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Imagem corporal na infância: uma investigação escolar com grupos focais 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares - https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Camila Pires de Campos Freitas – camilacampos.revisora@gmail.com 3 3 Apoio: CAPES – Bolsas de Mestrado e Doutorado. CNPQ – Bolsa de Produtividade em Pesquisa

Resumo

A imagem corporal, para Cash e Smolak, refere-se ao constructo multidimensional da representação mental do corpo, permeada por comparações e internalizações. O objetivo deste estudo foi analisar possíveis influências dos fatores socioculturais: mídia, família e amigos, em relação à imagem corporal. Participaram dos grupos focais 32 meninas e 32 meninos, de 6 a 8 anos de idade, com média de 7,15 (DP= 0,64) anos, estudantes de escolas públicas da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. A análise de conteúdo dos dados confirmou o pressuposto de que os fatores socioculturais podem influenciar a percepção, os pensamentos, as crenças e as atitudes das crianças em relação ao próprio corpo. Ressalta-se a importância de programas preventivos voltados à imagem corporal positiva no processo educativo.

Palavras-chave
infância; imagem corporal; fatores socioculturais; educação

Abstract

For Cash and Smolak, body image refers to the multidimensional construct of the mental representation of the body, permeated by comparisons and internalizations. This study aimed to analyze possible influences of sociocultural factors: media, family, and friends, on body image. The focus groups were 32 girls and 32 boys, aged 6 to 8 years old, with an average of 7.15 (SD = 0.64) years, students from public schools in the city of Juiz de Fora, MG, Brazil. Data content analysis confirmed the assumption that sociocultural factors can influence children’s perceptions, thoughts, beliefs, and attitudes regarding their bodies. We highlight the importance of preventive programs in the educational process aimed at positive body image.

Keywords
childhood; body image; sociocultural factors; education

Introdução

A imagem corporal pode ser entendida como um construto multidimensional, com características positivas e negativas. Ele envolve pensamentos, sentimentos e comportamentos atribuídos ao próprio corpo, configurando as atitudes relacionadas à imagem corporal (Cash & Smolak, 2011Cash, T. F., & Smolak, L. (2011). Body Image: A Handbook of Science, Practice, and Prevention (2nd. ed.). New York: The Guilford Press.; Ferreira et al. 2014Ferreira, M. E., Castro, M. R., & Morgado, F.F.R. (2014). Imagem corporal: reflexões, diretrizes e práticas de pesquisa. Juiz de Fora: Ed. UFJF.). Tais atitudes têm sido usualmente subdivididas em quatro componentes, como indicado por Campana e Tavares (2009)Campana, A. N. N. B., & Tavares, M. C. G. C. F. (2009). Avaliação da imagem corporal: instrumentos, diretrizes para a pesquisa. São Paulo: Phorte.: afetivo (emoções relativas à aparência física); cognitivo (pensamentos distorcidos e crenças sobre o corpo); comportamental (hesitação de situações de exposição do corpo e adoção de comportamentos de checagem corporal); e insatisfação geral subjetiva (depreciação que uma pessoa pode ter em relação a sua aparência como um todo).

De acordo com Thompson et al. (1999)Thompson, J. K., Heinberg, L. J., Altabe, M. N., & Tantleff-Dunn, S. (1999). Exacting beauty: Theory, assessment and treatment of body image disturbance. Washington: American Psychological Association., as atitudes relacionadas ao corpo podem ser impactadas por fatores socioculturais distintos, tais como mídia, pais e amigos. Eles podem influenciar na busca por um corpo ideal, pois as crianças incorporam valores, comportamentos e conceitos que possibilitam sua formação como sujeitos inseridos em determinado contexto. Racine et al. (2011)Racine, E. F., DeBate, R. D., Gabriel, K. P., & High, R. R. (2011). The Relationship Between Media Use and Psychological and Physical Assets Among Third-to Fifth-Grade Girls. Journal of School Health, 81(12), 749-755. afirmaram que o acesso à mídia pode associar-se ao risco aumentado de desenvolver insatisfação corporal, principalmente na população infantil, mediante os programas de televisão e de outras mídias focados na aparência física, com corpos delgados ou musculosos. A influência dos pais tem sido avaliada, e alguns achados mostram que as atitudes relacionadas à imagem corporal materna e paterna se relacionam à imagem corporal dos filhos (Damiano et al., 2015Damiano, S. R., Gregg, K. J., Spiel, E. C., Mclean, S. A., Wertheim, E. H., & Paxton, J. S. (2015). Relationships between body size attitudes and body image of 4-year-old boys and girls, and attitudes of their fathers and mothers. Journal of Eating Disorders, 3(16), 1-10.; Duchin et al., 2015Duchin, O., Marin, C., Mora-Plazas, M., & Villamor, E. (2015). Maternal body image dissatisfaction and BMI change in school-age children. Public Health Nutrition, 19(2), 287-292.). Os amigos também podem ajudar as crianças a reforçarem e criticarem as mensagens da mídia relacionadas ao corpo (Tatangelo & Ricciardelli, 2013Tatangelo, G. L., & Ricciardelli, L. A. (2013). A qualitative study of preadolescent boys’ and girls’ Body Image: Gendered ideals and sociocultural influences. Body Image, 10, 591-598.). Além disso, tanto os meninos quanto as meninas temem uma avaliação negativa pelos colegas (Michael et al., 2014Michael, S. L., Wentzel, K., Elliott, M. N., Dittus, P. J., Kanouse, D. E., Wallander, J. L., & Shuster, M. A. (2014). Parental and peer factors associated with body image discrepancy among fifth-grade boys and girls. Journal Youth Adolescence, 43(1), 15-29.). Ferreira et al. (2014)Ferreira, M. E., Castro, M. R., & Morgado, F.F.R. (2014). Imagem corporal: reflexões, diretrizes e práticas de pesquisa. Juiz de Fora: Ed. UFJF. assinalam que, na internalização de um modelo de corpo ideal, até mesmo as crianças, desde a mais tenra idade, podem ter sua imagem corporal afetada.

Nessa perspectiva, a infância emerge como uma fase relevante para o estudo desse construto, mediante as possíveis relações com fatores socioculturais, por ser considerada como um período bastante significativo à vida humana, em todos os seus principais aspectos: físico, cognitivo, social e afetivo (Rabello & Passos, 2016Rabello, E. T., & Passos, J. S. (2016). Vygotsky e o desenvolvimento humano. https://josesilveira.com/wp-content/uploads/2018/07/Artigo-Vygotsky-e-o-desenvolvimento-humano.pdf
https://josesilveira.com/wp-content/uplo...
). Todavia, no Brasil, poucos estudos são encontrados a esse respeito, sendo ainda mais restritas as investigações qualitativas na infância (Neves et al., 2017Neves, C. M., Cipriani, F. M., Meireles, J. F. F., & Ferreira, M. E. C. (2017). Imagem Corporal na infância: uma revisão integrativa da literatura. Revista Paulista de Pediatria, 35(3), 331-339.).

Um estudo de revisão de literatura sobre a imagem corporal de crianças realizado por Neves et al. (2017)Neves, C. M., Cipriani, F. M., Meireles, J. F. F., & Ferreira, M. E. C. (2017). Imagem Corporal na infância: uma revisão integrativa da literatura. Revista Paulista de Pediatria, 35(3), 331-339. analisa 33 publicações e identifica apenas 2 trabalhos qualitativos, o que confirma a escassez de pesquisas qualitativas na área. Entre essas investigações, Martin (2015)Martin, G. M. (2015). Obesity in question: understandings of body shape, self and normalcy among children in Malta. Sociology of Health and Illness, 37, 212-226. avalia o entendimento de crianças com relação a sua forma corporal por meio de desenhos e comentários a respeito do corpo. Tatangelo e Ricciardelli (2013)Tatangelo, G. L., & Ricciardelli, L. A. (2013). A qualitative study of preadolescent boys’ and girls’ Body Image: Gendered ideals and sociocultural influences. Body Image, 10, 591-598. apontam que estar em forma foi um aspecto do corpo ideal destacado por meninos e meninas. Mais recentemente, identifica-se o estudo de Neves et al. (2018)Neves, C. M., Meireles, J. F. F., Morgado, F. F. da R., & Ferreira, M. E. C. (2018). Preocupações e comportamentos relacionados à aparência física na infância: uma abordagem qualitativa. Psicologia em estudo, 23, 1-16., que aponta que as crianças avaliadas apresentaram atitudes que indicam preocupação com o corpo em aspectos gerais e específicos, além de comportamentos relacionados com a imagem corporal.

Diante dos achados na literatura e da constatada escassez de estudos com abordagem qualitativa, este artigo objetiva investigar, qualitativamente, atitudes relacionadas à imagem corporal das crianças, na faixa etária escolar dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Especificamente, busca-se verificar de que forma e em que medida a família, a mídia e os amigos podem impactar e influenciar os sentimentos, as crenças e os comportamentos infantis associados aos corpos.

Aspectos metodológicos

Este estudo, de natureza qualitativa, busca capturar concepções, perspectivas, relatos e experiências dos participantes, que não poderiam ser expressos significativamente por números (Berg, 1995Berg, B. (1995). Qualitative research methods for the social sciences. Boston: Allyn & Bacon.; Breakwell et al., 2010Breakwell, G. M., Hammond, S., Fife-Schaw, C., & Smith, J. A. (2010) Métodos de Pesquisa em Psicologia (3. ed.). Porto Alegre: Artmed.). A pesquisa contou com um total de 64 crianças, 32 meninos e 32 meninas, de 6 a 8 anos de idade, com média de 7,15 (DP=0,64). Todas residem na cidade de Juiz de Fora, são matriculadas e frequentes em 2 instituições escolares públicas, selecionadas por conveniência, nas regiões sul e oeste do município. Participaram as crianças que tinham a disponibilidade para integrar o grupo focal e realizar as aferições antropométricas. Foram desconsideradas do estudo as crianças que, por algum motivo, não participaram das coletas durante o tempo destinado às sessões, sendo que não houve nenhuma recusa.

Os instrumentos utilizados foram: (a) roteiros semiestruturados, de acordo com o tema de interesse das sessões grupais para a organização dos assuntos abordados e melhor gestão do tempo; (b) recursos auxiliares, como bonecos(as) de brinquedo, imagens coloridas e plastificadas de personagens de desenhos animados e de diversas representações de constituições familiares, livro literário infantil, que, além de ressaltar diferentes partes do corpo, abordava a influência de amigos e da família nos sentimentos e nas atitudes do personagem protagonista (Rocha, 2015Rocha, R. V. (2015). Três contra um. Juiz de Fora: Franco.); (c) desenho feito pelos participantes de seus respectivos autorretratos; (d) balança e um estadiômetro da marca Filizola para a coleta dos dados antropométricos (massa corporal e estatura) e posterior cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC).

Os responsáveis pelas duas escolas municipais, nas quais se realizou o presente estudo, foram contatados para a explicação do projeto de pesquisa e a assinatura do Termo de Ciência e Autorização para coletas na instituição escolar. Os alunos que demonstraram interesse, após o convite feito pela pesquisadora nas salas de aula, levaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para casa, a fim de que os responsáveis tomassem ciência e autorizassem o estudo proposto. As crianças e seus responsáveis foram informados, inclusive, de que as sessões seriam gravadas em áudio e vídeo.

Durante a investigação 8 grupos focais foram realizados, 4 deles com meninos e outros 4 com meninas, selecionados por sorteio dentre aqueles que devolveram o TCLE assinado. Cada grupo contou com 8 crianças participantes. A variação do tempo dos grupos foi de 45 a 60 minutos. As crianças e os pesquisadores utilizaram crachás para facilitar a identificação e comunicação entre si. A organização do ambiente foi feita antes do início das sessões. Salas sem muitas informações e com menos ruídos foram priorizadas. Na porta da sala, foi fixado um cartaz com o pedido de não interrupção do estudo. As câmeras para a gravação do encontro foram posicionadas em locais estratégicos. Um lanche com biscoitos, frutas e sucos foi oferecido aos participantes, antes ou depois das sessões, conforme o horário em que ocorreu a condução do Grupo Focal.

Os dados antropométricos foram aferidos, individualmente, por educadores físicos. As crianças ficaram vestidas com o uniforme escolar e apenas retiraram seus calçados. A mensuração dessas medidas justifica-se pela possível relação entre o IMC e a insatisfação com a imagem corporal (Brault et al., 2015Brault, M. C., Aime, A., Begin, C., Valois, P., & Craig, W. (2015). Heterogeneity of sex-stratified BMI trajectories in children from 8 to 14 years old. Physiology Behavior, 142, 111-120.).

As gravações das sessões grupais foram transcritas na íntegra. Depois, foi utilizada a metodologia da Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2010)Bardin, Laurence. (2010). Análise de conteúdo (4. ed.). Lisboa: Edições70. na valorização da associação de palavras para a inferência e a interpretação. As etapas dessa técnica foram organizadas em três fases: a) pré-análise (organização do material a ser analisado, com o objetivo de torná-lo operacional e de sistematizar as ideias iniciais); b) exploração do material (definição de categorias e identificação das unidades de contexto e registro); c) tratamento dos resultados, inferência e interpretação (condensação e destaque das informações para análise, culminando nas interpretações inferenciais). Ressalta-se que, na análise dos dados, cada criança recebeu um código de identificação, com o intuito de manter em sigilo sua respectiva identidade. Esse código foi composto pelo número da sessão de grupo (G) da qual a criança participou (ex.: G1, G2, G3...), seguido pelo número do(a) participante (P) do grupo (P1, P2, P3...) e pela identificação da inicial do sexo deste(a), feminino (F) ou masculino (M).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob protocolo n.º 38768714.2.0000.5147, parecer n.º 971.049. Destaca-se que os responsáveis pelas crianças autorizaram a participação dos menores por meio da assinatura do TCLE, previsto na submissão do projeto ao Comitê.

Resultados e discussão

Na análise dos dados antropométricos, verifica-se que nenhuma das crianças participantes estava abaixo do peso, de acordo com a classificação do IMC. Entretanto, do total geral de 64 integrantes deste estudo, 11 foram classificados com sobrepeso e 9 com obesidade, o que corresponde a 17,2% e 14,1%, respectivamente, compreendendo, assim, 31,3% da amostra. Essa evidência salienta-se como ponto de atenção, mediante o percentual resultante e a tenra idade dos indivíduos, o que pode acarretar o desencadeamento de problemas de saúde e na insatisfação corporal desde a infância, além de reforçar a validade de projetos voltados à educação e à reeducação alimentar nas práticas pedagógicas escolares. Isso posto, ressalta-se que 68,7% das crianças foram consideradas com o peso adequado à faixa etária.

Enfatiza-se que, ao preencherem os Termos de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) e os dados sociodemográficos, os responsáveis pelas crianças declararam considerar que 50% dos meninos eram brancos e 50% pardos ou negros. Já em relação às meninas, 64% foram declaradas brancas e 36% pardas ou negras.

Mediante a Análise de Conteúdo sistemática dos dados obtidos (Bardin, 2010Bardin, Laurence. (2010). Análise de conteúdo (4. ed.). Lisboa: Edições70.) por meio dos grupos focais, foram definidas duas principais categorias, de acordo com as falas emergidas dos participantes, relacionadas aos sentimentos, às crenças e atitudes associadas à imagem corporal. A representação gráfica da divisão em categorias está apresentada na Figura 1.

Figura 1
Representação gráfica da divisão em categorias

A primeira categoria, denominada Autorretrato, agrupa relatos que destacaram atitudes relacionadas ao corpo, evidenciados mediante a atividade de desenho do próprio corpo. Cabe ressaltar que os desenhos foram utilizados apenas como ponto de partida para incentivar as crianças a participarem mais efetivamente dos grupos focais, ou seja, não foram realizadas análises aprofundadas referentes aos desenhos feitos pelos participantes.

Essa categoria foi organizada em duas subcategorias: insegurança ao fazer o desenho e receio em falar de seu corpo. Elas surgiram a partir dos comentários das crianças que indicaram insegurança e/ou ansiedade ao desenhar ou descrever, detalhadamente, seus corpos. Nessa premissa, Bombonato e Fargo (2016)Bombonato, G. A., & Farago, A. C. (2016). As etapas do desenho infantil segundo autores contemporâneos. Cadernos de Educação: Ensino e Sociedade, 3(1), 171-195. afirmaram que a perspectiva do registro dos desenhos desperta atormentações pelas críticas, o que pode comprometer a confiança das crianças em si e em seu universo imaginário.

No que se refere à insegurança ao fazer o desenho, os desenhos das crianças foram valorizados para a representação e expressão de seus pensamentos e sentimentos relacionados aos respectivos corpos. Gobbi (2014)Gobbi, M. A. (2014). Mundos na ponta do lápis: desenhos de crianças pequenas ou de como estranhar o familiar quando o assunto é criação infantil. Linhas Críticas, 20(41), 147-165. ressalta que os desenhos infantis podem evidenciar a perspectiva das crianças, cuja análise supera a observação. Durante o tempo destinado ao desenho do autorretrato neste estudo, destacaram-se alguns pronunciamentos:

eu não sei desenhar. Ai, eu tô muito nervoso. Posso fazer uma caveira? (G7P04-M). Mas eu não sei como faço eu direito. Posso fazer eu com a minha coroa na cabeça assim? Pode fazer vestido? (G1P01-F). É pra desenhar só a cabeça ou o corpo todo? ah! Vou fazer só até minha cintura. Porque é chato desenhar embaixo (G8P02-M).

Pelo menos duas hipóteses podem ser formuladas para o melhor entendimento desses enunciados. Na primeira, as falas podem estar relacionadas com dificuldades gráficas na construção dos desenhos. De acordo com os pressupostos de Piaget (1976)Piaget, J. (1976). A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar. relativos às etapas evolutivas do desenho infantil, na faixa etária dos participantes deste estudo, as crianças já têm um conceito definido quanto à figura humana; entretanto, desvios de esquema podem surgir — tais como exagero, negligência, omissão ou mudança de símbolo —, o que dificulta uma representação gráfica do corpo mais consistente.

A outra hipótese que justifica esses achados pode estar relacionada ao desenvolvimento da imagem corporal de modo fragmentado e negativo. É possível que as crianças participantes apresentem relação pouco saudável com o próprio corpo, acomodando atitudes que, de fato, sugerem internalização de ideal de beleza e consequente baixa aceitação corporal. Assim, evitam representar o próprio corpo em desenhos, fugindo da imagem negativa que acreditam ter. Essa hipótese é amplamente preocupante, uma vez que desconforto exagerado com o corpo em idades precoces pode configurar barreiras para o desenvolvimento integrado e positivo da imagem corporal durante toda vida.

Quanto ao receio em falar do seu corpo, ao terminar o tempo destinado para o desenho, conforme previsto no roteiro proposto para essa atividade, as crianças foram informadas de que, a partir de suas produções, deveriam descrever seus corpos e suas características. Algumas das meninas participantes mostraram restrições ao falar de seu corpo e, portanto, necessitaram de maior incentivo para que conseguissem fazer seus relatos. “Eu não sei falar nada do meu corpo (. . .). Não sei falar mais nada” (G1P03-F). “Eu não quero falar! Tenho vergonha” (G1P05-F). Comentários como esses corroboram a hipótese formulada na subcategoria anterior, destacando o quanto os desenhos das crianças podem associar-se a seus sentimentos e anseios negativos.

A segunda categoria, intitulada Aparência corporal, foi sistematizada ao considerar os comentários dos grupos, atribuídos a aspectos específicos, subdivididos em: cabelos; olhos; outras partes do corpo; cor da pele; vestuário, calçados e acessórios; força, musculatura, magreza e obesidade; sexualidade; habilidades/superpoderes e adjetivos. Segundo Araujo et al. (2013)Araujo, N. N. P., Cockell, F. F., Somekawa, A. S., Bordon, L. B., Esperança, G. T. da M., & Pires, A. S. (2013). A ressignificação do corpo: uma proposta interdisciplinar com crianças em fase escolar. Revista Ciência em Extensão, 9, 135-147., a todo instante, prescrições de padrões e condutas em relação ao corpo são recebidas, como certas ou erradas, saudáveis ou prejudiciais à saúde. E, quando são consideradas as posturas relacionadas à aparência corporal, essas “normas” podem ser facilmente percebidas. As subcategorias desse tópico merecem ênfase pela riqueza de detalhes e teor dos comentários das crianças participantes.

No que diz respeito aos cabelos, os comentários merecem atenção, pois foram considerados como característica de idealização de beleza, principalmente feminina. Máximo et al. (2012)Máximo, T. A. C. de O., Larrain, L. F. C. R., Nunes, A. V. de L., & Lins, S. L. B. (2012). Processos de identidade social e exclusão racial na infância. Psicologia em Revista, 18(3), 507-526. reconhecem, em suas pesquisas, a existência de nuances em termos de cores e formas de cabelos, bem como a necessidade de considerá-las nos estudos referentes à imagem corporal.

Os relatos das crianças participantes enfatizaram a importância da tonalidade, do comprimento, do tipo, da maciez, do brilho e dos penteados associados aos cabelos. Estes apareceram repetidas vezes na descrição das características corporais pessoais, nas opiniões de similaridades com pessoas da família, na admiração por personagens ou pessoas da mídia, nos atributos de uma mulher ou homem considerado(a) bonito(a), nos sentimentos e nas mudanças de atitudes mediante os comentários dos amigos, nos apontamentos das partes prediletas do próprio corpo, no desejo pela mudança de algo em sua aparência. Salienta-se que a grande maioria dos comentários foi mencionada pelas meninas. Foram selecionados alguns desses, descritos segundo as informações coletadas:

Eu tenho cabelão grosso, quando eu passo alguma coisa, ele fica molinho (G8P01-M). Tenho cabelo pequeno, castanho escuro (G1P07-F). Prefiro meu cabelo também, porque ele é loiro. E porque eu gosto de fazer tranças. E quando eu lavo porque ele fica... [gesticulou dando a entender que o cabelo cresce] (G1P01-F). O cabelo dele é bonito também porque ele passa alisante. (G6P03-M). Loiro [O que a Barbie tem de mais bonito] Gosto da Barbie porque ela é bonita. Cabelo (G4P05-F). [Sobre a Elsa do filme Frozen] Eu gosto daquela dali. Aquela dali de cabelos trançados (G5P07-M). Gostaria que meu cabelo fosse liso (. . .), porque é cacheado, quando meu pai escova com aquela escova que tem dentes fica doendo. Pra mudar meu cabelo, eu esqueci de falar a cor: Loiro [cor que gostaria que fossem seus cabelos]. O meu cabelo, quando eu lavo, ele fica preto e eu não gosto (G1P01-F).

As consideráveis quantidades de comentários referentes aos cabelos evidenciam o quanto esse aspecto da aparência está no foco de atenção das crianças participantes quando o assunto é a imagem corporal. Brasil et al. (2015)Brasil, M. R., Oliveira, V. M. de, Chumlhak, Z., Estevão, B. J., Silva, T. R. da, & Silva, S. R. (2015). Associação entre (in)satisfação com a imagem corporal, estado nutricional e nível de coordenação motora em crianças e adolescentes de projetos esportivos. Cinergis – Unisc, 16(2), 82-86. afirmam que a (in)satisfação na infância diante da imagem corporal pode afetar diferentes etapas do desenvolvimento do ser humano, desde a tenra idade, na construção da autoimagem, na percepção de ideais de beleza e nas consequências agravantes durante a vida adulta.

A cor dos olhos, apesar de mencionada pelos participantes com menor frequência do que os cabelos, recebeu destaque por terem surgido, nas descrições pessoais, predileções, semelhanças com a mãe, nas características importantes da beleza corporal, observações referentes aos personagens infantis da mídia e desejos de mudança, inclusive citando o(a) amigo(a) como modelo da cor dos olhos almejada:

Eu tenho os olhos castanho (G1P02-F) (G1P04-F). (G1P07-F) (G2P05-F). Os meus olhos, porque eu queria ter olho azul. Porque é bonito. [desejo de mudança] Como o da Manu (G1P08-F). [características de uma mulher bonita] Corpo bonito e olho verde! (G1P03-F).

Nota-se, a partir de algumas das ponderações feitas pelas crianças, que a distância entre o corpo real e a imagem corporal permeia suas relações com o mundo e as imagens apresentadas neste, evidenciando que não somente os cabelos e os olhos, mas também as outras características corporais podem ser relevantes ao construto da imagem corporal.

Partes diversas do corpo — tais como pés, mãos, nariz, coxas, pernas, boca, braços, costas, orelhas e dentes — apareceram nas falas dos participantes, principalmente associadas a suas dimensões (grande ou pequena). Alguns apontamentos chamaram a atenção nos comentários das crianças, por exemplo: a influência dos pais nas observações corporais e a preocupação com a estética dentária, mesmo que a dentição permanente ainda não tenha sido concluída nessa idade. Ademais, os meninos observam as unhas feitas, os dentes, as nádegas e os seios como características na beleza das mulheres:

Unhas longas. Dentes brancos. [Descrição voltada à concepção de beleza feminina] Orelha pequena (G5P04-M). [o que uma mulher precisa ter para ser bonita] Unha feita. [Tamanho dos seios] Bunda e peito. Grande (G6P08-M). [como gostaria que os dentes fossem] Meu dente torto. Eu queria trocar de dente. Branquinho (G8P08-M). Eu gosto do pescoço até o pé, porque a cabeça eu acho um pouquinho feia (G8P06-M). Minha coxa é gordinha (G7P04-M). Minha barriga é muito grande! (G7P01-M). Eu queria ter a orelha bem pequena assim. O meu pai tem uma orelha grandona, e eu acho que a minha ficou grande, é... grande igual à dele. Eu mudaria também o meu pé, porque meu pé é grande igual ao do meu outro pai (G2P02-F). [Exemplos de semelhanças] Com meu pai. Eu sou igual a ele, porque meu corpo todo é igual ao dele. O pé, a coxa, a barriga. Mas a do meu pai é um pouquinho assim [Faz gestos insinuando coxas mais musculosas], a barriga dele é assim [mostra a sua barriga] (G8P08-M).

Pimenta (2012)Pimenta, P. C. (2012). Reflexões sobre corporeidade e padrões de beleza a partir de Merleau Ponty Scyla. Revista de História, 4(2), 133-145. afirma que as formas corporais nunca foram tão valorizadas como um produto de desejo individual como na atualidade e, portanto, destacam-se na vida cotidiana. Esses fatores podem ser atribuídos à crescente preocupação com a apresentação e a imagem do corpo. Os achados desta pesquisa corroboram a premissa de que os contextos sociais, culturais e familiares se tornam fundamentais nos impactos relacionados às dimensões da imagem corporal infantil.

A pele foi outro traço destacado. A predominância dos comentários referentes à tonalidade da pele foi dos meninos. Alguns dos relatos demonstraram preocupante insatisfação corporal quando as crianças se referiram à raça negra ou à admiração e desejo pela tonalidade branca da pele. Máximo et al. (2012)Máximo, T. A. C. de O., Larrain, L. F. C. R., Nunes, A. V. de L., & Lins, S. L. B. (2012). Processos de identidade social e exclusão racial na infância. Psicologia em Revista, 18(3), 507-526. destacam que as crianças pardas e negras têm, em geral, uma avaliação emocional negativa de sua pertença racial. Nessa perspectiva, destacam-se as seguintes falas dos participantes:

[Justificativa do desejo de mudança da raça] ser branco porque é legal. Porque ser negro é muito chato (G6P05-M). [as mulheres pensam dos homens negros, de acordo com o participante] negro, tia, as mulher pensa que é ladrão (G6P02-M). pensa que é Saci Pererê [sic] (G6P04-M). Eu queria nascer de novo e branco! (G7P06-M). [Ao responder qual é sua cor] Eu mudaria a pele. Queria ter outra cor. Eu queria ser branco e moreno. Não sei, acho que é preto (G8P01-M). [O porquê de considerar a personagem infantil Elsa, do filme Frozen, mais bonita] O corpo dela é cor de pele. Branca (G5P08-M). [O que uma mulher bonita precisa ter] corpo branco e vestido rosa que bate no chão. [Exemplo de corpo que atende ao ideal de beleza da participante] O da minha mãe (G1P01-F).

Mediante os pronunciamentos dos participantes, evidenciam-se estereótipos relacionados à etnia, à valorização da raça branca e à insatisfação com a cor da pele negra, o que configura um quadro amplamente preocupante por se tratar de pensamentos, sentimentos e atitudes associados a uma amostra do universo infante. Ressalta-se ainda que a prevalência de meninos negros na presente investigação (como demonstrado nos resultados) está em consonância com os comentários voltados à tonalidade da pele, os quais também estiveram mais presentes entre os meninos, que se demonstraram mais insatisfeitos com seus corpos. Nessa premissa, anuncia-se a importância do multiculturalismo nos currículos escolares, na construção de identidades dos alunos da educação brasileira.

Tatangelo et al. (2016)Tatangelo, G. L., Mccabe, M., Mellor, D., & Mealey, A. (2016). A systematic review of body dissatisfaction and sociocultural messages related to the body among preschool children. Body Image, 18, 86-95. salientam que o desenvolvimento da imagem corporal se associa aos fatores socioculturais e às relações da criança no contexto em que vive, pois esta recebe evidente influência por meio de mensagens que enfatizam estereótipos corporais. Nesse contexto, Pimenta (2012)Pimenta, P. C. (2012). Reflexões sobre corporeidade e padrões de beleza a partir de Merleau Ponty Scyla. Revista de História, 4(2), 133-145. aponta que a ideia de branqueamento e eugenia ocorrida no Brasil surgiu, de modo discriminado, como uma possibilidade de melhoria do aspecto físico dos brasileiros, pois os cabelos loiros e a cor da pele branca são vistos como elitização, sendo tomados como protótipo de belo. Em conjunto, esses achados apontam para a necessidade de elaborar e implementar políticas públicas e educacionais consistentes e eficazes no sentido de trabalhar questões étnicas, desde a tenra infância, com enfoque na aceitação corporal e respeito à diversidade humana.

Também se ressaltaram vestuário, calçados e acessórios. Itens que atribuem glamour, como capa e coroa, foram valorizados pelos participantes. Além das roupas, as cores destas foram bastante mencionadas. Os sapatos e os vestidos emergiram de vários comentários, sobretudo estes últimos, tanto os meninos quanto as meninas falaram acerca das roupas, dos calçados e dos acessórios. Tatangelo et al. (2016)Tatangelo, G. L., Mccabe, M., Mellor, D., & Mealey, A. (2016). A systematic review of body dissatisfaction and sociocultural messages related to the body among preschool children. Body Image, 18, 86-95. enfatizam que as imagens da mídia voltadas às crianças veiculam mensagens verbais ou modelos de atitudes relacionadas com a aparência e os comportamentos que podem ser internalizados pelo público infantil. Importa ressaltar que, na presente pesquisa, os meninos salientaram que o status financeiro e o fato de possuir bens são essenciais aos homens na conquista de mulheres. Alguns enunciados:

[Preferência pela boneca] Barbie porque o sapato dela é lindo e tem brilho (G4P03-F). [Personagem do filme Frozen] eu queria ter tudo da Elsa. Eu queria muito uma coroa da Elsa (G4P04-F). Eu gosto da Polly porque eu gosto do vestido dela (G4P02-F). A Polly usa bota e roupa roxa (G6P04-M). Ser rico, ter uma mansão de luxo bem grandona conquista as mulher bonita (G7P04-M). [O que um homem precisa para ser considerado belo pelas mulheres] (. . .) ser rico, ter estilo com mulher. Se a gente andar de moto, Ferrari ou de Camaro (. . .) se a gente der carona, elas vão ficar apaixonada pela gente (G7P06-M).

Torna-se claro, com os apontamentos das crianças, que a mídia é bastante representativa ao estabelecer padrões físicos, estéticos e comportamentais, a partir da projeção-identificação psicológica, muitas vezes, por meio das vestimentas e dos artefatos. Assim, corrobora-se a hipótese de que a criança não apenas está incluída no universo do consumo, mas também faz parte dele.

Força, musculatura, magreza e obesidade constituem um tópico de relevantes declarações das crianças, que emergiram quanto à preocupação com a definição corporal, com destaque para o abdome. Nos grupos dos meninos, enfatizou-se força e musculatura; enquanto nos grupos das meninas, a ênfase foi na magreza. Entretanto, comentários associados ao desejo de serem magros foram ditos por meninos, assim como a frequência às academias e o ganho de massa foram indicados como importantes para as mulheres. Salienta-se que a gravidez foi considerada negativa à beleza feminina, devido ao crescimento da barriga. Ademais, foi exposto que apelidos referentes à magreza ou à obesidade tendem a gerar sentimentos negativos. Personagens infantis foram citados como prediletos devido à força, à definição e aos músculos por vários participantes. Pimenta (2012)Pimenta, P. C. (2012). Reflexões sobre corporeidade e padrões de beleza a partir de Merleau Ponty Scyla. Revista de História, 4(2), 133-145. afirma que o uso do corpo magro para demonstrar força, beleza e garra tem sido vinculado, pela mídia, a um impositivo de ideal na sociedade contemporânea. Seguem alguns comentários:

Eu gosto dele, do tanquinho dele, ele tem músculos (G4P04-F). [Comentários referentes ao personagem Super-Homem] Ele é forte! (G3P01-F) (G4P04-F) (G6P08-M) (G6P03-M) (G6P04-M). [O que a Barbie tem de mais bonito] Ela é linda! A barriga dela porque ela tem tanquinho (G3P02-F). [Motivo pelo qual não acha a Monster High grávida bonita] parece que ela está grávida. Porque ela tem um barrigão tipo baleia assassina (G5P06-M). [Mostra o braço em afirmação à parte do corpo que fica forte] Eu vou na academia com a minha mãe pra ficar forte. Eu malho, eu corro. Hoje eu vou (. . .) meu braço! Eu sou forte já, mas queria mais (G7P05-M). [O participante aponta para a região do abdome, faz contração de bíceps, levanta os braços e dá socos no ar] homem tem que ser mais forte. Ser bonitão, ter umas bolinhas aqui assim, bolinha de musculoso. De tipo aqui nos peito na hora que o homem se mexe. O homem se espreguiça, fortão, suadão (G7P04- M).

Os comentários trazidos à tona nesta subcategoria — Força, musculatura, magreza e obesidade — remetem à reflexão de que tipos de valores são transmitidos às crianças, as quais, precocemente, preocupam-se com um padrão de beleza que pode ser considerado um ideal distante, devido ao fato de pouquíssimas pessoas conseguirem atingi-lo, o que pode contribuir para a adoção de métodos inadequados na tentativa de alcançar esse estereótipo corporal. Nessa perspectiva, Brasil et al. (2015)Brasil, M. R., Oliveira, V. M. de, Chumlhak, Z., Estevão, B. J., Silva, T. R. da, & Silva, S. R. (2015). Associação entre (in)satisfação com a imagem corporal, estado nutricional e nível de coordenação motora em crianças e adolescentes de projetos esportivos. Cinergis – Unisc, 16(2), 82-86. salientam que a busca pelo corpo considerado perfeito e as mudanças na aparência física parecem ser preocupações evidentes entre crianças e adolescentes, revelando grande insatisfação corporal.

Comentários especificamente dos grupos de meninos relacionados à sexualidade surgiram em diversos momentos. Entre esses, destacaram-se: o desejo de namorar personagens/pessoas da mídia; a resistência dos meninos em brincar com bonecas por acreditarem que estas são brinquedos exclusivos das meninas e que tal ato prejudicaria a imagem da masculinidade; a concepção de homossexualidade e preconceitos de discriminação que já estão incutidos nas crianças; as afirmações de que os homens devem se aproveitar sexualmente das mulheres; a erotização dos corpos ao conceituarem uma mulher atraente; a possibilidade de as mulheres ficarem com um corpo exuberante e a relação desse resultado com o treino em academias, assim como a exposição dos seios, das nádegas e do órgão genital feminino como preferência corporal pelos meninos. Citam-se alguns trechos das transcrições:

[Referindo-se às bonecas] Eu gostei de todos, menos dos de mulher (G5P02-M). Eu vejo desenho de mulher. Homem também vê desenho de mulher, né? (G6P02-M). Tem gente que gosta de homem, tem gente que gosta de mulher. Não tem nada a ver, deixa eles viver a vida dele, né? (G6P03-M). [Como deve ser um homem] Ser gostosinho, aproveitar das mulher (G7P06-M). [Motivo pelo qual as mulheres treinam em academias] Elas ficam com bundão (G7P03-M) (G7P04-M). [Referindo-se ao órgão genital feminino como o que gosta em uma mulher bonita] eu gosto da xeroca dela (G6P02-M). [Referente às personagens Ana e Elsa do filme Frozen] Muito gostosas e a cara delas é bonita. (. . .) é que o corpo delas... olha só como é que é liso, já pensou elas estão num baile rebolando a bunda (G6P03-M). [Homem que se parece com o Max Steel] só que ele é veado. Ele apareceu no Sílvio Santos. Veado é um homem assim [faz gestos ao mexer nos cabelos] (G5P07-M). Veado é homem que usa roupa de mulher (G5P06-M). E é também que pega (…) (G5P07-M) homem [completa a frase do outro participante] (G5P08-M).

Chama atenção a precocidade das crianças em relação aos pensamentos, às crenças e atitudes relacionadas aos gêneros e à erotização dos corpos no contexto cultural em que estão inseridas. Segundo Borges (2007)Borges, E. M. (2007). Corpo, espetáculo e consumo: novas configurações midiáticas para a infância. Media & Jornalismo, 11, 91-103., refletir sobre as formas como as representações do corpo e da sexualidade são produzidas e difundidas pelas mídias, pelas famílias e pelos colegas torna-se importante para a compreensão do significado dessas representações para a construção da subjetividade das novas gerações, uma vez que as mídias atuam na inserção das crianças na esfera do consumo, das representações do corpo e da sexualidade construídas e veiculadas pelos meios de comunicação. Nesse sentido, práticas reflexivas que prezem pelo respeito, pela equidade e pelos direitos humanos se mostram importantes no contexto educacional.

Características como habilidades/superpoderes foram ressaltadas pelos participantes como vantagens atribuídas aos personagens infantis, às pessoas da mídia ou que convivem com as crianças. Notou-se que, apesar de não se referirem, diretamente, ao corpo, tais atributos foram valorizados pelos grupos.

Numerosos comentários insurgiram quanto aos superpoderes e às aptidões dos personagens que despertam o interesse das crianças em suas observações e predileções. Voar, pular alto, salvar vidas, lançar objetos, destruir inimigos, lutar, ter poderes de gelo, cantar, explodir coisas e virar uma espécie de Deus foram alguns dos comentários que surgiram durante a pesquisa. Rodrigues e Dantas (2011)Rodrigues, E. G. B., & Dantas, J. G. (2011). Infância midiatizada: a difícil tarefa de ser criança em tempos de globalização. INTERCOM - Anais do XIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, Maceió. asseveraram que as crianças, sobretudo do sexo masculino, estão cada vez mais submetidas aos desenhos animados, em sua maioria violentos, e aos filmes de heróis, nos quais os personagens possuem superpoderes, que nem sempre são bem entendidos pelas crianças, podendo causar verdadeiros e sérios danos àquelas que acreditam ter os mesmos poderes ou que agem de modo semelhante aos heróis das “telinhas”.

Eu queria ser o Goku porque ele pode virar um pouco Deus (G6P04-M). Eu gosto do Super-Homem porque ele salva vida (G3P01-F). Porque ele voa e consegue cair e para em pé (. . .) e não se machucar (G4P04-F). Porque ele voa, solta laser, destrói os inimigos dele (. . .) e ele salva a cidade (G5P05-M). [Homem-Aranha] Ele tem superpoderes (G3P07-F). É legal porque ele faz teia (G4P07-F) (G6P03-M) (G5P03-M). Ele luta e salva vidas (G5P08-M). [Personagem do filme Frozen] A Elsa porque ela joga gelo (G4P03-F) (G4P01-F) (G4P04-F) (G1P02-F) (G5P06-M) (G5P03-M) (G6P08-F). Ela tem superpoderes (G5P02-M).

Ressalta-se que os atos de salvar vidas, voar, pular alto, lançar objetos e ter superpoderes foram considerados pelos participantes dos Grupos Focais como aspirações de ambos os sexos. Assis (2009)Assis, R. de (2009). Mídia e educação. In V. Vivarta (Coord.), Infância e consumo: Estudos no campo da comunicação (pp. 119-132). Brasília: ANDI – Instituto Alana. contribui para o entendimento dessas questões ao afirmar que vivemos em uma sociedade a cada dia mais “acelerada”, na qual os indivíduos, de todas as idades, são bombardeados por inúmeros tipos de informações. Eles podem despertar o imaginário das crianças, que são incentivadas a reproduzirem comportamentos, hábitos e ideologias. Por esse motivo, é importante a prática da reflexão crítica nos âmbitos familiar e escolar para que esse universo imaginário infantil seja positivo e não contribua com o desencadeamento de futuras psicopatologias.

Alguns adjetivos emergiram como importantes para as crianças no que tange às características físicas ou intrínsecas. Foram utilizados pelos participantes a fim de explicar o desejo de se parecerem com alguém, assim como a concepção do que é necessário ao homem, à valorização corporal, ao apelido desejado e aos personagens infantis. Nessa premissa, ressaltam-se estes comentários:

eu sou delicada (G1P03-F). eu sou esperta! (G1P07-F). corpo grande. Alta! (G1P08-F). Eu queria parecer com a Anitta [cantora] porque ela (. . .) é bonita (G1P01-F). Para mim, um homem bonito tem que ser elegante. E tem que ser com postura (. . .), tem que ser esperto e tem que ser gentil (G1P02-F). [O que um homem precisa ter para ser belo] coragem (G6P03-M).

Percebeu-se que diversos adjetivos foram utilizados para caracterizar crenças e pensamentos relacionados ao corpo. Assis (2009)Assis, R. de (2009). Mídia e educação. In V. Vivarta (Coord.), Infância e consumo: Estudos no campo da comunicação (pp. 119-132). Brasília: ANDI – Instituto Alana. enfatiza que o impacto de imagens e sons captura a imaginação e a fantasia de crianças, adolescentes, jovens e adultos, em diferentes níveis de intensidade, de acordo com as habilidades individuais e das narrativas nas quais são interpretadas.

Considerações finais

A partir do estudo realizado, emergiram achados que avançam em relação aos estudos existentes sobre a imagem corporal na infância. Um considerável progresso foi a elaboração de efetivos roteiros semiestruturados, que priorizaram abordagens e recursos significativos às conduções de vários grupos focais com crianças. A metodologia qualitativa contribuiu, efetivamente, para dar voz às crianças, de modo que fosse possível um olhar mais profundo às diferentes questões sobre a imagem corporal.

Notou-se que o sobrepeso e a obesidade merecem maior atenção e intervenções educativas, a fim de evitar danos à saúde fisiológica e psicológica das crianças. Ademais, as descobertas advindas desta investigação corroboram que as crianças, desde a mais tenra idade, apresentam relevantes crenças, sentimentos e atitudes no julgamento da aparência física, bem como que a família, os amigos e a mídia têm forte influência na percepção da imagem corporal.

Na abordagem da aparência física, diferentes questões vieram à tona e foram discutidas, tais como o receio das crianças ao desenharem seus respectivos autorretratos, o uso de adjetivos no julgamento da aparência, os sentimentos negativos em relação ao corpo, o desejo de mudanças corporais, a apreensão por não quererem engordar e a sensibilidade diante de apelidos associados ao físico. A consequente preocupação com a opinião e aceitação dos amigos, a considerável influência da mídia e dos personagens/brinquedos infantis na idealização de corpo, a comparação de características corporais e preferências associadas aos membros da família e o quanto os cabelos são considerados importantes à aparência emergiram nos comentários dos grupos.

Foi possível observar semelhanças e diferenças nas falas dos meninos e das meninas referentes à imagem corporal. Como similitudes, consideram-se os apontamentos voltados à frequência em academias para o alcance de um corpo ideal, a importância dos acessórios, dos calçados e das vestimentas para a beleza corporal, bem como a relevância das habilidades e dos superpoderes dos personagens da mídia. Destaca-se que, sobretudo os meninos, mostraram-se bastante preocupados com a cor da pele, com a musculatura e a definição do corpo, em especial na região abdominal. Os meninos também fizeram comentários voltados à sexualidade, e estes foram destacados na pesquisa devido à pouca idade dos participantes e aos pensamentos que apresentam em relação à homossexualidade e à erotização das palavras direcionadas aos corpos. As meninas, no entanto, mostraram-se mais preocupadas com os cabelos e com a magreza. Os resultados da análise dos grupos focais enfatizam o quanto projetos educacionais relacionados à diversidade, à pluralidade cultural, à imagem corporal se fazem importantes ao desenvolvimento das crianças, em seus principais aspectos: social, físico/motor, emocional e cognitivo.

Este estudo fornece subsídios para pesquisas futuras que objetivem avaliar a imagem corporal na infância e os principais fatores que influenciam esse construto, a fim de investir na prevenção de possíveis e futuros transtornos psicopatológicos. Pesquisas com amostras maiores e em outras regiões do país tornam-se necessárias para maior efetividade e generalização dos resultados à população infantil brasileira. Considera-se importante, também, o desenvolvimento de instrumentos adequados à faixa etária estudada, que possam condensar e avaliar crenças, pensamentos e atitudes das crianças relacionadas a seus corpos, bem como a criação de programas de promoção à saúde direcionados aos profissionais da educação e às famílias dessas crianças. Pesquisas futuras poderiam, ainda, investigar os mesmos construtos extensivos aos familiares e aos docentes nas escolas da Educação Básica.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Camila Pires de Campos Freitas – camilacampos.revisora@gmail.com
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    Apoio: CAPES – Bolsas de Mestrado e Doutorado. CNPQ – Bolsa de Produtividade em Pesquisa

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Editor responsável: Carmen Lúcia Soares - https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2021
  • Revisado
    14 Jun 2021
  • Aceito
    01 Set 2021
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