupas, adereços, movimentos corporais, voz, dentre outros aspectos, estão saturados de gênero. No cotidiano, interpretamos e avaliamos os outros modos de se fazer gênero. Muitas vezes, sem percebermos isso de imediato, quando tecemos comentários, por exemplo, desenvolvemos afetos ou desafetos e tomamos decisões a partir do que sabemos sobre os homens e as mulheres (Pereira, 2012Pereira, M. M. (2012). Fazendo género no recreio: a negociação do género em espaço escolar. Imprensa de Ciências Sociais.). Também organizamos nossa aparência com base nos saberes e recursos estéticos alinhados ao masculino ou ao feminino. Por outro lado, as normas e regras que regem o gênero são, também, causadoras de desconforto, violência e morte (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Limitam o campo de oportunidades, hierarquizam e atribuem diferentes valores para as vidas (Swain, 2006Swain, T. N. (2006). A desconstrução das evidências: perspectivas feministas e foucaultianas (Cap. VII, pp. 119-137). EDUNESP; FAPESP.). Impedem-nos de fazer variadas atividades que nos atraem (Halberstam, 2008Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales.); calam-nos diante de diversas situações em que nossa palavra pode não ser autorizada (Gimeno, 2005Gimeno, B. (2005). Historia y análisis político del lesbianismo: la liberación de una generación. Gedisa.); ferem-nos, ao impor os modos como devemos “enxergar” nossos corpos (Bordo, 1997Bordo, S. (1997). O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault (Cap. I, pp. 19-41). Record; Rosa dos Tempos.); diminuem os amores que divergem do prescrito (Eribon, 2008Eribon, D. (2008). Reflexões sobre a questão gay. Companhia de Freud.; Mogrovejo, 2006); e, por fim, segregam e punem severamente, à medida que nos distanciamos de seus pressupostos ou os desafiamos (Bento, 2011Bento, B. (2011). Stonewall 40+ o que no Brasil? (Cap. v, pp. 79-110). EDUFBA.; Pelúcio, 2011Pelúcio, L. M. (2011). Travestis, a (re) construção do feminino: gênero, corpo e sexualidade em um espaço ambíguo. Revista AntHropológicas, 15(1), 123-154.; Peres, 2010Peres, W. S. (2010) Travestis: corpos nômades, sexualidades múltiplas e direitos políticos (Cap. IV, pp. 69-104). Oficina Universitária.).

De modo geral, são as famílias, as escolas, as igrejas, as universidades, entre outras, as instituições educativas que intimamente se relacionam com essas normas. É no contexto desses espaços de aprendizado que queremos situar as vivências das mulheres lésbicas participantes do nosso estudo. A partir dos seus relatos, percebemos que as famílias, enquanto as narradoras eram pequenas, tiveram maior tolerância no que tange às vestimentas, aos gostos, às brincadeiras e ao comportamento culturalmente entendidos como mais masculinos. As técnicas lesbofóbicas de correção do gênero, como forma de expulsar a ameaça lesbiana, emergem nos relatos somente na transição, na passagem para a adolescência.

A seguir, apresentamos as vivências de gênero no tempo da infância e as formas de as narradoras perceberem a si mesmas e como foram lidas pelo entorno:

Cristiane (31 anos), por ter um irmão com diferença de idade de apenas um ano, conta que essa proximidade possibilitou que os dois compartilhassem brincadeiras e parcerias:

ele não tinha jeito de menina, mas eu tinha de menino, eu gostava de jogar bola, eu gostava de brincar de carrinho, eu brincava de tudo que era de menino e não gostava de nada de menina! Isso é um fato! ... além de brincar, eu defendia ele na escola, os meninos batiam nele, eu ia lá e batia, eu defendia.

Ela acrescenta também que, quando a família estava reunida com outras crianças, além de seu irmão e irmã, preferia as brincadeiras socialmente marcadas como sendo de garotos:

por exemplo, eu não brincava com as minhas primas, eu brincava com os meus primos de jogar bola, de correr, andar de skate, patins, enquanto as meninas brincavam de casinha e de escolinha. Essas brincadeiras me eram mais livres, não tinham significados sexuais. Elas apenas não vinham com preocupações exageradas.

Jenifer (25 anos), filha única, foi uma criança bastante “quietinha”, ela afirma que, quando bem pequena, antes dos 6 anos, brincava sozinha em seu mundinho de fantasias, rodeada de bonecas compradas por sua mãe e seu pai:

Eu tipo tinha boneca, tinha boneca de tudo quanto é tipo, tinha a casa da Barbie inteira, era umas coisas assim, só que eu preferia, por exemplo, brincar de cozinha, tipo “eu sou o dono de um restaurante” ou, assim, no escritório, não gostava de brincar de bonequinha ... sabe?!.

Com o tempo, Jenifer passou − graças à amizade com os primos, no período em que ficava com a avó depois da escola, − a ter companhia e a participar de novas brincadeiras:

A gente cresceu como irmãos, na verdade, e a minha alegria era quando eu ia pra casa da minha outra vó, a mãe do meu pai, e lá podia tudo, lá eu podia comer doce, podia brincar, molhar a área, escorregar com sabão, lá eu era criança ... eu jogava bola com eles, eu ia pro sítio e andava de cavalo, soltava pipa. A gente brincava em açude, cachoeira ... Eu era moleque mesmo! Eu era moleque!.

Caroline (29 anos) expõe que, desde pequena, gostava do “universo dos meninos” e queria manter os cabelos curtinhos, usar azul, usar camiseta, mas, no seio da família, isso nunca foi um problema, pelo contrário:

Sempre me deixaram ficar à vontade, sempre usei a roupa que eu quis, o tênis que eu quis, o chinelo que eu quis, entendeu?! Então, eu não tive problema com os meus pais não, mas ... dentro de casa tranquilo, na rua aí já é diferente, entendeu?! Aí é “você é machinho”, “você é maria-sapatão”, você é isso aquilo e outro que o povo gosta de falar.

Towanda (34 anos) − desde que sua mãe, por uma oportunidade de emprego, precisou deixar a cidade − foi criada por seus avós, 40 anos mais velhos. Ela narra como teve o privilégio de viver um pouco mais livre das amarras sociais que ditam a infância das meninas:

sempre tive cabelo curtinho, sempre usei bermudinhas, shortinho, camisetinha, nunca fui muito dos flus-flus ... E, conforme eu fui crescendo, ... como eu sou neta, as minhas tias e meus tios foram saindo de casa e eu acabei ficando a raspa do tacho, ... Eu tive uma infância muito legal, porque o meu pai, assim... ele corroborou muito pra esses estereótipos de menino, porque, assim, ele nunca se negou a fazer as coisas comigo, então, desde muito pequena, ele que fazia meus carrinhos de brinquedo, ele me levava pra pescar, me levava pra caçar, tudo aquelas coisas que a gente pensa “isso é coisa de menino”, meu pai mandava bala! E minha mãe deixava também! Minha mãe nunca teve problema com isso tudo ... talvez eles não teriam uma noção de que isso faz parte de mim, de quem eu sou. Mas eu tive uma educação muito privilegiada, muito amorosa, eu fui criada dentro de um clima de muito amor.

Mia (27 anos), apesar da vontade de brincar junto com o irmão e de não ter uma proibição familiar para fazê-lo, sentia dificuldades para exercer esse desejo diante dos afazeres domésticos que, junto de sua irmã mais velha, tinha que realizar para que a mãe pudesse trabalhar fora:

Eu queria brincar com os carrinhos do meu irmão, eu não queria tá lá tendo que ajudar minha irmã a secar louça. Eu queria tá igual ao meu irmão, brincando de carrinho, de bola, brincando na rua, fazendo karatê, mas eu tinha que fazer isso... e muitas vezes eu dormia e pedia: “Nossa, Deus, faça eu acordar menino amanhã!”, várias vezes... Ao mesmo tempo, eu não queria me arrumar, eu era relaxada. Não queria me arrumar, não queria fazer coisas de menina. Nem boneca, nem nada, várias bonecas eu pedia, porque minha irmã fazia minha cabeça e eu pedia as bonecas pra ela brincar, mas eu não brincava com as bonecas. Eu queria fazer coisas de menino e tal.

Patrícia (29 anos), filha única, criada até os 9 anos com mais conforto – casa própria e com empregada doméstica – em relação às demais crianças de seu bairro, narra que até essa idade olhava pelo portão as crianças na rua brincando livremente, mas não podia sair por conta da superproteção exercida pela família. Recorda das avaliações negativas que os vizinhos e as vizinhas faziam sobre Paulão, “uma menina negra, bem machinho, cabelo cortado curto assim, camiseta, short” que brincava “com os moleques” e se parecia com “um moleque”, ao passo que ressaltavam ao seu pai e sua mãe como ela era diferente, oposta à Paula, “uma menininha tão boazinha, né, Ana?! [que] Nem vai lá na rua”. Contudo, como Patrícia conta, esse privilégio de ser uma “menina branca boazinha que não saía na rua” não durou muito, tanto pelo primeiro baque financeiro ocasionado pela falência da empresa em que seu pai trabalhava, quanto pelas primeiras performatividades discordantes da feminilidade esperada. Patrícia, como muitas crianças que não tinham babás, passou a ir para o trabalho acompanhando o pai, que estava atuando como camelô. Foi justamente em uma dessas ocasiões que o entorno social leu Patrícia por sua performatização de gênero fora da feminilidade hegemônica, percebendo-a como garoto:

Eu tava com uma camisetinha, um shortinho, tipo chinelinho, aqueles Raider da época e um bonezinho, aí um cara perguntou pra minha mãe: “Ai é seu filho? Ai que gracinha!”, minha mãe: “Não, é uma menina”, ela ficou bem constrangida assim... lógico né?.

Todavia, isso em nada afetou, até a adolescência, a relação familiar; pelo contrário, ela também rememora com carinho a ligação estabelecida com o pai, permissivo em diversas brincadeiras, tais como soltar pipa, jogar videogame e truco.

Podemos analisar essas narrativas por meio do conceito de masculinidade feminina proposto por Halberstam (2008). Em sua elaboração teórica, como já mencionamos neste texto, o autor se distancia da explicação de Rubin (1993)Rubin, G. (1993). O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do sexo. SOS Corpo. e de sua tese de que o gênero é interpretação do sexo, tendo em vista que essa linha de pensamento sugere que a masculinidade só tem sentido no corpo dos biohomens. Em discordância com Rubin (1993)Rubin, G. (1993). O tráfico de mulheres: notas sobre a “Economia Política” do sexo. SOS Corpo., Halberstam (2008)Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales. advoga que as masculinidades não somente foram realizadas também em corpos de mulheres, bem como atualmente têm sido construídas novas masculinidades que devem ser reconhecidas como vivências possíveis, e não incoerências: “existen nuevas masculinidades que estan siendo producidas por las mujeres, con la esperanza de que estas reescrituras de la masculinidad puedan ser reconocidas finalmente como parte de la historia de la masculinidade (p. 295).

Nesse sentido, Halberstam (2008)Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales. explica que, no seio da família, as demonstrações de afinidades com as atividades ditas de “menino” nem sempre são malvistas durante a infância. Tornam-se um modo de “proteger” as meninas da feminilidade convencional que, de modo excessivo, sexualiza as garotas, insere-as precocemente na vida sexual, o que as expõe a uma gravidez indesejada e interrompe, em muitos aspectos, o florescimento de outros interesses que não sejam exclusivamente para o olhar masculino. Algumas famílias, então, passaram a repensar os interesses de suas filhas por vestimentas “mais confortáveis”, jogos, livros e matemática como uma forma de postergar para a adolescência a feminilidade heterossexual e suas implicações sexuais e reprodutivas.

Isso se torna mais evidente na narrativa de Patrícia:

Eu tenho jeito, trejeito, bastante trejeito ... já minha voz já não é tão masculina, só se eu quiser deixar, mas o trejeito, o jeito de sentar, assim botando o ombro pra frente, totalmente... isso sempre foi assim, desde criança, sentar com a perna aberta, não sentar como menina, cruzando e tal. Então, eu acho, assim, que todo mundo sempre soube, todos os meus tios, minhas tias, minha família, todo mundo sabe assim escancarado, minhas amigas. [Meus pais] ficavam na dúvida, pelo sim e pelo não, se instigasse a ficar com homem, vai que aparecesse grávida!? Que também seria um vexame, seria tanto vexame ser lésbica, quanto aparecer grávida, mas aparecer grávida é uma coisa que é mais difícil de esconder, a barriga aparece, o filho vem. Então era melhor instigar que eu mantivesse assim, que eu não transasse com meninos, que eu não mantivesse relações muitos íntimas de sexo, de sexo mesmo. De arriscar fazer sexo antes do casamento, era melhor prevenir esse mal. Pelo sim, pelo não, ela é diferente, mas vai que seja só um jeitão! Porque por exemplo, tem na minha família mulheres com jeitão que não são. ... então acho assim, fica sempre aquela dúvida: “Minha filha não é tão feminina, mas se eu liberar muito...” Aí já entra a outra parte da narrativa da família do meu pai, que eu lembro sempre do meu pai e da minha mãe, falando que o meu primo José, ele teve filha muito jovem, ele teve filha com 16, 17 anos, uma filha... e hoje em dia ele tem três filhas. ... Então eu acho, assim, pelo sim, pelo não “se ela for lésbica tem como a gente passar um pano quente nisso depois, deixa primeiro a gente se preocupar com a gravidez” [pensavam os pais diante da história do primo de Patrícia que foi pai jovem e hoje sustenta três filhas], ... eu tinha jeito mais masculinizado, mais masculino de ser, mas prevenir a gravidez ali era prioridade.

As participantes do estudo têm entre 25 e 34 anos e, nesse período de quase dez anos, do final da década de 1980 até meados de 1990, vários discursos a respeito dos direitos das crianças, dos e das adolescentes estavam ganhando espaço e se desenvolvendo no Brasil, a partir da redemocratização que culminou com a Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, a exemplo do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei Federal n.º 8.069/1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal n.º 9.394/1996Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Lei de diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Essas entrevistadas cresceram, assim, num período de democratização do acesso à educação escolar, de reformas educacionais, da valorização do estudo entendido como meio de melhorar de vida e, inclusive, do estímulo às meninas, para o desenvolvimento de outras atividades para além daquelas circunscritas ao cuidado do lar, problematizadas pelos movimentos feministas e pelas recomendações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU).

É nessa perspectiva que Halberstam (2008)Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales. explica como as sociedades ocidentais, umas mais outras menos – e de distintas formas –, têm mudado, aos poucos, as “concepciones sobre cual es la forma mas adecuada de educar a las chicas” (p. 296). De fato, os problemas sociais que afetam muitas meninas têm sido denunciados por décadas pelos movimentos feministas, em especial, aqueles relacionados à pedofilia e à exploração sexual, à gravidez indesejada, ao baixo interesse intelectual, à exposição à violência e à dependência de parceiros amorosos, fazendo com que algumas mães, pais, avôs e avós tolerem a masculinidade como forma de prolongar a infância das crianças.

As performatividades de gênero de nossas narradoras, ao se aproximarem da masculinidade, não foram de início confrontadas e repudiadas pelas famílias. Os relatos nos falam de momentos prazerosos, de maior liberdade de borrar as fronteiras de gênero. Algo bastante diferente de quando imaginamos a feminilidade nos corpos dos meninos durante a infância. Diversos estudos sobre gênero e sexualidade (Cornejo, 2012Cornejo, G. (2012). A guerra declarada contra o menino afeminado (Cap. iv pp. 69-78). Autêntica; Editora UFOP.; Silva, 2014Silva, P. M. (2014). Quando as questões de gênero, sexualidades, masculinidades e raça interrogam as práticas curriculares: um olhar sobre o processo de co/construção das identidades no cotidiano escolar (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro.) nos tempos da infância mostram-nos como a construção da masculinidade nos corpos dos garotos é vigiada e reiterada desde a mais tenra idade. Meninos que tenham comportamentos socialmente atribuídos ao feminino são constantemente punidos no seio da família e no espaço escolar.

Conseguimos compreender, com as autoras e os autores do tema, tais como Platero (2009)Platero, R. L (2009). La masculinidad de las biomujeres: marimachos, chicazos, camioneras y otras disidentes. http://www.feministas.org/IMG/pdf/La_masculinidad_de_las_biomujeresPlatero.pdf
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e o já citado Halberstam (2008)Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales., que a masculinidade não é exclusividade das lésbicas e pode ser vivida por todas as mulheres, inclusive as heterossexuais.. Todavia, é inegável que as experiências lésbicas sejam o lócus privilegiado para uma gama de expressões e de identificações masculinas, haja vista que a heterossexualidade tem limites e graus preestabelecidos bem rígidos para que a masculinidade possa acontecer (Meinerz, 2005Meinerz, N. E. (2005). Mulheres e masculinidades: etnografia sobre afinidades de gênero no contexto de parceiras homoeróticas entre mulheres de grupos populares em Porto Alegre (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul.; Platero, 2009Platero, R. L (2009). La masculinidad de las biomujeres: marimachos, chicazos, camioneras y otras disidentes. http://www.feministas.org/IMG/pdf/La_masculinidad_de_las_biomujeresPlatero.pdf
http://www.feministas.org/IMG/pdf/La_mas...
). Halberstam (2008)Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales. sustenta que a masculinidade feminina só vai parecer incômoda quando ela se interseccionar com a lesbianidade. Em outras palavras, quando “meninas-meninos” não derem “provas” e/ou “sinais” de que o destino heterocentrado de vida está garantido nas famílias, essas, então passarão a regular e empenhar técnicas lesbofóbicas de reeducação de gênero.

A narrativa de Cristiane mostra-nos isso, pois ela deixa claro que as brincadeiras “de menino” vividas na infância “não vinham com preocupações exageradas”. Somente na adolescência foi que sua mãe investiu e interveio em sua vestimenta e no modo de usar o seu cabelo. Atualmente, aos 31 anos, com sua performatividade de gênero alinhada às masculinidades femininas, ela não se reconhece nas imagens dos eventos sociais familiares da adolescência:

Hoje eu olho para as fotos e falo: ai meu Deus, por quê? Tipo, não era eu! ... lembro de quando colocava roupa de menina, porque minha mãe colocava, falava que eu tinha que colocar saia, vestido..., eu não me sentia bem, eu me olhava... eu me sentia horrível. Tanto que eu demorei muito pra construir, demorei muito pra construir o meu estilo. ... Quando eu comecei a trabalhar [dar aulas], eu não sabia que roupa vestir, ... até eu conseguir chegar ao ponto de me vestir masculina, foi um processo, porque eu tinha que usar blusinha, essas coisas e eu não me sentia bem, não me sentia!

O cabelo, signo muito importante da feminilidade normativa, até hoje é um ponto de conflito para Cristiane:

Nossa, meu pai até hoje quando eu corto mais curtinho: “ah você tem que deixar seu cabelo crescer, fica tão bonita de cabelo comprido”, ... até hoje eu não achei um corte de cabelo que eu me identifique, então eu prendo.

A partir do relato de Cristiane, entendemos as forças contínuas de reeducação. Halberstam (2008)Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales., como pesquisador do tema da masculinidade feminina, defende que é muito difícil uma criança “tomboy”4 4 Tomboy é uma expressão em língua inglesa, bastante utilizada nos Estados Unidos, para se referir às meninas que têm interesses e vestimentas socialmente associados aos meninos. /“marimacho”5 5 Marimacho é uma expressão da língua espanhola. O termo associa a palavra Maria com Macho e é atribuído, muitas vezes em situação de xingamento, para se referir às meninas com características, gostos e, principalmente, uma estilística corporal, alinhados à masculinidade. atravessar a juventude e a adolescência com uma performatividade de gênero masculina. Para ele, as forças de readequação são tão intensas, ainda que sutis, que muitas meninas, antes de encontrarem as ferramentas − autonomia e resistência para se constituírem na masculinidade feminina, o que geralmente ocorre na vida adulta −, passam pelo período em que são capturadas pelos investimentos (hetero)corretivos. Compreendemos, então, por que Cristiane demorou para refutar as roupas que não lhe faziam se sentir bem consigo mesma, e por que, ainda hoje, não consegue lidar com o seu próprio cabelo, por exemplo. Há uma tensão entre o que a família considera belo, adequado, e o que ela aprecia para si mesma. Por conta dessa oposição, mantém os cabelos em um lugar “neutro”, em suas palavras: preso.

Para Britzman (1996)Britzman, D. (1996). O que é esta coisa chamada amor – identidade homossexual, educação e currículo. Revista Educação e Realidade, 21(1), 71-96., a prática de reeducação repousa na crença de que, para ter a sexualidade “correta”, é um pré-requisito desenvolver o gênero adequado, aquele que se constitui na coerência entre o órgão genital, a performatividade e o desejo sexual. Assim, após a primeira menstruação, o crescimento dos seios e o aparecimento dos primeiros pelos pubianos, inicia-se o processo para (re)feminizar as meninas, com o intuito de garantir o desejo heterossexual e eliminar a ameaça da lesbianidade (Halberstam, 2008Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales.). Em decorrência disso, Berenice Bento, em entrevista a Dias (2014)Dias, D. M. (2014). Brincar de gênero, uma conversa com Berenice Bento. Cad. Pagu, 43, 475-497., afirma não acreditar que a homossexualidade tenha sido totalmente despatologizada, pois é por meio das regulações intensas de gênero e pela brecha da “disforia de gênero”6 6 “Disforia de gênero” é um termo médico para designar um estado patológico de não conformação com o gênero atribuído ao nascimento. Estava catalogado no CID- 10 (Cadastro Internacional de Doenças) como “Transtorno de Identidade de Gênero” e, até o início de 2018, foi seguido em vários países, incluindo o Brasil. Atualmente, a 11.ª edição do CID não considera a transexualidade um transtorno, mas sim um tema relacionado à saúde sexual. que tais instituições seguem, seja em clínicas, famílias ou mesmo escolas, tentando preveni-la ou mesmo curá-la.

A argumentação das autoras aqui citadas fica visível quando Cristine relata que as vivências na masculinidade no tempo da infância foram ressignificadas pela mãe, diante da lesbianidade da filha, na vida adulta:

Aí minha mãe começou a surtar ..., ela olhava pra minha cara e começava a chorar ... ela teve conversas comigo ..., coisas de falar assim “eu percebi, quando você era criança, você era diferente, mas eu não achei que isso fosse acontecer” e a surgir coisas e coisas.

Cristiane relata vários episódios de sofrimento e de culpa sentidos por sua mãe, diante da dissidência. A mãe passou a rememorar coisas da infância, dezenas de circunstâncias que a fizeram ficar alerta a respeito da sexualidade da filha. Aqueles interesses por futebol, carrinho, por estudo, por correr e brincar de maneira mais livre, por se vestir com tênis e camiseta passaram a ser mobilizados na memória da mãe como os erros, os equívocos, as permissividades, os sintomas que ela poderia ter enfrentado para garantir a heterossexualidade de Cristiane.

Entendemos que a sexualidade não é uma essência denunciada pelos desvios de gênero. Qualquer ideia de que a performatividade de gênero “denuncie” a homossexualidade é um raciocínio frágil diante das várias possibilidades dos sujeitos se constituírem nos códigos das masculinidades e feminilidades. Todavia essa costura existe no imaginário social. Melhor dizendo, ela é produzida: as mulheres têm sido educadas, principalmente após a infância, para que seus corpos se alinhem à feminilidade normativa, exclusivamente para complementarem outro sujeito, alinhado na masculinidade normativa. Dito de outro modo, é a heterossexualidade que exige o alinhamento de gênero (Wittig, 2006Wittig, M. (2006). El pensamiento heterosexual (Cap. III, pp. 45-57). Editora Egales.).

Para Bordo (1997)Bordo, S. (1997). O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault (Cap. I, pp. 19-41). Record; Rosa dos Tempos., um meio histórico de produzir a feminilidade é através das restrições e exigências físicas exercitadas repetidamente nos corpos: modos de sentar, andar, comer, falar, sorrir, limpar-se, enfeitar-se etc. Em sua perspectiva feminista e foucaultiana, na contemporaneidade e nos novos padrões de beleza prescritos para as mulheres, a vigilância e a regulação da alimentação das meninas têm sido um modo, pouco visível, de produção da feminilidade hegemônica e seus fundamentos de leveza, delicadeza, graciosidade, voltados para a apreciação masculina. Adultecer as “meninas-meninos” para que se tornem “belas moças” perpassa também processos de dar contornos mais esguios às formas mais “rechonchudas” e infantilizadas que as crianças gordinhas têm.

Mia recorda que no final da infância, entre 10 e 12 anos, começou a ser incentivada por sua mãe a mudar suas roupas e a se arrumar mais adequadamente com aquilo que a mãe entendia ser comum a uma pré-adolescente: uso de batom claro, bases nas unhas etc. Mesmo não estando muito acima do peso, foi levada por seus pais ao endocrinologista e estimulada a perder peso: “Eu só pensava: vou fazer dieta e vou emagrecer”. Aliado a isso, ela passou a notar que sua mãe, que parecia liberal − inclusive por ter conhecidas lésbicas e um parente gay na família −, começava a fazer comentários negativos frequentes, na presença da filha, sobre a lesbianidade, em especial, acerca “do jeito” das lésbicas masculinas:

Quando eu era mais nova e fui pro futebol ... minha mãe não falou nada, foi mais pra frente que ela começou a falar... tinha um casal que meus pais tinham amizade, e a irmã dessa mulher era lésbica, e eles sempre faziam festa, churrasco, coisa de casal. Uma vez essa mulher tava visitando a irmã dela e minha mãe voltou da festa criticando essa mulher “precisa ser assim?”, “precisa ser daquele jeito?”, “gorda daquele jeito?”, “precisa falar daquele jeito?” ... Outra vez, eu lembro, eu vim no centro, lembro que tem essas lanchonetes chinesas em Prudente e tinha um casal assim, elas eram mais velhas, sabe?! Uma mulher feminina e outra bem masculina, roupa larga, militar. Ela era uma caminhoneira mesmo. Eu lembro que minha mãe não falou nada, mas ela olhava pra mulher, não parava, olhando... e eu incomodada com aquilo, e ela ali olhando de canto de olho, ela não precisou falar nada. Depois, uma vez, eu tinha uns 14 anos, e a gente estava num shopping e, segundo ela, tinha uma lésbica olhando pra ela, e ela falou: “Olha, olha, aquilo fica olhando pra mim”, a mulher tinha jeito de lésbica, grandona, quadradona, cabelo curto e ela falou: “Nossa...que isso, fica olhando pra gente, fica encarando”. Ela não falava assim de “vai pro inferno”, “essa pessoa tem que morrer”, mas era tipo ...que a pessoa era errada. ... Não teve essa coisa explícita de falar que é errado, mas eu percebia que pra ela tinha um jeito certo de ser.

O comportamento da mãe de Mia permite-nos conjeturar dois aspectos da educação corretiva: primeiro, as mulheres são educadas de modos bastante sutis (Lamas, 2015Lamas, M. (2015). ¿Mujeres juntas?: reflexiones sobre las relaciones conflictivas entre compañeras y los retos para alcanzar acuerdos políticos. Inmujeres; ILS.), porém fortes e poderosos através da relação entre mãe e filha (Lorenzo, 2003Lorenzo, A. A. (2003). Identidades lésbicas y cultura feminista: una investigación antropológica. Plaza y Valdes.); o segundo aspecto revela que é por meio da delimitação do outro como abjeto que se ensina o desejável (Butler, 2004Butler, J. (2004). Deshacer el género. Paidós.). Quando Mia explica que a mãe não precisava falar nada diretamente para que ela aprendesse como era grotesco ser uma “sapatona”, “gorda”, “grande”, “masculina”, podemos relacionar tal contexto às elaborações de Lamas (2015)Lamas, M. (2015). ¿Mujeres juntas?: reflexiones sobre las relaciones conflictivas entre compañeras y los retos para alcanzar acuerdos políticos. Inmujeres; ILS. a respeito dos modos pelos quais as mulheres empregam violências sutis para mudar as condutas das pessoas que as rodeiam – neste caso, o comportamento da filha. Para a autora, a agressividade feminina é culturalmente expressa, permitida e alimentada, com frequência, de modo indireto, sem confronto e desprovido de elaboração discursiva concreta. Na visão da antropóloga, essa forma não confrontadora de agir tem como objetivo “lograr que la otra persona modifique cierta conducta que nos afecta, lastima o enoja, pero se hace sin dar la cara, vía el comentario malicioso o la frialdad” (Lamas, 2015Lamas, M. (2015). ¿Mujeres juntas?: reflexiones sobre las relaciones conflictivas entre compañeras y los retos para alcanzar acuerdos políticos. Inmujeres; ILS., p. 52). Às vezes, a correção se exerce como uma forma de impor vergonha ao outro, por algo que se considera uma ofensa. Nas palavras da pesquisadora: “Muchas veces se lleva a cabo con la esperanza de que la persona recapacite sobre su conducta y aprenda: se trata de dar una lección” (p. 52). Essas práticas corretivas e agressivas, por serem sub-reptícias, não são muito discutidas, o que impede a sua própria problematização e superação.

O segundo aspecto, que se liga ao que acabamos de expor, diz respeito às diversas formas, quase invisíveis, de inferiorizar o outro para marcarmos “nossa normalidade”. Na discussão da homofobia, Borrillo (2010)Borrillo, D. (2010). Homofobia: História e crítica de um preconceito. Autêntica. e Eribon (2008)Eribon, D. (2008). Reflexões sobre a questão gay. Companhia de Freud. debatem como existem diversificadas maneiras de os sujeitos demonstrarem nojo em relação a pessoas sexualmente dissidentes, e uma dessas ações vale-se de descrições grotescas, aberrativas e desumanizadas. No relato de Mia, a mãe tenta ensiná-la, pelo jogo do olhar, que é bastante asqueroso não ser uma mulher magra, pequena, feminina, heterossexual.

A participante Towanda poderia ser uma das mulheres que a mãe de Mia desprezava, pois ela, atualmente recém-operada de uma redução de estômago, com performatização de gênero alinhada na masculinidade feminina e negra, esteve boa parte de sua vida exposta a esses mesmos olhares e julgamentos pesadíssimos, resultados da intersecção da gordofobia com a lesbofobia:

Eu falo pra você ... mas eu nunca passei tanto preconceito na vida quanto por ser obesa, ... a minha vida toda eu fui muito violentada por causa da obesidade ... é um preconceito invisível, as pessoas pouco debatem sobre isso ... quando você é gordo ou gorda você não é aceito em nenhum lugar ... você é sempre preterido, entendeu? ... as pessoas ficam usando aquele discurso “você tem que emagrecer por causa da sua saúde”, mas não é, as pessoas não aceitam as pessoas obesas. ... Se você é gordo, você não tem sex appeal, ... as pessoas não olham pra você ..., eu diria assim, as maiores violências que eu sofri na vida foi mais... lógico que acaba casando com as outras, mas vai muito mais no viés da obesidade do que das outras duas linhas [do racismo e da lesbofobia].

E, muitas vezes, esses ensinamentos para a feminilidade padrão podem extrapolar completamente os limites e acabam por castigar os corpos das meninas, como acontecia com Jenifer, que chegava a passar fome porque a sua avó materna queria “consertá-la” por meio do jejum:

Porque a mãe da minha mãe era um demônio, ela não deixava eu comer pra você ter uma noção, porque eu tinha que ser magra ... Eu chorava, porque, durante a semana, eu ia pra mãe da minha mãe e, final de semana, eu ia pra mãe do meu pai. Então durante a semana, era 07h:30 café da manhã, 12h30 almoço e 18h era a janta, era isso que eu comia o dia todo, porque eu tinha que ser magra!

Jenifer acrescenta o desejo de sua avó de torná-la magra e mais graciosa como algo próprio de sua lesbofobia.

No caso de Patrícia, os incentivos da mãe para que ela e seu pai, que também estava fora do peso, emagrecessem eram bastante frequentes. Os investimentos familiares fizeram com que Patrícia sempre tivesse uma relação constante com dietas que se acentuaram no início da vida adulta, quando ingressou na universidade:

Minha mãe tinha essa cobrança, cobrança pra emagrecer, emagrecer, emagrecer, tanto que quando eu estava magra, nossa, ela: “Ai que linda, ai que linda...” nossa, era um show dela sabe? “Agora vai ter namorado!” Acho que era a maior expectativa, a cada final de semana que eu ia [para casa, pois nesse período estudava em outra cidade], ela: “Como ela tá linda, magra, com esse cabelo enorme ... olha essa foto sua, filha!” tipo: “Como os moleques não querem namorar você?”. Ela ficava de cara, quando eu era magra, minha mãe me achava muito linda e dava incentivo pra eu continuar magra ... Então, minha mãe olhava aquilo tudo “Você é jovem! Como você é linda! Você tá numa faculdade pública, nossa...”. E acho que meu pai também, “Que homem que não ia querer ficar com você?”, “Nossa, olha...” sabe?. “Você tá muito bonita! Tá com um corpo muito bonito! Com um rosto muito bonito! ... aí foi indo, foi indo e não indo, não indo e frustrou!.

A narrativa de Patrícia é bastante alinhada com os argumentos de Butler (2003)Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira., de que os sujeitos são compreendidos na rígida sequência lógica sexo-gênero-desejo. A família de Patrícia apostou que as mudanças que ela estava fazendo em seu peso, deixando o cabelo crescer, seriam suficientes para deixar para trás a infância na masculinidade feminina e, por consequência, “nasceria” o desejo heterossexual. Talvez, a questão não seja tanto de fazer “brotar” a sexualidade “correta”, mas de tornar Patrícia apta para exercê-la. Existem discursos que, no intento de despotencializar a lesbianidade, pontuam que as vivências dissidentes são resultado de uma espécie de amargura, insegurança, rejeição causada pelos homens.

Em outras palavras, agora com a performatividade de gênero “ajustada” pela educação familiar, a entrevistada estaria “livre” para amar os homens e ser correspondida por eles. Ainda nesse aspecto, como não nos lembrarmos da atriz e comediante brasileira Claudia Jimenez, quando, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, no ano de 2011, declarou ter sido lésbica boa parte da vida porque era gorda? “Não tinha sensualidade, era muito mais gorda do que sou hoje. Não tinha forma, nem vaidade. Achava que não tinha cacife para seduzir um homem. Como tinha de ser amada, me joguei nas mulheres” (Neves, 2011Neves, L. (2011). Claudia Jimenez diz que rejeição fez aflorar seu lado cômico. Folha de S. Paulo, 13 de março de 2011. Folha Ilustrada. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2011/03/887398-claudia-jimenez-diz-que-rejeicao-fez-aflorar-seu-lado-comico.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2...
).

As regulações de gênero feitas por meio do peso no corpo de Patrícia não pararam, pois, na dificuldade de manter o peso, a ausência de um primeiro namorado durante a graduação sempre a expunha novamente às investidas mais explícitas para uma mudança, culminando na intervenção de seu pai, que pediu diretamente à esposa que parasse com os comentários e as avaliações, uma vez que a situação estava insustentável:

Mas estava tão bonita, por que você tá relaxando?”, “Por que você tá relaxando? “Não engorda, não!”, “Você estava linda, maravilhosa, perfeita! Não engorda, não!”, “Isso é tão feio, olha suas tias pro lado do seu pai, você vai ficar igual a tia, gorda, assim, enorme, não faz isso não!” .... Emagrece, emagrece, emagrece! Sempre teve esse incentivo pra emagrecer, sempre foi uma coisa bem presente, e uma coisa que me irritava na minha mãe, sabe?! De dar brigas entre eu, meu pai e minha mãe. Meu pai falou: “Pelo amor de Deus, Ana! É horrível você falar isso pra ela!”, “Eu sou gordo também, você não tá contente arruma um marido magro, chega!”, “É, ela é gorda, ela é minha filha!”, “Olha as mulheres da minha família, ela não vai ser igual a sua família, as suas irmãs são magrinhas, a Mara [irmã da mãe da narradora] só que é um pouco mais, mas todas as irmãs são magras, mas na minha família a genética não é essa! Chega de fazer isso, chega de falar.”, tanto que a minha mãe desencanou ..., mas, nossa, foi uma época de encheção de saco com a gordura, chegava e falava: “Por que come? Por que é gordo? Você acha bonito? Você acha saudável?”.

Patrícia explica que, para sua mãe, existia uma ligação muito direta entre ser bonita, magra, feminina e, graças a isso, poder ter um namorado de valor, ou seja, um homem com características físicas e com personalidade suficientemente boas por quem a filha pudesse se apaixonar. Dentro das explicações possíveis às quais recorria para entender a lesbianidade, a perspectiva da mãe era de que somente as mulheres rejeitadas, aquelas que não poderiam ser amadas pelos bons homens, pelos pretendentes de valor, tornavam-se suscetíveis ao desvio da “sexualidade normal”.

Para finalizar, compreendemos, a partir das narrativas das participantes do estudo, que o lar, além de um lugar de acolhimento, afetividade, segurança, cuidado e educação, apresenta-se como um espaço de controle e de vigilância das performatividades de gênero e das vivências da sexualidade. A família apareceu, em muitos momentos, encarregada de detectar os desvios e de elaborar meios para corrigi-los. A “correção” da lesbianidade das narradoras, por meio do realinhamento de gênero na feminilidade hegemônica, é o que tentamos sustentar aqui como lesbofobia familiar.

Percebemos, após a discussão teórica e a análise dos relatos de vida, que a lesbofobia, no seio da família, é um fenômeno complexo, de difícil compreensão porque se manifesta e se desenvolve de maneira diferente da homofobia. As narrativas indicam-nos uma primeira ideia de aceitação e tolerância das masculinidades no corpo das meninas. Todavia, após a infância, essa masculinidade, ao ser interseccionada com a lesbianidade, passa a ser interpretada como desvio preocupante de gênero (Halberstam, 2008Halberstam, J. (2008). Masculinidad femenina. E. Egales.). A violência lesbofóbica, como modo de produzir a heterossexualidade, aparece e camufla-se de diversas maneiras dentro de uma casa, com o agravante de que são as mães quem geralmente tutela as performatividades de gênero das meninas e, dessa relação mãe-filha, variados ensinamentos e violências são empregados de modo bastante silencioso (Lorenzo, 2012Lorenzo, A. A. (2012). La construcción cultural de la lesbofobia. Una aproximación desde la antropología (Cap. VII, pp. 125-146). UNAM, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades.).

Considerações finais

Em nossos encontros com os feminismos acadêmicos, realizando leituras que questionam as relações que as mulheres têm com o conhecimento – comunicação, silêncio, subjetividade, sexualidade, entre outros –, buscamos ratificar que as lesbianidades nos espaços das poderosas instituições que nos educaram (família, escola, igreja e universidade, entre outras) não são primordialmente aceitas, toleradas ou ignoradas, imunes, alheias às práticas (hetero)corretivas, em especial quando são interseccionadas com as performatividades de gênero discordantes da feminilidade hegemônica ou alinhadas às masculinidades femininas.

A hipótese, nesse sentido, era de que sujeitos constituídos na lesbianidade são alvos, tanto na família como no processo de educação formal, de investimentos educativos heteronormativos – ainda que possam ser silenciosos e pouco visíveis – que ora são capturados por eles, ajustando-se conforme as expectativas dessas instituições, ora resistem, de diversas formas, e criam estratégias próprias para sobreviverem à violência lesbofóbica e se autorrepresentarem como lésbicas.

Problematizar os relatos de preconceito e de violência para pensar a lesbofobia como técnica de ensino e conformação de meninas na (hetero) norma foi, para nós, a discussão fulcral do trabalho, pois, além de conceituar a lesbofobia e identificá-la nas narrativas de vida, precisávamos pensar nos momentos em que ela foi acionada, especificamente para readequar os corpos das mulheres participantes do estudo às normas de gênero. Nas narrativas de vida, percebemos os modos como as performatividades de gênero das participantes foram toleradas, aceitas, observadas, vigiadas, negociadas, refutadas e (re)educadas pela família. É a instituição familiar a primeira a zelar pela inteligibilidade de gênero. Ademais, percebemos o recurso da lesbofobia como maneira de preparar os corpos das garotas para a heterossexualidade compulsória: emagrecer, vestir roupas femininas e embelezar-se foram atos encarados como maneira de afastar a ameaça lesbiana e tornar as meninas mais maduras, ou seja, mulheres aptas a exercerem a (hetero)sexualidade.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Farah - farahledamaria@gmail.com
  • 3
    Nossa pesquisa trabalha com nomes fictícios, e a escolha foi das próprias entrevistadas. O estudo é acompanhado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos brasileiro, CAAE: 68135317.4.0000.5402.
  • 4
    Tomboy é uma expressão em língua inglesa, bastante utilizada nos Estados Unidos, para se referir às meninas que têm interesses e vestimentas socialmente associados aos meninos.
  • 5
    Marimacho é uma expressão da língua espanhola. O termo associa a palavra Maria com Macho e é atribuído, muitas vezes em situação de xingamento, para se referir às meninas com características, gostos e, principalmente, uma estilística corporal, alinhados à masculinidade.
  • 6
    “Disforia de gênero” é um termo médico para designar um estado patológico de não conformação com o gênero atribuído ao nascimento. Estava catalogado no CID- 10 (Cadastro Internacional de Doenças) como “Transtorno de Identidade de Gênero” e, até o início de 2018, foi seguido em vários países, incluindo o Brasil. Atualmente, a 11.ª edição do CID não considera a transexualidade um transtorno, mas sim um tema relacionado à saúde sexual.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2019
  • Revisado
    23 Abr 2020
  • Aceito
    01 Set 2020
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