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Educação em Mises, Hayek e Rothbard: fundamentos para uma privatização extrema 1 1 Editor responsável: Helena Sampaio - https://orcid.org/0000-0002-1759-4875 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

La educación para Mises, Hayek y Rothbard: bases para una privatización extrema

Resumo

O texto analisa a forma como Mises, Hayek e Rothbard discutem abrangência que dão à privatização da educação utilizando como lente os seus conceitos de Estado, Mercado e Indivíduo. Os autores dão bases para o questionamento do ensino obrigatório e público, bem como do uso de impostos para financiá-lo. Tratam a educação pública como doutrinação, identificando o ensino formal como uma deliberação privativa da família ou, no máximo, um serviço a ela provido pelo mercado, recusando a educação como direito.

Palavras-chave
Privatização do ensino; Função educativa do Estado; Dever de educar

Resumen

El texto analiza la forma en que Mises, Hayek y Rothbard discuten la educación, el alcance que le dan a la privatización en este campo utilizando sus conceptos de Estado, mercado e individuo. Los autores dan motivos para discutir la educación pública y obligatoria, así como el uso de impuestos para financiarla. Tratan la educación pública como un adoctrinamiento, identificando la educación formal como una decisión privada de la familia o, como mucho, como un servicio brindado por el mercado, rechazando la educación como un derecho.

Palabras clave
Privatización de la educación; Función educativa del Estado; Deber de educar

Abstract

The paper addresses the scope of privatization in education on Mises, Hayek and Rothbard views, considering its concepts of State, market and individual. The authors providing grounds for questioning compulsory and public education as well as the use of taxes to finance it. They treat public education as indoctrination, identifying formal education as a private decision of the family or, at most, a service provided by the market, refusing education as a right.

Keywords
Privatization of education; Educational role of the State; Duty to educate

Introdução

Nos últimos anos, a divulgação de autores como Mises, Hayek e Rothbard é cada vez maior junto ao público não acadêmico no país, promovida especialmente pelo think tank liberal Instituto Mises Brasil (IMB)3 3 Fundado em 2007 pelo economista que se autodenomina ultraliberal Hélio Coutinho Beltrão e pelos irmãos Fernando Fiori Chiocca e Cristiano Fiori Chiocca. Tem como Diretor Acadêmico o professor de economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Ubiratan Jorge Iorio. .

Ludwig von Mises nasceu em 1881, na então Áustria-Hungria, e faleceu em 1973 em Nova Iorque, sendo sua obra máxima o livro Ação Humana (1949). Friedrich August von Hayek, que sofreu influência e muitas vezes atuou junto a Mises, nasceu em Viena, em 1899, e faleceu em 1992, na Alemanha. Hayek é o autor de maior penetração acadêmica, tendo ganhado o prêmio Nobel de Economia em 1974. Seu livro mais conhecido é O caminho da servidão (1944). Fundou, em 1947, junto com Mises e outros autores liberais de peso, a Sociedade de Mont Pèlerin, organização que traçou os princípios que viriam a fundamentar o neoliberalismo.

Discípulo de Mises, Murray Newton Rothbard nasceu em Nova York em 1926 e faleceu na mesma cidade, em 1995, destacando-se na sua obra o livro Man, Economy, and State (1962). Rothbard desenvolveu as ideias de Mises, agregando-lhe elementos do jusnaturalismo libertário, construindo uma vertente denominada anarcocapitalismo, tornando-se assim um importante ativista do libertarianismo estadunidense. Todos esses autores integram a chamada Escola Austríaca, cujo conceito filosófico basilar é o individualismo e, no campo econômico, considera que a forma mais eficiente de as necessidades serem atendidas é via mercado, livre de intervenção estatal.

Este texto visa refletir teórica e criticamente acerca da abordagem desses autores sobre a Educação: sua natureza, a relação que estabelecem entre educação pública obrigatória e doutrinação estatal, e, por fim, como veem o financiamento público da educação. Ele dialoga e complementa a importante incursão feita nesse campo por pesquisadores brasileiros da Educação (Oliveira & Barbosa, 2017Oliveira, R. L. P., & Barbosa, L. M. R. (2017). O neoliberalismo como um dos fundamentos da educação domiciliar. Pro.posições, 28(2), 193-212.), dela se distinguindo por utilizar como recurso metodológico o olhar sobre a Educação sob a lente dos conceitos de Estado, Mercado e Indivíduo, caracterizadores dos autores, além de explicitar melhor a abrangência que Mises, Hayek e Rothbard dão à privatização na educação.

A identificação das ideias dos autores é feita com base nas obras consideradas pertinentes à temática. De Mises, são analisadas Ação humana (2010a) e Liberalismo (2010b); de Hayek, o texto Os fundamentos da liberdade (1983), que aborda de forma mais clara os conceitos que pretendemos utilizar: o Mercado e o Estado; apenas pontualmente utilizamos O caminho da servidão (1990), clássico que critica o planejamento centralizado governamental adotado no âmbito dos países socialistas e da Alemanha nazista. A primeira obra, escrita em 1960, possibilita agregar os desdobramentos da crítica de Hayek ao Estado de bem-estar social e à democracia liberal. No que tange à Rothbard, por ser o único que tem um livro dedicado especificamente à educação, priorizamos a utilização desse material (Rothbard, 2013Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil.), completado pelo texto The ethics of liberty (1998).

Estado e mercado: relações com o indivíduo e suas consequências

Nosso objetivo neste item é evidenciar, de maneira sintética, os conceitos de Estado e Mercado desses autores, apresentando-os e, ao mesmo tempo, indicando a relação que estabelecem com o indivíduo; além disso, refletimos acerca das consequências políticas dessa compreensão do Estado e das políticas voltadas para promover direitos sociais.

Feitas essas considerações, indagamos, de forma um pouco mais específica: como Mises, Hayek4 4 Não empreendemos, neste artigo, uma crítica metodológica a esses autores. Nesse sentido, ver Augusto (2016), para uma crítica ontológica à Mises, e Carvalho, Pantoja e Lucena (2012), para uma crítica epistemológica à Hayek. e Rothbard conceituam o Estado e definem as suas funções? Distintamente dos economistas liberais clássicos, que efetivamente não teorizaram o Estado e se ativeram à tarefa de delimitar um campo, em tese, autônomo dos fenômenos econômicos, os neoliberais buscaram fazê-lo. Isso por reconhecerem que, a despeito do Estado para eles equivaler à coerção, admitem não ser possível a sua completa eliminação. Ao conceituarem Estado como a instituição que exerce coerção sobre o indivíduo, mais especificamente como sendo o detentor do monopólio da coerção, definem o que é o Estado e, ao mesmo tempo, estabelecem a contraposição entre Estado e liberdade individual.

Essa conceituação se desdobra no estabelecimento da função do Estado, especificando melhor o que seria a coerção mínima, na visão de Mises e Hayek aquela suficiente para promover e garantir a operação do mercado e a liberdade individual características do capitalismo. Hayek reflete de maneira mais próxima esse esforço teórico, sendo a função do Estado ainda mais restritiva em Mises, e, resvalando para um subjetivismo exacerbado, aproximando-se de um extremismo anárquico, em Rothbard.

Um aspecto importante é o maior esclarecimento de até onde vai essa ação mínima do Estado, esse uso mínimo da coerção sobre o indivíduo por aquele que detém o seu monopólio. No caso de Hayek, significa o Estado atuar da forma o mais impessoal possível, sem orientações específicas, assentando a sua ação em normas gerais conhecidas. Daí a grande importância do marco legal para esse autor, visando garantir que o Estado dispense a todos o mesmo tratamento perante a lei, sem buscar promover a igualação da condição econômica ou social dos indivíduos, e sim estendendo a sua força coercitiva para proteger a liberdade individual e o direito de propriedade. De acordo com Hayek, exercendo tal papel, os atos coercitivos do Estado se transformariam em parâmetros nos quais os indivíduos se fiariam para estabelecer os seus planos (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.).

É relevante evidenciar que Hayek não considera serem as leis mero arbítrio, e sim fruto da evolução das instituições. Entende o desprezo pelas leis como uma postura antiestatal, ou anárquica, a seu ver típica do laissez-faire, mas que podemos encontrar especialmente em Rothbard (1998)Rothbard, M. (1998). The ethics of liberty. (2nded). New York University.. Hayek, particularmente, admite essa função do Estado de definidor do marco legal, para além da qual o autor mantém a visão liberal tradicional de crítica ao intervencionismo estatal e a visão peculiar da sua escola de associação da planificação central e do intervencionismo estatal com uma marcha gradual para a ditadura, para o totalitarismo e para o socialismo (von Hayek, 1990von Hayek, F. A. (1990). O caminho da servidão (5.ed). Instituto Liberal.).

Mises, por sua vez, é ainda mais específico no que tange ao papel do Estado de simples meio, garantidor do funcionamento do sistema social pela via da coerção, mantenedor da ordem social capitalista e de sua visão de liberdade individual e de propriedade privada. Com isso, limita inclusive o alcance do aparato legal afirmando que “o único propósito das leis e do aparato social de coerção e compulsão é salvaguardar o funcionamento regular da cooperação social” (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil., pp. 821).

Afora essa função, de uso mínimo do poder de coerção do Estado para sustentar um marco legal mais restritivo do que o apontado por Hayek, Mises evidencia que não seria adequada qualquer outro tipo de intervenção estatal. Combatendo implicitamente as políticas associadas ao Estado de bem-estar social, sustenta que a ampliação da intervenção estatal comprometeria gradualmente a liberdade individual e a ordem capitalista, conduzindo, no limite, a um regime socialista. Conclui serem ineficazes as políticas de reformismo social no âmbito do capitalismo, entendendo o modo de funcionamento do sistema econômico sem obstruções como o mais adequado (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil.).

Dando amplo peso ao caráter coercitivo do Estado, Mises afirma que a intervenção governamental significaria sempre “ou ação violenta ou ameaça de ação violenta”, e, assim, explica o poder de arrecadação de impostos que o Estado tem. Na busca de também definir a coerção mínima, afirma que se os impostos não forem de pouca monta eles afetarão a produção e o consumo e, mais do que isso, se transformarão num instrumento de destruição da economia de mercado (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil., pp. 841).

Ao estabelecer uma relação direta entre indivíduo e Estado e entre Estado e coerção, Mises praticamente recusa a ação estatal acima desse mínimo, afirmando que a intervenção estatal seria sempre confisco ou doação. Nessa linha de raciocínio, a intervenção tenderia a favorecer um indivíduo ou um grupo de indivíduos às custas de outro indivíduo ou de outros grupos de indivíduos. E, o que seria pior, em muitos casos não gerando vantagem para ninguém, resultando na corrupção, para ele uma consequência natural do intervencionismo (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil.).

Observamos reiteradamente que a crítica de Mises ao intervencionismo, ou o que chama de um sistema de economia de mercado obstruído, desemboca na associação que o autor estabelece entre o intervencionismo e o socialismo, além de reputar a experiência alemã de nazismo à intensificação do intervencionismo estatal. O papel do Estado para ele é apenas o de preservação da ordem capitalista, a seu ver a única capaz de garantir a liberdade individual.

Mises vai ao limite nessa ideia de identificação do Estado como coerção ao afirmar ser o Estado, em última instância, “o emprego de homens armados, de policiais, guardas, soldados e carrascos”, cuja característica principal seria “poder fazer cumprir os seus decretos batendo, matando e prendendo”. Pedir mais intervenção estatal para ele é pedir “mais compulsão e menos liberdade” (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil., pp. 818).

Em resumo, apesar de Mises rejeitar, tal como Hayek, o intervencionismo, ainda assim reconhece um papel ao Estado, mesmo que com funções mais restritas do que as apontadas por Hayek. Considera que “a cooperação social pacífica seria impossível na ausência de um instrumento que impeça, pela força se preciso, a ação de indivíduos ou grupos de indivíduos antissociais” (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil., pp. 818).

Rothbard concorda com Hayek e Mises que o Estado é um monopólio coercitivo, mas radicaliza essa ideia resultando numa visão que defende limites extremos ao Estado para que a liberdade individual seja garantida. Ao seu ver, muitas das funções do Estado poderiam ser atendidas pelo mercado e nisso inclui até a provisão de leis. Para o autor, as leis estabelecidas pelo Estado raramente coincidem com as normas derivadas de uma ordem moral, objetiva e a-histórica, identificáveis pelo indivíduo com base na razão. Considera que o estabelecimento de leis e o judiciário, a segurança pública, a criação de moeda, os correios não dependeriam do Estado para uma adequada provisão (Rothbard, 1998Rothbard, M. (1998). The ethics of liberty. (2nded). New York University.).

Rothbard, adicionalmente, destaca que a polícia e os tribunais permitiriam ao Estado julgar e validar os contratos e, mais do que isso, confeririam o poder para que extraísse impostos da sociedade. Na sua visão, imposto seria roubo e o Estado “uma enorme organização criminosa muito mais formidável e bem-sucedida do que qualquer outra máfia ‘privada’ da história” (Rothbard, 1998Rothbard, M. (1998). The ethics of liberty. (2nded). New York University., pp. 166).

Problematizando a forma como os três autores conceituam o Estado, devemos evidenciar que ela se sustenta no fato objetivo de o Estado deter o monopólio da dominação política, o que não significa ser correto afirmar que o Estado é pura coerção. Além disso, essa simplificação termina por legitimar politicamente o uso da força estatal e as limitações à democracia liberal, visando sustentar o capitalismo, desmontar políticas intervencionistas e implantar reformas privatizantes e privatizações extremas.

Identificando o Estado como pura coerção sobre o indivíduo, sem mediações de classe que caracterizem o papel da ação estatal e os embates políticos no seu interior, o domínio do político em Hayek se estreita, conforme observa Brown (2019)Brown, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo. Filosófica Politéia., subsistindo poucos atributos para a concepção de democracia que abraça, para além de um mero aspecto que deve sustentar a liberdade individual, a ordem capitalista e os valores de mercado.

Hayek chega a pontuar a necessidade de conciliar democracia e liberdade individual, destacando que o benefício de ambas só seria perceptível a longo prazo. Não obstante, sua visão de democracia se limita a um “método para a tomada de decisões, mas não como autoridade para determinar que decisão deve ser adotada” (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão., pp. 121). Debruçando-se mais a fundo sobre a visão de democracia de Hayek, Dombrowski (2020)von Hayek, F. A. (1990). O caminho da servidão (5.ed). Instituto Liberal. destaca que ele não confere valor intrínseco à democracia, sendo ela um simples meio e não um fim, que pode ou não ser útil.

Além disso, Hayek é conservador no que tange ao papel das massas, conferindo respeitabilidade à vontade da maioria apenas se ela estiver restrita aos valores do mercado. Se assim não for, a vontade da maioria se transformaria, para ele, em demagogia (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.). Na sua visão, os defensores do liberalismo deveriam se empenhar em persuadir a maioria a observar os princípios da economia de mercado. Assim não ocorrendo, fica implícito que se justifica o uso da força estatal para garanti-los. Esse posicionamento de Hayek ficou notório na opinião favorável que emitiu acerca do experimento neoliberal durante a ditadura de Pinochet nos anos 1970.

Confirmando o que explicitamos com base em Hayek, Dombrowski (2020)von Hayek, F. A. (1990). O caminho da servidão (5.ed). Instituto Liberal. explica que, para aquele autor, a vontade da maioria só seria legítima caso se pautasse por princípios comuns, limitadores do poder político. Especificando melhor o que seriam tais princípios comuns, Dombrowsky (2020)Dombrowsky, O. (2020). Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek. Revista Katálysis, 23(2), 223-234. esclarece que o próprio Hayek os identifica como sendo os princípios cristalizados no movimento liberal na Europa, particularmente aqueles

Defendidos pelos antigos whigs, que estavam presentes na Revolução Gloriosa na Inglaterra de 1688; inspiraram os fundadores dos EUA; e ‘foram cristalizados naquele movimento que em toda a Europa ficou conhecido como liberal’ (von Hayek, 2006von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.). Em especial, ‘a ideia de uma lei suprema, que se acha acima dos nossos ordenamentos e códigos’.

(Dombrowski, 2020Dombrowsky, O. (2020). Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek. Revista Katálysis, 23(2), 223-234., pp. 231)

Seguindo classificação de Bobbio acerca do liberalismo no século XIX, Dombrowski destaca que Hayek se enquadra no grupo dos liberais conservadores, que, ao contrário dos liberais radicais, não eram democráticos. Os primeiros, de tradição anglo-saxã, buscavam sempre restringir a expansão continuada de direitos políticos e sociais das massas, pois consideravam que o intervencionismo estatal limitava a liberdade econômica.

Essa visão política de Hayek é detalhada por Dombrowski (2020, pp. 232)Dombrowsky, O. (2020). Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek. Revista Katálysis, 23(2), 223-234. ao especificar como a sociologia conservadora do século XIX via as massas. Segundo ela, “indivíduos racionais quando agem em conjunto com outros na forma de multidão, de uma massa que obscurece a identidade e arrefece os freios morais do indivíduo, apresentam um comportamento irracional”, considerando a ação das massas um mecanismo autoritário. Podemos observar que ela é compartilhada pelos austríacos e por muitos teóricos liberais clássicos, tais como Herbert Spencer.

Particularmente, Herbert Spencer empreendeu uma reação violenta, no final do século XIX, contra o intervencionismo econômico e social na Grã-Bretanha (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.). Ele advogava que caberia ao Estado exclusivamente garantir a execução de contratos estabelecidos livremente pelos indivíduos. Criticou as instituições democráticas da época como sendo um prolongamento do direito divino dos reis ao parlamento e às maiorias, assim retratando a fobia ao Estado típica do conservadorismo político de meados do século XIX. Esse mesmo pensamento sobre as maiorias e a soberania popular pode ser encontrado em Hayek (1983).

Em síntese, é por essa via teórica, referida a sua perspectiva política e não apenas econômica, que Hayek alcançaria estabelecer o mecanismo último de limitação das funções do Estado, tratando-se de uma teoria de restrição do poder político das massas e de suas organizações políticas (Dombrowsky, 2020Dombrowsky, O. (2020). Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek. Revista Katálysis, 23(2), 223-234.). Desta forma, Dombrowski conclui ser conservadora a visão política que Hayek abraça, sendo também antidemocrática, ao colocar a preservação e o desenvolvimento do capitalismo e do mercado acima do interesse das massas e da democracia. O caráter antidemocrático da teoria política de Hayek se amplifica no aspecto de que “ela não apenas conduz a retrocessos no campo político-eleitoral, mas implica também no desmonte da estrutura governamental que corresponde aos direitos sociais e, em última instância, que se trata de uma teoria que nega ao cidadão o direito de ter direitos” (Dombrowsky, 2020Dombrowsky, O. (2020). Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek. Revista Katálysis, 23(2), 223-234., pp. 231).

Mises e Rothbard, com definições da função do Estado mais restritivas que Hayek, carregam consigo um antidemocratismo ainda mais acentuado. Observamos que, ao reduzirem o Estado à coerção e com isso limitar os espaços para a sua atuação em benefício das massas, os autores sancionam o uso da força estatal para restringir as liberdades políticas em nome da defesa da liberdade econômica. Limitados pelo foco na visível relação de força entre Estado e indivíduo, acreditam que a dominação política estatal equivale ao exercício direto da coerção estatal e o domínio do político ao Estado — essa última equivalência é explicitada por Brown (2019)Brown, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo. Filosófica Politéia. com base na obra de Hayek. Assim, desconsideram as disputas no interior do próprio Estado e a abrangência do político, bem como omitem a dominação econômica que não é tão visível no âmbito do mercado.

Sob esse último ponto de vista, é fundamental pontuar que as relações de força também se manifestam nas relações entre empresas, mediadas pela concorrência intercapitalista, além de comparecerem entre as economias dos países. Adentrando a esfera da produção, a dominação econômica fundante do capitalismo aparece, não envolvendo coerção econômica direta, mas sim relações de força mediadas pelo mercado.

Entretanto, é na esfera da circulação e da troca que os autores localizam a sua análise, pois é nela que a noção de liberdade que defendem pode encontrar sua materialidade. E é essa liberdade econômica da esfera da circulação, por eles denominada de liberdade individual, que consideram ser o valor supremo. A definição de liberdade individual que adotam é negativa, conceituada pelo que não é, ou seja, pela ausência de coerção ou restrição do indivíduo exercida pela vontade arbitrária de outrem. Ela é a contraface da noção de Estado como coerção, ambas deduzidas de relações praticamente diretas com o indivíduo. Confrontando os dois mundos, o do Estado e do Mercado, Mises apresenta o Estado como “o mundo da compulsão e da coerção”, que ameaça o reino da liberdade e da propriedade privada submetendo-o à “violência, à malícia e à fraude” (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil., pp. 824).

A forma como Hayek e Mises associam o mercado ao reino da liberdade individual parece ganhar renovada atratividade no contexto de valorização da subjetividade típica do neoliberalismo. Eles não efetuam um simples retorno ao laissez faire do século XIX aportando uma visão com aderência à dinâmica do capitalismo mundializado. Para esses autores, o mercado não seria um ambiente ou um meio e sim um processo autocriador, de descoberta e aprendizado, que disciplinaria e formaria o indivíduo, construindo a sua subjetividade numa dinâmica própria, autoconstruída (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.).

Hayek teoriza o mercado como um processo espontâneo, construído a partir das experiências criativas dos indivíduos, por meio de escolhas e de tentativa e erro. O mercado eliminaria, de forma seletiva e pela via da concorrência, as condutas individuais menos adequadas, num processo cumulativo e evolucionista, que consolidaria e aperfeiçoaria hábitos, regras sociais e instituições (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.).

A lógica de operação do mercado estaria pautada na hipótese crucial de que cada indivíduo sabe pouco, que o conhecimento é sempre individual e que normalmente não se pode determinar quem conhece mais. O indivíduo atuaria neste contexto de dispersão insuperável das informações (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.), dispersão essa que se amplificaria à medida que a civilização avança e se complexifica. Sob tal lógica, quando são alteradas as condições gerais do mercado, desencadeiam-se mudanças na utilização dos recursos, na orientação e no tipo das atividades humanas, nos hábitos e costumes. O indivíduo seria o veículo dessas mudanças, ao tomar suas decisões livremente, com base em informações parciais, baseado na sua capacidade inovadora e na percepção de oportunidades de lucro, bem como em regras e normas de conduta consolidadas ao longo do tempo (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.).

O processo de mercado como um todo criaria e resolveria os entraves que surgem, numa versão mais elaborada da mão invisível smithiana. Desta forma, o autor conclui que a descentralização das decisões no âmbito do indivíduo e a sua atuação sob o signo da concorrência seriam a maneira de superar a consequente incerteza do mundo, ensejando o processo de mercado como o meio mais eficaz para coordenar as ações individuais empreendidas sob conhecimento parcial da realidade.

Por esses artifícios teóricos, Hayek define como opera o mercado sem intervenção estatal na tentativa de evidenciar a superioridade da lógica privada e os limites do intervencionismo estatal. Cético quanto ao planejamento e a qualquer tentativa de moldagem da civilização de acordo com um projeto previamente concebido (von Hayek, 1990von Hayek, F. A. (1990). O caminho da servidão (5.ed). Instituto Liberal.), Hayek assenta seu ceticismo num antirracionalismo, que recusa o intervencionismo em função da “inevitável ignorância de todos os homens no que diz respeito à maioria dos fatores dos quais depende a realização dos nossos objetivos e do nosso bem-estar” (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão., pp. 45).

Mesmo que construída de maneira mais elegante do que o simples laissez faire, a visão de mercado de Hayek deduz o processo de mercado quase que diretamente da ação individual, como se na esfera econômica o indivíduo agisse apenas sob as restrições de regras e normas de conduta. Qualquer restrição além dessa seria, para ele, proveniente da coerção estatal. Entretanto, essa abstração deixa de considerar que a própria lógica de acumulação capitalista engendra, na esfera da produção e da circulação, barreiras estruturais à ação e à movimentação econômica dos indivíduos e das empresas, distintas no tempo e no espaço.

Mises, fundamentando sua análise no indivíduo, considera-o como sendo um ser ativo, o homo agens, tendo a sua abordagem a ambição adicional de teorizar não apenas o mercado, mas todo tipo de ação humana. Para ele, a ação humana seria traduzida na atitude de empreender com dada finalidade e sob situação de concorrência, gerando aprendizado para o indivíduo (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil.). Ele transforma a teoria dos preços de mercado em uma teoria geral da escolha humana, alimentando a ideia de que cada indivíduo é, em última análise, um empreendedor de si mesmo, sendo a concorrência e o modelo de empresa a forma geral da sociedade (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.).

Mises deduz que essa capacidade de autogoverno do indivíduo no âmbito da lógica do mercado se assenta na liberdade de agir sem ingerências, cada indivíduo adotando a linha de conduta que melhor atenda a seus interesses (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil.). Daí a recusa da intervenção do Estado que, na visão do autor, levaria ao totalitarismo e à regressão econômica. A ordem do mercado, distintamente, teria o agente empreendedor como base e promoveria a prosperidade da sociedade.

A abordagem do mercado de Rothbard, por sua vez, se pauta num evolucionismo próximo ao darwinismo social de Herbert Spencer. Tal como Spencer, Rothbard assenta seus argumentos na primazia da concorrência nas relações sociais e na extensão do princípio da divisão do trabalho ao conjunto das realidades físicas, biológicas e humanas. Tomando a competição entre indivíduos como base do progresso da humanidade, aplica diretamente à esfera social a mesma lógica da evolução biológica, numa versão alterada frente ao que propôs Darwin, tratando a concorrência como sendo a luta pela sobrevivência com prevalência dos mais aptos (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.; Rothbard, 1998Rothbard, M. (1998). The ethics of liberty. (2nded). New York University.).

Em síntese, esses autores constroem a sua conceituação de Estado e mercado sob um arcabouço predominantemente evolucionista5 5 O evolucionismo em Mises existe, mas é por vezes negado pelo próprio autor, conforme discute Augusto (2016), que encontra nele mais o argumento aristocrático do que o biológico. , que se desdobra a partir da relação quase direta do indivíduo com o meio, no máximo mediado pela concorrência, submetido a restrições geradas pela ordem espontânea do mercado e por mecanismos de coerção impostos a partir do Estado. Ao menos Hayek e Mises reconhecem que o Estado tem funções, ainda que restritas. Rothbard se aproxima mais da visão naturalista de Spencer, tanto na fobia do Estado quanto na visão de concorrência, assentada na sobrevivência dos mais aptos. Não obstante, os três autores sofrem a influência de Herbert Spencer e do pensamento sociológico conservador do século XIX, especialmente na sua visão das massas e do fato de considerarem socialistas todos os defensores de reformas sociais voltadas para o bem-estar da população.

Essa forma particular de entender o Estado e o mercado tem grande influência sobre a maneira como esses autores discutem a Educação e o seu papel no avanço do capitalismo, na constituição dos Estados nacionais e até mesmo na sustentação da democracia liberal, ao associarem também a Educação obrigatória e pública diretamente à coerção estatal. Isso discutiremos a seguir.

Educação em Mises, Hayek e Rothbard: a privatização extrema

Em termos mais gerais, Hayek, Mises e Rothbard não reconhecem um papel estratégico da Educação no capitalismo. Ainda assim, Hayek (1983)von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão. admite que o avanço na educação, apesar de seu elevado custo-benefício, garantiu um crescimento econômico mais acelerado no caso da Prússia/Alemanha, país que ele considera ser o modelo em termos da montagem precoce de um Sistema Nacional de Educação (SNE) no mundo.

Questionando o caminho que muitos países seguiram, entre fins do século XIX e início do século XX6 6 Sobre o SNE, implantação nos países desenvolvidos, seu conceito e os obstáculos estruturais à implantação no Brasil, ver Saviani (2009). , visando reproduzir o modelo de SNE alemão, os autores tendem a destacar prioritariamente os efeitos negativos dessa iniciativa sobre o indivíduo e a liberdade individual. A educação como elemento potencializador do desenvolvimento das forças produtivas do país, do seu crescimento econômico e do fortalecimento do Estado Nacional, particularmente os dois primeiros aspectos, ou não é sequer mencionada ou aparece com pouco destaque, como ocorre em Hayek.

Desta forma, esses autores se preocupam em apresentar argumentos críticos à implantação e manutenção dos SNE de natureza obrigatória e pública, na contramão do que propõem importantes educadores no Brasil7 7 Dentre os quais destacamos Saviani (2008, 2014) e Cury (2008, 2014). . Essa linha de abordagem se desdobra logicamente da visão de Estado e de mercado que adotam, com as nuances de cada um. A despeito de alguns dos argumentos utilizados pelos autores remontarem ao final do século XIX, muitos deles pautados em Herbert Spencer, seu objetivo é criticar as políticas educacionais públicas do Estado de bem-estar social em vigor no século XX. Adicionalmente, a propagação mais recente dessas ideias no Brasil e no mundo, sob o neoliberalismo, sancionou, também no campo da educação, um aprofundamento da privatização.

Discutimos neste item a abrangência que esses autores conferem à privatização na educação caracterizada em três frentes: 1) explicitando a natureza da educação para eles, a forma como entendem a obrigatoriedade do ensino e a sua relação com o desenvolvimento socioeconômico dos países; 2) o papel que conferem ao conteúdo do ensino formal público e a relação desse conteúdo com o Estado; 3) o papel do financiamento público e a educação nos níveis de ensino para além do ensino elementar.

No que tange à natureza da educação, ela é, para esses três autores, uma atividade parental ou uma mercadoria/serviço que cabe ao mercado prover. Como mercadoria, a melhor forma de provisão da educação, para eles, é através do mercado de escolas privadas. Apenas Hayek admite a obrigatoriedade do ensino no nível elementar e, nesse nível, ela aparece como responsabilidade do Estado e, implicitamente, como direito da criança, podendo ser objeto de financiamento estatal. Não obstante, também para Hayek, a oferta do ensino elementar e do ensino em geral deve ser prioritariamente privada.

Oliveira e Barbosa (2017)Oliveira, R. L. P., & Barbosa, L. M. R. (2017). O neoliberalismo como um dos fundamentos da educação domiciliar. Pro.posições, 28(2), 193-212. destacam a posição contrária de Mises ao ensino obrigatório, que considera ser uma atividade voluntária dos pais ou um serviço provido pelo mercado. A partir de Mises, Rothbard (2013)Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil. desenvolve ainda mais a ideia de educação como atividade parental voluntária, fundamentada em preceitos simples e independentes do ensino formal. Esse último seria apenas uma parte da Educação, cabendo também o ensino formal diretamente aos pais ou por meio da contratação de um tutor. Essas duas formas de instrução formal são as que Rothbard considera mais adequadas tendo em vista serem individualizadas. Com tal ponto de vista, Rothbard é o autor com maior apelo entre os defensores do homeschooling, conforme se percebe em Celeti (2011)Celeti, F. R. (2011). Educação não obrigatória: Uma discussão sobre o Estado e o mercado [Dissertação de Mestrado, Universidade Presbiteriana Mackenzie]. Adelpha Repositório Digital. e nas posições do Instituto Mises Brasil8 8 Posições afiançadas pelos artigos sobre educação que se encontram no seu site: https://mises.org.br/. .

Nos casos em que essas duas opções de ensino individualizado não possam ocorrer, Rothbard (2013)Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil. defende que a educação formal funcione como um serviço provido por escolas privadas. Rothbard considera serem as escolas privadas mais capazes do que as públicas para atender a variedade da demanda dos pais. Nesse caso, como mercadoria, a educação seria regida pela lógica da preferência do consumidor — os pais ou o próprio indivíduo, se adulto. A escola pública para ele seria um recurso extremo apenas para aqueles que não pudessem pagar uma escola privada ou não tivessem tempo nem recursos para educar seus filhos em casa. Rothbard, por conseguinte, é totalmente contrário à educação obrigatória, sendo a educação para ele uma função parental voluntária ou, no máximo, um serviço provido pelo mercado e sem regulamentação estatal.

Hayek, distintamente, entende que apenas o ensino elementar seria um serviço de natureza pública, que caberia ao Estado garantir, tendo em vista seus impactos sobre a sociedade e mesmo sobre a democracia. Pontua que a democracia provavelmente não funciona quando o povo é parcialmente analfabeto (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.). Por tais razões, o ensino elementar deveria ser obrigatório, pois, do ponto de vista da sociedade e do país, os riscos seriam muito menores se isso ocorresse e os benefícios muito maiores se todos compartilhassem certos conhecimentos e convicções básicas. Mesmo reconhecendo a necessidade da obrigatoriedade de ensino nesse nível, considera que a oferta educacional deva se dar prioritariamente por meio de escolas privadas. Nos demais níveis, a educação seria fundamentalmente um serviço/mercadoria provido pelo mercado. Hayek pondera que a educação, sendo compulsória no patamar mínimo, deveria contar com financiamento público, e que fosse para famílias com extrema dificuldade financeira. Entretanto, como visto, o financiamento público não implicaria oferta pública desse serviço.

Resumindo essa primeira frente que sustenta a privatização extrema na educação, os autores focam no indivíduo, na família e na sua liberdade de escolher livremente entre a prática do ensino formal como atividade parental ou provida pelo mercado e só em casos pontuais a sua provisão pública. Essa perspectiva se desdobra de seu conceito e função do Estado, de liberdade individual e de mercado.

A segunda frente que utilizamos para analisar a abrangência que esses autores dão à privatização na educação é o papel que conferem ao conteúdo do ensino formal público e a relação desse com o Estado. Devemos pontuar que é nessa frente que todos esses autores coincidem e que se destaca a crítica mais virulenta aos SNE, fundamentando também o homeschooling (Oliveira & Barbosa, 2017Oliveira, R. L. P., & Barbosa, L. M. R. (2017). O neoliberalismo como um dos fundamentos da educação domiciliar. Pro.posições, 28(2), 193-212.) e as ideias de “escola sem partido” (Salles, 2017Salles, D. C. (2017, 24 a 28 de julho). As bases do conceito de ‘doutrinação ideológica’ do Movimento Escola Sem Partido na obra de Nelson Lehmann da Silva [Apresentação de artigo]. XXIX Simpósio Nacional de História, Brasília, DF, Brasil.). Para eles, os SNE seriam um mero recurso de doutrinação política para sustentar um Estado forte e intervencionista e suas políticas expansionistas. Em outras palavras, sob o ensino obrigatório e público, quanto mais espraiado ele for, nos diferentes níveis de ensino, e quanto mais abrangente e regulamentado o seu conteúdo, mais se prestaria à doutrinação.

Da mesma maneira que o Estado, de acordo com os autores, reduz a liberdade individual, a educação provida pelo Estado e por ele controlada é vista como particularmente temerária. O argumento por eles desenvolvido defende que os SNE colocariam um poder excessivo na mão do Estado, podendo ser por ele instrumentalizado para controle das massas (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.). Reparamos, neste ponto, como a visão limitada de Estado e de democracia dos autores resulta num apequenamento do papel da educação pública no próprio capitalismo.

Destacamos que Hayek, Mises e Rothbard esposam, nesse aspecto, a visão de Spencer de que um SNE seria uma forte ameaça à liberdade individual. Todos os três evidenciam o uso, ao longo da história de diferentes países, do SNE como um mecanismo de consolidação e fortalecimento do Estado nacional. Como não conferem relevância ao papel da educação no desenvolvimento capitalista, o aspecto que ganha prevalência é a ampliação do poder político do Leviatã.

Devemos explicitar que é correto considerar que os SNE operaram historicamente como um instrumento de imposição e padronização da língua e da cultura das forças politicamente hegemônicas. Eles funcionaram como mecanismo importante da amálgama da construção da nação e o estímulo ao nacionalismo é um dos seus desdobramentos, conforme aponta Hobsbawm (1988)Hobsbawm, E. (1988). A era dos impérios - 1875-1914. Paz e Terra.. Visto apenas como uma necessidade do Estado em si e para si, o intervencionismo estatal, na forma de estabelecimento dos SNE, reduz-se, na visão desses autores, a uma ameaça à liberdade individual por meio da imposição da língua e da nacionalidade.

Mises reverbera ainda mais esse aspecto ao discutir a relação entre países e a manutenção da paz, reputando os conflitos mundiais não às disputas imperialistas, típicas do final do século XIX, mas sim ao nacionalismo estatal alimentado pelos SNE. Afirma que “a adesão reiterada à política de educação compulsória é totalmente incompatível com os esforços para estabelecer-se a paz duradoura” (von Mises, 2010bvon Mises, L. (2010b). Liberalismo: segundo a tradição clássica (2.ed). Instituto Ludwig von Mises Brasil., pp. 132). Na superfície do fenômeno, destaca que os SNE teriam ampliado notadamente os conflitos nas áreas extensas do Globo nas quais existia ou existe heterogeneidade linguística, religiosa e cultural, por meio da imposição de uma língua padrão e de uma nacionalidade a ela associada (von Mises, 2010bvon Mises, L. (2010b). Liberalismo: segundo a tradição clássica (2.ed). Instituto Ludwig von Mises Brasil.).

Reduzindo a existência dos SNE e a regulação estatal dos conteúdos curriculares à promoção do nacionalismo, Mises defende a restrição do conteúdo do ensino ao mínimo necessário, considerando que ampliar esse conteúdo significaria abrir espaço para maior doutrinação estatal. Afirma que o conteúdo deveria ser “limitado ao ensino da leitura, da escrita e da aritmética” assim evitando o seu uso da parte do partido no governo que teria poder de propagar o seu ideário e difamar o de seus adversários (von Mises, 2010bvon Mises, L. (2010b). Liberalismo: segundo a tradição clássica (2.ed). Instituto Ludwig von Mises Brasil., pp. 132-134).

Para Mises, os riscos de doutrinação se ampliariam no ensino secundário e notadamente em disciplinas como história9 9 Para uma crítica à visão de História de Mises, ver Augusto (2016). , a seu ver fortemente influenciadas pelo nacionalismo. A visão de professor e de educação esposada pelo autor o leva a crer que a filosofia social daquele que leciona a disciplina, ou do autor dos livros-texto, falseariam a narrativa histórica. Mises resume sua maneira de entender conteúdos dessa natureza afirmando que o ensino de história nos cursos secundários e nos cursos preparatórios para a universidade seria doutrinação. Sua forma de entender a formação do estudante, o papel do professor e sua relação com os conteúdos ministrados é perpassada por uma abordagem de educação restrita à instrução mínima (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil.).

Se Mises chega a esse ponto, Rothbard (2013)Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil. vai ainda mais além. Sua análise resgata em grande parte os argumentos de Spencer, por ele considerado o crítico mais ferrenho do ensino público e obrigatório. Spencer trata a educação obrigatória como puro despotismo, mecanismo que o Estado utiliza para transformar o povo em “bons cidadãos” sob o ponto de vista do próprio Estado. A educação compulsória seria para Spencer “uma pedra angular do crescimento da tirania estatal” (Rothbard, 2013Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil., pp. 42), capaz de abolir a individualidade em nome da uniformidade e da obediência ao Estado, conferindo conhecimento às expensas de prejudicar o caráter do indivíduo (Spencer, 1913Spencer, H. (1913). Social Statics, or, the Conditions Essentials to Human Hapiness Speciefied, and the First of Them Developed. D. Appleton and Company.).

Essa interpretação do Estado e da educação pública associa diretamente Estado forte e interventor com nacionalismo e tirania estatal, e deduz ser um dos seus importantes fundamentos a implantação dos SNE e do ensino obrigatório. De acordo com essa visão, o uso da doutrinação pelo Estado se torna, assim, uma consequência natural desse processo mais amplo de fortalecimento do Estado pela ampliação do intervencionismo que, no limite, colocaria o país numa marcha em direção ao totalitarismo. Identifica, por conseguinte, as políticas educacionais como sendo meios para moldar os cidadãos e fortalecer o poder do Estado. Com isso, sustenta também no campo da educação uma perspectiva antidemocrática e politicamente conservadora, contraposta à educação como um direito por esvaziar significativamente o seu valor social.

O segundo argumento que utilizam na questão do conteúdo educacional é que no ensino obrigatório ele seria padronizado e uniforme, argumento visto principalmente em Rothbard, e baseado em Spencer. Para esse último, não haveria possibilidade de consenso entre os pais acerca do conteúdo e da forma adequados para o ensino público obrigatório, fazendo com que o ensino domiciliar e a escola privada atendessem melhor a preferência desses consumidores (Spencer, 1913Spencer, H. (1913). Social Statics, or, the Conditions Essentials to Human Hapiness Speciefied, and the First of Them Developed. D. Appleton and Company.). A regulação estatal sobre o conteúdo prejudicaria também as escolas privadas, que perderiam a sua liberdade para atender a demanda diversificada dos pais. Rothbard chega a dizer que, detendo o Estado o monopólio da coerção, ele seria incapaz de instruir num ambiente de liberdade (Rothbard, 2013Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil.).

O viés aristocrático deste segundo argumento se revela na sua concepção de que a escola pública destruiria o pensamento independente pela supressão da individualidade e pelo foco na igualdade e na uniformidade. A seu ver, retiraria a liberdade da criança/adolescente mais hábil, nivelando-os pelos “menos educáveis”, além de usurpar o papel educacional do lar (Rothbard, 2013Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil., pp. 14-21). Daí, defende que o indivíduo não avançaria no ensino formal estatal regido pela igualdade e pela uniformidade, tendo em vista que, para atender as crianças mais fracas, o ensino seria nivelado por baixo.

Para o autor, no ensino obrigatório e público, haveria ênfase no grupo, tendo o ensino massificado um papel de conformar cada criança à opinião da maioria. Os coletivos para ele não teriam valor afirmativo ao considerar que “as crianças são ensinadas a buscar a verdade na opinião da maioria, e não em sua própria investigação independente, ou na inteligência dos melhores em cada campo”. Para ele, numa educação massificada, o conteúdo seria necessariamente superficial e sem orientação, deixando a criança fazer o que gosta, gerando egressos das escolas “ignorantes de leitura e ortografia elementar, e [que] não conseguem escrever uma frase coerente” (Rothbard, 2013Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil., pp. 61-62).

O terceiro argumento que esses autores utilizam para a crítica do conteúdo do ensino obrigatório público é a ideia de que ele envolve a “tentativa de arrogar para o Estado todas as funções do lar”, numa visão do papel da família na educação das crianças para além da socialização primária10 10 Para uma abordagem mais abrangente do papel da família e da escola na socialização da criança, ver Cury, num texto que discute homeschooling (2006). . Essa abordagem aparece principalmente em Rothbard, mas, de alguma maneira, também em Mises. Para eles, caberia à escola dar apenas a instrução mínima e não tentar moldar a personalidade e os valores da criança. Rothbard, em consonância com Spencer, julga que influir na percepção de mundo de crianças e adolescentes seria ferir o direito dos pais de eles próprios educarem seus filhos na linha que consideram mais adequada. Esse autor enfatiza a importância da educação voluntária e da “neutralidade” moral e religiosa no ensino público, evitando-se, assim, a tirania do Estado (Rothbard, 2013Rothbard, M. (2013). Educação: livre e obrigatória. Instituto Ludwig von Mises Brasil., pp. 59-62).

Observamos que é comum a todos esses autores a ideia de que o ensino obrigatório e público é, em última análise, um instrumento de doutrinação de governos no poder e do Estado, no campo político, moral e cultural. A maioria dos argumentos que utilizam são antigos, muitos do século XIX, assentados fortemente na visão do Estado como monopólio da coerção, numa concepção política conservadora, associada à perspectiva do mercado como o reino da liberdade. Também fixam no tempo um dos papéis que a escola pública teve num momento histórico bem específico, por ocasião da consolidação dos Estados nacionais na Europa, nos Estados Unidos e nos países asiáticos. Daí, terem como ponto pacífico que o ensino obrigatório e público teria sempre o papel de doutrinação estatal.

Esses últimos argumentos apelam para o senso comum e deixam de tratar a escola pública na sua localização histórica, sujeita a transformações e contradições; mas também mostram quão antigas são as ideias que voltaram a ter força sob o neoliberalismo: de que existe doutrinação na escola pública, de que ela não dá conta das necessidades individuais das crianças e adolescentes, de que não estimula os mais hábeis.

Como síntese dessa segunda frente que fundamenta a privatização extrema, observamos que os autores identificam no conteúdo da educação pública uma estratégia do Estado de doutrinar os cidadãos, para assim fortalecer e justificar o seu poder coercitivo. Interpretam também que a provisão pública desse serviço, de forma padronizada e uniforme, por uma instituição coercitiva, não atende às distintas necessidades dos consumidores e fere a liberdade individual ao impor uniformidade e igualdade. Todos esses aspectos são logicamente derivados de sua visão de Estado como coerção, das funções específicas que reputam ao Estado e da concepção política antidemocrática e politicamente conservadora que daí advém.

Por último, a terceira frente que construímos para evidenciar a abrangência da privatização na educação, segundo esses autores, refere-se às restrições “econômicas” que estabelecem ao financiamento público e ao papel do Estado no ensino para além do elementar. Sobre financiamento público, apenas Hayek o aceita e evidencia a forma como deveria funcionar, reforçando e retomando a concepção de Friedman (2014)Friedman, M. (2014). Capitalismo e liberdade. LTC.. Ela se daria financiando apenas o ensino elementar por meio de vales (vouchers), fixando um padrão mínimo para todas as escolas onde os vales fossem utilizados, de acordo com a proposta de Milton Friedman11 11 A visão de Friedman de educação é bem desenvolvida em Oliveira e Barbosa (2017). . As escolas públicas primárias no máximo seriam abertas em comunidades isoladas, em que o número de crianças fosse restrito e que as condições de transporte não viabilizassem a agregação de crianças em centros urbanos maiores ou, no limite, mantendo as escolas que conseguissem sobreviver a um regime de concorrência com as escolas privadas, alimentado pelo uso de vales pelas famílias (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.).

Desses autores, Hayek e Mises discutem o ensino superior, sendo que esse último manifesta opiniões esparsas sobre as Universidades Públicas, interessando-se mais pelo Ensino de Economia. A análise que fazem das universidades públicas, dos professores, do conteúdo do ensino e do perfil da pesquisa é totalmente desabonadora.

O foco de Hayek é predominantemente nas formas e limites do financiamento público do ensino superior. Não considera que o acesso ao ensino superior seja um direito, discordando da ideia de que “todas as pessoas intelectualmente capazes de adquirir uma educação superior tenham direito a ela”. Primeiro porque, para ele, isso não seria de interesse geral, entrando em choque com a necessidade de garantir o financiamento do ensino mínimo obrigatório para todos. Aponta que, mesmo para países ricos, seria oneroso financiar a educação superior com recursos públicos para uma ampla faixa da população (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão., pp. 366-369).

Em segundo lugar, destaca que o baixo retorno econômico desse tipo de gasto faria com que fosse mais racional o acesso à educação superior por uma elite relativamente pequena, atendida por universidades privadas. Para ele, nos casos que envolvem apenas treinamento vocacional, o ganho de renda auferido seria individual, referente ao capital investido. Para casos desse tipo, recomenda a concessão de empréstimos pagos posteriormente com uma parcela do aumento da renda do tomador. Apenas em situações específicas, nas quais houvesse vantagens não apenas para o estudante, mas para toda comunidade, considera justificável o subsídio governamental à educação superior. Por fim, exibindo de outra maneira seu viés antidemocrático e politicamente conservador, pontua que a existência de uma intelectualidade proletarizada, que não encontra meios para utilizar seu conhecimento, seria grave ameaça à estabilidade política de um país (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão.).

A visão privatista de Hayek e Mises os leva a uma forte crítica à massificação do ensino superior nos países desenvolvidos. Para Hayek (1983)von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão., isso teria transformado as universidades em mera continuação da instrução escolar, considerando que apenas “as universidades que oferecem cursos a nível de mestrado e doutoramento — e, na verdade, apenas as melhores dentre elas — ainda se dedicam principalmente às atividades que caracterizaram as universidades europeias do século passado” (von Hayek, 1983von Hayek, F. A. (1983). Os fundamentos da liberdade. Visão., pp. 376).

Mises desqualifica de maneira ainda mais veemente e ideológica as universidades públicas, rotulando-as de “sementeiras socialistas” dominadas “pelas ideias apresentadas no Manifesto Comunista e no programa da internacional comunista”. Para o autor, elas sofreriam a influência do partido no poder, nomeando professores que adotam ideias coincidentes com as do governo e com o papel de difundir essas ideias, reinando o intervencionismo estatal e, no limite, conduzindo os estudantes para o socialismo. Os professores seriam, a seu ver, sem criatividade e burocráticos, e, no caso dos cursos de economia, excessivamente especializados, com foco na história e estatística ao invés de dominarem o que considera ser a verdadeira Teoria Econômica. Para ele, muitos dos economistas mais criativos não estariam nas universidades (von Mises, 2010avon Mises, L. (2010a). Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil., pp. 986-990).

Em síntese, a abordagem de educação desses autores fundamenta, sob diferentes facetas, uma ampla e extrema privatização nessa área bem como o questionamento da montagem de um Sistema Nacional de Educação, do ensino obrigatório, do ensino público e do uso de impostos para financiar níveis de educação acima do elementar. Educação pública para eles é mera fonte de doutrinação, daí, quanto mais ampla, maior o problema e o risco de formação de maiorias incômodas. A família, locus extremo do privado, seria a esfera última de definição da abrangência e do conteúdo da educação, com essa reproduzindo o status quo da sociedade, sem qualquer papel emancipatório. O seu financiamento com recursos públicos, no máximo, se ateria ao ensino elementar, provido por meio de vales que financiariam predominantemente escolas privadas.

Notas conclusivas

Hayek, Mises e Rothbard contribuem para a rejeição da atuação do Estado na educação e mesmo das políticas educacionais por ele delineadas e executadas fundamentando uma privatização extrema na área. Esses autores recusam o intervencionismo econômico e social do Estado, associando-o a uma marcha gradual para o socialismo. A atuação estatal só é aceita para garantir um marco legal de sustentação do livre mercado e do capitalismo.

Esta visão, atinente ao campo da superfície dos fenômenos, reduz o papel de dominação política estatal à estrita coerção, identificando o Estado com seu aparato de força, recusando a sua função de arena de luta política das classes sociais sob o domínio do capital e seu papel de atenuador das tensões capital X trabalho. A função do Estado de garantidor da reprodução a longo prazo do sistema capitalista e a relação intrínseca entre Estado e capital, segundo diferentes regimes de acumulação no tempo, não comparece nesse tipo de análise de superfície. Reduzido à coerção, o Estado é contraposto de forma quase que direta ao indivíduo e às empresas, sendo associado a uma força de restrição da liberdade individual. Isso alimenta a fobia ao Estado, chegando a considerar, no caso de Rothbard, imposto como roubo e Estado como uma organização criminosa.

Essa conceituação de Estado legitima politicamente o uso da força visando garantir o capitalismo, desmontar políticas intervencionistas e mesmo implantar reformas privatizantes. Os autores sancionam, assim, o uso da força estatal para restringir as liberdades políticas em nome da defesa da liberdade econômica. Sob a influência de Herbert Spencer e do pensamento sociológico conservador e antidemocrático do século XIX, rotulam de socialistas todos os defensores de reformas sociais voltadas para promover o bem-estar da população.

Atendo-se à esfera da circulação, seu conceito de liberdade individual é restrito ao ato da troca, pois a ideia de igualdade, que seja diante do marco legal, na prática, mostra-se inalcançável. Não obstante, mesmo na estrita esfera da circulação, desconsideram a atuação de forças coercitivas na forma de concentração e centralização de capitais, como efeito da concorrência intercapitalista entre empresas e entre países. Sem adentrar no âmbito da produção, omitem as relações coercitivas e de exploração que se manifestam na relação capitalista e trabalhador, invisíveis na esfera da circulação.

Consequentes com sua visão de indivíduo, Estado e democracia, não conferem papel relevante à educação no desenvolvimento socioeconômico dos países e na promoção da cidadania, considerando os custos de montagem de um SNE para a liberdade individual acima do aceitável. Entendem a educação como uma atividade parental e o ensino formal como, no máximo, uma mercadoria/serviço que cabe ao mercado prover.

Uma vez que a educação é para eles um serviço, identificam o mercado de escolas privadas como a melhor forma de provisão da educação; isso por terem como foco prioritário a livre escolha, pelo indivíduo ou pela família, da própria natureza da Educação formal. Apenas Hayek admite a obrigatoriedade do ensino em nível elementar e, nesse nível, ela aparece como responsabilidade do Estado e, implicitamente, um direito da criança, podendo ser objeto de financiamento estatal por meio de vales às famílias. Já Mises e Rothbard questionam totalmente o ensino obrigatório, os Sistemas Nacionais de Ensino e o uso de impostos para financiá-los, em outros termos, a educação como um direito social.

Os três autores argumentam que tanto a provisão direta do ensino formal pelo Estado quanto a regulação estatal geram riscos de doutrinação de valores e de ensino padronizado e uniforme, com isso ferindo a livre escolha. Quanto mais ampla a rede pública e mais níveis de ensino o Estado atende, maiores os riscos de que isso aconteça. No caso do conteúdo, escolas estatais, se existirem, devem se ater a conteúdos mínimos para reduzir o risco da doutrinação. Sendo a família a fonte última de definição do alcance e do conteúdo da educação, a privatização extrema sustentada por esses autores vai além do que se costuma observar, tendo seu foco na família e na reprodução do status quo da sociedade, sem qualquer papel emancipatório.

Por fim, em nome da liberdade individual, deslocam o foco para a família e generalizam a ideia de que só o mercado e suas práticas são eficazes, confrontando-se com as históricas bandeiras de luta pela educação, pautadas na montagem de um SNE, na educação obrigatória, pública e financiada por meio de impostos, ainda que restritas à democracia liberal. Sob o aguilhão do neoliberalismo, com a expansão de sua cultura e normatividade privatistas, maiores serão os desafios na educação para os países que ainda não configuraram os seus SNE.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Fundado em 2007 pelo economista que se autodenomina ultraliberal Hélio Coutinho Beltrão e pelos irmãos Fernando Fiori Chiocca e Cristiano Fiori Chiocca. Tem como Diretor Acadêmico o professor de economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Ubiratan Jorge Iorio.
  • 4
    Não empreendemos, neste artigo, uma crítica metodológica a esses autores. Nesse sentido, ver Augusto (2016)Augusto, A. G. (2016). O neoliberalismo religioso e aristocrático de von Mises. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 44, 86-110., para uma crítica ontológica à Mises, e Carvalho, Pantoja e Lucena (2012)Carvalho, J. W. S., Pantoja, F. C., & Lucena, C. (2012). A teoria dos fenômenos complexos de Hayek e as políticas públicas para a educação no governo FHC. Poíesis Pedagógica, 10(1), 30-45., para uma crítica epistemológica à Hayek.
  • 5
    O evolucionismo em Mises existe, mas é por vezes negado pelo próprio autor, conforme discute Augusto (2016)Augusto, A. G. (2016). O neoliberalismo religioso e aristocrático de von Mises. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 44, 86-110., que encontra nele mais o argumento aristocrático do que o biológico.
  • 6
    Sobre o SNE, implantação nos países desenvolvidos, seu conceito e os obstáculos estruturais à implantação no Brasil, ver Saviani (2009)Saviani, D. (2009). Sistema de educação: subsídios para a Conferência Nacional de Educação. MEC..
  • 7
    Dentre os quais destacamos Saviani (2008Saviani, D. (2008). Desafios da construção de um Sistema Nacional Articulado de Educação. Trabalho, Educação e Saúde, 6(2), 213-232., 2014)Saviani, D. (2014). O Manifesto dos pioneiros da Educação Nova de 1932 e a questão do Sistema Nacional de Educação. In F. Nogueira, C. Cunha, M. Gadotti & G. Bordignon (Orgs.). O sistema nacional de educação: diversos olhares 80 anos após o Manifesto. MEC. e Cury (2008Cury, C. R. J. (2008). Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educacao e Sociedade, 29(105), 1187-1209., 2014)Cury, C. R. J. (2014). Sistema nacional de educação: uma reflexão provocativa ao debate. In F. Nogueira, C. Cunha, M. Gadotti. & G. Bordignon (Orgs.). O sistema nacional de educação: diversos olhares 80 anos após o Manifesto. MEC..
  • 8
    Posições afiançadas pelos artigos sobre educação que se encontram no seu site: https://mises.org.br/.
  • 9
    Para uma crítica à visão de História de Mises, ver Augusto (2016)Augusto, A. G. (2016). O neoliberalismo religioso e aristocrático de von Mises. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 44, 86-110..
  • 10
    Para uma abordagem mais abrangente do papel da família e da escola na socialização da criança, ver Cury, num texto que discute homeschooling (2006Cury, C. R. J. (2006). Educação escolar e educação no lar: espaços de uma polêmica. Educação e Sociedade, 27(96), 667-688.).
  • 11
    A visão de Friedman de educação é bem desenvolvida em Oliveira e Barbosa (2017)Oliveira, R. L. P., & Barbosa, L. M. R. (2017). O neoliberalismo como um dos fundamentos da educação domiciliar. Pro.posições, 28(2), 193-212..

Referências

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  • Brown, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo Filosófica Politéia.
  • Carvalho, J. W. S., Pantoja, F. C., & Lucena, C. (2012). A teoria dos fenômenos complexos de Hayek e as políticas públicas para a educação no governo FHC. Poíesis Pedagógica, 10(1), 30-45.
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Editor responsável: Helena Sampaio - https://orcid.org/0000-0002-1759-4875

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2020
  • Revisado
    08 Abr 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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