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Grêmio estudantil e gestão escolar democrática nas sociedades de controle 1 1 Editor responsável: Helena Sampaio - https://orcid.org/0000-0002-1759-4875 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha – verah.bonilha@gmail.com. 3 3 Apoio: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Asociación de estudiantes y gestión escolar democrática en las sociedades de control

Resumo

Este texto apresenta resultados de uma pesquisa com estudantes membros de um grêmio estudantil de uma escola pública de Santa Catarina, buscando responder à questão: que sujeito a escola tem produzido na contemporaneidade democrática? Ancorados em base epistemológica pós-estruturalista, objetiva-se problematizar práticas democráticas de um grêmio estudantil. Os principais teóricos utilizados foram Deleuze, Guattari e Foucault. A ferramenta de produção dos dados foi o diário de campo, composto por áudios registrados em reuniões do grêmio. Apesar de o grêmio refletir a gestão democrática e se constituir em um espaço de múltiplas possibilidades, infere-se que ele opera, simultaneamente, como extensão do currículo, ao produzir os sujeitos demandados neste tempo. Sujeitos dóceis, úteis e participativos.

Palavras-chave
Currículo; Gestão democrática; Grêmio estudantil; Sociedades de controle

Resumen

Presentamos resultados de una encuesta con miembros de una asociación estudiantil de una escuela pública en Santa Catarina. Buscamos responder la pregunta: Qué sujeto produce la escuela en la época democrática contemporánea? Anclado sobre una base epistemológica postestructuralista, nuestro objetivo es problematizar prácticas democráticas de una asociación estudiantil. Los principales teóricos utilizados fueron Deleuze, Guattari y Foucault. La herramienta de producción de datos era el diario de campo compuesto de áudios registrado en las reuniones del la asociación. Aunque la asociación estudiantil refleja una gestión democrática y constituirse como un espacio de múltiples possibilidades, inferimos que opera, simultaneamente, como una extensión del currículo produciendo los sujetos demandados en este tempo. Sujetos dóciles, útiles y participativos.

Palabras clave
Curriculo; Gestión democrática; Asociación estudiantil; sociedades de control

Abstract

We present the results of a survey conducted with students who are members of a student council at a public school in Santa Catarina. We seek to answer the question: what subject is the school producing in contemporary democracy? Based on post-structuralism, we aim to problematize the democratic practices of a student council. We used Deleuze, Guattari, and Foucault as our main theoretical framework. For data collection, we used a field diary composed of audios recorded at council meetings and transcriptions. Although the student council reflects on democratic management and establishes a space of multiple possibilities, it operates simultaneously as an extension of the curriculum by producing the docile, useful, and participative subject demanded by our time.

Keywords
Curriculum; Democratic management; Student council; Control societies

Palavras introdutórias

Neste artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa realizada em uma escola de Ensino Médio da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina. Os participantes foram estudantes membros do grêmio estudantil em funcionamento na instituição, e a pergunta norteadora foi: que sujeito a escola tem produzido na contemporaneidade democrática?

A ancoragem epistemológica foi o pós-estruturalismo, e os principais aportes teóricos foram: Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault. Partindo dessa perspectiva, e ancorados em Varela e Alvarez-Uria (1991)Varela, J., & Alvarez-Uria, F. (1991). Arqueologia de la escuela. Ediciones Endymion., entendemos a escola como uma instituição inventada pela burguesia iluminista para produzir os sujeitos que legitimassem a ordem mental e social que o capitalismo industrial instaurava. Assim, a escola e os currículos devem ser reconfigurados quando o capitalismo se transforma e demanda outros sujeitos. A escola é uma invenção das sociedades disciplinares, descritas por Foucault (2007)Foucault, M. (2007). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Vozes., por isso investiu (e investe) no disciplinamento dos corpos e na produção de subjetividades. Essa produção subjetiva é engendrada pelos currículos, aqui compreendidos na perspectiva pós-crítica, alinhada ao pós-estruturalismo. “A teorização curricular contemporânea é um dos campos que tem sido decisivamente afetados pelo pós-estruturalismo ou pelo pensamento da diferença” (Corazza & Silva, 2003Corazza, S., & Silva, T. T. (2003). Composições. Autêntica., p. 36).

Nessa vertente, o currículo é uma seleção de saberes, conhecimentos, valores morais e éticos, estrategicamente elaborada para produzir determinadas identidades (Lopes & Macedo, 2011Lopes, A. C., & Macedo, E. (2011). Teorias de currículo. Cortez.). A alquimia dos elementos constitutivos de um currículo deverá produzir não quaisquer identidades, mas as identidades requeridas pelo capitalismo em cada tempo histórico. “Todo currículo carrega, implicitamente, alguma noção de subjetivação e de sujeito: quem nós queremos que eles e elas se tornem? o que eles e elas são? [ênfase no original]” (Corazza & Silva, 2003Corazza, S., & Silva, T. T. (2003). Composições. Autêntica., p. 38). Nas sociedades atuais, regidas pelos fluxos do neoliberalismo global, mesmo a escola democrática, organizada sobre bases pedagógicas críticas, de raiz marxista, reproduz as dinâmicas gerais do neoliberalismo. Faz isso investindo na produção massiva de sujeitos democráticos, adequados aos aspectos neoliberais atuais. É por isso que “o sujeito não passa de uma ficção que se caracteriza não por sua falsidade, mas por sua utilidade” (p. 43). Por depender de determinados sujeitos, o neoliberalismo os produz, e a escola é uma das instituições investidas dessa tarefa. Por isso, queremos destacar a continuidade entre o neoliberalismo, a reconfiguração que ele produz na escola e nos currículos e como esses currículos se prolongam para o interior de um grêmio estudantil, capturando resistências e convertendo-o em extensão de si mesmos. Isso faz com que as resistências que emergem naquele espaço sejam rapidamente canalizadas e capturadas.

As mutações no capitalismo reclamam novas estratégias de governo, como o gerencialismo, que intenta a participação de todos. “O desenvolvimento de um gerencialismo na educação é reflexo dos desdobramentos do neoliberalismo global que reconfiguram as sociedades e demandam outras formas de gestão na educação” (Laval, 2004Laval, C. (2004). A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Editora Planta., p. 239). Isso exige que a escola produza esse sujeito participativo, democrático. Um sujeito que não seja mais apenas dócil e útil, mas também participativo (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.). A dinâmica gerencialista difunde o modelo organizacional da empresa por toda a sociedade e adentra a escola, via gestão escolar democrática, que descentraliza o poder por meio de órgãos colegiados, como o grêmio estudantil. O que está em causa, com a gestão democrática, é produzir um sujeito que seja útil ao neoliberalismo e “o currículo é, por excelência, um local de subjetivação e individuação” (Corazza & Silva, 2003Corazza, S., & Silva, T. T. (2003). Composições. Autêntica., p. 53). Por isso, nosso objetivo é problematizar práticas democráticas de um grêmio estudantil.

A metodologia empregada na pesquisa foi a cartografia, desenvolvida a partir dos escritos de Deleuze e Guattari (2011)Deleuze, G., & Guattari, F. (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). Rio de Janeiro: Ed. 34.. A ferramenta de produção dos dados foi o diário de campo, composto por áudios de diálogos, que os membros do grêmio estudantil tiveram durante suas reuniões. A cartografia das linhas molares e moleculares (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Ed. 34.), constitutivas do currículo em funcionamento no interior da agremiação estudantil, sinalizou que o currículo escolar determinava a forma do currículo do grêmio. O currículo escolar se prolongava para o interior da agremiação, convertendo aquele espaço de participação democrática e possíveis resistências em uma extensão de si mesmo, estendendo, assim, sua produção subjetiva para além das salas de aula.

Como sabemos, o Brasil atravessa um momento político extremamente complexo e delicado. Esse momento é reflexo de transformações mais amplas, alavancadas pelas demandas neoliberais, que acontecem em nível global. Nesse cenário, a democracia, como modelo de governo, vem sendo atacada por governos autoritários que têm emergido com frequência ao redor do mundo. Segundo Chamayou (2020)Chamayou, G. (2020). A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. Ubu Editora., isso vem ocorrendo porque o regime democrático tem dificultado os anseios neoliberais de expansão sem limites dos mercados. A democracia representa, nesse contexto, uma interferência estatal, pois assegura direitos aos cidadãos. Direitos que, em muitos casos, obstam os interesses neoliberais, como os direitos trabalhistas.

No caso do Brasil, um dos direitos sociais assegurados pelo Estado Democrático é a educação (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Daí o constante empenho de diminuir a participação do Estado na educação por meio de reformas e inúmeras propostas e tentativas de privatização. Esse interesse não é sem motivo. A privatização da educação escolar proporcionaria, a um só tempo, o enxugamento do Estado, o que se refletiria em ausência de investimentos, que os neoliberais chamam de gastos, mas também eliminaria a estabilidade docente. Se a educação deixasse de ser estatal, seus funcionários não seriam públicos e efetivos. Essa estabilidade é que assegura aos docentes a liberdade de cátedra, sem a qual não podem ensinar livremente, como prevê a Constituição Federal de 1988. O que se quer é produzir o sujeito necessário ao neoliberalismo e, na lógica privada, o(a) professor(a)que não seguir a cartilha institucional, que deverá produzir esse sujeito, é substituído. O(A) professor(a) é silenciado(a) e reduzido(a) a ferramenta de dominação das classes menos favorecidas, como foi no início da escola (Varela & Alvarez-Uria, 1991Varela, J., & Alvarez-Uria, F. (1991). Arqueologia de la escuela. Ediciones Endymion.).

Por isso, à medida que o neoliberalismo se desenvolve, assistimos à corrosão das democracias ocidentais, sobretudo pelas mãos da extrema direita (Brown, 2019Brown, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Editora Filosófica Politeia.). Por isso, julgamos fundamental destacar que as problematizações que fazemos da escola, da gestão escolar democrática e do sujeito democrático, produzido pela escola deste tempo, não tomam a democracia representativo-participativa, tampouco a escola pública, como alvos a serem atacados. Entendemos a tarefa de problematização na perspectiva de Foucault (2004). Isto é, problematizar é converter algo que está naturalizado, neste caso a democracia participativa e seus desdobramentos na educação escolar, em um problema sobre o qual o pensamento labora. “Essa elaboração de um dado em questão ... é o que constitui o ponto de problematização e o trabalho específico do pensamento” (p. 233). Problematizar um objeto não é defender seu fim ou apresentar alternativa pretensamente melhor. Problematizar um objeto é tensionar seus limites e efeitos. A problematização tem em mente que onde há poder, há resistências, como assinala Foucault (1988)Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: A vontade de saber. Edições Graal., pois a vida se faz e refaz em meio a um incessante embate de forças molares e moleculares (Deleuze, 1976Deleuze, G. (1976). Nietzsche e a filosofia. Editora Rio.) que desenham o real social. O que pretendemos é problematizar como a participação democrática, efetuada pela participação de estudantes em um grêmio estudantil, pode ser utilizada, também, como uma eficaz estratégia de governar esses estudantes. Aqui entendemos governo no sentido que Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978). Martins Fontes. dá ao termo, isto é, governar é conduzir as condutas de uma população.

Este trabalho se organiza da seguinte maneira: na seção dois discorremos sobre disciplina, biopolítica e sociedades de controle para assinalar a transição das sociedades disciplinares (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Vozes.) para as sociedades de controle (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.) após a Segunda Guerra Mundial. Na seção três, problematizamos a democracia participativa como estratégia de condução das condutas da população, o que Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978). Martins Fontes. chamou de governo. Na seção quatro, apresentamos as análises dos dados, produzidos a partir de áudios registrados em reuniões dos membros do grêmio estudantil, transcritos em diário de campo e analisados a partir de referencial teórico do campo dos estudos curriculares pós-críticos. Na seção cinco, fazemos algumas considerações, reforçando o argumento de que a escola, inserida nas sociedades de controle (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.) democráticas, produz sujeitos demandados pela contemporaneidade neoliberal. Sujeitos dóceis, úteis e participativos (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.).

As sociedades de controle

Nas sociedades de controle, as técnicas de confinamento institucional dos corpos, muito presentes nas sociedades disciplinares, descritas por Foucault (2007)Foucault, M. (2007). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Vozes., não desaparecem, mas entram em crise. Vão gradativamente cedendo espaço para um poder ainda mais microfísico que opera por meio do “controle contínuo e comunicação instantânea” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 220). Nesse modelo de sociedade, o sujeito dócil e útil não é mais o sujeito de excelência a ser produzido pelas instituições. Sua força produtiva já não está na sua docilidade, mas na sua inventividade, na sua capacidade de comunicação, na sua performance, na sua participação (Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
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). O que se busca é produzir sujeitos proativos que estão sempre em busca de qualificação e que nunca estão suficientemente formados, pois “nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 226). Isso faz com que as pessoas estejam sempre procurando se qualificar, o que as mantém ocupadas e controladas. “A formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame [ênfase no original]” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 225).

Se, nas sociedades disciplinares, as instituições confinavam os corpos para produzir sujeitos como o escolar, o doente, o louco, o criminoso, etc., nas sociedades de controle os processos de subjetivação transcendem os muros, os leitos, as grades, as salas, as celas e passam a acontecer em espaços abertos, em qualquer lugar e em qualquer momento. “Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro [ênfase no original” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 225). As disciplinas não desaparecem, mas passam a operar mais sutilmente. O exercício do poder se torna mais pulverizado na trama social nas sociedades de controle, pois, nessas sociedades, vigilância e controle se acentuam, de modo a atuarem constante e ininterruptamente. O panóptico se reatualiza por meio das tecnologias que possibilitam um controle ainda mais sutil e eficaz. Já não é preciso vigiar o corpo. Controlam-se comportamentos e, neste sentido, as redes sociais têm importante papel atualmente, sobretudo no que se refere ao controle do que é dito. A despeito da facilidade de expressão, expressar-se pode acarretar coerções e sanções sociais, como a cultura do cancelamento. Cada um se torna um vigia em potencial. De si mesmo e dos outros. Vigia-se a si mesmo, a fim de garantir estar respondendo aos padrões estabelecidos e vigia-se aos outros para assegurar que estejam também respondendo a esses mesmos padrões.

A modelagem do corpo já não se limita ao confinamento e à vigilância no interior das instituições. Os processos de subjetivação atravessam os muros institucionais e acontecem em qualquer lugar, pois a vigilância está em toda parte. “Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um interior em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. [ênfase no original” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 224). Se pensarmos na instituição escolar, inserida nas sociedades disciplinares, “a sala de aula pode ser analisada como uma situação de governo” (Dussel & Caruso, 2003Dussel, I., & Caruso, M. (2003). A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. Moderna., p. 37). Todavia, nas sociedades de controle, essa situação de governo se transmuta e extrapola o enclausuramento dos corpos em salas e seu encerramento em carteiras. Os processos de constituição de subjetividades ultrapassam os espaços de confinamento e cedem lugar às “formas de controle contínuo, avaliação contínua e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis de escolaridade” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 229). A fábrica reatualiza-se em empresa, e a lógica gerencialista transmuta o administrador em gestor e o empregado assalariado em um colaborador que, orgulhoso por fazer parte da família, veste a camisa. Os interesses da empresa agora são seus próprios interesses. É esse modelo empresarial que é reproduzido na gestão escolar democrática contemporânea.

Outra característica basilar desse novo mapa é a entronização da empresa como uma instituição-modelo, que impregna todas as demais ao contagiá-las com seu espírito empresarial. Inclusive a escola, é claro, assim como os corpos e subjetividades que por ela circulam. Essa nova mitologia propaga um culto da performance ou do desempenho individual, que deve ser cada vez mais destacado e eficaz [ênfase no original].

(Sibilia, 2012Sibilia, P. (2012). Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Contraponto., p. 45)

Esse culto à performance ocorre, porque ser performático, ter alto desempenho, são características que o sujeito demandado pelo neoliberalismo precisa ter e cabe à escola produzi-lo. Essa lógica gerencialista “introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 225). Esse gerencialismo não se limita às empresas, invade todos os setores da vida, todas as instituições de formação, como a escola, a família, o exército, os presídios, os hospitais, etc. O ser humano também se atualiza e já não é “o homem do confinamento, mas o homem endividado” (p. 228). Esse endividamento é uma forma potente de controle engendrada pelo marketing que produz necessidades, desejos, sonhos. Para alcançar esses desejos, realizar esses sonhos, produzidos pela publicidade e pelo marketing, as pessoas se endividam. Esse endividamento faz com que permaneçam no jogo, segundo suas regras preestabelecidas. Suas forças são, assim, subtraídas e canalizadas em prol da lógica neoliberal vigente, mas a captura é tão eficaz que leva as pessoas a acreditarem que participar do jogo, segundo suas regras, foi escolha sua.

Nas sociedades de controle, o marketing tem papel crucial, pois, ao produzir desejos e necessidades, constrói padrões de vida, de consumo, de corpo, de comportamento. Em seu conjunto, esses padrões são inatingíveis, mas servem para colocar os indivíduos em movimento, em uma eterna busca para se adequar a eles. As sociedades de controle são movidas pela comunicação, têm nela sua mais poderosa arma. “O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 228). As sociedades de controle são consumistas, e o marketing visa produzir o biótipo que vai gerar o padrão de consumo. Assim, “a população de indivíduos se fragmenta em segmentos de consumidores que são produzidos segundo interesses mercadológicos” (Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
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, p. 241). Os desejos são produzidos, segundo a necessidade que o mercado tem de consumidores para seus produtos. Isso ocorre em função da mudança no capitalismo, que se atualizou e já não se dirige à produção, mas à venda de serviços e compra de ações (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.), facilitadas pelas tecnologias digitais que proliferaram, sobretudo, em fins do século XX.

Essa evolução “não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 227) que passa a operar por outros meios e demandar e produzir sujeitos mais alinhados às características e às exigências das sociedades de controle. Sujeitos dóceis, úteis e participativos (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.). Nas sociedades de controle, o poder é modulatório (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.), então, mais que proibir ou reprimir, ele conduz. Por isso, essas sociedades devem ser democráticas, o neoliberalismo precisa de liberdade. É o princípio do laissez-faire, deixar fazer, mas essa liberdade é controlada, conduzida, e isso se faz por meio da participação. Quando as pessoas participam democraticamente, é possível conduzir suas condutas (Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
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), garantindo certa previsibilidade dos fluxos. A escola foi inventada para produzir sujeitos adequados à nova configuração social instaurada pelo capitalismo industrial (Varela & Alvarez-Uria, 1991Varela, J., & Alvarez-Uria, F. (1991). Arqueologia de la escuela. Ediciones Endymion.). Da mesma forma, escola e currículos escolares devem se transformar, quando o capitalismo se transforma, pois o sujeito desejado já não é o mesmo. Atualmente, o sujeito necessário é o que não apenas obedeça, mas que seja proativo e participe ativamente dos processos em todas as instâncias sociais, o que inclui a escola. Não é por acaso que a escola desenvolve gestão democrática e estimula (e exige) que todos os membros da comunidade escolar participem ativamente. Não buscamos aqui defender outro modelo de gestão ou atacar o atual modelo de gestão escolar democrática. Mais modestamente, nos ateremos em problematizar práticas democráticas mapeadas em um grêmio estudantil de uma escola pública de Santa Catarina.

Democracia participativa: um mecanismo de controle?

A Constituição Federal de 1988 traz, no Capítulo III, as determinações sobre a educação. O artigo 206, inciso VI, estabelece: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988). Brasília, DF: Congresso Nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
). Alinhada à Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n.º 9394/1996, em seu artigo 14, determina que as escolas pertencentes às redes de ensino públicas devem desenvolver gestão democrática, segundo dois princípios: “I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes” (Lei n.º 9394, 1996Lei n.º 9394, de 20 de dezembro de 1996 (1996, 23 de dezembro). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, seção 1. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). O Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNL), Lei n.º 13 005/2014Lei n.º 13 005, de 25 de junho de 2014 (2014, 25 de junho). Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, seção 1. http://pne.mec.gov.br/.
http://pne.mec.gov.br/...
, em seu artigo 9.º determina que estados, distrito federal e municípios aprovem leis em suas esferas administrativas, a fim de disciplinar a gestão democrática nos seus respectivos sistemas de ensino no âmbito público.

Primeiramente, é necessário compreender o que é gestão democrática. De acordo com Libâneo et al. (2012)Libâneo, J. C., De Oliveira, J. F., & Toschi, M. S. Educação escolar: políticas estrutura e organização (10a ed.). Cortez, 2012.,4 4 Estes são autores clássicos da pesquisa em educação, mas não são os autores base utilizados na pesquisa. há diferentes concepções de gestão escolar, dentre elas, a gestão democrático-participativa. Essa concepção de gestão se caracteriza pela descentralização e compartilhamento com os membros da comunidade escolar da atividade de direção. Como todos participam, todos dirigem, o que implica dizer que todos são, também, dirigidos. Na gestão democrático-participativa, todos avaliam, logo, todos são avaliados. A escola que pesquisamos desenvolvia a concepção de gestão democrático-participativa, descentralizando as funções de direção por meio da participação da comunidade escolar em diferentes órgãos colegiados, como a Associação de Pais e Professores (APP), o Conselho Deliberativo e o Grêmio Estudantil, foco da pesquisa. É interessante observar que “nas empresas, a participação nas decisões é quase sempre estratégia que visa ao aumento de produtividade” (Libâneo et al., 2012Libâneo, J. C., De Oliveira, J. F., & Toschi, M. S. Educação escolar: políticas estrutura e organização (10a ed.). Cortez, 2012., p. 451), pois a participação de todos requer sua responsabilidade e seu engajamento em prol dos objetivos da empresa. É precisamente essa racionalidade gerencialista que passou a vigorar na escola com a emergência das sociedades de controle (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.). Se nas sociedades de controle a lógica da fábrica cede lugar à lógica da empresa, a figura do empregado cede lugar ao colaborador, aquele que veste a camisa, isto é, que confunde os interesses da empresa com seus próprios interesses, tornando-se ele mesmo uma extensão da empresa. Essa lógica gerencialista se materializa na escola por meio da participação democrática dos membros da comunidade escolar nas decisões.

Contudo, as regras pelas quais essa participação pode ocorrer, bem como seus limites, já vêm predeterminadas e visam, assim como na empresa, alcançar resultados específicos, definidos a priori. A gestão democrático-participativa na escola “acentua a necessidade de combinar a ênfase sobre as relações humanas e sobre a participação nas decisões com as ações efetivas para atingir com êxito os objetivos específicos da escola” (Libâneo et al., 2012Libâneo, J. C., De Oliveira, J. F., & Toschi, M. S. Educação escolar: políticas estrutura e organização (10a ed.). Cortez, 2012., p. 448). Dito de outra maneira, a participação, na gestão democrático-participativa, é mobilizada objetivando, como nas empresas, resultados positivos. A participação é um meio para um fim.

Diante disso, emergem questões: o que pode a democracia participativa na contemporaneidade neoliberal na qual vicejam o fascismo, o fundamentalismo religioso e o obscurantismo? O que pode a educação democrática? O que pode a escola? A escola é uma instituição do Estado, de tal modo, o sujeito que ela quer produzir deve refletir os desejos do Estado. E o sujeito desejado pelo Estado, nas sociedades de controle regidas pelo neoliberalismo econômico, é um sujeito participativo, pois a participação insere o sujeito na lógica vigente e o leva a participar, segundo as regras preestabelecidas pelo próprio Estado. Determinações essas que convergem aos seus próprios interesses, atualmente coligados a interesses de grandes corporações internacionais.

A gestão democrático-participativa, assumida pela escola pesquisada, toma como modelo a democracia de representação, em que determinados órgãos, com representantes eleitos, representam os interesses de diferentes seguimentos da comunidade escolar. A democracia de representação pode ser pensada, também, como tática para incluir as pessoas, levando-as a participar, segundo regras socialmente avalizadas e que garantem ao Estado a manutenção do seu poder de controle sobre a vida.

A democracia representativa configurou-se na modalidade de política para disciplinar as populações que alçaram-se aos espaços urbanos no século XIX, transformando-as de minorias não-numeráveis em conjunto de maiorias numeráveis, contáveis e disciplinadas pelo sufrágio universal. Por sua vez, o partido foi o lócus para disciplinar a competição daqueles que aspiravam aos postos de governo.

(Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.544...
, p. 242)

Na escola pesquisada, os estudantes criam chapas eleitorais para concorrer ao posto de gestores do grêmio estudantil. O(a) presidente da Associação de Pais e Professores (APP), do Conselho Deliberativo e o(a) gestor(a) da escola também são escolhidos(as) via processos eleitorais., A gestão democrática, na instituição investigada, é feita com base na democracia de representação em que um representante é democraticamente eleito pela maioria numérica dos votantes. Todavia, nas sociedades de controle, a representação já não é suficiente. É preciso ir além e incluir as pessoas, engajá-las nos processos democráticos para melhor controlá-las. Esse engajamento se faz pela participação. A participação é condição essencial para produzir o engajamento de que necessita o controle, a condução dos sujeitos envolvidos nos processos democráticos. Por isso, mais que deixá-los falar ou encorajá-los a participar, cobra-se sua participação por meio de um sistema meritocrático que recompensa quem participa, ao mesmo tempo em que coage e constrange quem não participa. “O princípio modulador do salário por mérito tenta a própria Educação nacional [ênfase no original]” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 225) à medida que a lógica empresarial substitui a fábrica e invade também a escola modulando suas formas de produzir sujeitos. Quanto mais os sujeitos participam, mais suas forças podem ser canalizadas. Mais os devires podem ser conduzidos e despotencializados. As linhas de fuga são rapidamente reterritorializadas em linhas molares que “formam um sistema arborescente, binário, circular, segmentário” (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Ed. 34., p. 234) que captura os devires, confinando-os em rostidades passíveis de controle e governo. Ao determinar os modos como a participação democrática deve acontecer, o Estado converte os espaços lisos, de possibilidades infinitas, em espaços estriados, de possibilidades calculadas e previsíveis. “O espaço é constantemente estriado sob a coação de forças que nele se exercem” (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Ed. 34., p. 228). Forças que, na democracia participativa, encorajam a participação, mas, nos empreendimentos avalizados pelos interesses estatais, alinhados aos de grandes corporações internacionais, respondem ao capital financeiro internacional. A participação funciona, nessa perspectiva, como uma estratégia de captura que reorienta práticas, condutas, comportamentos e pensamentos, canalizando os fluxos de devires pelas estrias riscadas, que redirecionam as forças para finalidades que não afrontem a ordem mental e social vigente. Isso possibilita um controle mais eficaz e quase imperceptível, pois acreditamos escolher participar, quando estamos sendo conduzidos pelas raias do espaço estriado.

Deleuze (2013)Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34. escreve que a sociedade, mesmo atravessada por inúmeras linhas molares, de segmentação, define-se “menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam” (p. 216). Sendo a sociedade esse rizoma de multiplicidades, esse emaranhado de linhas molares e moleculares, é fácil compreender a crise do modelo disciplinar de sociedade. As disciplinas adestram e conformam corpos, comportamentos, mas não podem conter devires. Eles transbordam, escapam, e é preciso canalizá-los. Isso é feito produzindo desejos específicos que resultarão em sujeitos mais previsíveis, governáveis. É preciso direcionar as forças pelos espaços estriados, “espaço instituído pelo aparelho de Estado” (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Ed. 34., p. 192) para controlá-las. Esse controle, que conduz pelas estrias abertas pelo Estado, guarda paralelos com a noção de biopolítica, de Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978). Martins Fontes.. É impossível conter os devires, então, os controles visam canalizá-los, conduzi-los. Para isso operacionaliza dispositivos, como a democracia participativa que produz sujeitos democráticos que, ao participarem, legitimam a ordem mental e social vigente, à medida que participam, segundo as regras que já são determinadas de antemão pelo próprio Estado. E para que esse controle seja possível, há uma demanda por um sujeito específico. O sujeito participativo. Cabe à maquinaria escolar, e, dentro dela ao currículo, produzir esse sujeito, daí a função da gestão escolar democrática.

Diante disso, importa problematizar a noção de democracia participativa, visto que ela opera, não exclusivamente, mas também, como condução de condutas da população nas sociedades de controle. “Problematizar a democracia participativa é situá-la como um novo dispositivo de controle para conter os fluxos vivos que escapam, ou que os procedimentos majoritários de representação não conseguem conter” (Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.544...
, p. 243). A democracia participativa opera a partir da participação e por meio de órgãos democráticos. Os controles são democráticos. Deixa-se participar e até se exige a participação, pois a participação das massas legitima um sistema democrático que redireciona desvianças, enclausura devires, normaliza a diferença pura (Deleuze, 2018Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição. Paz e Terra.), que constitui uma grande ameaça à cosmovisão em vigor. Assim,

Integrar as minorias às maiorias é um procedimento da democracia participativa. Os conselhos são organizados por segmentos, ou integram os diferentes segmentos no interior de um conselho. Identificar e incluir, eis as palavras-chave dos enunciados que vigem nos protestos e apelos do público. Leia-se capturar.

(Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.544...
, p. 243)

Os termos minoria e maioria, aos quais a autora supracitada alude, não se referem a valores numéricos, isto é, a dados quantitativos. “O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho habitante das cidades. ... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo” (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34., p. 218). Assim, nas sociedades de controle a participação é fundamental para canalizar e controlar devires.

Daí a necessidade de incluir as minorias nas maiorias para normalizá-las e despotencializá-las. A inclusão neutraliza as forças que o Estado sabe que não pode conter, então controla, canalizando-as em uma das múltiplas estrias por ele riscadas. As diferentes formas de participação canalizam as forças, levando-as a participarem do jogo, pois, enquanto participam, as regras do jogo não são questionadas. É nesse sentido que a participação é uma estratégia de condução da população, um dispositivo de controle. Por isso, nosso objetivo é problematizar práticas democráticas em um grêmio estudantil.

Grêmio estudantil: a participação como estratégia de governo

Na ocasião da imersão cartográfica, o Grêmio Estudantil contava com 53 integrantes oriundos dos turnos matutino, vespertino e noturno. Os estudantes pertenciam às turmas de primeiro, segundo e terceiro anos do Ensino Médio. Os membros da gestão do grupo foram escolhidos por eleição direta no ano de 2016. Na ocasião, competiram como chapa única e receberam 623 votos favoráveis, 124 contrários e 9 nulos5 5 Informações concedidas pelo estudante que presidia o grêmio estudantil na ocasião da pesquisa. . Tendo sido eleitos, assumiram a gestão do grêmio em maio de 2017, devendo permanecer no mandato por dois anos, até maio de 2019. O grupo possuía um calendário de atividades, definido na primeira reunião do ano. Na ocasião, também eram determinadas as datas das duas reuniões mensais. No período da pesquisa, ficou acordado que seriam os dias 06 e 23 de cada mês. O dia 15 de cada mês ficou reservado para reuniões extraordinárias, caso fossem necessárias. As reuniões aconteciam pela manhã, à tarde e à noite para garantir que todos os membros pudessem participar. O presidente do grupo estava presente em quase todas as reuniões. Quando não podia comparecer, a estudante, que era a vice-presidente, coordenava o encontro.

Durante o período de realização da pesquisa, a agremiação possuía um estatuto. O documento foi redigido pelo estudante que assumiu a presidência naquele momento. Com base em modelos que pesquisou na internet, o jovem elaborou o estatuto do grupo no período de férias entre 2017 e 2018 e apresentou-o aos colegas no início do ano letivo de 2018. O documento previa alguns cargos e suas especificidades, direitos e deveres dos gremistas, sanções disciplinares, normas para organização e realização de eleições e modelos de documentos como atas de eleição e posse.

A partir do momento em que o presidente do grêmio apresentou o estatuto aos colegas, uma estrutura hierárquica de poder, baseada em cargos e muito similar aos modelos hierárquicos corporativos, começou a ganhar forma e a produzir efeitos. Segundo o jovem, ele criou o documento, porque observou que outras agremiações possuíam um e porque havia cobrança da gestão da escola para que eles se organizassem.

Diante da necessidade de organizar o grupo, o estudante se inspirou no modelo empresarial. Como resultado, a organização interna do grêmio era hierárquica e se materializava na distribuição de cargos administrativos atribuídos aos estudantes que integravam a diretoria. Ao todo eram 14 cargos: presidente, vice-presidente, secretário geral, 1.º secretário, coordenador financeiro, 1.º coordenador financeiro, diretor financeiro, diretor social, diretor de imprensa, diretor de esportes, diretor de cultura, diretor de saúde e meio ambiente, representante presidencial e promotor de eventos.

Esses cargos determinavam o modo de funcionamento do grêmio e representavam uma descentralização do poder de gestão do presidente, algo comum na gestão democrática. Porém, apesar de haver uma narrativa de que todos deveriam participar, opinar, contribuir igualmente, os cargos eram estrategicamente distribuídos entre os estudantes. Nessa distribuição, dois critérios eram considerados: em primeiro lugar o interesse da pessoa em ocupar o cargo. Porém, isso abria a possibilidade para que qualquer um se disponibilizasse ao cargo e era aí que o segundo critério era invocado. Para exercer um dos cargos mencionados, a pessoa deveria ser participativa e estar em dia com suas notas. Isso levou os estudantes a dividirem o grupo a partir do critério ser participativo.

A ideia foi introduzida pelo presidente e rapidamente aceita pela totalidade dos membros do grêmio, criando, ao menos naquele momento, um consenso de que só poderiam ocupar os cargos oficiais, como chamavam, os membros que efetivamente participassem do grupo. Com isso se referiam aos estudantes que tinham bom desempenho escolar e, ao mesmo tempo, sempre estavam disponíveis para as demandas da agremiação. A partir da introdução da ideia pelo presidente, outros estudantes começaram a dizer que quem não participa não tem motivo para estar na agremiação e foi estabelecido um consenso sobre isso. Daquele momento em diante, a participação responsável passou a ser o critério oficial para dividir os estudantes em membros oficiais (participativos) e sócios (não participativos), criando o duplo membro oficial – sócio.

Antes de chegarem a essa configuração, o presidente tentou limitar a entrada no grêmio aos estudantes vistos como participativos e bons alunos. Contudo, segundo o estudante, quando apresentada à gestão da escola sua ideia não foi aceita. Então, a saída que encontrou, junto com sua vice-presidente, foi criar o cargo sócio. Um cargo figurativo. Assim, eles poderiam incluir essas pessoas, mas elas não estariam em cargos considerados importantes ao bom funcionamento da agremiação estudantil. A inclusão é um imperativo nas sociedades de controle (Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
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), pois, ao incluir, se pode conduzir. Assim, independentemente das características dos indivíduos, todos deviam ser incluídos, mas a estrutura de poder hierárquica deslocava alguns aos postos de comando.

De tal maneira, os cargos arborificam, verticalizam as relações no interior do grêmio, algo similar ao que acontece na gestão empresarial. O grêmio reproduzia um modelo organizacional que remete ao corporativismo e à rotina empresarial, modelo muito presente também na gestão democrática que reflete a reatualização da fábrica em empresa (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.). A administração dá lugar à gestão, e o administrador é substituído pelo gestor. “Espera-se do gestor democrático um comportamento de empresário, de empreendedor competente. ... Espera-se que aprendam técnicas democráticas para atingir o consenso, viver em harmonia, ser tolerantes, ter e promover a sensação de que todos participam [ênfase no original]” (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé., p. 21). E é precisamente essa postura que se pode inferir da fala de Paulo6 6 Todos os nomes utilizados são pseudônimos atribuídos, a fim de assegurar o anonimato dos participantes da pesquisa. As transcrições são literais. , presidente da agremiação no momento da realização da pesquisa cartográfica.

Paulo: os nossos trabalhos sempre foram em equipe, eu nunca fiz as coisas sozinho. E outra coisa que eu digo, eu sempre digo pro meu grupo, pra minha equipe, pro grêmio estudantil, eu não mando em nada. Eu sou o líder só que eu não mando em nada. A voz de vocês é mais importante, o grêmio estudantil é nós todos, não é só eu, não é só o presidente, não é só a vice-presidente, somos todos nós. Não é só eu que falo, eu preciso da opinião de vocês, eu preciso que todos participem do grêmio, não é só eu que falo.

Podemos deduzir do discurso do estudante um raciocínio de gestor que pretende fazer com que todos participem (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.). O jovem salienta a importância de desenvolverem um trabalho em equipe, contando com a participação de todos. Ele se apresenta como um líder aberto ao diálogo, não como um mandante autoritário. Essa é uma postura de gestor sintonizada aos moldes das democracias contemporâneas, inseridas nas sociedades de controle no seio das quais a instituição escolar continua sendo “um grande negócio para a manutenção do sistema capitalista, quando deseja produzir o seu homem utilizável: o cidadão democrático, o consumista, o empresário de si, o gestor” (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé., p. 46). É preciso incluir a todos, e a inclusão se faz pela participação democrática dos estudantes no grêmio estudantil. Tótora (2006)Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
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escreve que a gestão democrática, nas sociedades de controle, opera também como estratégia insidiosa de incluir as minorias nas maiorias. Minorias e maiorias são tomadas aqui no sentido que Deleuze (2013)Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34. confere a esses termos, isto é, maiorias são modelos (governáveis), minorias são o que escapa desses modelos (ingovernáveis). Por isso, a participação é fundamental, pois é, por meio dela, que se determinam as formas como essa participação acontecerá, garantindo que esteja em perfeita sintonia com os interesses estatais em vigência e não configurando quaisquer desvios perigosos. É possível inferir a importância conferida à participação na fala do presidente do grêmio transcrita a seguir:

Paulo: Nossa gestão foi bacana. A nossa gestão começou com 42 alunos, concorremos com 42. No decorrer do ano aconteceu um problema. Um problema que é comum, é óbvio, de o pessoal não participar. De o pessoal não vir na reunião. Não participar dos eventos. Então a gente viu isso como um problema. Éramos cobrados da direção, porque são cargos oficiais. São tesoureiros, são secretários, são diretores, promotores de eventos, representantes presidenciais, são cargos muito importantes no grêmio e como não participavam, éramos cobrados.

Paulo explicava aos integrantes que acabavam de entrar no grêmio, como o grupo funcionava e relatava que tiveram problemas relacionados à não participação de alguns membros, o que gerou cobranças por parte da gestão da escola. Essa cobrança ocorre, porque “a gestão participativa, além de ser a forma de exercício democrático da gestão e um direito de cidadania, implica deveres e responsabilidades – portanto, a gestão da participação” (Libâneo et al., 2012Libâneo, J. C., De Oliveira, J. F., & Toschi, M. S. Educação escolar: políticas estrutura e organização (10a ed.). Cortez, 2012., p. 448). Essa participação, destarte, não é livre, mas orientada desde o início por objetivos traçados que devem ser alcançados para se chegar aos resultados esperados. Não temos aqui a intenção de ressaltar uma exigência supostamente autoritária da gestão da escola aos membros do grêmio estudantil. Pretendemos, antes, mostrar a importância conferida à participação na perspectiva da gestão democrático-participativa, argumentando que essa é uma característica das democracias contemporâneas que opera como estratégia sutil de governo, isto é, de captura e condução de condutas. “O exercício do poder consiste em conduzir condutas e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários, ou do engajamento de um em relação ao outro, do que da ordem do governo [ênfase no original]” (Dreyfus & Rabinow, 1995Dreyfus, H. L., & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Forense Universitária., p. 244). A preocupação da gestão do grêmio gira em torno de como fazer com que todos os integrantes participem ativamente das atividades inerentes à agremiação, atendendo a uma demanda da gestão escolar que, por sua vez, responde às demandas de uma sociedade democrática. A solução para o problema da não participação, encontrada pelo presidente da agremiação estudantil em conjunto com sua vice-presidente, é interessante para o que estamos argumentando.

Paulo: esse ano eu decidi, conversando com a vice-presidente, colocar um cargo a mais. Um cargo que não precisa da participação. O cargo de sócio. Esse cargo é para estar junto com o grêmio em eventos e eles estarem participando.

Inicialmente, Paulo havia tentado, com a gestão da escola, impedir que os estudantes, que ele julgava não serem participativos, integrassem a agremiação. Diante da negativa da gestão escolar, sob a alegação de que o grêmio é um órgão democrático de representação estudantil, o estudante e sua vice-presidente encontraram uma forma de incluir esses estudantes que eles classificavam como não participativos. Para isso, criaram um cargo que prescinde de participação, e a esse cargo denominaram sócio.

Paulo: pessoas que não estão participando pra não tirar do grêmio a gente já joga pra sócio então. Pra ele não ficar dizendo: ah me tirou do grêmio. O Pedro7 7 Estudante considerado problemático pelos colegas por não participar responsavelmente. quer participar do grêmio. Eu disse que não ele foi lá no diretor. Reclamou pro diretor. Disse que eu não tô deixando ele participar. Aí o diretor disse: não, tu tem que botar ele no grêmio. Eu disse: tu é louco cara? vou botar esse cara no grêmio? vai acabar com o grêmio, por que ele sai da sala. Ele já disse pra Roberta, vocês sabem a Roberta né? ele já disse pra Roberta: eu só quero entrar no grêmio pra ter mais facilidade de sair da sala. Ele já disse isso. Deixou bem claro isso. Aí o que que acontece? Ele vai ficar saindo da sala e daqui a pouco a professora diz: oh...tem um integrante lá que só fica saindo da minha sala ele diz que tu fica chamando ele. E eu não vou ficar sabendo de nada daí porque eu não chamei ninguém. Aí eu vou passar por mentiroso ou ele? Eu não quero ele, mas o diretor disse pra mim botar então nós vamos botar ele de associado.

O que os estudantes estão fazendo, ao criarem o cargo sócio, é gerir a participação de todos os membros do grupo, a fim de qualificá-la para que leve a alcançar os resultados esperados. Não basta, portanto, participar. A participação precisa ser controlada, gerida e direcionada para metas especificas, garantindo que seja mobilizada em prol dos interesses do grêmio, que refletem os interesses da escola e que refletem, em última análise, os interesses do Estado e das grandes corporações. A essa participação engajada, os estudantes chamaram de participação responsável, e a gestão democrática é precisamente a atividade coletiva que requer participação e objetivos comuns. Aos currículos, cabe a tarefa de produzir nos sujeitos essas capacidades e responsabilidades individuais. A problemática da não participação de alguns integrantes emergiu, justamente, porque a participação democrática deve se realizar dentro dos limites permitidos e preconizados pela agremiação. No caso desta pesquisa, esses limites eram instaurados pela gestão da escola e determinavam como a participação dos jovens poderia acontecer.

A participação direta dos cidadãos é incorporada como Artigo em diversas Constituições, inclusive a brasileira de 1988. Multiplicam-se os conselhos de gestão de políticas públicas, e diversificam-se os segmentos da sociedade com a finalidade de expressão da modalidade institucional da democracia participativa.

(Tótora, 2006Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
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, p. 242)

A Constituição, como sabemos, ecoa em todos os documentos oficiais que normatizam, regulam, determinam e/ou orientam os sistemas de ensino brasileiros, inserindo o imperativo da participação democrática na escola, reconfigurando currículos e, consequentemente, alterando os sujeitos produzidos. Neste caso, não mais sujeitos somente dóceis e úteis, mas também democráticos e participativos (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.).

Não foi o objetivo tecer juízos morais de certo e errado sobre a postura da gestão da escola pesquisada. Do mesmo modo não objetivamos defender ou condenar a liberdade ou não de estudantes utilizarem a participação no grêmio como uma justificativa para saírem das salas de aula. O que pretendemos foi sinalizar como a participação democrática pode operar, ainda que não exclusivamente, na captura, na condução e na constituição de subjetividades, alinhadas às demandas das sociedades de controle (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.). Subjetividades participativas que, não apenas participam, mas exigem de todos a mesma participação, como vimos nos diálogos entre os estudantes, anteriormente transcritos.

O que desejamos é argumentar que essa participação interessa ao Estado democrático e exclui aqueles que não se adequam, isto é, que não participam segundo as regras. “Quem não vê que as democracias são ainda o déspota, mas agora mais hipócrita e frio, mais calculista, porque agora tem que contar e codificar as contas em vez de as sobrecodificar?” (Deleuze; Guattari, 2004Deleuze, G., & Guattari, F. (2004). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Assírio & Alvim., p. 228). A exclusão, no caso do grêmio estudantil cartografado, se materializa na inclusão dos estudantes, considerados não participativos, como sócios, cargo que decalca sobre eles a marca não participativo como uma pesada insígnia que os distingue e separa dos demais integrantes do grêmio. A despeito de sua diferença, precisam ser todos igualmente incluídos, pois é, a partir da inclusão, que se vai produzir a norma participativa, bem como seu desvio. Os estudantes que integram o grêmio como sócios, por serem considerados não participativos, não têm os privilégios garantidos aos membros oficiais, como saídas da escola para realizar passeios planejados e pactuados previamente com a gestão escolar. Os sócios sofrem sanções, e essas sanções exercem duplo papel: punição pela não participação, mas também estímulo a participar. Isso revela uma lógica meritocrática neoliberal bastante presente no discurso dos estudantes, conforme se infere do diálogo a seguir.

Paulo: se nós vamos promover um passeio eles não podem ir, só os oficiais.

Sônia: eles são os serventes, nós os pedreiros [risos]...

Heitor: nós os patrão, eles são funcionários [risos]...

Sônia: né? Nós somos os pedreiros e eles são os serventes, só carregam tijolo.

Paulo: é pra eles sentir na pele, entende? Estão aí porque não participam.

Heitor: pra eles quererem se esforçar pra tentar participar.

Vê-se que a participação é a determinante para a obtenção de alguns privilégios no âmbito do grêmio estudantil. Essa foi a forma que os estudantes gestores do grupo encontraram para estimular a participação e solucionar o problema da não participação, pelo qual vinham sendo cobrados pela gestão da escola. Premia-se quem participa e pune-se quem não participa, o que sinaliza a grande importância atribuída à participação. O imperativo da participação, nas democracias participativas, se dá porque este é o meio pelo qual se conduz as condutas e se efetiva o governo da vida da população. “Gerir a população não quer dizer gerir simplesmente a massa coletiva dos fenômenos ou geri-los simplesmente no nível de seus resultados globais. Gerir a população quer dizer geri-la igualmente em profundidade, em fineza e no detalhe (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). Estratégia, poder, saber. Forense Universitária., p. 302) e para isso é preciso atuar na produção subjetiva, a fim de produzir o sujeito democrático e participativo. Sendo assim, o currículo cartografado no grêmio permite argumentar que essa produção tem sido operada naquele espaço, conforme diálogo transcrito a seguir:

Carlos: e se alguém quiser entrar no grêmio, mas não como sócio?

Paulo: a gente vê a disponibilidade dele. Olha tu poderia tá vindo todo dia 15 e dia 27 nas reuniões do grêmio? Tu participa? Tu tens as notas boas pra, caso de emergência, tiver um evento e a gente ter que te tirar da sala pra fazer umas atividades? Tu é comprometido com as matérias?

É possível inferir que para ser um membro oficial, os interessados devem possuir as características desejadas pelo grêmio. Essas características, não por acaso, são as mesmas desejadas pelo currículo escolar que responde às demandas de produção subjetiva do neoliberalismo atual. Percebe-se, deste modo, uma conexão entre o neoliberalismo e sua influência na educação, por meio do gerencialismo que instaura o modelo de gestão democrático-participativa. Esse modelo possibilita e encoraja a existência de grêmios estudantis, pois a participação é crucial na lógica gerencialista.

Nesse cenário, os estudantes devem atuar sobre si mesmos para que tenham uma postura de empresa de si. Isso reflete a contemporaneidade neoliberal das sociedades de controle nas quais “Os movimentos são modulações de cada pessoa como empresa de si mesma: o sujeito moderno precisa tornar-se o empresário de si mesmo, precisa gestar sua vida, ser responsável” (Cervi, 2013Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé., p. 97). É precisamente isto que se espera dos estudantes que querem se tornar membros oficiais do grêmio: responsabilidade. Para isso, espera-se que atuem sobre si mesmos, regulem seus selfs (Popkewitz, 2001Popkewitz, T. S. (2001). Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Artmed Editora.), normalizando-se a fim de garantir estar em perfeito alinhamento ao que o currículo escolar deseja. De tal maneira, podemos argumentar que, por meio da participação democrática se pode capturar as desvianças da norma participativa e controlar os fluxos vivos que, conforme escreve Tótora (2006)Tótora, S. (2006). Democracia e sociedade de controle. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (10). DOI: https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.5441.
https://doi.org/10.23925/verve.v0i10.544...
, os procedimentos majoritários de representação não podem conter. Por serem incapazes de conter os fluxos vivos, o Estado, atualmente alinhado aos interesses das grandes corporações, busca canalizá-los pela via da participação democrática, a fim de gerir, subjetivar, controlar, conduzir, governar.

A título de considerações

Nas sociedades de controle, o exercício do poder se tornou mais sutil. Transcendeu muros institucionais e agora produz subjetividades em todo lugar e a todo momento pelo controle contínuo e comunicação instantânea. Esses processos são maximizados pelas tecnologias que impõem uma profunda mudança no capitalismo (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações, 1972-1990. Ed.34.). Se o capitalismo mudou, muda o sujeito de que ele precisa. A pergunta então é: que sujeito a escola tem produzido na contemporaneidade democrática?

A partir da análise dos dados argumentamos que a democracia participativa pode ser pensada, não exclusivamente, mas também, como estratégia de governo (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978). Martins Fontes.). Ela determina as regras pelas quais a participação acontece, cabendo à população apenas jogar o jogo cujas regras já estão determinadas. Não por acaso, essas regras confluem aos interesses do Estado. Diante disso, o papel da maquinaria escolar (Varela & Alvarez-Uria, 1991Varela, J., & Alvarez-Uria, F. (1991). Arqueologia de la escuela. Ediciones Endymion.) foi alinhado aos interesses estatais e das grandes corporações nas sociedades de controle atuais, marcadas pelos regimes democráticos que demandam a participação. Cumpre, então, produzir sujeitos adaptados às exigências deste tempo histórico, sujeitos democráticos e participativos, e essa produção se efetua no currículo que deverá produzir esses sujeitos.

A cartografia permitiu inferir um currículo em acontecimento no interior do grêmio estudantil, sintonizado com as premissas das sociedades de controle, que opera a produção discursiva de sujeitos democráticos e participativos, bem como, a produção de suas desvianças. Tal produção resultava no binarismo hierárquico norma – desviança que se materializava nas funções membro oficial – sócio. Um sistema meritocrático, característica marcante do neoliberalismo, premiava os estudantes que respondiam positivamente aos processos de subjetivação, enquanto impunha sanções àqueles que eram considerados desviantes por não participarem, segundo as regras vigentes. Isso sinaliza que, mais que um direito, a participação era exigida dos estudantes, a ponto de a não participação ser critério para classificação como sócio, cargo criado para incluir quem não participava. A centralidade da participação reflete sua importância e se justifica, porque a participação era uma forma eficiente de conduzi-los e produzi-los como sujeitos dóceis, úteis e participativos. Sujeitos demandados pelo neoliberalismo contemporâneo.

Essa exigência de participação atravessa instituições como a empresa, cujo modelo gerencialista é reproduzido na escola. A escola assume esse modelo gerencialista e o amplia para os órgãos colegiados que compõem a gestão democrático-participativa, a exemplo do que tem ocorrido na agremiação investigada. Nas sociedades de controle, não cabe mais à escola produzir corpos apenas dóceis e úteis. Esse sujeito já não atende às demandas neoliberais. É preciso que esses sujeitos sejam, também, empresa de si, participativos, pois a participação os leva a seguir as regras preestabelecidas, minimizando as possibilidades de desvios das metas. A participação democrática pode canalizar os fluxos desviantes dos interesses do currículo escolar, que podem redundar na produção de sujeitos distintos do que ele deseja. Ante o exposto até aqui, parece claro que a participação democrática, no grêmio estudantil, operava, também, como estratégia de captura, favorecendo processos de subjetivação e normalização que resultavam nos sujeitos desejados pelo currículo deste tempo. Sujeitos dóceis, úteis e participativos, conforme Cervi (2013)Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle. Achiamé.. Sob os auspícios da escola democrática, o neoliberalismo produz os sujeitos de que precisa para legitimar e perpetuar sua ordem mental e social.

Para terminar, ressaltamos, novamente, que defendemos a participação democrática, bem como, o regime democrático que atualmente está sob ataque direto em função de interesses neoliberais globais. Nosso objetivo foi problematizar o tipo de participação que observamos acontecendo no grêmio estudantil pesquisado. A partir dos dados produzidos na imersão cartográfica, argumentamos que a participação democrática, a depender de como é viabilizada, pode também funcionar como uma eficaz estratégia de governar as condutas dos estudantes. Em vista disso, devemos atentar para a importância de pensar criticamente a participação democrática na escola e os efeitos dela decorrentes.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha – verah.bonilha@gmail.com.
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    Apoio: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 4
    Estes são autores clássicos da pesquisa em educação, mas não são os autores base utilizados na pesquisa.
  • 5
    Informações concedidas pelo estudante que presidia o grêmio estudantil na ocasião da pesquisa.
  • 6
    Todos os nomes utilizados são pseudônimos atribuídos, a fim de assegurar o anonimato dos participantes da pesquisa. As transcrições são literais.
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    Estudante considerado problemático pelos colegas por não participar responsavelmente.

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Editado por

1
Editor responsável: Helena Sampaio - https://orcid.org/0000-0002-1759-4875

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2021
  • Revisado
    08 Set 2021
  • Aceito
    10 Dez 2021
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