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Psicanálise, Inquietude de si e Formação Humana: uma reflexão sobre o tempo e a transitoriedade 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Camila Pires de Campos Freitas - camilacampos.revisora@gmail.com

Resumo

O ensaio relaciona a noção freudiana da transitoriedade com momentos de elaboração preciosos e fugidios que surgem nas sessões de análise. Assume a tese de que a análise, por esses valiosos instantes de encontro com a verdade, é um exercício de si sobre si mesmo, potencializado pelo kairós, proposto por Foucault n’ A hermenêutica do sujeito. O autor busca na antiguidade greco-romana a noção de inquietude de si, processo ético constitutivo do si mesmo que se dá na relação “entre dois”, mestre e discípulo. Nesse sentido, o encontro analítico é concebido como uma das expressões contemporâneas da inquietude de si foucaultiana. A escuta disponível e atenta, a beleza das criações que, num momento único e efêmero, ali se produzem, é referência para pensar a função do educador e a formação humana.

Palavras-chave
Experiência; Psicanálise em Educação; Educação; Filosofia; Escuta

Abstract

The essay relates the Freudian notion of transience with precious and fugitive elaborative moments which arise in the analysis sessions. It assumes the thesis that the analysis, by these valuable moments of encounter with the truth, is an exercise of the self on oneself, empowered by the kairós, proposed by Foucault in the Hermeneutics of the Subject. The author seeks in Greco-Roman antiquity the notion of disquiet of self, a constitutive ethical process of oneself that occurs in the relationship "between two", master and disciple. In this sense, the analytical encounter is conceived as one of the contemporary expressions of Foucaultian disquiet of self. The available and attentive listening, the beauty of the creations that, in a unique and ephemeral moment, are produced there, are reference to think about the function of the educator and the human formation.

Keywords
Experience; Psychoanalysis in Education; Education; Philosophy; Listening

Introdução

O espanto pode nos chegar de diversas formas. Testemunhamos uma delas observando um pequeno vaso contendo um tipo de cacto. Durante mais de dez anos, essa planta permaneceu dormente num vaso suspenso preso a uma parede divisória de madeira que existia no quintal. Tempos depois, removida essa divisória, o vaso foi deslocado para ficar suspenso em um corredor coberto que dava acesso a esse mesmo pátio. Um dia, lá pelo mês de março, depois de tantos anos, o cacto apresentou pela primeira vez ao mundo uma flor exótica, de cor lilás, grande, felpuda e aveludada, de cinco pontas, como uma estrela. Uma única flor, que não durou mais de dois dias; passamos a chamá-la flor efêmera, por ser tão rara, bela, fugaz e, naquele momento, única. Mais tarde, já depositado noutro lugar, o cacto decidiu liberar essa flor às dezenas, beleza multiplicada, mas ainda fugaz, a provocar o pensamento e a memória. A cada leitura do texto de Freud (2006c)Freud, S. (2006c). La transitoriedad (1915) (Vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu. A transitoriedade, publicado pela primeira vez em 1915, lembramo-nos da flor efêmera; sempre que a vemos florar, ela evoca ao espírito o tema desse texto, o delicado debate sobre se o belo, assim como um momento fugaz de fruição e felicidade, por ser finito, merece ou não ser apreciado.

Por que razão se permitir a algo desejável, belo, apaixonante, se esse objeto, por ser finito, pode, em algum instante, desaparecer? Se até mesmo o vínculo humano – intenso e apreciado laço – pode algum dia terminar? A finitude e a fragilidade de tudo aquilo que é bom, das boas ideias e dos bons projetos, deveriam ser suficientes para que nos apartássemos delas e do desejo de vivê-las para não ter que sentir depois a amargura da perda? Freud (2006c)Freud, S. (2006c). La transitoriedad (1915) (Vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu. reflete sobre essas questões nesse texto e, ainda que não lhe acuda o pensamento o conceito de kairós, suas reflexões andam muito perto dessa dimensão. Dimensão essa que, para Michel Foucault, torna-se significativa se vinculada ao que ele chama de inquietude de si — epiméleia heautoû.

A teoria foucaultiana sobre a inquietude de si3 9 Hoje sabemos que eram eles Rainer Maria Rilke, o poeta, e Lou Andreas-Salomé. aspira a um modo de vida em que o sujeito esteja permanentemente atento a suas próprias experiências formativas, inclusive aquelas mais passageiras, porém não menos decisivas em relação a sua própria constituição. O presente ensaio pretende articular a noção foucaultiana de inquietude de si com a de transitoriedade proposta por Freud. A aproximação entre essas duas noções será potencializada pela noção de kairós, ponte conceitual que, sendo condição inerente ao despertar da inquietude de si, serve como referente para examinar a transitoriedade.

Kairós é o operador teórico que liga as duas noções, dando ensejo a que se possa pensar o trabalho analítico como exercício de si, que se apoia na inquietude de si, essencial para a formação humana. Sustentaremos a proposição de que a escuta analítica, trabalho conjunto de apropriação de sentidos levado a cabo pelo analista e pelo paciente – e, quiçá, na relação entre professor e aluno – torna-se uma das materializações possíveis, no mundo contemporâneo, da inquietude de si.4 1 Responsible editor: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 Consideramos que esse encontro se pauta por um modelo não-solipsista de disponibilidade pessoal, escuta e construção compartilhada de sentido, práxis sempre dialógica, que se dedica à formação humana e pode servir de parâmetro para refletir sobre os modos de subjetivação — e, por que não dizer, de dessubjetivação — contemporâneos.

A primeira parte do texto, intitulada “Sobre a inquietude de si”, trata desse conceito a partir do curso ministrado por Michel Foucault em 1982, chamado A Hermenêutica do Sujeito. A segunda parte, intitulada “Sobre a transitoriedade”, pretende apresentar a posição freudiana acerca do valor do que é transitório. A elas se segue a apresentação de um fragmento da clínica que ilustra a noção de transitoriedade, bem como a de inquietude de si.

Sobre a inquietude de si

A sustentação do sujeito diante das intempéries da vida é demanda premente da prática psicanalítica. Pela psicanálise, esse suporte se dá pelos processos de constituição do próprio sujeito a partir de sua percepção de si mesmo. Se assim a compreendemos, abre-se um campo de diálogo fecundo entre a psicanálise freudiana e a filosofia foucaultiana em decorrência da concepção de inquietude de si, noção resgatada por Foucault da Grécia clássica e dos primeiros séculos de nossa era. Em que medida, então, o encontro analítico pode ser compreendido como um exercício do próprio sujeito sobre ele mesmo capaz de promover a formação humana enquanto inquietude de si?5 2 References correction and bibliographic normalization services: Camila Pires de Campos Freitas - camilacampos.revisora@gmail.com

Iniciaremos pela compreensão da noção epiméleia heautoû, considerando o que os gregos chamavam de thaumázein como o primeiro momento do epiméleia heautoû. No diálogo Alcibíades, de Platão (2015b)Platão. (2015a). Apologia de Sócrates. Críton (3ª ed., Carlos Alberto Nunes, Trad., Plínio Martins Filho, Ed., Benedito Nunes & Vitor Sales Pinheiro, org.). Belém: Ed. UFPA., Sócrates assim interpela o personagem Alcibíades6 3 English version: Viviane Ramos - vivianeramos@gmail.com> :

Ó filho de Clínias, deves estar admirado de que, tendo sido eu o primeiro a te amar, seja o único que não te abandonasse, quando todos se afastaram, apesar de não te haver dirigido a palavra durante tantos anos em que a turba te importunava com suas atenções. (p. 45)

Marcado pela admiração de Alcibíades a Sócrates por este ser o único erastés7 7 A relação amorosa (eros) entre um erastés (homem mais velho) e um erômenos (jovem) era uma relação afetiva e educativa em que o mais jovem era preparado para a vida. a não o abandonar, esse princípio prosaico de diálogo reserva uma breve, porém imprescindível, razão para o despertar da filosofia, a saber, a inquietação do espírito humano acerca de sua própria condição. Alcibíades era um grego do século V a. C., jovem, belo, aristocrata, possuidor de muitas riquezas, amigo de personalidades políticas influentes na cidade de Atenas, na antiga Grécia. Esse conjunto de conveniências faz Alcibíades agir com desdém, afugentando todos aqueles que se aproximavam dele. O personagem está curioso não somente para descobrir por qual razão Sócrates não o abandonara, mas também para saber por que todos os outros erastaí o rejeitaram.

As respostas para essas questões não nos são tão importantes quanto o fato de elas existirem, pois sua presença descreve o espanto de Alcibíades diante da situação em que se encontra – aspecto decisivo para o nascimento da própria filosofia. A vivacidade filosófica tem origem, portanto, no thaumázein, que é justamente a admiração perplexa que faz emergir a inquietude à medida que as certezas se perdem. Esse exercício, aparentemente banal, guarda sua própria complexidade. Por isso, é importante notar, por exemplo, que, se Sócrates tivesse se aproximado de Alcibíades no mesmo momento em que todos os outros erastaí o tivessem cercado, nenhum thaumázein, em razão dessa situação, teria se originado em seu pupilo. Sócrates, então, procura o tempo mais adequado para interpelá-lo, pois o thaumázein é singular e, por isso, a forma a partir da qual alguém se espanta não é, necessariamente, a forma com que o outro se espanta.

Contudo, como dissemos na introdução: o espanto pode nos chegar de diversas formas. Sócrates, enquanto mestre da inquietude de si – epiméleia heautoû –, encontra a forma mais propícia, em seu entendimento, para fazer surgir o thaumázein em Alcibíades, o que foi possível graças a sua postura sempre atenta ao outro, assim como ele mesmo anuncia: “durante todo esse tempo, observei como te comportavas” (Platão, 2015bPlatão. (2015a). Apologia de Sócrates. Críton (3ª ed., Carlos Alberto Nunes, Trad., Plínio Martins Filho, Ed., Benedito Nunes & Vitor Sales Pinheiro, org.). Belém: Ed. UFPA., p. 45). É possível notar a especificidade da mestria de Sócrates em razão de sua capacidade de, primeiramente, acolher o outro em sua individualidade para, posteriormente, atraí-lo. Isto é, o mestre, quando acede o discípulo, o faz – ciente e cioso dessa assimetria – com noção e consideração pela carência singular daquele. Reconhece que, sem essa perturbação, dificilmente o erômenos teria se envolvido em um diálogo tão longo com seu erastés.

Sócrates não finda aí sua provocação pedagógica, pois, em razão de tê-lo observado longamente durante o tempo, sabia de sua maior ambição: governar a cidade de Atenas. Em virtude de sua atenção ao modo como Alcibíades descurava-se de si mesmo, sabia também de seu despreparo para governar a cidade. Se não governava bem a si mesmo, tampouco governaria bem os outros. Por isso, Sócrates impunha a Alcibíades inúmeras perguntas acerca do que seja bem governar a cidade. Assim indagado, Alcibíades fica abalroado a tal ponto que declara: “pelos deuses Sócrates, já não sei o que falo; encontro-me numa situação esquisita; quando me interrogas, ora sou de uma opinião, ora de outra” (Platão, 2015bPlatão. (2015a). Apologia de Sócrates. Críton (3ª ed., Carlos Alberto Nunes, Trad., Plínio Martins Filho, Ed., Benedito Nunes & Vitor Sales Pinheiro, org.). Belém: Ed. UFPA., p. 87), “é bem possível que eu esteja há muito tempo nesse estado de ignorância, sem aperceber-me disso” (Platão, 2015bPlatão. (2015b). Primeiro Alcibíades. Segundo Alcibíades (3ª ed., Carlos Alberto Nunes, Trad., Plínio Martins Filho, Ed., Benedito Nunes & Vitor Sales Pinheiro, org.). Belém: Ed. UFPA., p. 121).

A perplexidade de Alcibíades é decorrência da perda de suas convicções, pois se reconhece deslocado justamente sobre o assunto em que se pressupunha perito. Na filosofia, o modo mais legítimo para criar o thaumázein é, justamente, perceber-se ignorante naquilo em que se acreditava exímio. Esse espanto torna-se, portanto, condição sine qua non para um diálogo legítimo em que o interlocutor se interessa genuinamente pelo tema em evidência. Alcibíades acreditava piamente não precisar de mais nada além do que já possuía para realizar seu desejo de governar a cidade. Ele bastava-se a si mesmo. Por isso, a flexibilização desse lugar, proporcionada pelo thaumázein, prepara-o para ouvir e acolher o outro. Dito de outro modo, Alcibíades agora, a partir da condição de falante, está também em condição de faltante – e, por conseguinte, de ouvinte –, pois é no instante em que se apercebe, diante de um diálogo que o interpela e questiona – cuja ausência de certezas o expulsa da zona de conforto –, que o outro torna-se, então, imprescindível para a constituição do si mesmo.

O thaumázein é um breve instante em que o sujeito se dá conta de uma situação específica. É um instante absolutamente efêmero, que, por vezes, preferimos não viver, em razão do desassossego que pode suscitar, pois, apesar de transitório, não tem um fim em si mesmo, já que seus efeitos são sua continuidade e seu sentido. A inquietude é, conforme nos mostra Michel Foucault (2002)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica. em suas conferências no Collège de France, em 1982, publicadas sob o título de A Hermenêutica do Sujeito, o principal legado do thaumázein: “a inquietude de si, portanto, vai ser considerada como o momento do primeiro despertar” (p. 23). Essa noção estaria no princípio da teoria da inquietude de si – epiméleia heautoû. Por isso, durante as primeiras aulas d’A Hermenêutica do Sujeito, Foucault dedica-se a demonstrar como insere-se, no interior da filosofia, essa noção cultural, não somente por meio do diálogo Alcibíades, como também pela Apologia de Sócrates.

Poderíamos dizer que o gnóthi seautón (conhece-te a ti mesmo) socrático é o segundo momento do epiméleia heautoû. Foucault (2002)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., ao ler a Apologia, apresenta-nos uma bela descrição acerca da noção de inquietude de si: “é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado ali, na carne dos homens, que deve cravar-se em sua existência e é um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de desassossego permanente ao longo da vida” (p. 24). É importante destacar que esse princípio pode e deve ser entendido num duplo sentido – paradoxal, à primeira vista: por um lado, não pretende conduzir os homens a um estado de calmaria diante de si mesmo, ou seja, o sujeito não deve, nunca, assossegar-se diante de sua condição; por outro lado, se essa primeira dimensão for atendida, passa a conduzir os homens a um estado de serenidade diante do mundo e de suas próprias paixões. Isto é, ao inquietar-se permanentemente consigo mesmo, o sujeito prepara-se para lidar com as adversidades do mundo e para não se tornar escravo de suas próprias paixões.

Ao dirigir sobre si mesmo um olhar atencioso e, portanto, desacomodar-se consigo mesmo, Sócrates propõe um modo específico de acessar um dos preceitos gregos mais sabidos da história da filosofia ocidental, o famoso “conhece-te a ti mesmo”, gnóthi seautón. Sempre assumido como propulsor da importância indiscutível do conhecimento, e de um conhecimento verdadeiro, esse preceito impulsionou grandes pensadores a uma busca incessante pela verdade absoluta. Busca essa que, em inúmeras oportunidades, desconsiderou o sujeito como principal objetivo do gnóthi seautón. É, pois, segundo Foucault (2002)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., justamente esta a dimensão que Sócrates, por meio do epiméleia heautoû, recomenda e adverte: o conhecimento ou a verdade deve sempre pretender a transformação do sujeito. Dessa forma, o gnóthi seautón, se tomado pela perspectiva ética do acesso ao conhecimento, não renuncia o sujeito em seu processo de subjetivação, pois exige precisamente o exercício do sujeito sobre o próprio sujeito e sua consequente transformação pelo saber de si.

Essa forma de conceber o lugar do conhecimento no mundo, Foucault denomina de espiritualidade. O saber de espiritualidade é um conjunto de buscas “que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade” (Foucault, 2002Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., p. 33). A dimensão, portanto, que dá sentido ao conhecimento é o movimento que o sujeito realiza sobre si mesmo para acessar a verdade. Esse exercício de si sobre si é o preço a pagar para acessar a verdade e pode ser entendido, a partir da filosofia socrática, como a capacidade do indivíduo de colocar-se em questionamento, o que exige, necessariamente, a presença de um outro, a exemplo de Alcibíades. Isso nos conduz, então, para uma relação formativa muito própria desse exercício exigido pelo epiméleia heautoû: a relação entre mestre e discípulo.

Podemos identificar, portanto, um terceiro momento do processo de inquietude de si, demarcado pela relação emblemática entre o mestre e o discípulo (stultus). Há sempre um risco premente que cerceia a formação humana, a estagnação diante daquilo que nos tornamos. Aquietar-se consigo mesmo é um estado peremptório que, perigosamente, conforma-nos, e esse conforto nos adoece. Decorrente da ausência da capacidade de espantar-se, o sujeito, nesse estado, é incapaz de autoexame e, consequentemente, incapaz de ser autor de sua própria vida. A posição aquieta do sujeito diante de si mesmo é, portanto, um lugar a partir do qual ele não tem condições de sair por sua conta. Foucault (2002)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica. nomeia esse sujeito de stultus, aquele que, por si mesmo, é inábil para conduzir com convicção seu modo de vida, pois “o stultus é quem está disperso no tempo” (p. 136).

O que significa “estar disperso no tempo”? É um estado de desatenção consigo mesmo em relação ao tempo em que se vive? Ou é a condição de quem é negligente com o tempo de seu próprio si mesmo? De que tempo falamos? Do tempo do sujeito ou do tempo histórico que o cerca? Tomemos como ponto de partida a seguinte afirmação de Foucault (2002, p. 135)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica.: “o stultus é antes de tudo quem está exposto a todos os ventos, aberto ao mundo externo”. É um indivíduo que, em síntese, está indiscriminadamente receptivo a tudo que seu tempo lhe oferece, pois o tempo em que vive lhe determina, e isso, ilusoriamente, fortalece-o, uma vez que acredita estar, desse modo, atento a si mesmo. Essa adaptação incondicional ao que o mundo lhe oferta é o que lhe conforta, o que lhe oferece a falsa sensação de cuidado consigo mesmo.

Podemos dizer, com Sócrates, que o stultus ignora seu próprio estado de ignorância. Se o ignora, aquieta-se e, assim, conforta-se e persevera, inconsciente de si mesmo, disperso no tempo que o cerca. Por estar disperso no tempo, está à mercê de todo e qualquer vento e, por isso mesmo, não pretende um modo de vida, aceita todo e qualquer modo de viver determinado por outrem. Aceita qualquer demanda, pois, enquanto stultus, não está em condição de discriminatio, ou seja, de separar, de discriminar, de selecionar o conteúdo das representações externas (Foucault, 2002Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica.). Desatento ao que recebe e se passa na subjetividade durante sua constituição, a stultitia é, para Foucault (2002, p. 134)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., um “estado patológico, . . . estado mórbido do qual é preciso sair”.

Para sair desse estado, o stultus deveria espantar-se consigo mesmo, querer como convém e como se deve querer a si mesmo, porém ele “ não é capaz de querer como se deve” (Foucault, 2002Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., p. 136), pois querer como convém é desejar o único objeto a que se deve, livre, absoluta e permanentemente desejar, a saber, o si mesmo, aqui tomado no sentido dos ideais, ideais protetores do si mesmo, uma vez que querer como se deve coloca em jogo o balanço entre querer e dever, produzindo internamente a constante indagação: eu devo fazer isso que quero fazer? O stultus não deseja nem livremente, pois é sempre determinado pelo externo; nem absolutamente, pois, ao mesmo tempo que quer algo, deplora-o; tampouco permanentemente, pois o quer com displicência e abatimento (Foucault, 2002Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica.). É um indivíduo que não sabe educar sua própria vontade em direção a si mesmo, que não dirige o olhar para si mesmo, como bem ilustra Alcibíades.

Ao querer tudo e qualquer coisa e, por isso mesmo, nada querer, o stultus se assossega consigo mesmo e, assim, descuidado de si, desconsidera seu próprio tempo. O tempo enquanto real externo, internalizado em sua subjetividade por meio das representações de mundo, não somente o faz perder-se no tempo, como também desatende seu próprio tempo de sujeito, uma vez que o stultus está atento a qualquer coisa, menos a si mesmo.

Freud (2013)Freud, S. (2013). As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica., em Pulsões e seus destinos, cuja primeira edição data de 1915, ao tratar da oposição entre prazer e desprazer e do funcionamento primitivo do Eu-prazer, demonstra a assimilação ao Eu de tudo o que é fonte de prazer e a projeção no exterior daquilo que causa desprazer. Essa simplificação, contudo, é insustentável, e logo o sujeito aprende que no mundo exterior estão os objetos fonte de prazer. Se essa descoberta livra o sujeito do perigo presente no primeiro estágio, a saber, o de ficar fechado sobre si mesmo, ele pode cair em novo perigo, que é a aderência aos objetos exteriores ofertados pelo mundo.

Esse é um aspecto que nos interessa muito nesse contexto, pois reforça a ideia de que, com muita facilidade, assumimos aquilo que nos causa prazer instantâneo, e o externo pode ser sortido em prazeres, ofertando ao sujeito a imediata sensação de que está atento, vigiando-se permanentemente. De outro modo, o processo legítimo de formação de si mesmo não causa prazer imediato, pelo contrário, pode ser carregado de desprazeres. O stultus confunde realização dos prazeres com atenção a si mesmo. É nisso que o mestre se faz necessário, ele deve contribuir com o indivíduo para que este dirija o olhar para si mesmo enquanto o único objeto a que se deve querer incessantemente. Mas, vejamos, o mestre não é aquele que deve enxergar em lugar do discípulo, mas sim aquele que promove a condição para que o próprio discípulo olhe para si mesmo.

Diante disso, recordemos que “o espanto pode nos chegar por diversas formas”, porém, sem a sensibilidade necessária para tanto, deixamo-lo passar incólume, sem nos apercebermos de sua possibilidade. Dito de outro modo, a insensibilidade para consigo mesmo, própria do stultus, protege-o do thaumázein. Isso evidencia o quanto é imprescindível a presença de outro (mestre) para romper com a armadura insensível que construímos ao habituar-se a se aquietar diante de si mesmo.

A presença do mestre – representação do outro – na vida do stultus prepara e amplia a possibilidade deste de observar o que se chamava kairós, o momento mais oportuno para “aquele” sujeito formar a si mesmo.8 8 Sobre o momento mais oportuno para o sujeito formar a si mesmo, há de se considerar que, na “Aula de 20 de janeiro – primeira hora”, Foucault ultrapassa, n`A Hermenêutica do Sujeito, uma compreensão específica advinda do diálogo Alcibíades, em que o tempo era hora e, portanto, haveria certa e determinada estação da existência reservada para o epiméleia heautoû. Aliás, muito pelo contrário, Foucault procura fomentar a inquietude como um processo de formação de si mesmo coextensivo à vida. Superar, portanto, a redução da inquietude de si à concepção de hora implica dirigir-se para uma perspectiva ampliada de tempo enquanto kairós, “significando, de certo modo, a conjuntura particular de um acontecimento” (Foucault, 2002, p. 95), que pode e deve acontecer no decorrer de toda a vida. Sobre esse tema, podemos acompanhar uma crítica mais detalhada de Foucault (2017b) a essa primeira e originária fase do epiméleia heautoû em sua conferência, proferida em 1983, em Berkeley, na Universidade da Califórnia, intitulada A cultura de si, em que ele afirma que a inquietude de si “deve ser uma relação consigo próprio permanente. Sócrates, como se devem lembrar, recomendava a Alcibíades que aproveitasse a juventude para se ocupar de si próprio” (p. 77). Diante disso, podemos concordar com Foucault e nos perguntar: por que razão um tempo apenas, privilegiado e específico, poderia amparar uma conjuntura complexa de descobertas e transformações do sujeito? Foucault (2017b) recorre a Epicuro ao justificar a necessidade de sempre filosofar, na juventude ou na velhice, pois não há tempo predeterminado para cuidar da alma. Tal postura demonstra certo limite do alcance do diálogo Alcibíades no tratamento dessa temática, justificando, assim, o próprio exercício de pesquisa que faz n’A Hermenêutica do Sujeito, adentrando em outros textos e em outros períodos históricos do desenvolvimento da filosofia. O kairós é, portanto, “a ocasião, que é exatamente a situação recíproca dos indivíduos e o momento que se escolhe para dizer essa verdade” (Foucault, 2002Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., p. 366). Kairós é o tempo, não o cronológico, kronos, mas sim o singular daquele indivíduo, em que ele pode ser de determinado modo que, anteriormente, não era nem possível nem previsível. É uma circunstância cuja presença só é notada quando o sujeito está inquieto consigo mesmo ou quando o mestre atua pedagogicamente sobre ele.

Kronos, na mitologia grega, era o senhor do tempo e representava a imortalidade dos deuses. Contudo, Kronos vivia preocupado com a ideia de que um de seus filhos pudesse tirá-lo de seu lugar soberano e, como prevenção, passou a devorá-los. Diante disso, todos temiam Kronos, pois Kronos – o tempo – poderia destruir e devorar a tudo e a todos. É a personificação da linearidade do tempo e sua impossibilidade de retorno. Kairós, por sua vez, não era a métrica do tempo, não era o tempo medido e definido, mas o tempo oportuno, o tempo singular, a oportunidade certa para determinado indivíduo.

Para nossos fins, a imagem de Kairós que, dentre outras características, tem o cabelo todo voltado para a frente e, portanto, a nuca careca, só pode, então, ser pego (agarrado) quando vem de frente para nós, depois que passa não é mais possível segurá-lo. É instantâneo. É justamente a ideia de que momentos ou instantes decisivos na vida são raros, escassos e, assim, se não estivermos permanentemente inquietos com nós mesmos, perdemos a grandeza daquele efêmero espaço de tempo. A inquietude de si, portanto, não é um lugar ou um tempo definitivo a que o sujeito pode chegar. A inquietude de si é um movimento e, por isso, não é um estado final que se atinge, mas um modo de viver no mundo durante toda existência. Este é exatamente o ponto que nos conduz à questão da transitoriedade proposta por Freud.

Sobre a transitoriedade

Freud escreveu A transitoriedade em 1915, metade da Primeira Guerra Mundial, que já havia deixado seu rastro sinistro por onde passava. Eram tempos de guerra e morte, tempos de perda, solidão e desilusão, tempos em que a descrença e a desesperança – figuras clínicas que já prefiguravam aquilo que seria a pulsão de morte – ali estavam à espreita para ocupar, sorrateiras, a mente das pessoas.

O cenário que emoldura o texto, em contraste com o rumo um tanto pessimista do tema e da conversa, é bucólico: Freud caminha numa campina, nas Dolomitas, em companhia de um amigo taciturno e de um jovem e já famoso poeta.9 9 Hoje sabemos que eram eles Rainer Maria Rilke, o poeta, e Lou Andreas-Salomé. O poeta admirava a exuberância natural que os cercava sem, no entanto, sentir o menor encanto por ela. Ao contrário, expressava preocupação com a sombria ideia de que tudo aquilo desaparecia, morreria no inverno seguinte, como haveria de ser com toda a beleza humana e tudo que, de belo e elevado, a mão e o gênio humanos criassem. A transitoriedade de tudo que via naquele momento lhe fazia sentir que nada adquiria valor.

Freud comenta que, dessa inevitável caducidade de tudo que é belo, podem derivar dois distintos estados de alma. Um deles é o fastio tedioso e pessimista, o desânimo e o desinteresse diante do mundo, apresentados pelo jovem poeta. Outra possibilidade é o espírito erguer-se numa revolta contra esse fatídico destino: “Não é possível! Não pode ser verdade que toda arte e beleza precisem fatalmente sucumbir”. Essa posição leva a um reclame pela perenidade, uma negação da finitude de tudo que existe, conduzindo à crença de que as coisas belas são imunes à destruição e devem salvar-se de todos os danos. É evidente que essa exigência de exceção diante da finitude se choca com a realidade. Na conversa, Freud decide não aderir ao fastio pessimista nem advogar em nome de uma exceção de perenidade em favor do belo. Contestou seu amigo poeta, contudo, em sua tese de que a transitoriedade levaria à desvalorização daquele momento e da beleza que ali se mostrava.

Para Freud, a escassez no tempo aumenta o valor daquilo que é transitório, e a restrição da possibilidade de fruir seu gozo o torna ainda mais apreciável, apesar de seu curto tempo. A formosura do rosto ou a beleza das linhas de um corpo humano podem desaparecer para sempre no curso da vida, mas, em troca, outros aspectos do belo se revelarão na relação entre duas pessoas que se querem; se uma flor se abre por uma só noite, não por isso sua efêmera florescência deve ser menos marcante. Da mesma forma, Freud não compreende por que a beleza da arte ou prazer de uma conquista intelectual possam ser desvalidos em razão de sua inerente limitação temporal e complementa:

Se acaso chegasse um tempo em que as imagens e as estátuas que hoje admiramos se destruíssem, ou que nos sucedesse um gênero humano que já não compreendesse mais as obras de artistas e pensadores, e ainda que houvesse uma época geológica em que toda a vida cessasse sobre a terra, o valor de toda essa beleza e perfeição estaria determinado unicamente por seu significado para nossa vida sensitiva; não faz falta que sobreviva e é, portanto, independente da duração absoluta.

(Freud, 2006cFreud, S. (2006c). La transitoriedad (1915) (Vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu., p. 310)

Aqui está a chave do argumento de Freud no texto. Em O bloco mágico (Freud, 2006eFreud, S. (2006e). Notas sobre la pizarra mágica (1925) (Vol. 19). Buenos Aires: Amorrortu.), originalmente editado em 1925, o autor forja a ideia de que algumas experiências produzem impressões psíquicas tão profundas que ficam registradas para sempre, sem jamais serem apagadas. Seus traços, indestrutíveis, serão sempre reordenados, recombinados, reprocessados, reconfigurando-se sem cessar a cada nova significação dada por uma experiência de vida ou pela autocrítica reflexiva que sobre eles se produza, num perene movimento de tradução psíquica. Essa é a forma de funcionamento do aparelho psíquico para Freud: um aparelho de representação e ressignificação posterior que faz do ser humano um obstinado tradutor de si mesmo.

Não é a permanência no tempo que conta para a durabilidade de uma experiência psíquica. O tempo externo, medido em minutos e horas, o tempo do relógio, do processo secundário, da temporalidade (kronos) do Eu, tem pouco a dizer sobre o processo de inscrição e de registro das marcas psíquicas. A fugacidade de uma experiência pode, para o bem e para o mal, mesmo que tenha curtíssima duração – o tempo de uma frase, uma cena trágica presenciada que dura pouco mais que segundos, um equívoco, um encontro inesperado, um mal-entendido, uma palavra mal dita, uma aula marcante, uma grande notícia – pode fazer inscrever marcas perenes que acompanharão o sujeito por toda a vida. Nesse caso, o que conta é a marca que a experiência foi capaz de deixar dentro e que funciona como um depósito de material de efeito retardado para todo o sempre, e não o fato de ser perdurável ou não, o que expressa, de certa maneira, em linguagem freudiana, a diferença entre kronos e kairós.

Não foi à toa que Freud recorreu, em sua argumentação, ao problema do luto e da perda. No texto, ele considera que tanto esse fastio tedioso como a revolta contra a finitude das coisas belas são uma resposta subjetiva, uma revolta anímica contra o luto que turva o sujeito, levando-o a desvalorizar o gozo do belo em razão da sombria ameaça de que tudo terá fim. O resultado pode ser a indiferença. É exatamente a indiferença de seus dois parceiros de conversa que faz com que Freud tire essa conclusão. Os dois o escutaram com atenção, mas sem demonstrar qualquer inquietude ou mudança subjetiva em razão de suas palavras, permanecendo imutáveis nas posições de casmurrice e tédio.

A reflexão freudiana sobre a transitoriedade abre espaço para compreender que o luto é um estado de alma que nos faz sentir uma aguda consciência do tempo, em especial do tempo perdido, da finitude, de quanto nossos anseios narcisistas impediram que desfrutássemos mais da convivência do ser amado enquanto esteve presente. Essa sensação é inevitável. Nunca, no tempo presente, em razão dos entulhos narcisistas que minam nosso cotidiano, conseguimos aproveitar todo o tempo que temos com o outro e tudo que o convívio com ele pode nos dar. A rotina, repleta da pequena mesquinhez que lhe é própria, de tal maneira nos ocupa que impede que nossa disponibilidade seja tão inteira quanto gostaríamos para aqueles a quem desejamos nos dedicar. A experiência presente – e isso se faz sentir particularmente na educativa, nos mais diversos espaços da vida em que ela se dá – bem raramente pode ser aquilatada de modo apropriado. Não conseguimos nem mesmo ver que o tempo não para, que a vida passa, o tempo passa, e que chegará um dia em que alguém dos que estão conosco vai faltar. Para descartar a terrível angústia que essa percepção desperta, tratamos de ignorar essa dimensão vital. Seria impossível viver pensando o tempo todo no dia do fim. Quando falta o ser amado, quando enlutamos, o pano cai, e já não podemos sustentar a farsa do cotidiano: tomamos um agudo contato com essa dimensão temporal e nos tornamos temporariamente capazes de compreender que deixamos passar experiências preciosas em razão do amortecimento patrocinado pela rotina. É quando kairós assume o lugar de kronos.

Como essa conversa acontece pouco mais de um ano após o início da guerra, é ao choque com a desesperança, a brutalidade e a insensatez – efeitos dessa circunstância – que Freud atribui a razão do luto. A guerra destruiu impiedosamente a beleza de muitas cidades; fez desabar a beleza construída pelos artistas e suas obras, derrubou o orgulho sentido pelas conquistas da cultura, em cujo seio se esfacelou a esperança de não haver mais diferenças entre povos e raças; fez perder o respeito pelas luzes quando pensadores se revelaram cegos em seus partidarismos; esfacelou a suposta imparcialidade da ciência, cujos desenvolvimentos foram utilizados a serviço da destruição. Desnudou, enfim, toda a brutalidade da vida pulsional, maldades que a educação e a civilidade deveriam de ter suplantado após séculos de trabalho psíquico, e deixou exposta a qualidade efêmera de obras e atributos que se julgavam permanentes. Vale lembrar que, se esses eram tempos de guerra, também o eram de dissidências no crescente grupo de psicanalistas, de Luto e Melancolia (2006d)Freud, S. (2006d). Duelo y melancolía (1915) (Vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu., editado originalmente em 1915, e das inadiáveis considerações sobre o narcisismo, cujo texto inaugural também é de 1914 (Freud, 2006bFreud, S. (2006b). Introducción del narcisismo (1914) (Vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu.), conflitos subjacentes da vida do autor de cuja tensões temos aqui notícias pela produção textual.

O desprezo pela fugacidade e finitude do belo é fruto da desesperança melancólica. É ela que, contraditoriamente, empurra homens e mulheres a uma vida reduzida ao momento, uma vez que, no instante seguinte, nada mais estará ali. Essa louca consumição do momentâneo, à qual já nos referimos quando mencionamos o stultus, de maneira paradoxal, não permite discriminar, em meio a sua fúria, aquilo que é perene, belo e verdadeiramente valioso, do simples imediatismo do gozo. Goza-se com a primeira coisa como se fosse a última e com qualquer coisa como se fosse a única. É uma espécie de proteção contra o mundo, um alheamento para fora do mundo, em direção ao narcisismo, em que todos os bens e valores sublimes se desvalorizam pela fragilidade que exibem ao não perdurar no tempo.

Para Freud, aqueles que desacreditam do valor das coisas conquistadas – uma vez que sua fragilidade não confirma a fantasia de indestrutibilidade no tempo e espaço concreto – e que se retiram na firme disposição de manter uma renúncia perene a tudo estão num luto sem solução pelo que foi perdido. E conclui:

Cabe esperar que com as perdas desta guerra, tão logo se supere o luto, seja novamente provado que nosso alto apreço pelos bens da cultura não sofreu menoscabo pela experiência vivida de sua fragilidade. Construiremos tudo de novo, tudo o que a guerra destruiu e, quiçá, sobre um fundamento mais sólido e duradouro do que antes.

(Freud, 2006cFreud, S. (2006c). La transitoriedad (1915) (Vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu., p. 311)

O texto transparece uma forte convicção sobre o valor do pensamento e uma profunda esperança no futuro, em que pese todos os motivos contrários que uma humanidade narcisista geradora de violência e guerra insiste em oferecer. Os queixumes, a lamentação pelo não foi vivido, pelo que não se tem, pelo que falta e pelo que não se recebeu são formas de permanecer sem reconhecer o que foi recebido e levam a um constante desaproveitamento do tesouro interno de cada um, agora destituído de valor. Assim, aprisionado num si mesmo egoísta, mas despossuído, o sujeito sente com amargura que aquilo que o outro tem é sempre melhor, sua casa é melhor, sua vida é melhor, as coisas foram mais fáceis para ele.

Não se trata de advogar a favor de que todo sofrimento deva ser tolerado em silêncio, de que se deve aguentar calado porque assim são as provações da vida, nem de transformar dor em virtude para chegar ao funcionamento raso, ingênuo e irritante, tão presente hoje, que adota uma visão positivista e otimista vazia do tipo: “Não se abale! Seja feliz! Siga adiante seja lá o que for que lhe aconteça e seja qual for a falta que lhe toque viver”. Faz-se necessário, contudo, discriminar o que é a duração de algo em horas contadas pelo relógio do processo secundário e racional daquilo que instantaneamente – pela conjunção de intensidade, surpresa e ineditismo – adquire uma força que de fugaz não tem nada, a não ser a medida em minutos ou horas que desse momento se possa fazer.

No espaço da análise, Esperança

O espaço analítico é um espaço “entre dois” de trabalho compartido. Ele é também profícuo em exemplos que nos ensinam sobre o valor da transitoriedade e o sentido da inquietude de si. Quiçá seja um lugar privilegiado para que vejamos como grandes estremecimentos e passagens da mais profunda e comovedora beleza ocorrem num instante. A propósito disso, recordamo-nos de Esperança, uma mulher oriunda de um lugarejo qualquer do interior de um pequeno município, que viveu uma vida de muitas privações – muitas vezes, humilhações –, porque queria estudar para poder ser alguém. O aspecto mais marcante dessa história é que todo o trabalho que ela passou não foi exatamente necessário, em razão, por exemplo, da condição de miséria de uma família que não podia assisti-la, senão que o preço que precisou pagar por querer seguir adiante, diferenciar-se e, principalmente, desejar para si acesso à formação humana e à educação. A família poderia ter ajudado muito mais e a protegido do tanto que passou, mas preferiu fazer com que ela arcasse com sua escolha e pagasse por ela com agruras, deixando transparecer um modo sádico de tratar qualquer um de seus membros que ousasse fazer diferença.

Hoje está muito bem e, assim podemos dizer, venceu na vida. Em análise há três anos, mesmo com três sessões semanais e muito trabalho interpretativo realizado, até o dia desta sessão, ocorrida aos dois anos e meio de seu processo analítico, nunca pôde usar o divã. A insistência inicial para que o fizesse foi abandonada por entendermos que – mais que uma resistência – em sua recusa se manifestava uma relutância cujo sentido era que essa mulher não suportava a ideia de vir a um lugar onde poderia estar confortavelmente recostada, a ocupar-se de si e a pensar em sua vida, sem que seu corpo estivesse de prontidão, ereto, observando o ambiente na vigilante prontidão para atender alguma ordem. A interpretação desse material produzia impacto, mas nunca foi suficiente para que se arriscasse a nele deitar-se e desfrutá-lo.

Passado esse tempo, um belo dia, Esperança chega à sessão apreensiva e inquieta, trazendo uma pílula na mão: “Tens um copo d’água?”, pergunta. “Não. Lamento, mas não tenho”, foi o que, singela e sinceramente, recebeu como resposta. “Bom... Depois eu tomo isso então... Preciso te contar umas coisas hoje e não sei se vou conseguir falar aqui... Acho que preferia ali... Acho que vou precisar deitar...”.

Concordamos com um sinal de assentimento com a cabeça, indicando-lhe o divã com o braço, num gesto de quem lhe dá passagem. Ela se deita. Queremos dizer, meio que se senta, depois coloca os cotovelos sobre o divã e fica assim, apoiada sobre eles. Finalmente se recosta, e então se revira, coloca as mãos embaixo da cabeça para mantê-la mais alta. Está tensa, desajeitada. Registrando isso, indagamos: “Queres uma almofada para ficar mais confortável?”, oferecendo conforto. Ela contesta: “Não... Não, não precisa...”. “Então está bem... Mas é importante que estejas, antes de tudo, confortável. E absolutamente relaxada e à vontade”, foi nossa resposta.

Essa não é uma fala de simples gentileza, mas a expressão solidária de quem a ouviu dizer por anos do tempo em que trabalhava como empregada sem salário, em troca de teto e comida, o corpo teso sempre à disposição das ordens dos patrões, sem importar a hora, sempre disposta a deixá-los à vontade à custa de sua prontidão. Essa fala é uma interpretação, uma palavra com força de ato a indicar-lhe o caminho: agora é ela quem deve ser atendida; é ela quem deve abandonar-se de tudo o mais para estar livre e ocupar-se de sua cabeça, mergulhar em seus pensamentos, colocar o tempo a sua disposição, ainda que fosse seja o curto tempo da sessão. Deitada, assim permanece, em silêncio, contemplando a nova perspectiva que tem da sala, quieta por um tempo, até lhe perguntarmos: “No que pensas, Esperança?”. “Não... Estava aqui sentindo... É bom... Macio... Estava sentindo um pouco esse momento”, responde. Depois de mais algum tempo de silêncio, falamos a ela que está bem, que fique à vontade, mas que se deixe levar por seus pensamentos quando quiser – e se quiser – dizer alguma coisa. Certo tempo depois, rompe seu silêncio: “Agora, não sei por que, me veio à cabeça meu filho... Eu lembrei que ontem eu tentava lhe dar o bico, e ele cuspia... Eu dava de novo, e ele empurrava com a língua para fora. Lembrei que tu tinhas me perguntado uma vez: ‘E tu não insistes com o bico? Deixas ele recusar assim? Não oferece de novo?’ Então comecei a tentar que ele pegasse... Ele empurrava assim com a língua (imita, colocando a ponta da língua para fora entre os lábios, e ri). Depois de eu dar algumas vezes, ele então aceitou... E ficou bem faceiro!”.

A transposição de uma cena sobre a outra – expressão clínica da transferência – demonstra seu reconhecimento da insistência em dar-lhe um lugar, em zelar por seu conforto, em querer ouvi-la. É também seu modo de agradecer por não desistir em suas primeiras negativas, por não sucumbir a sua forma repetitiva de tornar-se servil. Somos ela na cena com seu filho; ela é ele na cena conosco. Essa experiência matricial que conosco vivencia leva-a dentro de si para a troca inter-humana com o filho, uma parte nossa que ela agora torna própria. Experiência formativa: ouve nossa voz a lhe dizer “E tu não insiste com o bico? Deixa com que ele recuse assim?”. Aquisição fundante para ela, é esse o justo instante em que vemos plasmar-se o efeito de autoformação por meio de uma aquisição da qual ela se apropria para melhor viver. Esse momento é, ao mesmo tempo, fugidio e eterno, transitório e perene, uma vez que seu efeito produz marcas que permanentemente serão parte dela, patrimônio que pode repartir com o filho, cadeia de transmissão do efeito formativo humano que recebeu. Dar e receber, novo trânsito possível para alguém que, diante da insistência em seu desejo de aprender somente sofreu sonegação, subtração, retirada. Esperança, ao permitir inquietar-se consigo mesmo, transforma-se. Esperança aprende e ensina, fazendo circular, numa economia enriquecida e enriquecedora conosco e com o filho, a troca de bens simbólicos que permitem a humanização.

Como avaliar o valor de um momento como este? Como explicar tal potência concentrada num único instante? O cruzamento de tantos temas, seu ponto de confluência nesse exato momento temporal da sessão, nesses poucos minutos em que o comprimido sai de cena para dar lugar à intensidade de sentido comprimida nessas palavras? Como descrever o privilégio que é ser partícipe de um momento desses? Essa pequena história, e é possível que muitos tenham alguma assim para contar, é a mais plena elucidação do sentido da transitoriedade; ela é também o ponto de aproximação com a dimensão do kairós. A oportunidade de viver algo assim – testemunhar o precioso e breve instante em que outro ser humano se transforma a si mesmo – é dada a nós pelo privilégio de estar na posição de analista e na posição de educador.

Considerações finais

A resignação diante da própria vida abre espaço para a indiferença e a desilusão para consigo mesmo. Esse risco premente na existência humana corrompe o sujeito a tal ponto que ele não consegue dirigir o olhar para si mesmo de modo atento e preocupado com sua formação. Nesse estado, o sujeito aliena-se a determinações externas, renunciando à responsabilidade para consigo e, por consequência, de uma constituição genuína e ética de si mesmo.

O núcleo formativo do que Foucault denomina “inquietude de si mesmo” se estrutura a partir de duas questões fundamentais, como pudemos observar: o que acontece com o ser do sujeito e a transformação do sujeito pelo acesso à verdade. É precisamente nesse sentido que o filósofo indica a psicanálise como um dos campos do saber em que essas estruturas reaparecem, como foi com Esperança. Segundo Foucault (2002)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica.,

na psicanálise o problema do que ocorre com o ser do sujeito (do que deve ser o ser do sujeito para ter acesso à verdade) e a questão, por outro lado, daquilo que pode transformar-se no sujeito pelo fato de ter acesso à verdade, pois bem, essas duas questões, que são questões absolutamente características da espiritualidade, podemos encontrá-las no coração mesmo ou, em todo caso, no princípio e na culminação de um e de outro desses saberes. (p. 43)

Se a espiritualidade é uma das formas de acesso à verdade, a psicanálise é, por analogia, um lugar de fomento da inquietude de si, pois é uma forma de saber que interroga o sujeito, que o coloca em jogo no caminho de acesso à verdade, e essa verdade o transforma. A psicanálise possibilita, portanto, um campo do saber que potencializa a aproximação entre o sujeito e a verdade.

Esperança ilustra, por meio do fragmento aqui apresentado de sua análise, a inquietude de si que promove a delicadeza do tempo preciso, do tempo interno, do kairós. Somente quando pôde debruçar-se sobre o fragmento de história que surgiu nessa sessão, no ritmo de um tempo interno, próprio e singular – não poderia ser antes nem seria possível depois – apesar da gentil e preocupada insistência para que se deitasse no divã e recebesse os cuidados dos quais necessitava e merecera, somente nesse momento pôde compreender profundamente – mediante a metáfora do filho pequeno – o valor dos gestos de cuidado que lhe foram oferecidos. Ao realizar esse movimento, dele se apropriou e pôde recolocá-los em circulação com o filho: inquietude de si que implica a constante atenção e respeito a si e, por consequência, ao outro. Essa passagem mostra, além disso, como tal compreensão, longe de ser um processo intelectual, atinge o sujeito em todo seu ser, produzindo um efeito de autoformação.

É importante resgatar, neste contexto, o que dissemos sobre a relação entre mestre e discípulo: sem a presença do mestre, o discípulo não consegue sair de sua própria stultitia, ou seja, a verdade do sujeito não atua sobre si mesmo. O mestre – o professor ou aquele que forma, de maneira geral – só pode contribuir para a saída do discípulo de seu estado ignoto à medida que aplica sobre si mesmo sua arte pedagógica. Uma das dimensões dessa arte é, justamente, a sensibilidade diante daquilo que ocorre em sua existência, no transcorrer de sua própria história e que, de fato, é efêmero enquanto acontecimento numa perspectiva cronológica (kronos), porém absolutamente constituinte do que é e será o sujeito (kairós).

A escrita é transitória. Inicia e termina, quiçá perdurado algum tempo no espírito de quem a fez. É possível que ela mesma sirva para exemplificar o que trabalhamos neste texto, se atingir a propriedade de permanecer no tempo interno de cada um pelos efeitos retardados de significação que porventura produza. Seria desejável que provocasse, em sua transitoriedade, o efeito de produzir marcas duráveis, com desdobramentos capazes de contribuir na geração de educadores sensíveis e responsáveis, que não cedam ao apelo de fazer qualquer coisa ou de qualquer forma seu trabalho, permitindo, assim, que alguns, quem sabe muitos, façam perene aquilo que mais importa para a ordem ética do trabalho de formação humana e da construção coletiva.

  • 3
    Justificamos, de imediato, a opção pela tradução castelhana do curso A hermenêutica do sujeito, de Michel Foucault. Interessa-nos, especificamente, a tradução da noção epiméleia heautoû para inquietude de si e não, como costumeiramente observa-se tanto nas traduções publicadas no Brasil, como nas versões inglesa e francesa, para cuidado de si. A noção de inquietude carrega alguns pressupostos conceituais provocativos, em nossa interpretação, diante do cuidado. A inquietude, nem querendo, representa um estado ou lugar fixo a ser alcançado pelo indivíduo, pois o sujeito inquieto é sempre insatisfeito com o estado em que se encontra. O próprio epiméleia heautoû, em sua base conceitual originária na Apologia de Sócrates, como veremos, é considerado um aguilhão que se deve cravar na carne dos homens e, enquanto ali estiver, não o deixará jamais assossegar-se. Inquietude é, portanto, o estado de quem demonstra falta de sossego. Por sua vez, a expressão cuidado de si pode insinuar um estado de conforto, de bem-estar e de satisfação com a condição em que o indivíduo se encontra. Isso pode provocar a falsa sensação de que cuidar de si mesmo implica atingir um estado final que, uma vez alcançado, pode levar o sujeito a estacionar ou estagnar seu processo formativo. Além do mais, o termo “inquietude” tem maior proximidade com aquilo que chamamos, em psicanálise, de sofrimento psíquico. Assim, em nossa interpretação, inquietude de si consiste num estágio prévio, preliminar e preparatório para que o sujeito, uma vez inquietado, possa ocupar-se dos cuidados de si mesmo.
  • 4
    É preciso ressaltar que existe uma larga diferença entre o lugar do educador e o do analista. Não desejamos que a aproximação que ora realizamos da inquietude de si, tomada da relação entre mestre e seu discípulo no processo formativo deste último – mas também, assim podemos dizer, deste par –, sirva como ponto de confusão entre esses lugares. Freud (2019)Freud, S. (2019). Recomendações aos médicos sobre o tratamento psicanalítico (1912). Belo Horizonte: Autêntica., cuja primeira edição data de 1912, trabalhou extensamente a respeito da diferença entre psicanalisar e educar, advertindo para os riscos da utilização da relação analítica para fins pedagógicos, ou seja, para uma colonização do desejo do sujeito por metas pré-formadas, determinadas, desde fora, por outrem e dirigidas a fins específicos de cunho educativo e adaptativo. Voltolini (2011)Voltolini, R. (2011). Educação e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. reflete bem nossa posição quando afirma, parafraseando Freud, que existe um parentesco entre as práticas de governar, educar e psicanalisar, propostas por este último como ligadas entre si pelo traço comum de sua impossibilidade. Há parentesco e diferenças, assim como existe distinção entre a pedagogia – como discurso universitário pautado por um saber aparelhado por técnicas que se dirigem a um resultado – e a educação em seu sentido mais preciso, como o processo de formação humana que procura instalar uma ordem simbólica que promove o laço social, o coletivo e a aquisição de saberes mediados pelo reconhecimento do outro e pela ética. Diferencia-se dessas posições a do analista, que consiste em descartar-se de qualquer maestria. Socrático e não-sofista, o analista ajuda a descontruir as certezas coaguladas do sujeito e produz inquietação sem entregar nenhum saber seu a não ser o do próprio método. A psicanálise é uma práxis que trabalha para extinguir-se e que opera a partir de uma vigorosa recusa de valer-se do poder conferido pela transferência para conduzir o sujeito na direção de um ideal, qualquer que ele seja.
  • 5
    Com a expressão “diálogo fecundo”, não afirmamos a existência de relações de plena harmonia entre Foucault e a psicanálise. É consabido que essa relação nunca deixou de ser conflituosa. Costuma-se observar, ao examinar esse tema, que o filósofo exibe posições distintas em relação à psicanálise conforme o momento de sua obra, ou seja: um tom mais crítico aparece nos textos que configuram a analítica do poder, como A história da loucura (2017a)Foucault, M. (2017a). A história da loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva. e Vigiar e punir (1999)Foucault, M. (1999). Vigiar e punir. Petrópolis/RJ: Vozes., enquanto uma aproximação mais perceptível se faz sentir naqueles textos que representam a analítica do sujeito, como A hermenêutica do sujeito (2002)Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica.. Para o Foucault desse primeiro momento, a psicanálise consistiria – dado seu exercício ser pago, demandar longo tempo e centrar-se na dinâmica da transferência que se estabelece entre analista e analisando – em mais um dispositivo e poder de dominação e normatização da sexualidade humana, e, na descendência direta, portanto, da psiquiatria. Grande parte dessa crítica se concentra na relação de poder que a transferência propõe na inevitável assimetria entre analista e analisando. Para o Foucault do segundo tempo, depois de revisitar os clássicos da filosofia antiga e recuperar o valor da verdade na relação entre mestre e discípulo, a relação analítica passaria a configurar uma posição ética e formativa, fazendo um contraponto com a visão anterior. Não discordamos inteiramente das linhas gerais desse delineamento, mas ressaltamos que a relação entre o filósofo e a psicanálise nunca deixa de ser tensa, e destacamos que essa divisão não pode ser aceita de modo simplista, uma vez que, mesmo dentro das duas analíticas foucaultianas, a do poder e a do sujeito, ambas posições, de aproximação e de conflito, estão presentes. Acrescentamos, com Cunha (2014)Cunha, E. L. (2014). Quais os limites de uma psicologia de inspiração foucaultiana? Revista Cult, 17(191). https://revistacult.uol.com.br/home/quais-os-limites-de-uma-psicologia-de-inspiracao-foucaultiana/
    https://revistacult.uol.com.br/home/quai...
    , examinando o tema não desde a perspectiva de Foucault, mas da psicanálise, o quão ilusório seria buscar uma psicanálise que, em virtude de ter incorporado as supostas diretrizes apontadas por sua crítica, tornar-se-ia foucaultiana e estaria, portanto, imune, livre dessa mesma crítica, tornando-se assim uma boa psicanálise, em contraposição com outras más psicologias e psicanálises que não teriam realizado tal incorporação. Uma posição como essa, ainda que fosse tranquilizadora, seria ingênua e descabida, uma vez que estaria exatamente no sentido contrário de uma posição que faria jus ao pensamento de Foucault. É preciso compreender, sobretudo, que sua crítica incide sobre a dúvida basilar e sempre presente de que alguma forma de psicoterapia – por sua característica genérica de intervenção moral – esteja livre de qualquer relação de poder.
  • 6
    Personagem de um dos Diálogos de Platão intitulado com o mesmo nome, Alcibíades.
  • 7
    A relação amorosa (eros) entre um erastés (homem mais velho) e um erômenos (jovem) era uma relação afetiva e educativa em que o mais jovem era preparado para a vida.
  • 8
    Sobre o momento mais oportuno para o sujeito formar a si mesmo, há de se considerar que, na “Aula de 20 de janeiro – primeira hora”, Foucault ultrapassa, n`A Hermenêutica do Sujeito, uma compreensão específica advinda do diálogo Alcibíades, em que o tempo era hora e, portanto, haveria certa e determinada estação da existência reservada para o epiméleia heautoû. Aliás, muito pelo contrário, Foucault procura fomentar a inquietude como um processo de formação de si mesmo coextensivo à vida. Superar, portanto, a redução da inquietude de si à concepção de hora implica dirigir-se para uma perspectiva ampliada de tempo enquanto kairós, “significando, de certo modo, a conjuntura particular de um acontecimento” (Foucault, 2002Foucault, M. (2002). La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de Cultura Económica., p. 95), que pode e deve acontecer no decorrer de toda a vida. Sobre esse tema, podemos acompanhar uma crítica mais detalhada de Foucault (2017b)Foucault, M. (2017b). O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Edições Texto e Grafia. a essa primeira e originária fase do epiméleia heautoû em sua conferência, proferida em 1983, em Berkeley, na Universidade da Califórnia, intitulada A cultura de si, em que ele afirma que a inquietude de si “deve ser uma relação consigo próprio permanente. Sócrates, como se devem lembrar, recomendava a Alcibíades que aproveitasse a juventude para se ocupar de si próprio” (p. 77). Diante disso, podemos concordar com Foucault e nos perguntar: por que razão um tempo apenas, privilegiado e específico, poderia amparar uma conjuntura complexa de descobertas e transformações do sujeito? Foucault (2017b)Foucault, M. (2017b). O que é a crítica? Seguido de A cultura de si. Lisboa: Edições Texto e Grafia. recorre a Epicuro ao justificar a necessidade de sempre filosofar, na juventude ou na velhice, pois não há tempo predeterminado para cuidar da alma. Tal postura demonstra certo limite do alcance do diálogo Alcibíades no tratamento dessa temática, justificando, assim, o próprio exercício de pesquisa que faz n’A Hermenêutica do Sujeito, adentrando em outros textos e em outros períodos históricos do desenvolvimento da filosofia.
  • 9
    Hoje sabemos que eram eles Rainer Maria Rilke, o poeta, e Lou Andreas-Salomé.

Referências

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  • Foucault, M. (2017a). A história da loucura: na idade clássica São Paulo: Perspectiva.
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  • Foucault, M. (1999). Vigiar e punir Petrópolis/RJ: Vozes.
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  • Voltolini, R. (2011). Educação e psicanálise Rio de Janeiro: Zahar.

Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2020
  • Revisado
    16 Mar 2021
  • Aceito
    17 Jul 2021
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