Acessibilidade / Reportar erro

Malhar como metáfora da exercitação física 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha. e-mail: verah.bonilha@gmail.com 3 3 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - Processo nº: CHE - APQ-01955-15

“Malhar” como metáfora del ejercicio físico

Resumo

Tendo como objeto de investigação o emprego metafórico, no Brasil, da palavra malhar associado à exercitação física, esta pesquisa busca contribuir para a compreensão vinculada ao problema da motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas. Participaram do “método de associação livre” 194 pessoas adultas, citando de uma a três palavras ou expressões que lhes tivessem vindo imediatamente à lembrança, a partir do termo indutor malhar. Na sequência, realizaram-se dez entrevistas. Concluiu-se que há correlação entre a atuação profissional em educação física e o problema investigado. Com a exigência da performance, produz-se um afeto negativo (inconsciente) que opera no corpo como uma força (cansaço, desânimo, sofrimento).

Palavras-chave
atividade física; educação física; afeto; motivação

Resumen

Teniendo como objeto de estudio el uso metafórico, en Brasil, de la palabra “malhar” (machacar) asociado con el ejercicio físico, esta investigación busca contribuir a la comprensión relacionada con el problema de la motivación para la práctica regular de actividades fisico-deportivas. 194 adultos participaron del “método de asociación libre”, citando de una a tres palabras o frases que vinieron a la mente inmediatamente, a partir del término inductor “malhar”. A continuación, realizamos diez entrevistas. Concluimos que existe una correlación entre el desempeño profesional en educación física y el problema investigado. Con la demanda de rendimiento, se produce el afecto negativo (inconsciente) que opera en el cuerpo como una fuerza (cansancio, desánimo, sufrimiento).

Palabras clave
actividad física; educación física; afecto; motivación

Abstract

This research seeks to contribute to the understanding of the problem of motivation to the regular practice of physical and sporting activities. To do so, we analyze the metaphorical use of the word “malhar”, which, in Brazil, is associated with physical exercise. One hundred ninety four people participated in the “free association method”, by saying from one to three words or expressions that came immediately to their minds, from the inductor term “malhar”. We also conducted ten interviews. We conclude that there is a correlation between professional performance in physical education and the problem investigated. The demand for performance produces a negative (unconscious) affection that operates in the body as a force (tiredness, discouragement, and suffering).

Keywords
physical activity; physical education; affection; motivation

No Brasil, a palavra malhar passa a ser utilizada como metáfora da exercitação física, e ganha força simultaneamente nos programas televisivos (novelas e humorísticos) e nas canções que passam a utilizá-la como tema, com grande sucesso (Coelho Filho, 2007Coelho Filho, C. A. A. (2007). Metamorfose de um corpo “andarilho”: busca e reencontro do “algo” melhor. Casa do Psicólogo.). Em 1983, por exemplo, o compositor Marcos Valle gravou o LP “Marcos Valle”, contendo canções de sua autoria, dentre as quais “Estrelar” (cujo single vendeu cerca de 90 mil cópias, quase alcançando um Disco de Ouro), que diz em um trecho: “Tem que correr, tem que suar, tem que malhar...”. Considere-se aqui o poder de persuasão midiático (o status midiático) e sua relação com a linguagem, mas também a historicidade da metáfora.

Ricoeur (1975Ricoeur, P. (1975). La métaphore vive. Le Seuil., 2011[2010])Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010), ecoando a oposição situada por Benveniste (2005[1966])Benveniste, É. (2005). Problemas de Linguística Geral I (5a ed., M. G. Novak e M. L. Neri, Trad.). Pontes. (Original publicado em 1966) entre semântica e semiótica, observa que a metáfora é sempre portadora de uma significação emergente conferida por alguns contextos específicos e pode ser considerada uma criação linguística ou, mais precisamente, uma inovação semântica. Contudo, se a metáfora passa a ser adotada por uma parte importante da comunidade de língua, pode, por sua vez, tornar-se uma significação usual e juntar-se à polissemia das entidades lexicais. Nesse último estágio, quando o efeito de sentido a que chamamos metáfora alcançar a mudança de sentido que aumenta a polissemia, nos termos de Ricoeur, a metáfora deixará de ser metáfora viva e passará a ser metáfora morta.

Conforme Benveniste (2005[1966])Benveniste, É. (2005). Problemas de Linguística Geral I (5a ed., M. G. Novak e M. L. Neri, Trad.). Pontes. (Original publicado em 1966), a semântica é a ciência das frases, e a semiótica é a ciência dos signos. A semiótica corresponde ao que Saussure (2006[1916])Saussure, F. (2006). Curso de linguística geral (27a ed., A. Chelini, J. P. Paes & I. Blikstein, Trad.). Cultrix. (Original publicado em 1916) chamou de língua, isto é, uma estrutura inconsciente e formal na qual os signos não significam e, portanto, não remetem a um referente ou a uma realidade específica, mas valem em oposição aos outros signos no interior do sistema inconsciente. Eles não são mais signo de (uma representação), mas têm o seu valor imanente ao sistema da língua.

No Curso de linguística geral, ao distinguir valor e significação, Saussure (2006[1916])Saussure, F. (2006). Curso de linguística geral (27a ed., A. Chelini, J. P. Paes & I. Blikstein, Trad.). Cultrix. (Original publicado em 1916) afirma que o valor de uma palavra não estará fixado,

enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser “trocada” por este ou aquele conceito, isto é, que tem esta ou aquela significação; falta ainda compará-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor. Seu conteúdo só é verdadeiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, está revestida não só de uma significação como também, e sobretudo, de um valor, e isso é coisa muito diferente [ênfase no original].

(p. 134)

Em Escritos de linguística geral, encontramos:

é preciso reconhecer que valor exprime, melhor do que qualquer outra palavra, a essência do fato, que é também a essência da língua, a saber, que uma forma não significa, mas vale: esse é o ponto cardeal. Ela vale, por conseguinte ela implica a existência de outros valores [ênfases no original].

(Saussure, 2004Saussure, F. (2004). Escritos de linguística geral (C. A. L. Salum e A. L. Franco, Trad.). Cultrix. (Original publicado em 2002)[2002], p. 30)

É na semântica que a significação opera, quando o signo que só tem o seu valor imanente ao sistema (semiótica) se torna fala (discurso) e se enraíza na realidade e passa a significar (semântica). O signo, no interior do sistema e na sua divisão significante/significado, é pura forma e possui um valor. Quando é atualizado na fala e ocupa a posição de frase ou de discurso mais longo e complexo ao ser enunciado por um falante particular, o signo pode atualizar o sistema inconsciente. Toda inovação semântica surge na fala e numa frase particular (individual), para depois se introjetar na língua, esta estrutura inconsciente e coletiva. Uma metáfora viva, para Ricoeur (1975, 2011[2010])Ricoeur, P. (1975). La métaphore vive. Le Seuil., é o que faz com que uma palavra receba, a partir de um contexto específico, novos sentidos e se desloque da posição anterior, se introjetando na língua e modificando a própria estrutura inconsciente, atualizando o sistema de signos. Ao colocar a história no interior do sistema, a metáfora ressignifica a realidade.

A palavra malhar, introjetada no inconsciente, tem a sua história de transformação da fala para a língua, da semântica para a semiótica: ela já foi uma metáfora viva e uma inovação semântica que, posteriormente, se enraizou na nossa língua com um novo sentido relativamente estabilizado. É esse sentido que se enraíza em nossa compreensão de mundo e que tem uma história, a própria história do “malhar” como metáfora viva. A história da transformação da palavra malhar é, também, a história de produção dos indivíduos falantes.

Fazemos então três registros relacionados à historicidade da palavra malhar: (1) etimologicamente, ela tem em si a ideia de mancha (mácula), de bater, contundir e dar pancada, de castigar o corpo, de zombar e escarnecer; (2) a ação contextual que favoreceu a instauração da nova significação, especificamente, que fez com que se estabelecesse como metáfora (viva) da exercitação física em nosso país, torna-se evidente na década de 1980, no bojo do que Courtine (1995)Courtine, J.-J. (1995). Os stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In D. B. de Sant’Anna (Org.), Políticas do corpo (pp. 81-114). Estação Liberdade. identifica como desenvolvimento considerável do mercado de produtos e serviços destinados à “manutenção” do corpo; (3) somente a partir da virada do século XXI é que passa a figurar em dicionários significado relacionando-a à prática do exercício físico; no “Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa”, é na “3.ª edição revista e atualizada”, publicada em 2004, que encontramos “fazer ginástica vigorosa visando a musculação ou emagrecimento” (Ferreira, 2004Ferreira, A. B. H. (2004). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (3a ed., rev. e atual.). Positivo., p. 1257).

Portanto, ainda que o corpo que “malha” possa remeter para a imagem de um corpo dotado de supervitalidade (Teixeira & Caminha, 2010Teixeira, F. L. S., & Caminha, I. O. (2010). A supervitalidade como forma de poder: um olhar a partir das academias de ginástica. Revista Movimento, 16(3), 203-220. https://www.seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/12295/10016
https://www.seer.ufrgs.br/Movimento/arti...
), ou o ato de “malhar” representar um meio de resistência às diferentes formas de decadência física (Santos & Salles, 2009Santos, S. F., & Salles, A. D. (2009). Antropologia de uma academia de musculação: um olhar sobre o corpo e um espaço de representação social. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 23(2), 87-102. https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16713/18426
https://www.revistas.usp.br/rbefe/articl...
), quando focamos o problema da motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas (Coelho Filho, 2014), a “pré-compreensão” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 99)4 4 “Para compreender um texto é preciso ter uma pré-compreensão anterior. E essa pré-compreensão não pode ser eliminada sem o risco de romper o pacto entre o interpretante e o interpretado que garante ao intérprete o acesso às intenções de sentido do texto. Do ponto de vista epistemológico, essa implicação do intérprete na coisa interpretada só pode parecer uma fraqueza, uma tara subjetivista, diante da objetividade que parece exigir o ideal de cientificidade. Heidegger justifica o círculo hermenêutico mostrando que a fraqueza epistemológica aparente deriva de sua força ontológica real: o círculo mais original, com efeito, é aquele que existe sempre entre a pré-compreensão e a situação intramundana a interpretar. O círculo não é vicioso, mas constitui a condição positiva do conhecimento mais original” (Ricoeur, 2011[2010], p. 99). nos convida a explorar uma hipótese: de que o movimento de apropriação da palavra malhar para caracterizar a prática do exercício físico tenha ocorrido ancorado, consciente ou inconscientemente, ao sentido etimológico de castigar o corpo, isto é, ao ato de violência contra uma matéria que deve ser moldada a golpes (Coelho Filho, 2007Coelho Filho, C. A. A. (2007). Metamorfose de um corpo “andarilho”: busca e reencontro do “algo” melhor. Casa do Psicólogo.; Hansen & Vaz, 2004Hansen, R., & Vaz, A. F. (2004). Treino, culto e embelezamento do corpo: um estudo em academias de ginástica e musculação. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 26(1), 135-152. http://oldarchive.rbceonline.org.br/index.php/RBCE/article/viewFile/109/119
http://oldarchive.rbceonline.org.br/inde...
).

Dois elementos se ligam a essa hipótese de trabalho: o primeiro, referente a algo que lhe determina; o segundo, à sua especificidade. Quanto ao primeiro elemento, a atenção se volta para o campo de atuação profissional em educação física (escolar ou não), ato contínuo, para as práticas corporais que se estruturam fundamentadas pela lógica do rendimento físico e esportivo e exigência da performance (Coelho Filho, 2007Coelho Filho, C. A. A. (2007). Metamorfose de um corpo “andarilho”: busca e reencontro do “algo” melhor. Casa do Psicólogo.; Hansen & Vaz, 2004Hansen, R., & Vaz, A. F. (2004). Treino, culto e embelezamento do corpo: um estudo em academias de ginástica e musculação. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 26(1), 135-152. http://oldarchive.rbceonline.org.br/index.php/RBCE/article/viewFile/109/119
http://oldarchive.rbceonline.org.br/inde...
). Como assinala Carvalho (2020)Carvalho, Y. M. (2020). Correndo da atividade física e seguindo os gestos… para pensar uma educação física mais propositiva. In F. Wachs, L. Lara, & P. Athayde (Orgs.), Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE (Vol. 11, Atividade física e saúde, pp. 51-64). EDUFRN., fazendo alusão à formação universitária em educação física, quando “o tema é o corpo, por exemplo, a ideia de ‘homem-máquina’ e as práticas decorrentes dessa lógica de pensamento ainda prevalecem [ênfase no original]” (p. 52). Quanto à especificidade da hipótese, o próprio enunciado já traz em si seu potencial epistemológico e de intervenção na realidade: parece oferecer subsídios para se compreender por que muitas pessoas iniciam a prática de exercícios físicos estimuladas por várias razões, mas não conseguem incorporá-la em seu cotidiano, deixando-a de lado na maioria das vezes (Santos & Knijnik, 2006Santos, S. C., & Knijnik, J. D. (2006). Motivos de adesão à prática de atividade física na vida adulta intermediária. Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte, 5(1), 23-34. http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/remef/article/view/1299/1002
http://editorarevistas.mackenzie.br/inde...
). Coelho Filho (2007)Coelho Filho, C. A. A. (2007). Metamorfose de um corpo “andarilho”: busca e reencontro do “algo” melhor. Casa do Psicólogo. observa que, para a prática regular de atividades físico-esportivas, é preciso desejo, satisfação de necessidade psíquica, e pergunta: por que muitas vezes o sujeito deseja, mas não adquire o comportamento na prática? A determinação, seja “positiva” ou “negativa”, vem de onde?

Ricoeur (2011[2010])Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010) elabora sobre o porquê da ação:

Uma ação é, ao mesmo tempo, certa configuração de movimentos físicos e uma realização possível de ser interpretada em termos de intenções e motivos. (...) A semântica da ação mostra aqui uma categoria mista, a do desejo, que exige a fusão das categorias psíquicas, exclusivamente reservadas às pessoas, com categorias físicas comuns a pessoas e coisas.

(p. 41)

Decerto, com relação às atividades físico-esportivas5 5 O termo atividade físico-esportiva tem sido utilizado na literatura científica para caracterizar as práticas corporais que se tornaram tradicionais no campo da educação física, como as ginásticas, os esportes, os jogos, as danças (Coelho Filho, 2014). Atividade física pode ser compreendida de forma genérica, isto é, associada aos mais variados movimentos corporais, e que resulta em gasto de energia maior do que os níveis de repouso. Exercício físico, por sua vez, pode ser compreendido como uma atividade física planejada, ou, dito em outras palavras, uma atividade física que se baseia em uma sistematização, em um método, com vistas ao alcance de objetivos, por exemplo, pedagógicos, relacionados à saúde ou à beleza. Além das ginásticas, o sujeito pode lançar mão dos esportes, dos jogos e das danças com o objetivo de se exercitar, fundamentado em algum método, alguma sistematização. Nesse sentido, as atividades físico-esportivas podem ser entendidas como exercício físico (exercitação física), mas também como atividade física. realizadas e as não realizadas, mais precisamente, o que impulsiona as pessoas, ou não, ao encontro delas, é mote da política pública e objeto de valor científico. A Organização Mundial da Saúde, ao argumentar em favor do “Plano de ação global para a atividade física 2018-2030” (World Health Organization, 2018World Health Organization. (2018, 1 de junho). Global action plan on physical activity 2018–2030: more active people for a healthier world. https://www.who.int/publications/i/item/9789241514187
https://www.who.int/publications/i/item/...
), adverte que o mundo está se tornando menos ativo, que os níveis de inatividade aumentam à medida que os países se desenvolvem do ponto de vista econômico. Para Palma (2020)Palma, A. (2020). Tensões e possibilidades nas interações entre Educação Física, saúde e sociedade. In F. Wachs, L. Lara, & P. Athayde (Orgs.), Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE (Vol. 11, Atividade física e saúde, pp. 15-28). Natal, RN: EDUFRN., torna-se necessária uma atitude que encare a adesão às atividades físicas/práticas corporais como um fenômeno complexo, em que diferentes atributos atuam sinergicamente ou em antagonismo para o desfecho final.

Assim, tendo por base a hipótese de que o emprego metafórico da palavra malhar associado à exercitação física ocorreu ancorado, consciente ou inconscientemente, ao sentido etimológico de castigar o corpo, e a relação dessa hipótese com o campo de atuação profissional em educação física (escolar ou não), o que objetivamos com esta pesquisa é desvelar elementos que possam contribuir para a compreensão vinculada ao problema da motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas.

Método

Esta pesquisa é de natureza qualitativa. A tradição hermenêutica das abordagens qualitativas parte do pressuposto de que as pessoas agem em função de suas crenças, percepções, sentimentos e valores, e que seus comportamentos seguem a ordenação de um sentido, que não se dá a conhecer de modo imediato, necessitando ser desvelado (Alves, 1991Alves, A. J. (1991). O planejamento de pesquisas qualitativas em educação. Cadernos de Pesquisa, 77, 53-61. https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/473883
https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/473...
). Segundo Frey (2011)Frey, D. (2011). (Apresentação) A obra de Ricoeur e a hermenêutica. In P. Ricoeur, Escritos e conferências 2: hermenêutica (pp. 7-12). Loyola., a “inclinação natural da hermenêutica, definida como uma ‘teoria geral da interpretação’, é ligar-se escrupulosamente à interpretação dos signos humanos, sejam eles símbolos, textos ou quase textos (ações) [ênfase no original]” (p. 8). Nesse caminho, destacamos rapidamente uma dificuldade específica. Nesta investigação nós lidamos com a metáfora viva, portanto, com o “problema do retorno do signo para a coisa no nível do enunciado metafórico” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 32). Assim, foi preciso traçar o caminho metodológico, restringindo os problemas da interpretação à dimensão da referência, “entendida como a possibilidade de o discurso se aplicar a uma realidade extralinguística a respeito da qual ele diz o que diz” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 72). Citem-se as questões de fundo: a palavra malhar passa a ser utilizada como metáfora da exercitação física (diz o que diz), por quê? Qual a referência?

No âmbito da pesquisa qualitativa em que a complexidade do objeto e a criatividade do pesquisador podem determinar a escolha dos instrumentos que serão utilizados para coletar as informações (Alves, 1991Alves, A. J. (1991). O planejamento de pesquisas qualitativas em educação. Cadernos de Pesquisa, 77, 53-61. https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/473883
https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/473...
), para que pudéssemos ter a oportunidade de considerar o maior número de fatos fornecidos pelo texto, a opção foi por realizar a coleta de dados empíricos por meio do “método de associação livre” e da “entrevista”, conforme os procedimentos descritos a seguir.

Procedimentos

A coleta de dados empíricos, realizada pelos próprios pesquisadores, foi subdividida em duas etapas. Ambas foram interrompidas mediante a consideração de que as informações captadas estavam suficientemente confirmadas e com poucas possibilidades de emergirem novos dados relevantes que justificassem a continuidade da coleta.

Inicialmente, por intermédio do “método de associação livre” (Sá, 1996Sá, C. P. (1996). Núcleo central das representações sociais. Vozes.), aproximamo-nos dos elementos da representação social do malhar. O foco dessa primeira etapa foi o sentido literal que é a totalidade da área semântica, portanto o conjunto dos usos contextuais possíveis que constituem a polissemia de uma palavra. Como assinala Ricoeur (2011[2010])Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010), no nível lexical as palavras “têm mais de uma significação; somente por uma ação contextual específica de triagem é que elas assumem numa determinada frase uma parte de seu potencial semântico e adquirem o que denominamos um sentido determinado” (p. 74).

A associação ou evocação livre consiste em se pedir aos participantes que, a partir de um termo indutor apresentado pelo pesquisador, digam as palavras ou expressões que lhes venham imediatamente à lembrança. O “método de associação livre” apresenta benefícios pelo seu caráter espontâneo e pela sua dimensão projetiva, permitindo o acesso, muito mais fácil e rapidamente do que em uma entrevista, aos elementos que constituem o universo semântico do termo ou do objeto estudado (Sá, 1996Sá, C. P. (1996). Núcleo central das representações sociais. Vozes.).

Nessa primeira etapa, contamos com a participação voluntária de 194 pessoas adultas (114 homens e 80 mulheres). Elas foram abordadas em locais públicos da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, e convidadas a colaborar com a pesquisa, citando de uma a três palavras ou expressões que lhes tivessem vindo imediatamente à lembrança, a partir do termo indutor (malhar). As evocações foram registradas em um minigravador. Do total de 436 evocações, registramos 137 diferentes, que foram reduzidas por afinidade semântica a seis categorias: sentido etimológico; exercício; condição; saúde; beleza; sensação/sentimento. O conjunto de evocações correspondente a cada uma das categorias aparece, na próxima seção do trabalho, em um quadro.

Tendo desvelado os possíveis elementos da representação social e, então, nos aproximado dos usos contextuais que constituem atualmente a polissemia da palavra malhar, seguimos para a segunda etapa da coleta de dados empíricos, com a realização de dez entrevistas. Nessa fase, os participantes da pesquisa foram recrutados a partir do círculo de conhecidos dos pesquisadores, tendo por base os critérios de inclusão: (1) ter entre 40 e 60 anos de idade; (2) possuir formação universitária (graduação ou pós-graduação) em cursos integrantes do “colégio de humanidades” da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Fundação Capes, 2019Fundação Capes (2019, 3 de julho). Sobre as áreas de avaliação. http://www.capes.gov.br/avaliacao/sobre-as-areas-de-avaliacao
http://www.capes.gov.br/avaliacao/sobre-...
). A justificativa para a adoção desses dois critérios de inclusão está nas contribuições que, esperava-se, viessem a trazer para o estudo pessoas que viveram um período (décadas de 1980 e 1990) em que a palavra malhar ainda não tinha se juntado à polissemia das entidades lexicais associada à exercitação física, possuidoras de formação vinculada às humanidades e possivelmente familiarizadas com as pesquisas qualitativas e o exercício de pensamento crítico objetivado. Os critérios ampararam-se, enfim, nas contribuições que participantes com tal perfil trouxessem para refletir sobre o porquê do emprego metafórico da palavra malhar associado à exercitação física.

Tabela 1
Caracterização do grupo entrevistado

As entrevistas, que mais se assemelharam a conversas informais (Kaufmann, 2013Kaufmann, J.-C. (2013). A entrevista compreensiva: um guia para pesquisa de campo (T. Abreu e L. Florencio, Trad.). Vozes; Edufal. (Original publicado em 1996)[1996])6 6 Kaufmann defende que, nas interações em campo, os dados mais profundos são revelados em situações de maior intensidade, mas, especialmente, de maior naturalidade. Assim, à medida que o estilo interativo vai ganhando corpo, a conversa em torno do tema vai fluindo (bate-se um papo). , focalizaram primeiramente a experiência de vida dos participantes relacionada à educação física (escolar ou não) e à prática de atividades físico-esportivas, e na sequência o porquê do movimento de apropriação social da palavra malhar para caracterizar a exercitação física. Os dados coletados na primeira etapa (associação livre) também forneceram subsídios para fomentar a interlocução com os entrevistados. Os discursos produzidos durante as entrevistas foram captados em minigravador e posteriormente transcritos. O material transcrito rendeu um arquivo do “Word” composto por 23 776 palavras.

Interpretação das informações

Para Ricoeur (2011[2010])Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010), “a interpretação consiste precisamente na alternância de fases de compreensão com fases de explicação, ao longo de um único ‘arco hermenêutico’ [ênfase no original]” (p. 24). Os momentos de compreensão podem ser caracterizados pela apreensão intuitiva e global do que é abordado, por uma antecipação de sentido que roça a adivinhação, por um engajamento do sujeito conhecedor; enquanto os momentos de explicação são marcados pela predominância da análise, da subordinação do caso particular a regras, leis ou estruturas, pelo distanciamento do objeto de estudo em relação a um sujeito não implicado (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010]). Assim, buscamos, no desenvolvimento a seguir, articular algo dos dados empíricos coletados nas duas etapas com materiais advindos da compreensão e da explicação.

Sobressai no Quadro 1 o total de 13 evocações, quando comparado às 436 palavras ou expressões suscitadas na associação livre. Ressaltamos, portanto, as poucas evocações que recuperam significados associados à etimologia da palavra.

Quadro 1
Sentido etimológico

A entrevistada reflete sobre o uso da palavra malhar:

A gente estuda muito a questão da variação linguística, e eu acredito que malhar tem uma origem mais no uso de gírias, no uso da gíria como um jargão. É uma gíria que virou um jargão dentro do meio esportivo, principalmente.

(E4)

O direcionamento adotado pela entrevistada é coerente com os dados provenientes da associação livre, pois eles nos mostram que a palavra malhar, atualmente, na cidade de Juiz de Fora, é metáfora morta, especialmente associada à exercitação física e suas conexões (por exemplo, com as ideias de saúde e beleza). Uma metáfora morta é uma expressão usual em que já não há qualquer sentido metafórico, isto é, uma metáfora morta já não é uma metáfora. Como assinala Ricoeur (2011[2010])Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010):

a semântica demonstra que a significação metafórica de uma palavra não é nada que possa ser encontrado num dicionário. Nessa acepção, é possível continuar a opor o sentido metafórico ao sentido literal, desde que se possa denominar sentido literal qualquer sentido citado entre as significações parciais codificadas pelo léxico [ênfase no original].

(p. 74)

Constatamos, assim, no uso contextual (atual), que o potencial semântico da palavra malhar é reduzido, porquanto assume substancialmente significado correlacionado àquele que se juntou à polissemia das entidades lexicais na virada do século XXI, com efeito, de “fazer ginástica vigorosa visando a musculação ou emagrecimento” (Ferreira, 2004Ferreira, A. B. H. (2004). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (3a ed., rev. e atual.). Positivo., p. 1257).

Direcionando o olhar para o Quadro 2, verificamos que são representativas as evocações relacionadas aos exercícios de força, mas também que o uso da palavra malhar não se restringe a tais exercícios.

Quadro 2
Exercício

O Quadro 2 indica opções de exercício, um leque de alternativas que pode motivar (ser razão de) o sujeito a agir. Chamamos então a atenção para o fato de que um motivo “é sempre um motivo de; como tal, fica logicamente implicado na noção de ação, pois não se pode mencionar o motivo sem mencionar a ação da qual é o motivo [ênfase no original]” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 40). Portanto, o problema da (falta de) motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas está localizado na relação da ação com seu agente: por qual motivo o sujeito deseja, mas não adquire o comportamento na prática? Levemos em conta aqui a premissa: o sujeito tem maior probabilidade de não adquirir o comportamento na prática, quando intrinsecamente ancorada à ação está uma racionalidade que olha para um corpo e enxerga apenas um organismo (homem-máquina), focando somente a relação entre os efeitos (fisiológicos, biomecânicos) agudos e crônicos do exercício especificado/prescrito. Ilumine-se o campo da educação física:

E o corpo que aparece, se transforma em “amostra”, em número, em quantidade de capacidade subsumido pela racionalidade instrumental preocupada com a quantificação das informações – medidas, testes, questionários –, a homogeneização e o estreitamento do foco usando a estatística descritiva como ferramenta para o tratamento dos dados [ênfase no original].

(Carvalho, 2020Carvalho, Y. M. (2020). Correndo da atividade física e seguindo os gestos… para pensar uma educação física mais propositiva. In F. Wachs, L. Lara, & P. Athayde (Orgs.), Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE (Vol. 11, Atividade física e saúde, pp. 51-64). EDUFRN., p. 52)

Trata-se de uma educação física que, em certo sentido, acaba por também se fazer notar no espaço da escola:

Como o esporte de competição de alto rendimento invadiu com sua influência as formas de orientar o esporte educativo escolar, modificou o sentido e o enquadramento da competição no interior da escola (anulando, em geral, o conceito do ensino do esporte educativo-formativo para todos os níveis de evolução dos alunos, e enfocando a busca do talento esportivo que a sociedade atual impõe), e também o nível técnico próprio das metodologias de seu ensino.

(Dallo, 2007Dallo, A. R. (2007). A ginástica como ferramenta pedagógica: o movimento como agente de formação. Editora da Universidade de São Paulo., p. 360)

A palavra malhar é associada pelo senso comum à educação física e a “fazer física” (Quadro 2), o que nos desperta para a atuação profissional da educação física no interior da escola.

Quando estimulados a elaborar acerca das suas experiências de vida relacionadas à educação física escolar, os entrevistados são assertivos e deixam entrever que esse espaço não contribuiu para que se identificassem com a prática de atividades físico-esportivas:

Educação física para mim era um lugar em que me sentia muito exposto, porque eu não era bom de vôlei, não era bom de basquete, não era bom de futebol.

(E10)

Eu fazia educação física obrigada, porque fazia parte do currículo. Não gostava do jeito da aula. Tinha que fazer canguru! Coisa horrorosa!

(E3)

A coisa que eu mais odiava na vida era ir para escola fazer educação física, pelo simples fato de que eu tinha de botar uma roupa curtíssima. Eu achava aquele negócio terrível.

(E7)

Tenho pouca recordação do primário, de educação física. Acho que hoje, olhando para trás, me dá essa clareza, de que a rua é o lugar da brincadeira, do exercício, e a escola era o lugar de ficar sentado. ( ... ) Não era obrigado educação física na escola. Os meninos jogavam e eu não sei o que eu fazia. Era só futebol, e eu nunca gostei do futebol.

(E2)

Os dados nos permitem reconhecer uma educação física escolar apegada a certa “ideologia do rendimento” (Molina & Beltrán, 2007Molina, J. P., & Beltrán, V. J. (2007). Incompetencia motriz e ideología del rendimiento en educación física: el caso de un alumno con discapacidad intelectual. Motricidad. European Journal of Human Movemen, 19, 157-180. https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/article/view/193/358.
https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/...
, p. 161), que se revela limitante e negativa na medida em que origina contextos em que são valorizados positivamente os jovens que apresentam melhor rendimento, e negativamente aqueles cujo desempenho é menor, chegando ao extremo de gerar intolerância e rechaço para estes últimos (Molina & BeltránMolina, J. P., & Beltrán, V. J. (2007). Incompetencia motriz e ideología del rendimiento en educación física: el caso de un alumno con discapacidad intelectual. Motricidad. European Journal of Human Movemen, 19, 157-180. https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/article/view/193/358.
https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/...
). Assim, como são poucos os que sobressaem nesse “campo normativo de rendimento físico e esportivo” (Coelho Filho, 2014Coelho Filho, C. A. A. (2014). Narcisismo e sua relação com a prática de atividades físico-esportivas. Psicologia & Sociedade, 26(1), 194-203. http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/21.pdf
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/21.p...
, p. 199), deparamo-nos com uma educação física escolar indicando uma massa de jovens que, devido a certas dificuldades emergidas das práticas físico-esportivas, “se sentem excluídos ou marginalizados e vivem uma série de experiências negativas que lhes conduzem à inibição, evitação e mesmo rejeição para com o assunto” (Molina & BeltránMolina, J. P., & Beltrán, V. J. (2007). Incompetencia motriz e ideología del rendimiento en educación física: el caso de un alumno con discapacidad intelectual. Motricidad. European Journal of Human Movemen, 19, 157-180. https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/article/view/193/358.
https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/...
, p. 158), no caso, a educação física escolar, mas também a prática da atividade físico-esportiva. Segundo Neira (2018)Neira, M. G. (2018). O currículo cultural da educação física: pressupostos, princípios e orientações didáticas. Revista e-Curriculum, 16(1), 4-29. doi: http://dx.doi.org/10.23925/1809-3876.2018v16i1p4-28
https://doi.org/10.23925/1809-3876.2018v...
:

Com aulas focadas nas habilidades motoras, na aprendizagem esportiva ou em noções restritas de saúde e cuidado com o corpo, qualquer diferença percebida é justificada por características congênitas. É esse o contexto que produz o inábil, incapaz, lento e descoordenado.

(p. 7)

São evidências que contribuem para explicar um imaginário social associado à educação física que se desvela em diferentes meios.

Por exemplo, em pesquisa que buscou salientar alguns dos sentidos relacionados à abordagem da educação física escolar presentes na 18.ª temporada de Malhação, telenovela exibida pela Rede Globo de 1995 a 2020, Cândido et al. (2015)Cândido, C. M., Assis, M. R., Ferreira, N. T., & Coelho, L. A. M. C. (2015). A representação da educação física na 18ª temporada da telenovela malhação. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 29(1), 95-106. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-55092015000100095
https://doi.org/10.1590/1807-55092015000...
verificaram que a perspectiva competitivista predominou ao longo do enredo ligado às situações de aula, tendo como pano de fundo a prática exclusiva de duas modalidades esportivas na perspectiva técnica.

Compreendemos que há relação estreita entre a educação física escolar e o problema da (falta de) motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas. Mas a atuação profissional em educação física extrapola o espaço da escola. Vejamos o que diz o entrevistado:

Academia para mim é uma coisa que eu pratico se tiver necessidade, reforçar a musculatura. Quando sentir uma dor no joelho, eu vou e faço um exercício digamos para completar. Mas não é uma atividade que gosto de fazer, uma atividade parada dentro de uma academia. Eu gosto das atividades que permitam você usufruir também de outros aspectos. Quando você corre tem a paisagem, tem uma série de outras coisas acontecendo. Gosto muito quando eu corro nas estradas de terra, nas pequenas estradas. Eu fujo de lugares onde tem carro, para poder realmente correr dentro da natureza.

(E9)

Para o entrevistado, o reforço muscular na academia se presentifica em casos excepcionais de lesão, distante da casa do prazer. É um depoimento que nos conduz de volta ao Quadro 2, especialmente para a associação do exercício (malhar) com o uso da força muscular e do peso (carga, ferro, barra, anilha), bem como nos aproxima do que elaboram nossos entrevistados:

Quando eu penso na palavra malhar, penso mais em fazer musculação.

(E8)

Academia é isso. Assim, o que muda é a quantidade de peso que você vai puxar ali. Você está sempre fazendo as mesmas sequências de exercícios.

(E10)

Fiz a minha matrícula numa academia de ginástica. Eu gostava de ir e tal, só que chegava lá era levantar peso.

(E4).

Quando penso em malhar, a primeira coisa que me lembra é malhar em ferro frio, que é a ideia de pegar um metal e ir batendo repetidamente. ( ... ) associado com certeza à ideia de musculação, à criação de músculo. A criação de músculo é feita por sofrimento, pelo calor, pelo exercício constante; repete, repete, como uma pessoa que forja.

(E7)

Sublinhemos o espaço da academia e a repetição. Conforme Peres (2014)Peres, M. (2014). Tem que correr, tem que malhar (em Bodyville). Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 2(1), 135-164. http://www.anamorfose.ridem.net/index.php/anamorfose/article/view/22/16
http://www.anamorfose.ridem.net/index.ph...
, “a imprescindibilidade dos aparelhos, na malhação, evidencia uma relação pragmática com o corpo, em que a espontaneidade é abolida, à medida que permitem somente movimentos ‘localizados’, fragmentados e repetitivos [ênfase no original]” (p. 153).

O que é dito pelos entrevistados torna a ligação com o Quadro 3 oportuna.

Quadro 3
Condição

A palavra academia, inserida no conjunto de evocações correspondente à categoria (condição), nos leva a perguntar: em que medida frequentar uma academia é condição para se praticar atividades físico-esportivas hoje, no Brasil? O entrevistado que foge “de lugares onde tem carro, para poder realmente correr dentro da natureza”, elabora:

As nossas cidades são perigosas, são sujas, por vezes não têm calçadas direito. Então, não ajuda muito a ter uma vida cotidianamente saudável. (...) numa sociedade em que a própria urbanização não foi feita de modo, digamos, bem planejado, a necessidade de frequentar academias e coisas assim é muito maior.

(E9)

A política pública se mostra sensível ao problema, em escala mundial. No dia do lançamento do “Plano de ação global para a atividade física 2018-2030”, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, observou que ser ativo é fundamental para a saúde, e acrescentou que, no mundo moderno, isso está se tornando cada vez mais um desafio, em grande parte porque as cidades e as comunidades não são projetadas da maneira correta (Organização Pan-Americana da Saúde, 2018Organização Pan-Americana da Saúde. (2018, 4 de junho). OMS lança plano de ação global sobre atividade física para reduzir comportamento sedentário e promover a saúde. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5692:oms-lanca-plano-de-acao-global-sobre-atividade-fisica-para-reduzir-comportamento-sedentario-e-promover-a-saude&Itemid=839
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
).

Para além das condições urbanas, contudo, devemos dimensionar a cooperação do mundo do capital para a proliferação de academias na sociedade contemporânea. É sintomático como se acirra, nesse nicho de mercado, a busca pela captação de praticantes, com propagandas bem elaboradas, prometendo benefícios diversos, produzindo desejo, mas também dependência (heteronomia). O conceito de saúde, conforme Roble et al. (2015)Roble, O. J., Rodrigues, L. S., & Lima, K. A. (2015). Lógica das sensações na atividade física: uma análise dos discursos de academias de ginástica brasileiras e suas projeções na sociedade contemporânea. Saúde e Sociedade, 24(1), 337-349. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015000100026
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201500...
, parece servir como coringa aos propósitos dos discursos propagandísticos elaborados por essas instituições comerciais, representando algo sempre muito bom de se obter, mas convenientemente adequado a diferentes ações que vão se estabelecer ancoradas aos serviços por elas oferecidos. No âmago de tal discursividade, o exercitar-se em academia pode assumir o status de remédio para as sensações desconfortáveis que afligem o sujeito (Silva & Ferreira, 2018Silva, A. C., & Ferreira, J. (2018). Entre remediar e prevenir: uma etnografia sobre o manejo da dor e dos “limites” corporais em academias de ginástica do Rio de Janeiro. Pensar a Prática, 21(1), 107-118. doi: https://doi.org/10.5216/rpp.v21i1.39631
https://doi.org/10.5216/rpp.v21i1.39631...
), a ponto de a falta à academia proporcionar, ela mesma, mais desconforto, quando o faltoso fica “com dor na consciência” pelo fato de ter se ausentado (Coelho Filho & Andrade, 2013Coelho Filho, C. A. A., & Andrade, R. G. N. (2013). Motivos de um indivíduo para praticar atividades físico-esportivas. Psicologia em Estudo, 18(3), 475-485. http://www.scielo.br/pdf/pe/v18n3/v18n3a08.pdf
http://www.scielo.br/pdf/pe/v18n3/v18n3a...
). Peres (2014)Peres, M. (2014). Tem que correr, tem que malhar (em Bodyville). Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 2(1), 135-164. http://www.anamorfose.ridem.net/index.php/anamorfose/article/view/22/16
http://www.anamorfose.ridem.net/index.ph...
faz a analogia com o trabalho no sistema capitalista para observar que, no âmbito da malhação, os exercícios físicos pressupõem regularidade e constância racionais, e complementa: “As faltas trazem culpa, o que remete às ideias de compromisso, repetição, disciplina” (p. 154).

Direcionemos então o foco para o exercício físico realizado e estimulado no interior das academias, tanto pelo cliente frequentador quanto pelo “educador físico” que por ali transita (apenas como praticante ou mesmo exercendo, naquele momento, a sua atividade profissional). Hansen e Vaz (2004)Hansen, R., & Vaz, A. F. (2004). Treino, culto e embelezamento do corpo: um estudo em academias de ginástica e musculação. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 26(1), 135-152. http://oldarchive.rbceonline.org.br/index.php/RBCE/article/viewFile/109/119
http://oldarchive.rbceonline.org.br/inde...
verificaram, no interior dessas instituições, o que denominam de “processo de esportivização”: “Há uma série de características que consolidam o ethos das academias de ginástica e musculação, dentre elas a presença de um caráter de treinamento e performance incorporado como regra comum” (p. 137). Os autores nos remetem à lógica do “universo esportivo de alto rendimento”, correlata aos usos e às visibilidades do corpo nesses locais: o medo de falhar ou de estar abaixo do rendimento ideal, os sacrifícios autoimpostos. De fato, não se trata de algo velado, mas descoberto, aberto, que nos faz enxergar a atuação profissional em educação física e, por extensão natural, o campo da formação universitária em educação física (graduação e pós-graduação). Sobre essa formação, perguntamos: estabelece-se e se fortalece uma identidade hegemônica na e da pós-graduação stricto sensu, que influencia, determinantemente, a graduação?

A educação física, distanciando-se de uma compreensão ampla sobre saúde e apegando-se àquela restrita, atrelada ao discurso biológico (Lima & Coelho Filho, 2018Lima, V. L., & Coelho Filho, C. A. A. (2018). Saúde, estética e educação física: uma aproximação crítica. Instrumento: Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, 20(1), 37-49. doi: https://doi.org/10.34019/1984-5499.2018.v20.19105
https://doi.org/10.34019/1984-5499.2018....
), segue sendo permanentemente atravessada por um discurso tecnicista que não para de invocar sua pretensa eficácia experimental. Por exemplo, quando afirma a existência de uma relação causal positiva entre exercício físico e saúde (Mira, 2000Mira, C. A. M. (2000). O declínio de um paradigma: ensaio crítico sobre a relação de causalidade entre exercício físico e saúde. [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação Física, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.), fazendo com que o senso comum acabe por absorver a ideia, como é possível verificar no Quadro 4.

Quadro 4
Saúde

O exercício da informação no mercado da vida ativa (Fraga, 2006Fraga, A. B. (2006). Exercício da informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa. Autores Associados.) parece estar surtindo efeito, haja vista o número de evocações da palavra saúde. Entretanto, o entendimento sobre a importância do exercício para a saúde não é em todo o caso (motivo) suficiente para que a ação aconteça:

Acho que sempre tive uma consciência de que a atividade física era necessária. Hoje eu tenho total consciência de que ela é necessária. Mas para ter iniciativa de sair de casa, caminhar, fazer alguma atividade com peso na minha casa mesmo; sei que eu teria condições de fazer isso, mas não consigo apertar o botãozinho do “start” e ir [ênfase no original].

(E1)

Segundo Arango Vélez et al. (2014)Arango Vélez, E. F., Patiño Villada, F. A., & Díaz-Cardona, G. (2014). Factores asociados con la adherencia a la actividad física en el tiempo libre. Educación Física y Deporte, 33(1), 129-151. doi: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n1a08
https://doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n1...
, a atividade física no tempo livre emerge da literatura como uma ferramenta útil para prevenir doenças crônicas não transmissíveis, bem como para melhorar a qualidade de vida relacionada à saúde. Contudo, os autores observam que, apesar das evidências, as pesquisas indicam que a aderência às recomendações de atividade física é baixa, o que aponta para a falta de motivação das pessoas para realizá-la.

Os dados desvelam um liame representacional que vamos caracterizar como bom, positivo, no sentido de que malhar faz bem para a “saúde”, melhora a “qualidade de vida”, dá mais “vitalidade”. Ao mesmo tempo, deles se depreende que o sujeito pratica exercícios físicos porque é necessário, por ser essencial, uma prática que vai, quiçá, se efetivar relacionada à obrigação. A interpretação pode então sugerir a integração de uma ética do bem (desenvolvimento de uma vida governada por intenções sensatas) a uma ética da obrigação (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010]). Porém, tendo o foco direcionado para a semântica da ação e, consequentemente, para a categoria do desejo, é preciso considerar o “lado afetivo, expresso pelos termos detestar/amar” (p. 64). Sendo assim, talvez um afeto negativo (inconsciente) associado à prática da atividade físico-esportiva opere corporalmente como uma força. Malabou (2014[2009]) observa que há dois tipos de negatividade: “Uma, afetiva e inconsciente, que coincide com o processo de recalcamento. A outra, intelectual, que faz da negatividade uma função do juízo: alguma coisa é ou não é. Ora, a segunda decorre da primeira” (p. 64). E acrescenta: “A origem do juízo de atribuição se encontra na tendência do eu comer o que acha bom e a cuspir o que acha ruim” (p. 64). A entrevistada elabora:

Eu acho que acaba sendo uma obrigação, e daí o malhar se encaixa. É o peso, é a força, é a obrigação, é o sofrimento. É um remédio amargo para o fígado que tem que tomar. É amargo, mas tem que tomar, porque é necessário. Mas assim que eu puder burlar essa dose de remédio aqui, eu vou.

(E6)

Evidentemente, a interpretação que aponta para a possibilidade de produção/funcionamento de um afeto negativo pode ser igualmente aplicada onde a objetividade do resultado implique sofrimento inerente à realização do exercício.

A relação de causa e efeito entre exercitação física (malhar) e “beleza” está localizada no Quadro 5.

Quadro 5
Beleza

De forma simples, a exercitação física favorece a ascensão, o percurso para o lugar superior, no sentido de se alcançar, ainda que de forma fugaz, a beleza corporal desejada, a “forma física” etc., o que é bom. Ao mesmo tempo, ao compreendermos que uma obrigação (culpa, compromisso) vai se impor, relacionada ao estatuto social/moral da “beleza” (aparência física, no senso comum), o qual, como o Quadro 5 indica, diz sobre a necessidade de emagrecer ou ficar musculoso(a), sobre a moda, o exibicionismo; e que essa obrigação se torna mais severa na medida em que o exercício pressupõe sofrimento (porquanto associado à ideologia do rendimento e exigência da performance, aos sacrifícios autoimpostos), podemos postular a instalação de uma “negatividade intelectual” (lógica, que funciona no pensamento) como uma “negatividade afetiva” (Malabou, 2014Malabou, C. (2014). Ontologia do acidente: ensaio sobre a plasticidade destrutiva (F. Scheibe, Trad.). Cultura e Barbárie. (Original publicado em 2009)[2009]).

Recuperemos então a atuação profissional em educação física e a relação dela com o estatuto social/moral da “beleza”. Na reportagem da Revista O Globo (Ribeiro, 2016Ribeiro, C. (2016, 4 de setembro). Haja perna! Revista O Globo, 41.), aparece: “Disputado em academias, equipamento de ginástica que funciona como uma escada ajuda a fortalecer coxas e bumbum e a emagrecer em treinos intensos”. O “coordenador de atividades cardiorrespiratórias” de uma badalada academia carioca diz: “É um equipamento que trabalha o sistema respiratório e a ação muscular”. Já o “diretor técnico” de uma rede de academias: “O mundo ideal é praticar o exercício duas vezes por semana”, no caso de iniciante. “Se for avançado, de três a quatro”. A praticante fornece o seu depoimento: “A escada é terrível, mas muito concorrida. Faço meia hora e saio destruída”. E outra: “De todas as atividades que pratico, percebi que a escada foi a que de fato levantou o meu bumbum” (p. 41).

A imagem das(dos) praticantes que se sacrificam nos aparelhos “terríveis” e nos treinos intensos e saem “destruídas(dos)” é reveladora de uma perda, uma vez que o investimento de energia é direcionado para o reencontro do corpo que se esvai no tempo/espaço interior/exterior, psique/soma. Trata-se de imagem que tem um poder singular, pois comanda a dialética do entusiasmo e da angústia.

Naturalmente, existe uma viagem para baixo; a queda, antes mesmo da intervenção de qualquer metáfora moral, é uma realidade psíquica de todas as horas. E pode-se estudar essa queda psíquica como um capítulo de física poética e moral. A medida de nível psíquica muda constantemente. O tônus geral - esse dado dinâmico tão imediato para qualquer consciência - é imediatamente uma medida de nível. Se o tônus aumenta, logo o homem se reergue [ênfases no original].

(Bachelard, 2001Bachelard, G. (2001). O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento (2a ed., A. P. Danesi, Trad.). Martins Fontes. (Original publicado em 1943)[1943], p. 11)

De um lado, o que se constata é a destruição, o esforço; de outro, o aumento de tônus, a ascensão. A necessidade e o desejo do reencontro entram num jogo de possibilidades que evidencia a falta, a ausência. Como a reportagem da Revista O Globo deixa entrever, a racionalidade da educação física, cujos olhos se dirigem apenas à objetividade fisiológica do exercício que prescreve, entra em funcionamento e produz efeitos (lacuna) nas subjetividades. Soares (2008)Soares, C. L. (2008). Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In M. Rago, & A. Veiga-Neto (Orgs.), Figuras de Foucault (pp. 75-86). Autêntica. nos lembra das “múltiplas táticas de modelagem e adestramento do corpo” [ênfases no original] (p. 75), correlacionadas ao campo da educação física (ginástica, uma pedagogia higiênica). Por exemplo:

Medir torna-se, de fato, a ação e a intenção primeira para domesticar o corpo e enquadrá-lo em supostas normalidades. Medir o peso, a força, a resistência, a velocidade, a flexibilidade, e, hoje mais intensivamente, medir os índices de massa corporal [ênfases no original].

(p. 76)

Não sem razão, Santos e Neira (2019)Santos, I. L., & Neira, M. G. (2019). Tematização e problematização: pressupostos freirianos no currículo cultural da educação física. Pro-Posições, 30, 1-19. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0168
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0...
apontam para a necessidade de que a educação física escolar forme pessoas que saibam se defender das armadilhas ideológicas que cercam os discursos sobre as práticas corporais.

Modelagem, adestramento. Ambiguidade do afeto (alguma coisa é ou não é). Sensações, sentimentos. Como podemos visualizar no Quadro 6, “bem-estar”, “prazer” etc., dialetizando com “preguiça”, “desgosto”, “suor” etc.

Quadro 6
Sensação/Sentimento

Sigamos com o depoimento:

Eu vejo malhar como uma coisa de batalhar, de sofrimento. Malhar não remete a uma ideia tão prazerosa. O prazer é de encontrar o resultado, mas o caminho é de alguma coisa que vai ser penoso, que não vai ser muito fácil.

(E1)

Consideramos aqui a necessidade de recordar, de repetir: a nossa hipótese de trabalho (de que o movimento de apropriação da palavra malhar para caracterizar a prática do exercício físico tenha ocorrido ancorado, consciente ou inconscientemente, ao sentido etimológico de castigar o corpo) aponta para a singularidade do desejo; desejo que “acontece como um sentido que pode ser mencionado na linguagem intencional e como uma força que pode ser mencionada na linguagem da energia física [ênfase no original]” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 41). Ainda que o espaço de um artigo não nos permita abraçar mais detidamente esse complexo caminho interpretativo, configurando uma limitação, o que nomeamos é o “sujeito do inconsciente” (afeto negativo) que opera no corpo como uma força (preguiça, tédio, cansaço). Conforme Freud (1987[1925]Freud, S. (1987). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição “standard” brasileira (2a ed., Vol. 19, A negativa, pp. 263-269). Imago. (Original publicado em 1925), p. 266), o “atributo sobre o qual se deve decidir pode originalmente ter sido bom ou mau, útil ou prejudicial.” Na relação entre corpo e cultura (da exercitação física, da educação física), é a experiência ruim que marca, ou talvez tanto mais, a marca da experiência:

O malhar o Judas não é bater devagar, é bater com força. Então, essa descontinuidade no ato de se exercitar. Eu acho que tem a ver com a origem etimológica da palavra malhar. Você pensa, se você bate com muita força, é uma coisa que você não aguenta fazer durante muito tempo, nem durante todos os dias, nem durante muito tempo num dia. Chega uma hora que você joga o negócio para lá e fala: “pronto, tá malhado o Judas”. Meio que limpa a consciência de que não está bom e toca a vida para frente.

(E10)

Considerações finais

A hermenêutica, definida como uma teoria geral da interpretação (Frey, 2011Frey, D. (2011). (Apresentação) A obra de Ricoeur e a hermenêutica. In P. Ricoeur, Escritos e conferências 2: hermenêutica (pp. 7-12). Loyola.), se distancia da ideia de generalização e verificação empírica, já que, seguindo o caminho da incerteza e da probabilidade qualitativa, coloca ênfase em “abrir um mundo” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 90). Na perspectiva de abrir um mundo, a metáfora tem uma força notável, viabilizando, inclusive, ampliar-se o processo do pensamento na ciência. É quando, por intermédio dessa última, penetramos em áreas ainda desconhecidas da realidade, até certo ponto implícitas na metáfora. Assim, com o objetivo de desvelar elementos que possam contribuir para a compreensão vinculada ao problema da motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas, ao considerarmos os indícios contidos na interpretação das informações realizada, destacamos as seguintes conclusões.

O emprego metafórico da palavra malhar associado à exercitação física ocorreu ancorado, consciente ou inconscientemente, ao sentido etimológico de castigar o corpo. Trata-se de castigo impingido pelo exercício físico. Por quê? Porque o discurso que se impõe hegemonicamente no campo de atuação profissional em educação física (escolar ou não) é a base sobre a qual se assenta o trabalho corporal. Um discurso impregnado pela ideologia do rendimento físico e esportivo e exigência da performance. Uma atuação profissional, fruto de uma graduação, que é determinantemente influenciada pela pós-graduação stricto sensu em educação física, portanto, deliberadamente influenciada por certa racionalidade que olha para um corpo e enxerga apenas um organismo (homem-máquina), que foca somente na relação entre os efeitos (fisiológicos, biomecânicos) agudos e crônicos do exercício prescrito.

Há correlação importante entre o campo de atuação profissional em educação física (escolar ou não) e o problema da falta de motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas. Correlação que indica, de fato, um efeito não desejado, ou até mesmo perverso, da intervenção profissional.

A “busca pelos motivos da ação é interminável, perdendo-se a cadeia das motivações no nevoeiro de influências internas e externas insondáveis” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 45). Mas a referência a bens e a males, no sentido de satisfações (exercício físico é bom, por exemplo, para a saúde e para a beleza) e experiências dolorosas (exercício físico associado a obrigação, opressão, sacrifício, sofrimento), faz com que indiquemos, para o campo científico, a importância de se considerar, relacionada ao problema da (falta de) motivação para a prática regular de atividades físico-esportivas, a influência das experiências dolorosas.

Esperamos que as novas perspectivas aduzidas por esta pesquisa possam se desdobrar em outras mais e estimular a revisão crítica de metodologias e práticas vinculadas à exercitação física e ao campo de atuação profissional em educação física (escolar ou não).

Agradeço à Bianca Damasceno de Oliveira, bolsista de iniciação científica nesta pesquisa (BIC – FAPEMIG – Processo nº CHE - APQ-01955-15).

Agradeço à Bianca Damasceno de Oliveira, bolsista de iniciação científica nesta pesquisa (BIC – FAPEMIG – Processo nº CHE - APQ-01955-15).

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha. e-mail: verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - Processo nº: CHE - APQ-01955-15
  • 4
    “Para compreender um texto é preciso ter uma pré-compreensão anterior. E essa pré-compreensão não pode ser eliminada sem o risco de romper o pacto entre o interpretante e o interpretado que garante ao intérprete o acesso às intenções de sentido do texto. Do ponto de vista epistemológico, essa implicação do intérprete na coisa interpretada só pode parecer uma fraqueza, uma tara subjetivista, diante da objetividade que parece exigir o ideal de cientificidade. Heidegger justifica o círculo hermenêutico mostrando que a fraqueza epistemológica aparente deriva de sua força ontológica real: o círculo mais original, com efeito, é aquele que existe sempre entre a pré-compreensão e a situação intramundana a interpretar. O círculo não é vicioso, mas constitui a condição positiva do conhecimento mais original” (Ricoeur, 2011Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)[2010], p. 99).
  • 5
    O termo atividade físico-esportiva tem sido utilizado na literatura científica para caracterizar as práticas corporais que se tornaram tradicionais no campo da educação física, como as ginásticas, os esportes, os jogos, as danças (Coelho Filho, 2014Coelho Filho, C. A. A. (2014). Narcisismo e sua relação com a prática de atividades físico-esportivas. Psicologia & Sociedade, 26(1), 194-203. http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/21.pdf
    http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/21.p...
    ). Atividade física pode ser compreendida de forma genérica, isto é, associada aos mais variados movimentos corporais, e que resulta em gasto de energia maior do que os níveis de repouso. Exercício físico, por sua vez, pode ser compreendido como uma atividade física planejada, ou, dito em outras palavras, uma atividade física que se baseia em uma sistematização, em um método, com vistas ao alcance de objetivos, por exemplo, pedagógicos, relacionados à saúde ou à beleza. Além das ginásticas, o sujeito pode lançar mão dos esportes, dos jogos e das danças com o objetivo de se exercitar, fundamentado em algum método, alguma sistematização. Nesse sentido, as atividades físico-esportivas podem ser entendidas como exercício físico (exercitação física), mas também como atividade física.
  • 6
    Kaufmann defende que, nas interações em campo, os dados mais profundos são revelados em situações de maior intensidade, mas, especialmente, de maior naturalidade. Assim, à medida que o estilo interativo vai ganhando corpo, a conversa em torno do tema vai fluindo (bate-se um papo).

Referências

  • Alves, A. J. (1991). O planejamento de pesquisas qualitativas em educação. Cadernos de Pesquisa, 77, 53-61. https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/473883
    » https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/473883
  • Arango Vélez, E. F., Patiño Villada, F. A., & Díaz-Cardona, G. (2014). Factores asociados con la adherencia a la actividad física en el tiempo libre. Educación Física y Deporte, 33(1), 129-151. doi: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n1a08
    » https://doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n1a08
  • Bachelard, G. (2001). O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento (2a ed., A. P. Danesi, Trad.). Martins Fontes. (Original publicado em 1943)
  • Benveniste, É. (2005). Problemas de Linguística Geral I (5a ed., M. G. Novak e M. L. Neri, Trad.). Pontes. (Original publicado em 1966)
  • Cândido, C. M., Assis, M. R., Ferreira, N. T., & Coelho, L. A. M. C. (2015). A representação da educação física na 18ª temporada da telenovela malhação. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 29(1), 95-106. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-55092015000100095
    » https://doi.org/10.1590/1807-55092015000100095
  • Carvalho, Y. M. (2020). Correndo da atividade física e seguindo os gestos… para pensar uma educação física mais propositiva. In F. Wachs, L. Lara, & P. Athayde (Orgs.), Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE (Vol. 11, Atividade física e saúde, pp. 51-64). EDUFRN.
  • Coelho Filho, C. A. A. (2007). Metamorfose de um corpo “andarilho”: busca e reencontro do “algo” melhor Casa do Psicólogo.
  • Coelho Filho, C. A. A. (2014). Narcisismo e sua relação com a prática de atividades físico-esportivas. Psicologia & Sociedade, 26(1), 194-203. http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/21.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/21.pdf
  • Coelho Filho, C. A. A., & Andrade, R. G. N. (2013). Motivos de um indivíduo para praticar atividades físico-esportivas. Psicologia em Estudo, 18(3), 475-485. http://www.scielo.br/pdf/pe/v18n3/v18n3a08.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/pe/v18n3/v18n3a08.pdf
  • Courtine, J.-J. (1995). Os stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In D. B. de Sant’Anna (Org.), Políticas do corpo (pp. 81-114). Estação Liberdade.
  • Dallo, A. R. (2007). A ginástica como ferramenta pedagógica: o movimento como agente de formação Editora da Universidade de São Paulo.
  • Ferreira, A. B. H. (2004). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (3a ed., rev. e atual.). Positivo.
  • Fraga, A. B. (2006). Exercício da informação: governo dos corpos no mercado da vida ativa Autores Associados.
  • Freud, S. (1987). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição “standard” brasileira (2a ed., Vol. 19, A negativa, pp. 263-269). Imago. (Original publicado em 1925)
  • Frey, D. (2011). (Apresentação) A obra de Ricoeur e a hermenêutica. In P. Ricoeur, Escritos e conferências 2: hermenêutica (pp. 7-12). Loyola.
  • Fundação Capes (2019, 3 de julho). Sobre as áreas de avaliação. http://www.capes.gov.br/avaliacao/sobre-as-areas-de-avaliacao
    » http://www.capes.gov.br/avaliacao/sobre-as-areas-de-avaliacao
  • Hansen, R., & Vaz, A. F. (2004). Treino, culto e embelezamento do corpo: um estudo em academias de ginástica e musculação. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 26(1), 135-152. http://oldarchive.rbceonline.org.br/index.php/RBCE/article/viewFile/109/119
    » http://oldarchive.rbceonline.org.br/index.php/RBCE/article/viewFile/109/119
  • Kaufmann, J.-C. (2013). A entrevista compreensiva: um guia para pesquisa de campo (T. Abreu e L. Florencio, Trad.). Vozes; Edufal. (Original publicado em 1996)
  • Lima, V. L., & Coelho Filho, C. A. A. (2018). Saúde, estética e educação física: uma aproximação crítica. Instrumento: Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, 20(1), 37-49. doi: https://doi.org/10.34019/1984-5499.2018.v20.19105
    » https://doi.org/10.34019/1984-5499.2018.v20.19105
  • Malabou, C. (2014). Ontologia do acidente: ensaio sobre a plasticidade destrutiva (F. Scheibe, Trad.). Cultura e Barbárie. (Original publicado em 2009)
  • Mira, C. A. M. (2000). O declínio de um paradigma: ensaio crítico sobre a relação de causalidade entre exercício físico e saúde [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação Física, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.
  • Molina, J. P., & Beltrán, V. J. (2007). Incompetencia motriz e ideología del rendimiento en educación física: el caso de un alumno con discapacidad intelectual. Motricidad. European Journal of Human Movemen, 19, 157-180. https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/article/view/193/358
    » https://www.eurjhm.com/index.php/eurjhm/article/view/193/358
  • Neira, M. G. (2018). O currículo cultural da educação física: pressupostos, princípios e orientações didáticas. Revista e-Curriculum, 16(1), 4-29. doi: http://dx.doi.org/10.23925/1809-3876.2018v16i1p4-28
    » https://doi.org/10.23925/1809-3876.2018v16i1p4-28
  • Organização Pan-Americana da Saúde. (2018, 4 de junho). OMS lança plano de ação global sobre atividade física para reduzir comportamento sedentário e promover a saúde. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5692:oms-lanca-plano-de-acao-global-sobre-atividade-fisica-para-reduzir-comportamento-sedentario-e-promover-a-saude&Itemid=839
    » https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5692:oms-lanca-plano-de-acao-global-sobre-atividade-fisica-para-reduzir-comportamento-sedentario-e-promover-a-saude&Itemid=839
  • Palma, A. (2020). Tensões e possibilidades nas interações entre Educação Física, saúde e sociedade. In F. Wachs, L. Lara, & P. Athayde (Orgs.), Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE (Vol. 11, Atividade física e saúde, pp. 15-28). Natal, RN: EDUFRN.
  • Peres, M. (2014). Tem que correr, tem que malhar (em Bodyville). Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 2(1), 135-164. http://www.anamorfose.ridem.net/index.php/anamorfose/article/view/22/16
    » http://www.anamorfose.ridem.net/index.php/anamorfose/article/view/22/16
  • Ribeiro, C. (2016, 4 de setembro). Haja perna! Revista O Globo, 41.
  • Ricoeur, P. (1975). La métaphore vive Le Seuil.
  • Ricoeur, P. (2011). Escritos e conferências 2: hermenêutica (L. P. Souza, Trad.). Loyola. (Original publicado em 2010)
  • Roble, O. J., Rodrigues, L. S., & Lima, K. A. (2015). Lógica das sensações na atividade física: uma análise dos discursos de academias de ginástica brasileiras e suas projeções na sociedade contemporânea. Saúde e Sociedade, 24(1), 337-349. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015000100026
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100026
  • Sá, C. P. (1996). Núcleo central das representações sociais Vozes.
  • Santos, S. C., & Knijnik, J. D. (2006). Motivos de adesão à prática de atividade física na vida adulta intermediária. Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte, 5(1), 23-34. http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/remef/article/view/1299/1002
    » http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/remef/article/view/1299/1002
  • Santos, I. L., & Neira, M. G. (2019). Tematização e problematização: pressupostos freirianos no currículo cultural da educação física. Pro-Posições, 30, 1-19. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0168
    » https://doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0168
  • Santos, S. F., & Salles, A. D. (2009). Antropologia de uma academia de musculação: um olhar sobre o corpo e um espaço de representação social. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 23(2), 87-102. https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16713/18426
    » https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16713/18426
  • Saussure, F. (2004). Escritos de linguística geral (C. A. L. Salum e A. L. Franco, Trad.). Cultrix. (Original publicado em 2002)
  • Saussure, F. (2006). Curso de linguística geral (27a ed., A. Chelini, J. P. Paes & I. Blikstein, Trad.). Cultrix. (Original publicado em 1916)
  • Silva, A. C., & Ferreira, J. (2018). Entre remediar e prevenir: uma etnografia sobre o manejo da dor e dos “limites” corporais em academias de ginástica do Rio de Janeiro. Pensar a Prática, 21(1), 107-118. doi: https://doi.org/10.5216/rpp.v21i1.39631
    » https://doi.org/10.5216/rpp.v21i1.39631
  • Soares, C. L. (2008). Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In M. Rago, & A. Veiga-Neto (Orgs.), Figuras de Foucault (pp. 75-86). Autêntica.
  • Teixeira, F. L. S., & Caminha, I. O. (2010). A supervitalidade como forma de poder: um olhar a partir das academias de ginástica. Revista Movimento, 16(3), 203-220. https://www.seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/12295/10016
    » https://www.seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/12295/10016
  • World Health Organization. (2018, 1 de junho). Global action plan on physical activity 2018–2030: more active people for a healthier world https://www.who.int/publications/i/item/9789241514187
    » https://www.who.int/publications/i/item/9789241514187
1
Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2020
  • Revisado
    22 Dez 2020
  • Aceito
    19 Maio 2021
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br