Acessibilidade / Reportar erro

O trabalho criador como vivência duplicada do ator em si e na personagem: a perejivanie (est)ética3 3 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 4 4 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com 5 5 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº2010/16020-2.

El trabajo creativo como experiencia duplicada del actor en sí mismo y en el personaje: la perejivanie (est)ética

Resumo

O artigo aprofunda a relação entre emoção e imaginação (enlace emocional) na vivência duplicada do ator no trabalho artístico criador. Com base no conceito de perejivanie em Vigotski, Stanislavski e Vakhtangov, enfoca-se o trabalho empírico realizado com uma companhia teatral que articula crítica social às experiências pessoais dos atores, por meio de registros em vídeo e diário de campo, bem como de autoconfrontações. Analisando o processo criador, ressalta-se que: o sentimento vivenciado, sentido-pensado em imagens pela atriz, afeta sua subjetividade e a construção da personagem; a revivência da atriz é alicerce para a criação - esfera em que ética e estética se (con)fundem na perejivanie (est)ética. Tais elementos são importantes à compreensão da experiência artística e à educação estética.

Palavras-chave
perejivanie; emoção; imaginação; teatro; criação

Resumen

El artículo profundiza en la relación entre la emoción y la imaginación (vínculo emocional) en la experiencia duplicada del actor en el trabajo creativo artístico. Partiendo del concepto de perejivanie de Vygotski, Stanislavski y Vakhtangov, nos centramos en el trabajo empírico realizado con una compañía teatral que articula la crítica social a las experiencias personales de los actores, a través de registros de vídeo y diarios de campo, así como de autoconfrontaciones. Analizando el proceso creativo destacamos que: el sentimiento vivenciado, sentido-pensado en imágenes por la actriz, afecta a su subjetividad y a la construcción del personaje; el revivir de la actriz es el fundamento de la creación - ámbito en el que la ética y la estética se (con)funden en la perejivanie (est)ética. Estos elementos son importantes para entender la experiencia artística y la educación estética.

Palabras clave
perejivanie; emoción; imaginación; teatro; creación

Abstract

The article delves into the relationship between emotion and imagination (emotional bonding) in the actor's duplicated experience in creative artistic work. Based on the concept of perejivanie in Vygotski, Stanislavski and Vakhtangov, we focus on the empirical work done with a theater company that articulates social critique to the actors' personal experiences, through video and field diary records, as well as self-confrontations. Analyzing the creative process, we emphasize that: the feelings experienced, felt-thought in images by the actress, affect her subjectivity and the construction of the character; the reliving of the actress is the foundation for creation - a sphere in which ethics and aesthetics are (con)merge in the (est)ethical perejivanie. Such elements are important to the understanding of artistic experience and aesthetic education.

Keywords
perejivanie; emotion; imagination; theatre; creation

Apresentação

O presente artigo busca contribuir para as questões suscitadas na obra de Vigotski sobre a relação entre imaginação e emoção no trabalho criador do ator. O foco é a vivência duplicada do ator em si e na criação da personagem: a perejivanie ética e estética ou, como iremos desenvolver ao longo do argumento, a “perejivanie do real ou da realidade”.

Perejivanie, palavra do vocabulário russo, é utilizada por muitos autores, com enfoques diversos. Na obra de Vigotski, o termo foi utilizado em diferentes momentos, ao discutir tanto o desenvolvimento humano como a arte. Varshava e Vigotski (1931, p.128, citado por Veresov, 2016Veresov, N. (2016). Perezhivanie as a phenomenon and a concept: Questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, 12(3), 129-148., p.130) definiram a perejivanie como “experiência psicológica direta” (afeta diretamente a constituição psíquica do sujeito-drama). Embora seja um conceito importante na perspectiva vigotskiana, foi, por muito tempo, ignorado no desenvolvimento da teoria (Daniels, 2010Daniels, H. (2010). Motives, emotion, and change. Cultural-historical psychology, 2, 24-33.). Mais recentemente, o conceito perejivanie se tornou objeto de análise na literatura nacional e internacional, suscitando polêmicas sobre o seu significado no contexto da obra vigotskiana e dificuldade de sua tradução.

Na literatura científica de língua inglesa, o conceito foi traduzido como “emotional experience” por muitos autores e revisores da obra de Vigotski (Van der Veer & Valsiner, 1996Van Der Veer, R., & Valsiner, J. (1996). Vygotsky: uma síntese. Loyola.). Contudo, após várias dificuldades em traduzir este termo, alguns trabalhos científicos publicados em inglês têm optado por deixar o termo perejivanie (perezhivanie), sem tradução (Ferholt, 2009Ferholt, B. (2009). The development of cognition, emotion, imagination and creativity as made visible through adult child joint play: Perezhivanie through play worlds (Unpublished doctoral dissertation). University of California.; Fleer, González Rey & Veresov 2017Fleer, M., González Rey, F., &Veresov, N. (Org.). (2017). Perezhivanie, Emotions and Subjectivity: Advancing Vygotsky’s Legacy (265 pp.). Springer.; Veresov, 2016Veresov, N. (2016). Perezhivanie as a phenomenon and a concept: Questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, 12(3), 129-148.). No Brasil, foi traduzido como vivência, conforme proposto por Toassa e Souza (2010)Toassa, G., & Souza, M. P. R. (2010). As vivências: questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas do legado do Vigotski. Psicologia USP, 21(4), 757-779. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400007
https://doi.org/10.1590/S0103-6564201000...
e reiterado por outros autores como Prestes e Tunes (2011)Prestes, Z., & Tunes, E. (2011). Notas biográficas e bibliográficas sobre L. S. Vigotski. Universitas: Ciências da Saúde, 9(1), 101-135..

No texto “A questão do meio na pedologia”,Vigotski (2018)Vigotski, L. S. (2018). Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. (Trad. e Org. Zoia Prestes e Elizabeth Tunes; Trad.: Cláudia da Costa Guimarães, 176 p.). Santana. E-Papers. afirma que a vivência é:

uma unidade na qual, se representa, de modo indivisível, por uma lado o meio, aquilo que se vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pessoa -, e, por outro lado, como eu vivencio isso. ... sempre lidamos com uma unidade indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação que está representada na vivência [ênfase no original]. (p. 78)

Assim, para ele, há: “uma unidade de elementos do meio e de elementos da personalidade”.

Delari Junior e Passos (2009)Delari Jr., A., & Bobrova Passos, I. V. (2009). Alguns sentidos da palavra “perejivanie” em Vigotski: notas para estudo futuro junto à psicologia russa. Anais do III Seminário Interno do Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem, Campinas, pp.1-40. analisam que, nos escritos de Vigotski, o termo é traduzido como “emoção”, “vivenciamento, “vivência”, ou ainda por construções em que o substantivo dá lugar ao verbo “viver”. Os autores observam que o substantivo perejivanie é composto por duas partes: a primeira é formada pelo prefixo pere [nepe], que indica uma orientação da ação através de algo; a realização de uma ação por mais uma vez, ou de outra forma; e uma superação do sofrimento. Chamam a atenção para o aspecto de processualidade do termo, que é conferido pelo prefixo, semelhante a trans- no português. A segunda parte, o radical jivanie [живание], deriva do verbo arcaico jivat, que significa viver.

Cientes dessas dificuldades, tomamos como ponto de partida o conceito de vivência tal como elaborado por Vigotski (2018)Vigotski, L. S. (2018). Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. (Trad. e Org. Zoia Prestes e Elizabeth Tunes; Trad.: Cláudia da Costa Guimarães, 176 p.). Santana. E-Papers.. No entanto, ao circunscrevermos o foco deste artigo no trabalho criador do ator, deparamo-nos com a questão acerca de como a experiência do ator reelabora e ressignifica a própria vivência. Com isso, ao nos referirmos a esta vivência duplicada do ator (revivência) e ao levarmos em conta os diálogos de Vigotski com Stanislavski e Vakhtangov ‒ que usam perejivanie em seus trabalhos –, optamos por usar também perejivanie, atribuindo a este termo as especificidades encontradas nos trabalhos dos dramaturgos.

Partimos de um esboço interpretativo das seguintes obras de Vigotski: Psicologia da arte (1925/1999); Educação estética (1926/2001)Vigotski, L. S. (1926/2001). A educação estética. In L. S. Vigotski, Psicologia pedagógica (pp. 323-363). Martins Fontes.; Imaginação e criação na infância (1930/2009) e o texto traduzido neste dossiê intitulado: “Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator”. Nossa intenção é fazer pontes com o trabalho do dramaturgo K. Stanislavski e, mais especificamente, do encenador e pedagogo E. Vakhtangov, ambos citados no texto de Vigotski, para contribuir no adensamento do contexto de produção da arte dramática em interface com as questões da psicologia que têm inspirado a educação e, mais especificamente, a educação estética.

O mote indagativo deste texto pode ser resumido da seguinte forma: qual é a relação entre imaginação e emoção ‒ o enlace emocional – no processo criador da personagem pelo ator? Atemo-nos à pista deixada por Vigotski (1932):

As emoções do ator experimentam o que F. Paulhan bem definiu como “feliz transformação dos sentimentos”. Elas se tornam compreensíveis apenas quando estão inseridas num sistema sociopsicológico mais amplo, do qual fazem parte. Nesse sentido, não se pode separar o caráter da vivência cênica do ator, tomado em seu aspecto formal, do conteúdo concreto, o qual é composto pelo conteúdo da imagem cênica, pela relação e interesse por essa imagem, pelo significado sócio-histórico e pela função que a vivência do ator desempenha naquele caso específico.

(Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
)

Nossa intenção não é dar uma resposta definitiva ao debate, mas abrir portas para se pensar, no âmbito da teoria vigotskiana, o papel do ator como central para compreender os aspectos da constituição social do sujeito e suas repercussões no campo da psicologia e da educação.

Para atualizar o debate, nossa proposta parte da análise de dados construídos no contexto de investigação empírica6 6 A pesquisa de pós-doutorado contou com apoio da FAPESP, entre os anos de 2011 - 2012. No trabalho realizado com a cia. de teatro, os encontros ocorreram, em média, três dias na semana, e a composição geral do material videogravado e registrado em diário de campo compõe um banco de dados. de uma Companhia de Teatro de São Paulo. A pesquisa, baseada em videogravações de situações vivenciadas pelas atrizes da companhia na criação das cenas e na composição das personagens, problematiza as intrigantes e interconstitutivas relações entre perejivanie na vida e perejivanie na arte a partir de uma análise conceitual sobre as relações entre imaginação e emoção.

Emoção e Imaginação como base para o trabalho de criação do ator

Emoção e imaginação vêm sendo estudadas, no escopo das elaborações de Vigotski sobre: as Funções Psicológicas Superiores, o sistema dinâmico interfuncional e o processo dramático de constituição do sujeito (Magiolino & Smolka, 2013Magiolino, L. L. S., & Smolka, A. L. B. (2013). How do emotions signify? Social relations and psychological functions in the dramatic constitution of subjects. Mind, Culture, and Activity, 20(1), 96-112.; Magiolino, 2014Magiolino, L. L. S. (2014). A significação das emoções no processo de organização dramática do psiquismo e de constituição social do sujeito. Psicologia & Sociedade, 26 (n. spe. 2), 48-59.; Sawaia & Magiolino, 2016Sawaia, B. B., & Magiolino, L. L. S. (2016). As nuances da afetividade: emoção, sentimento e paixão em perspectiva. In L. Banks-Leite, A. L. B. Smolka, & D. D. Anjos. (Org.), Diálogos na perspectiva histórico-cultural: interlocuções com a clínica da atividade (pp. 61-86). Mercado de Letras.; Sawaia, Magiolino & Silva, 2020; Silva, 2006Silva, D.N.H. (2006). Imaginação, criança e escola: processos criativos na sala de aula. [Tese de doutorado Programa de Pós-graduação em Educação]. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Silva & Magiolino, 2018Silva, D. N. H., & Magiolino, L. L. S. (2018). Imaginação e emoção: liberdade ou servidão nas paixões? Um ensaio teórico entre L. S.Vigotski e B. Espinosa. In Sawaia, B. B., Albuquerque, R., & Busarello, F., Afeto & Comum: reflexões sobre a práxis psicossocial. (pp. 39-60). UFAM (AM), Aexa (SP), Edua (AM).; Smolka & Magiolino, 2009Smolka, A. L. B., & Magiolino, L. L. S. (2009). Modos de ensinar, sentir e pensar. Lev Vigotski: contribuições para a Educação. Revista Educação - Lev Vigotski. (Coleção História da Pedagogia, n. spe. 2, , 30-39). Segmento.;). Temos defendido a premissa do entrelaçamento entre emoção e imaginação que levará Vigotski (1930/2009) à afirmação de que a produção de imagens mobiliza emoções e funciona como uma espécie de dínamo gerador de estados afetivos (e vice-versa).

Por volta de 1925, em Psicologia da Arte, Vigotski trabalhava sua tese sobre a relação entre imaginação, emoção e arte. Em seu Manuscrito de 1929, mesmo não se referindo explicitamente a essa relação, Vigotski deixa entrever desdobramentos promissores sobre as implicações desta problemática, ao argumentar acerca da noção de drama, em Politzer, articulada à formação da personalidade com outros dois temas caros à psicologia: o problema da liberdade e da criação humana dentro de uma determinalidade histórica, como já discutimos anteriormente (Sawaia, Silva & Magiolino, 2022Sawaia, B.B., Silva, D.N.H. & Magiolino, L.L.S. (2022). Imagination et émotion dans la puissance créatrice de la subjectivité révolutionnaire : une rencontre entre Spinoza, Marx et Vygotskij. In Schneuwly, B., Martin. I., & Silva, D.N.H. (Eds.), L.S. Vygotskij - Imagination: textes choisis (1ed., V. 1, pp. 491-508).). Mas nos trabalhos reunidos no livro: Imaginação e atividade criadora na infância (1930/2009) – anos mais tarde – é que o autor desenvolve de forma mais evidente o enlace entre imaginação e emoção, tomando em relevância os processos de criação. Nesta obra, Vigotski coloca em perspectiva as leis explicativas da relação entre imaginação e realidade, pondo em evidência o enlace emocional.

A primeira lei, apresentada pelo autor, versa sobre a ideia de que a imaginação é formada por elementos direta ou indiretamente vividos por cada pessoa. Quanto mais complexa a experiência daquele que imagina, maior material tem disponível para combinações e reelaborações do vivido. A segunda lei, por sua vez, faz um contraponto à primeira, ao explicitar que a experiência também se apoia na fantasia: aquilo que eu consigo imaginar a partir da experiência alheia. Na terceira lei, elaborada por Vigotski, encontramos o fator emocional de maneira mais evidente. A ideia de enlace emocional sugere que todo sentimento é sentido em imagens que formam um determinado estado de ânimo. Mas a própria evocação das imagens também faz romper sentimentos e emoções diversas. Ou seja: as emoções influenciam o processo de combinações da fantasia e são influenciadas por esta (Vigotski, 1930Vigotski, L. S. (1930/2009). Imaginação e criação na infância. (135 pp.). Ática Editora./2009).

Essas considerações nos permitem entrever que a imaginação é mobilizada pelas emoções, pela lógica interna dos sentimentos em seu aspecto mais íntimo. É o que Vigotski (1930/2009), apoiado em Ribot, vai chamar de lei da representação emocional da realidade (ou lei da realidade dos sentimentos).

Uma outra dimensão da relação entre imaginação e emoção, ainda no escopo da terceira lei, diz respeito ao que Vigotski (1930/2009)Vigotski, L. S. (1929/2000). Psicologia concreta do homem. Educação e Sociedade, 21(71), 21-44. denomina “signo emocional comum”. A essência desta lei consiste no fato de que as impressões ou as imagens que exercem em nós uma influência emocional semelhante tendem a se unir, apesar de não haver qualquer relação de semelhança ou contiguidade explícita entre elas, compondo um signo emocional comum.

Vigotski (1930/2009)Vigotski, L. S. (1930/2009). Imaginação e criação na infância. (135 pp.). Ática Editora. também focaliza as intrincadas relações entre realidade, imaginação e emoções, ao contemplar o círculo completo da atividade criadora por meio da imaginação cristalizada (quarta lei). Ele nos convoca a pensar sobre a imaginação como uma das chaves para compreender o caráter histórico e, ao mesmo tempo, singular da inventividade humana. Afinal, se a imaginação não existe fora da realidade, onde se encontram as bases explicativas dos produtos da imaginação?

Para Vigotski, o produto da criação, seja técnico, científico ou artístico, é o resultado de elaborações complexas do psiquismo, que foram transformadas e transmutadas no atravessamento do tempo. Cada criação é dialeticamente a síntese contraditória da invenção subjetiva entremeada aos fios, muitas vezes, imperceptíveis da história que “ao se encarnarem, retornam à realidade, mas já com uma nova força ativa que a modifica, Assim é o círculo completo da atividade criativa da imaginação” (Vigotski, 1930Vigotski, L. S. (1930/2009). Imaginação e criação na infância. (135 pp.). Ática Editora./2009, p. 30).

O problema da criação é retomado, por Vigotski em seu texto: “Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator” (Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
). Aqui, ele demonstra a especificidade do trabalho do ator, rompendo com as tendências empiristas e as pesquisas psicotécnicas vigentes em sua época. Em ambas as tendências, ele encontra uma superficialidade no tratamento da questão que se fixa em rasteiras generalizações da experiência do ator a partir daquilo que é observado nos ensaios e durante o espetáculo. A pesquisa psicotécnica para ele, por exemplo, equiparava a profissão do ator com as demais, ignorando as condições psicofisiológicas que a envolviam. Tudo era restrito aos testes gerais que nada acrescentavam na compreensão da complexidade que implica o ofício do ator.

Em suas discussões sobre a psicologia científica, Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
considera a psicologia do ator como uma parte da psicologia geral, argumentando que ela precisava deixar de ser abstrata e ganhar concretude. O que isso quer dizer? Se antes o foco estava na natureza imutável do teatro, agora se deve resgatar o seu caráter histórico. Assim, a psicologia do ator é um problema da psicologia concreta, que Vigotski já havia bem delimitado no seu texto intitulado: Manuscrito de 1929 (Vigotski, 1929Vigotski, L. S. (1929/2000). Psicologia concreta do homem. Educação e Sociedade, 21(71), 21-44./2000). Afinal, as “contradições abstratas de diferentes sistemas igualmente apoiados em dados factuais, passam a ser explicados como uma contradição viva, concreta e histórica de diferentes formas do trabalho criativo do ator, que se alteram de uma época para outra e de um teatro para outro” (Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
).

Colocar o problema do ator no âmbito da Psicologia Concreta merece nossa atenção. Vigotski (1929/2000)Vigotski, L. S. (1929/2000). Psicologia concreta do homem. Educação e Sociedade, 21(71), 21-44. argumenta a favor de uma psicologia humanizada; que compreende as vivências a partir das condições objetivas de vida. Afinal: “O que é o homem? Para Hegel é o sujeito lógico. Para Pavlov é o soma, organismo. Para nós é a personalidade social = o conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo (funções psicológicas, construídas pela estrutura social) [ênfase no original].” (p. 33). Esse princípio norteador permite a Vigotski argumentar contra a artificialidade criadora do ator proposta por Diderot (1769/1979)Diderot, D. (1769/1979). O paradoxo do comediante. Textos escolhidos.(Trad. e notas de Marilena de Souza Chauí, J. Guinsburg, 462 pp.). Abril Cultural., em seu Paradoxo do Comediante, aproximando-se, ao mesmo tempo, dos métodos de atuação de Stanislávski que consistiam em levar o ator a trazer à tona uma justificação interna da ação a ser desenvolvida ou uma verdade dos sentimentos no palco. Para Vigotski, no entanto, só é possível entender o trabalho criador do ator a partir de um outro sistema interpretativo, que é ideológico, histórico e que transforma as formas estéticas do teatro e seu conteúdo “A psicologia do ator é uma categoria histórica, de classe, e não biológica” (Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
). Aqui, para ele, se abriria o caminho para o enfrentamento do paradoxo, o que traria uma contribuição importante para a compreensão das emoções não apenas no campo da psicologia do ator, mas no campo da psicologia geral. Ou melhor: a psicologia do ator serviria de base explicativa para compreender a psicologia geral.

Stanislavski e Vakhtangov: contribuições ao conceito de perejivanie (est)ética

Para discorrer sobre os argumentos levantados anteriromente, retomamos as colocações de Vigotski sobre dois ícones do teatro russo (Teatro de Arte de Moscou, TAM) no início do século XX: a) K. Stanislávski (1863-1938) – um dos maiores dramaturgos da história do teatro moderno; e b) E. Vakhtangov (1883-1922), aluno de Stanislávski, considerado pelo seu pioneirismo estilístico e pela profunda compreensão do Sistema, uma referência do teatro simbolista.

Sobre K. Stanislavski, muito já se tem escrito. Ele é, sem dúvida, uma das maiores referências do teatro moderno, e sua obra foi responsável pela criação de estúdios de arte dramática ao longo do século XX, ainda hoje espalhados pelo mundo. É reconhecido internacionalmente por ter criado o único Sistema de preparação do ator para a interpretação, cujo objetivo era a: “criação do mundo interior das pessoas que atuam sobre o palco e transmitem a ideia deste mundo através da forma artística” (Stanislávski, 1986Stanislávski. C. S. (1986). Dos Cadernos de Anotações [Iz zapisnyh knizhek]. Em 2 Vol. Moscou., p. 323). Seu método parte das vivências (perejivania) dos atores com o intuito de atingir a verdade das emoções cênicas. O trabalho sobre as emoções é o ponto nodal do Sistema, exigindo uma disciplina e introspecção dos atores de forma tão radical que eles deveriam se esquecer da plateia para alcançar a realidade das emoções. Aqui, o papel da imaginação é central, pois no Sistema é impossível desenvolver os corretos sentimentos e emoções interiores sem o trabalho ativo da imaginação (Capucci & Silva, 2018Capucci, R. R., & Silva, D. N. H. (2018). “Ser ou não ser”: a perejivanie do ator nos estudos de L.S. Vigotski. Estudos de Psicologia. 35(4), 351-362. http://dx.doi.org/10.1590/1982-02752018000400003
https://doi.org/10.1590/1982-02752018000...
).

Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
comenta sobre os equívocos cometidos pelas abordagens da época acerca do problema da criação do ator, que reduziam o Sistema de Stanislávski à prática teatral dissocidada das exigências temporais e históricas que o próprio teatro contemporâneo evocava. Em Teatro e Revolução, Vigotski (1919/2015) afirma: “Cada época tem seu Hamlet. A própria obra é somente uma possibilidade que o espectador, o leitor realiza com seu trabalho criativo (p. 204)”. A técnica interior dos sentimentos de Stanislávski deve servir, então, a tarefas estilísticas próprias de um tempo, em que o conteúdo dita a forma teatral. A relação (e, não o reducionismo) entre a verdade dos sentimentos (como premissa noteradora do trabalho do ator) e o conteúdo dos sentimentos em outros meios de expressão teatral é uma exigência que foi mais bem compreendida por E. Vakhtangov, como veremos a seguir.

E. Vakhtangov é um ator, encenador e pedagogo do teatro moderno russo pouco conhecido pelo cenário artístico brasileiro. É considerado um dos maiores conhecedores do Sistema de Stanislavski; um fiel e rigoroso discípulo. Morreu aos 39 anos em pleno ápice de sua carreira, quando estreou (sem conseguir ver o ensaio final) A Princesa de Turandot, de Carlo Gozzi (em 1922), reconhecida como uma das maiores apresentações do século XX. Participou como professor e pedagogo da fundação de vários estúdios da Rússia (pré-revolucionária e pós-revolucionária) e personagem central no desenvolvimento das atividades do Teatro de Arte de Moscou, TAM (admitido ao grupo, em 1909).

Vakhtangov não foi apenas um dos maiores conhecedores do Sistema de Stanislavski, mas um dos responsáveis por sua reformulação. Em busca de sua própria assinatura e de uma retomada da teatralidade, Vakhtangov, ao longo de sua carreira, ampliou a compreensão do Sistema, ao romper com um certo psicologismo do ator que pairava nas críticas à Stanislavski, apesar de refutadas pelo dramaturgo.

Valorizar os elementos estéticos já era algo perseverado pelo teatro russo, mas Vakhtangov recupera as pantomimas da Commedia dell’Arte, pelos maneirismos dos fantoches e das marionetes, em busca da teatralidade, e radicaliza na forma de compreender o papel da platéia (o quarto criador), muitas vezes ignorada pelo Sistema de Stanislavski.

Para alcançar esse objetivo, Vakhtangov aposta nos experimentos de improvisações como substituição da obra, convidando a plateia para participar da peça. O espetáculo-improvisação já era algo que Gorki havia sinalizado para Stanislavski, porém não foi incorporado pelo TAM. Vakhtangov toma a dica e aprofunda pedagogicamente a improvisação, explorando esteticamente as relações entre arte e vida. O encenador buscava um teatro diferente, na tensão entre o realismo-naturalismo, podendo ser apresentado em praças públicas. O teatro profissional se aproximava do teatro popular, o que já era algo diferente daquilo que era proposto pelo TAM. Ainda nessa linha, as vivências do Sistema não foram abandonadas, contudo o excessivo papel atribuído à imaginação, em Stanislavski, deveria ser tomado com cautela. O processo criativo do ator não devia perder de vista os componentes reais da peça: a cenografia, a iluminação, a maquiagem etc. Silva (2008)Silva, A. E. B. (2008). Vakhtangov em busca da teatralidade. [Dissertação de Mestrado]. Universidade Estadual de Campinas, Instituto das Artes III, Campinas. comenta:

A pesquisa de Vakthangov se apoia na constatação da morte do teatro dos mortos, proclamado com insistência; e sobre a refusa reafirmada do naturalismo, dentro da prática do devir maquinal do Teatro de Arte. Isso deverá substituir um realismo fantástico, realismo da imaginação, fundada não mais sobre a imitação e sobre a ilusão referencial, mas sobre a construção significante, no qual se afirma a intuição fundadora de uma ruptura necessária e radical entre a verdade da vida e a do teatro. (p. 33)

Nesse contexto, Vakhtangov (2000)Vakhtangov, E. (2000) Écrits sur le théâtre (391 pp.). L’age D’homme. começa a formular o teatro da convenção, desenvolvendo jogos teatrais contemporâneos que se articulam com o espírito de seu tempo. A forma está inscrita em uma contemporaneidade, mas isso não significa que o teatro deve refletir uma época. Não se trata, portanto, de um “banalismo fraseológico patriótico” (pp. 346-347, tradução nossa), o foco está em construir, sem os ingredientes panfletários, o teatro revolucionário. E um teatro que reivindica sua teatralidade no seu tempo, com uma pedagogia própria. Um teatro que coloca em evidência tudo o que o envolve; entradas e saídas, aplausos, música etc. Vakhtangov procurava transmitir no palco não apenas o conteúdo da peça, mas sua relação contemporânea com ele, sua ironia, criando um novo conteúdo para a peça: “é chegado o tempo de trazer o teatro do teatro (Vakhtangov, 2000Vakhtangov, E. (2000) Écrits sur le théâtre (391 pp.). L’age D’homme., p. 348, tradução nossa)”.

Vigotski (1919/2015)Vigotski, L. S. (1919/2015) Teatro e Revolução. (Tradução P. N. Marques). O Percevejo Online, 7(2), p. 191–206. https://doi.org/10.9789/2176-7017.2015.v7i2.p. 191-206.
https://doi.org/10.9789/2176-7017.2015.v...
também advogava a favor de um teatro que respondesse às exigências contemporâneas incitadas pelo processo revolucionário. Ele criticava que o cenário russo havia, apenas, alargado o movimento teatral, porém sem profundidade estética e dramatúrgica; “as mudanças eram puramente exteriores (p. 196)”. Sua defesa era por um teatro de seu tempo.

Afinal:

Cada tempo tem seu próprio teatro... . Os artistas de todas as artes são pessoas do seu tempo. Suas criações são necessariamente marcadas pelo signo da contemporaneidade, estão intimamente ligadas a ela. O artista sempre cria o novo, aquilo que não existia antes dele; ele não repete ou reproduz o antigo. (p. 203)

Por isso, era necessário o desenvolvimento de uma nova teatralidade, pois “não se deve colocar vinho novo em odre velho” (p. 203). A busca por essa nova teatralidade foi a missão de E. Vakhtangov.

Fortemente marcado pelo simbolismo e expressionismo russo, o pedagogo e encenador Vakhtangov buscava uma ênfase na criação dos gestos na composição da personagem, com o corpo e a consciência do ator de sua encenação. O ator está no palco e deve evitar um teatro de fugitivos, mais orientado aos seus processos psicológicos internos ‒ como ocorre nos exercícios de Stanislavski para se atingir a verdade cênica –, do que aos efeitos estéticos produzidos na relação com o público, por exemplo. Sobre isso, Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
aponta que a técnica interior de Stanislávski (naturalismo psicológico) servia a tarefas estilísticas completamente diferentes ‒ e até mesmo opostas – no trabalho de Vakhtangov.

A emoção, em Vakhtangov (2000)Vakhtangov, E. (2000) Écrits sur le théâtre (391 pp.). L’age D’homme., é radicalizada na relação entre a encenação teatral e a conservação da substância das situações concretas da vida, em meio aos dilemas e paradoxos de seu tempo histórico.

Eu, então, faço a tentativa de uma forma que eu chamarei, de bom grado, realismo teatral. O jogo cênico é fundado sobre a atenção ao real, orgânico, que se portam os atores e sobre a vivência real (nastoiáschee perejivânie) segundo o método do Teatro de Arte, isso quer dizer sobre aquilo que me trouxe Konstantin Sergueievitch. Mas os meios de expressar essa atenção e esta vivência, eu as procuro dentro da vida atual, dentro dos nossos dias.

(p. 319, tradução nossa)

Na relação que se estabelece entre a emoção criada para o papel e a emoção real do ator - que interpreta a personagem, encontrava-se, segundo Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
, a chave para a resolução do problema do velho paradoxo do ator em uma perspectiva nova em psicologia. Sobre isso, o autor argumentava sobre a necessidade de se deter em dois aspectos importantes. O primeiro dizia respeito à posição de Stanislávski sobre o sentimento involuntário e a impossibilidade de sua evocação direta, por um comando. Comentando o trabalho do diretor russo, Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
afirmava:

Apenas indiretamente, pela criação de um sistema complexo de ideias, concepções e imagens, em cuja composição se insere determinada emoção, podemos suscitar o sentimento de que precisamos e, assim, conferir o colorido psicológico específico ao sistema como um todo e sua expressão exterior. “Esses sentimentos – diz Stanislávski – não são absolutamente aqueles que o ator vivencia na vida”. Trata-se de sentimentos e concepções purificados de todo excesso, generalizados, desprovidos de seu caráter abstrato. Segundo a correta expressão de L. Ia. Guriévitch, se eles passaram pelo processo de formalização artística, eles se distinguem das emoções reais correspondentes por uma série de indícios.

O segundo aspecto ressaltado por Vigotski resgata as ideias defendidas por Vakhtangov e reside no fato de que o paradoxo do ator se desloca para o campo da Psicologia Concreta, de uma explicação psicológica concreta e historicamente mutável. “temos diante de nós uma série de paradoxos históricos de atores de determinados meios e épocas. O paradoxo do ator se transforma em pesquisa sobre o desenvolvimento histórico da emoção humana e sua expressão concreta nos diferentes estágios da vida social” (Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
). Vigotski, então, destaca que “as emoções não são uma exceção em relação a outras manifestações de nossa vida psíquica”. Como as demais funções psíquicas, elas não estão limitadas à dimensão biológica do psiquismo.

Na vida concreta, afirma Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
, os sentimentos se desenvolvem, as emoções se complexificam. As relações iniciais de base orgânica se decompõem e dão origem a novas relações com outros elementos da vida psíquica. Outros sistemas de ordem superior emergem. Novas relações interfuncionais psíquicas são estruturadas por leis específicas, interdependentes. Assim:

Estudar a ordem e a relação dos afetos é a principal tarefa da psicologia científica, pois o que constitui a solução paradoxo do ator não são as emoções tomadas em sua forma isolada, mas as relações que as unem a sistemas psicológicos mais complexos. Essa solução, como já se pode antever, levará o pesquisador a uma posição de significado fundamental para toda psicologia do ator: as vivências do ator, suas emoções, se apresentam não como função de sua vida psíquica pessoal, mas como fenômeno que possui sentido e significado objetivo e social, que serve de estágio de transição da psicologia para a ideologia.

(Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
)

Nessa passagem Vigotski chama a atenção para o fato de as emoções entrarem em conexão com os demais sistemas psicológicos e, para além disso, não serem compreendidas como um fenômeno de ordem pessoal, mas social com sentido e significado, marcado pela ideologia. Com isso, o processo criador do ator envolve uma vivência duplicada na construção da personagem, implicando a revivência criadora das emoções subjetivas, mas tomá-las dentro dos recursos históricos que a atividade imaginativa possui e cultiva em direção à uma transvivência. Isso ocorre porque, como salienta Vigotski (1930/2009), em seus estudos já discutidos, a imaginação cristalizada dialeticamente dá forma à imaginação e (trans)forma as emoções.

O teatro como lócus de revivência

É preciso extrapolar os limites da vivência imediata do ator para poder explicá-la. Esse verdadeiro e notável paradoxo de toda psicologia infelizmente ainda não foi apropriado por muitas correntes. Para explicar e compreender a experiência é preciso ir além de seus limites, é preciso esquecer-se dela por um minuto, abstraí-la. O mesmo é verdadeiro em relação à psicologia do ator. Se a vivência do ator fosse um todo fechado, um mundo que existe em si mesmo, seria necessário buscar as regras que a dirigem exclusivamente em sua esfera, na análise de sua composição, na descrição minuciosa de seu relevo. No entanto, se a vivência do ator se distingue das vivências do dia a dia por fazer parte de um sistema inteiramente outro, então sua explicação deve ser encontrada nas leis de construção deste último.

(Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
)

É a vivência duplicada de uma atriz em processo de encenação e criação de uma personagem na sala de ensaio, que tomamos aqui como lócus de indagação e investigação. A atriz integra o corpo de uma companhia de teatro de São Paulo, composto por quatro atrizes profissionais, um diretor e uma dramaturga. A companhia contava com um trabalho de orientação teórica e artística, organizado por um artista plástico e pela pesquisadora que participava dos ensaios e propunha vídeos e textos para estudo e discussão teórica.

O tema da pesquisa artística da companhia envolvia, naquele contexto, a questão do isolamento urbano na metrópole. A montagem e a encenação do espetáculo focavam duas personagens: Laís, uma dentista que tinha compulsão por arrancar dentes e se isolou em seu apartamento; e Sophia, escravizada em uma rede de tráfico de mulheres e presa em um dos inúmeros prostíbulos verticais que povoavam a metrópole.

O processo de pesquisa artística da companhia contou com a investigação de questões sociais, levantamento de reportagens e entrevistas com pessoas que vivenciavam as questões das personagens. Entre as inúmeras histórias de mulheres coletadas pelo grupo, que se isolavam ou que eram forçosamente isoladas na metrópole, havia as refugiadas, as que viviam em situação de rua, as que desenvolveram transtornos obsessivos compulsivos ou síndromes do pânico. Uma notícia, em especial, serviu de gatilho para a criação: o corpo de uma mulher foi encontrado boiando em uma das maiores avenidas da cidade, após uma grande enchente. Na peça, ao olhar pela janela do apartamento, a dentista se deparava com o corpo da mulher escravizada e prostituída, boiando em plena avenida.

A peça era encenada em meio a uma instalação artística, montada pelas atrizes no palco sob o olhar do público, convidado a compor o espaço ao final do espetáculo. Sob tal olhar, objetos cotidianos, banais, iam sendo ressignificados: uma cadeira de cozinha se transformava ora num instrumento de tortura, ora numa cama(ra) de gás. Orientado pelo artista plástico, o grupo partiu de uma cenografia em movimento, que se reconstruiu em cena, inspirada no universo das artes plásticas, buscando desenvolver uma concepção estética contemporânea. No processo de pesquisa e criação, o grupo organizou instalações artísticas urbanas em uma proposta de intervir plasticamente na cidade de São Paulo, buscando uma interação entre o teatro e as artes plásticas contemporâneas. Em uma delas, o grupo foi até o Elevado Presidente João Goulart– o infame Minhocão –, uma via expressa elevada, construída na época da ditadura, com intenção de desafogar o trânsito na região central da cidade que faz com que os carros passem bem à frente das janelas dos prédios. As atrizes batiam à porta das pessoas que habitavam por lá para conversar e pedir objetos que não usassem mais, dos quais quisessem se desfazer. As pessoas, solitárias na grande maioria, abriam suas portas e doavam diversas coisas, dentre elas um sofá, usado para compor uma instalação artística embaixo do viaduto.

Com essa inspiração das artes plásticas contemporâneas, atravessando as questões sociais e os conflitos pessoais, na sala de ensaio, o processo de trabalho da Cia. se dava em duas vertentes centrais: exercícios de imersão e exercícios de criação de cena e personagem. Após os exercícios, ocorria a roda de observação em que os participantes comentavam sobre o que/como sentiram, pensaram, imaginaram nos exercícios realizados.

A videogravaçãode ensaios, exercícios de criação e rodas de conversas foi feita durante a criação coletiva da peça, com transcrição do material construído e posterior análise. Além destes procedimentos, a pesquisa empírica contou com um dispositivo metodológico que busca promover compreensão de efeitos de sentido que circulam em uma atividade de trabalho: as autoconfrontações simples e cruzadas7 7 O método foi elaborado na França, pelo linguista Daniel Faïta e, mais tarde, passou a ser utilizado por Yves Clot, na psicologia do trabalho, com sua equipe de Clínica da Atividade no Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM), de Paris. O procedimento se apoia no uso da imagem de sujeitos em atividade de trabalho para discuti-la visando ao desenvolvimento profissional e à saúde individual e coletiva, bem como à produção de conhecimentos no exercício do ofício. Na autoconfrontação (simples - realizada com o trabalhador; ou cruzada - realizada entre trabalhadores) o interveniente (ou o pesquisador) mostra ao trabalhador uma cena de sua atividade registrada em vídeo. Ao se ver em cena, o trabalhador discute com o interveniente sua atividade de trabalho, a experiência vivida, os afetos e os problemas enfrentados em busca de uma resolução, da transformação da atividade e do aumento de seu poder de agir (Clot, 2010). (Clot, 2010Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir (Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna, 317 pp.). Fabrecatum.) realizadas com as atrizes e o diretor da companhia de teatro.

No trabalho de preparação e constituição do ator na Cia., nos exercícios de imersão, as atrizes aprendiam a identificar os espaços onde residem os conteúdos pessoais emergentes de sua memória que as afetam, em que lugar de seus corpos as emoções se inscrevem. O processo se dava, ao (re)criarem imaginariamente uma situação vivida pelo acesso à memória dos mecanismos motores que compunham os gestos, o canto, a fala e as próprias emoções ‒como dizia o diretor, tratava-se de realizar uma “topografia” de suas emoções e sensações por uma “entrada física na memória”. Nesse sentido, tal exercício pode ser compreendido como um método indireto de abordagem de/para emoções que abria possibilidades de compreendê-las em processo de transformação e significação relacionadas ao sistemas e demais funções psicológicas (Magiolino, 2014Magiolino, L. L. S. (2014). A significação das emoções no processo de organização dramática do psiquismo e de constituição social do sujeito. Psicologia & Sociedade, 26 (n. spe. 2), 48-59.).

Na criação artística e dramatúrgica da peça, o grupo trabalhava com uma linha de investigação central que norteava o conteúdo pessoal que seria buscado pelas atrizes no exercício de imersão. Todas as atrizes realizavam os exercícios de criação de todas as personagens, que só seriam definidas e atribuídas a cada uma em um momento posterior. Para a personagem Laís (a dentista), por exemplo, essa linha era: “eu preciso arrancar isso de mim, mas não consigo”. Neste trabalho, serão tomados como objeto de discussão e reflexão apenas os exercícios de Lorena8 8 Em acordo com os participantes da pesquisa, optamos por atribuir um nome fictício para preservar a identidade deles. na criação da personagem Laís.

A vivência duplicada da atriz: a perejivanie (est)ética

No exercício de imersão sobre a personagem Laís, todas as atrizes têm os olhos fechados e se movimentam livremente pela sala de ensaio, imersas em seus conteúdos pessoais. O diretor adentra o palco e inquire: “o que é que você quer arrancar de você e não consegue?”

Lorena leva a mão ao peito e bate repetidamente. O rosto traz uma expressão de dor. Ela chora e grita “fica”. Depois, ela pega um objeto metálico e aponta para alguém como se fosse uma arma. Ela passa o exercício todo falando com essa pessoa,a quem parece querer ferir e se vingar, mas ela não diz quem é.

Na cena videogravada e transcrita, Lorena gira os braços lentamente em torno de si, depois leva as mãos à cabeça, puxa os cabelos e diz: “Sai daqui”. Ela vai descendo uma das mãos até o peito, e outra permanece contra o ventre. Golpeia o peito com fortes batidas: “Fica...fica aí que eu acho que eu preciso...”. Junta as duas mãos no peito, olha para cima, e diz: “Fica, pode ficar”. Silêncio. “Como ia ser se não tivesse isso? O que ia ter no lugar disso? Não ia ter nada!” Chora. “Ai... mas como eu queria que saísse”. Com os olhos fechados, ela leva as mãos ao peito e, depois, vai retirando-as, lentamente, para, em seguida, esfregá-las. Então, ela diz: “Ah, mas eu estou esperando o dia que eu vou perder o controle e que eu vou, sim, deixar sair tudo”. Ela pega um objeto que lhe serve de punhal e aponta para alguém. Sua expressão muda. Alterando a voz, ela grita: “Você não sabe, mas eu não tenho mais ouvidos pras suas mentiras. Eu finjo que escuto”. Ela tapa os ouvidos com as duas mãos e continua: “Eu sorrio pra você porque eu sou uma menina bem educada! Eu sorrio pra você, porque eu tenho o mínimo de respeito, porque a minha mãe mandou ter! Por mim eu não teria... porque você não merece!”.

O corpo de Lorena em cena mostra o vivenciamento do rancor: ela puxa os cabelos, coloca a mão no ventre, bate forte no peito, silencia, vaga pelo palco, chora. Ao esfregar as mãos e pegar o punhal, outros afetos se esboçam em seu corpo. Altera a voz, grita, tapa os ouvidos com as duas mãos, elaborando, pela palavra, na situação imaginária, a experiência vivida: ela se assume como menina bem educada, que sorri a contragosto, expressando o faz de conta que ela vive em respeito à mãe, e (re)age apontando o punhal para alguém que ela não nomeia.

Na autoconfrontação, Lorena olha o vídeo sobre o exercício de imersão. A pesquisadora comenta sobre o gesto de levar a mão fechada em direção ao peito e golpeá-lo intensamente. Lorena responde: “Era uma sensação como se esse rancor fosse uma pedra (leva de novo a mão ao peito) dentro de mim, assim, de tão fixa e forte que ela tá lá dentro, sabe?... Então é uma coisa meio impossível de tirar, porque é um concreto já.” A pesquisadora indaga: “Tratava-se de tentar quebrar a pedra de concreto em seu peito?”. Ela diz: “Não era nem quebrar, mas era quase confirmar a força que isso tem, sabe? A concretude que isso tem”.

Posteriormente, questionada sobre o significado do rancor e, após um silêncio altamente reflexivo, ela diz: “Ah, aqui o que eu estou dizendo é se não tivesse isso [o rancor] não ia ter nada... com relação a essa pessoa”. Ela conclui: “É a única... é o único... é a única ligação que existe... Mas eu, pensando agora, eu acho que é... se não tivesse isso eu ia... eu ia perdoar... eu ia deixar passar... sabe? E eu não quero isso.

Lorena expressa em seu corpo uma vivência imaginativa e memoriosa do rancor. O rancor é o sentimento que toma conta da personalidade da atriz: “Eu sou uma pessoa rancorosa”. O que seria colocado no lugar da pedra de concreto, se o rancor fosse superado? O perdão, ela mesma diz9 9 Em trabalho anterior, analisamos o estado de flutuação da alma (em termos espinosanos) vivenciado por Lorena no embate de emoções contraditórias - o amor pela mãe, o ódio pelo pai - na cristalização do sentimento de rancor que marca a sua personalidade. A mudança é difícil, pois, neste caso, significaria também trair o seu amor à sua mãe. O rancor presente na história de vida de Lorena, que se cristaliza no seu peito (sob a forma de uma pedra), é constantemente renovado pela sensação de ter sido abandonada pelo pai, mas é também alimentado pelos sentimentos de amor e respeito pela mãe. Nesse sentido, quebrar a pedra, colocar em seu lugar o perdão e deixar de sentir raiva do pai significaria, ao mesmo tempo, trair a sua mãe. O rancor se torna uma triste paixão que enfraquece e aprisiona Lorena. (Sawaia, Magiolino & Silva, 2020). .

Em seu comentário sobre o exercício de imersão, Lorena remete ao mote do que não pode ser extraído dela e já faz referência à personagem a ser criada, uma dentista que tem a compulsão de extrair dentes.

Eu comecei com uma coisa no corpo de: ”não sai daqui, nada sai daqui, eu não deixo sair daqui... eu cheguei na boca: nada sai daqui“. E, aí, eu comecei a tocar os meus dentes e começou a vir uma ideia de arrancar, mas arrancar porque eu não podia deixar sair de outra forma, não podia deixar sair em forma de... palavra... um impulso de autodestruição, de automutilação quando você guarda uma coisa que você não pode, você não pode deixar... você não pode falar ou você não tem controle sobre você mesmo a respeito de determinadas coisas que quer fazer... E aí parece que é pelo corpo, e aí é uma coisa de se machucar mesmo, de sair sangue.

Lorena se detém na experiência de criação da personagem Laís. Vai explorando os sentidos do arrancar – a pedra, os dentes ‒ em si e nos outros:

Só que aí eu fiquei pensando, ela faz isso nos outros, né? Porque, nesse momento, me pareceu muito óbvio que ela fizesse coisas com ela mesma. (sorri). Só que ela faz com os outros... E aí me veio a ideia de que talvez ela projete nas outras pessoas coisas dela….

E ela conjectura:

tipo: ela gostaria de se descabelar inteira, arrancar dente, cabelo, pele, se rasgar inteira... só que ela não faz isso com ela. E aí, não sei, de alguma forma ela enxerga no outro aquilo que ela tá reprimindo nela, não sei... e ela faz isso nele, tipo: ela arranca nele uma coisa que, na verdade, ela queria arrancar nela….

No exercício de criação de cena, com foco na personagem Laís, as diversas possibilidades de arrancar e não arrancar – pedra e dente ‒ são (re)vivenciadas. O exercício se inicia pelo aquecimento corporal e uma intensa movimentação da atriz pelo palco da sala de ensaio. Ela entra em um vertiginoso processo de vivenciamento da personagem. Lorena leva as mãos à boca, ao estômago e permanece assim por um bom tempo. A certa altura começa a girar pelo palco dizendo coisas desconexas sobre a personagem. Cambaleando no palco, ela exprime alguns gemidos. Seus movimentos vão, pouco a pouco, se tornando mais lentos, menos intensos. Ela diz repetidamente: “doutor, eu estou enrijecendo”. Vai parando com os braços abertos e diz, muito calmamente, como se falasse com um médico ao telefone: “tem um estofado em minha pele”. Descreve os móveis, objetos e o espaço ao redor e diz que não consegue se mover. Pede um remédio. Diz que há uma espuma em seu corpo, um estofado. “Estou pesada... Não consigo sair do chão sozinha... Meus pés estão fixos”. Fala que o médico não pode vir ao apartamento, mas insiste que precisa de ajuda. “Eu percebi que eu consigo até mexer, mas é dentro da estrutura... E tem um estofado que não deixa romper”.

Logo após esse exercício, na roda de observação, Lorena comenta sobre a experiência vivida na criação da personagem Laís: “E, aí, me deu a sensação de uma necessidade de isolamento porque eu me tornei tão frágil, tão frágil, tão frágil… que… eu não consigo viver num mundo junto com todo mundo, assim”. Na autoconfrontação cruzada, posteriormente realizada, Lorena fala também da pesquisa que o grupo fez sobre temas como fibromialgia: “dor o tempo todo, dificuldade do movimento; pessoas sozinhas vão enrijecendo… Eu pensava que eu estava sozinha, ninguém ia chegar… Ideia, imagem de virar um móvel; ela (Laís) não era mais um ser humano…”.

O afeto central, o rancor, vivenciado pela atriz no exercício de imersão em que ela revive uma experiência pessoal, se cristaliza (em sentido vigotskiano) em uma imagem: a pedra de concreto. Tal imagem gera, na atriz, entre outras, a sensação de segurança – algo que alicerça a sua personalidade ‒ e, dialeticamente, de aprisionamento – algo que a impede de perdoar e mudar. Na revivência de criação da personagem se esboçam e se condensam múltiplos afetos que se cristalizam, por sua vez, na imagem de um sofá – um “signo emocional comum” (em termos vigotskianos) –, para a (in)segurança, a fixidez, a imobilidade, o aprisionamento: “Eu percebi que eu consigo até mexer, mas é dentro da estrutura... E tem um estofado que não deixa romper”.

A intrincada relação entre imaginação e emoção na experiência vivida, a complexa relação com a memória, a palavra na dramática constituição do psiquismo,como afirmaria Vigotski (1929/2000), se explicita também na criação da atriz.

O sentimento de rancor cristalizado na pedra de concreto que fundamenta sua personalidade é o alicerce para a criação da personagem, que se torna um móvel parado, à espera de alguém. Contudo, estes sentimentos-imagens (est)eticamente criados são enraizados na história e na cultura, são encharcados de sentidos, impregnados de significados que transbordam da vida na metrópole: a exclusão, o adoecimento, o isolamento urbano, que Lorena esculpe em seu corpo na forma de um sofá. Explicita-se a (des)humanização de sua personagem, pelo sofrimento da solidão na metrópole super populada, num sistema de coisificação e objetificação das pessoas – como é o sistema capitalista.

A imaginação completa seu ciclo na criação: se cristaliza, por meio da perejivanie (est)ética. Na perejivanie do ator, ética e estética se (conf)undem. Os elementos entre arte e vida se interpenetram de forma dramática, desarmônica e, contraditoriamente, criadora.

Algumas considerações

Em uma carta escrita à N. Nemirovitch-Dantchenko (8 de abril/1922), Vakhtangov revela que a ideia de vivência, apregoada por Stanislavski, era insuficiente para se chegar à noção de teatralidade e à especificidade da arte no trabalho do ator. O termo perejivanie, nada apreciado por Nemirovitch-Dantchenko, não era tudo, pois o ator precisava de algo a mais. Esse algo a mais compreendia o significado da diferença entre falar de emoção em cena (tchúvstvo) e sentir (tchuvstvovát) (Vanthagov, 2000, p. 350, tradução nossa).

A verdade dos afetos, a perejivanie, defendida rigorosamente por Stanislavski, estava presente no teatro de Vakhtangov, mas ela precisava servir, de acordo com ele, aos aspectos cênicos; aos elementos de uma verdadeira teatralidade, para a re(a)presentação da vida concreta ou o que ele vai chamar por perejivanie real (nastoiáschee perejivânie). Os meios de expressão da vivência devem ser encontrados dentro da vida atual, que no teatro é elaborado esteticamente. Afinal: "O sentimento é o mesmo dentro da vida e no teatro, mas os meios ou os processos pelos quais a gente o suscita são, eles mesmos, diferentes" (Vakhtangov, 2000Vakhtangov, E. (2000) Écrits sur le théâtre (391 pp.). L’age D’homme., p. 354, tradução nossa).

No discurso introdutório do ensaio geral de Dibbuk, Vakthangov (2000) comenta: “Nós queremos encontrar uma encenação teatral (emocionalmente densa) que, ao mesmo tempo, conserve a substância das situações da vida concreta” (p. 349,tradução nossa). Em cena, se (re)compõem os aspectos que implicam a relação da imaginação com a realidade, no dramático processo de constituição do psiquismo em uma psicologia concreta, conforme discutiria Vigotski em 1929 e 1930.

Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
, ao tomar os estudos sobre a perejivanie do ator, compreende o estatuto que assume as emoções humanas, em sua íntima relação com a imaginação: um processo complexo que emerge na intrincada trama com as demais funções e sistemas psicológicos em um contexto histórico e cultural. Isso ocorre porque as emoções e os sentimentos do ator não podem ser analisados apenas de um ponto de vista da experiência individual, mas a partir de sua função em determinada época e classe social, dentro do mesmo panorama no qual a perejivanie estética (do ator e do expectador) tem lugar. Os sentimentos do ator diferem, em diversos aspectos, dos experimentados pela plateia na apreciação da obra de arte, porém se (des)encontram e se confrontam na trama da significação da experiência catártica. Na catarse, por exemplo, interatuam complexas operações intelectuais e sensíveis, na qual a imaginação compõe uma unidade interfuncional e dialética com a emoção. Para Vigotski (1925/1999)Vigotski, L. S. (1925/1999). Psicologia da arte. (377 pp.). Martins Fontes., as emoções provocadas pela arte não se resumem a uma mera soma de reações psicofisiológicas. Implicam em uma intensa reestruturação da dinâmica psíquica, pois envolvem processos simbólicos e, portanto, subjetivos que decorrem da contradição de sentimentos gerada entre conteúdo e forma.

A arte do ator se explicita como uma técnica de trabalhar com e sobre as emoções através da imaginação, afeta o ser humano por meio do sentido, do processo mesmo de significação e vivenciamento da multiplicidade de significados que as emoções assumem na história (pessoal-social) e na cultura. Um dos elementos que aparecem na descrição dos dados diz respeito à relação entre o processo criador, as questões sociais e políticas. Para elaborar a peça, o grupo fez um levantamento de reportagens e entrevistou pessoas que vivenciavam o isolamento na metrópole: refugiados, moradores de rua etc. A relação entre o corpo, que boia na enchente, e a dentista (Lais), que olha o corpo da mulher prostituída boiando na avenida, mostram as tensões e as rupturas entre vida, arte e o teatro, que envolvem o processo criador. Mas, para além disso, também revelam como a produção do grupo se articula com as questões mais paradoxais e profundas de seu tempo: o adoecimento, a exclusão e o isolamento social nas metrópoles. O importante, aqui, é destacar que cada integrante da companhia de teatro traz consigo uma determinada leitura da realidade a ser revivida e confrontada. Nesse processo, central para a criação, eles exploram essas experiências vividas, puxam e tecem os fios que compõem a peça.

Como Lorena demonstra, o processo de criação é complexo. O foco da atriz é a construção do personagem, contudo o caminho que ela atravessa é tortuoso. A intensidade de (re)vivências experimentadas pela atriz, diante do processo criador da personagem, revela: 1. a sua imersão no trabalho com as emoções da (sua) vida para, então, extrair a força da personagem (sua verdade) na arte,como sugerido no Sistema de Stanislavski; e;2. a sua intencionalidade artística. Afinal, Lais não é Lorena; Lais é fruto da criação de Lorena. Aqui vislumbramos a perejivanie das perejivania: a perejivanie (est)ética.

  • 1
    Para mais informações, ver: Vigotski (2023).
  • 2
    Dossiê Temático organizado por: Priscila Nascimento Marques https://orcid.org/0000-0002-7111-6372 e Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391.
  • 4
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com
  • 5
    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº2010/16020-2.
  • 6
    A pesquisa de pós-doutorado contou com apoio da FAPESP, entre os anos de 2011 - 2012. No trabalho realizado com a cia. de teatro, os encontros ocorreram, em média, três dias na semana, e a composição geral do material videogravado e registrado em diário de campo compõe um banco de dados.
  • 7
    O método foi elaborado na França, pelo linguista Daniel Faïta e, mais tarde, passou a ser utilizado por Yves Clot, na psicologia do trabalho, com sua equipe de Clínica da Atividade no Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM), de Paris. O procedimento se apoia no uso da imagem de sujeitos em atividade de trabalho para discuti-la visando ao desenvolvimento profissional e à saúde individual e coletiva, bem como à produção de conhecimentos no exercício do ofício. Na autoconfrontação (simples - realizada com o trabalhador; ou cruzada - realizada entre trabalhadores) o interveniente (ou o pesquisador) mostra ao trabalhador uma cena de sua atividade registrada em vídeo. Ao se ver em cena, o trabalhador discute com o interveniente sua atividade de trabalho, a experiência vivida, os afetos e os problemas enfrentados em busca de uma resolução, da transformação da atividade e do aumento de seu poder de agir (Clot, 2010Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir (Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna, 317 pp.). Fabrecatum.).
  • 8
    Em acordo com os participantes da pesquisa, optamos por atribuir um nome fictício para preservar a identidade deles.
  • 9
    Em trabalho anterior, analisamos o estado de flutuação da alma (em termos espinosanos) vivenciado por Lorena no embate de emoções contraditórias - o amor pela mãe, o ódio pelo pai - na cristalização do sentimento de rancor que marca a sua personalidade. A mudança é difícil, pois, neste caso, significaria também trair o seu amor à sua mãe. O rancor presente na história de vida de Lorena, que se cristaliza no seu peito (sob a forma de uma pedra), é constantemente renovado pela sensação de ter sido abandonada pelo pai, mas é também alimentado pelos sentimentos de amor e respeito pela mãe. Nesse sentido, quebrar a pedra, colocar em seu lugar o perdão e deixar de sentir raiva do pai significaria, ao mesmo tempo, trair a sua mãe. O rancor se torna uma triste paixão que enfraquece e aprisiona Lorena. (Sawaia, Magiolino & Silva, 2020Sawaia, B.B., Silva, D.N.H. & Magiolino, L.L.S. (2022). Imagination et émotion dans la puissance créatrice de la subjectivité révolutionnaire : une rencontre entre Spinoza, Marx et Vygotskij. In Schneuwly, B., Martin. I., & Silva, D.N.H. (Eds.), L.S. Vygotskij - Imagination: textes choisis (1ed., V. 1, pp. 491-508).).

Referências

  • Capucci, R. R., & Silva, D. N. H. (2018). “Ser ou não ser”: a perejivanie do ator nos estudos de L.S. Vigotski. Estudos de Psicologia. 35(4), 351-362. http://dx.doi.org/10.1590/1982-02752018000400003
    » https://doi.org/10.1590/1982-02752018000400003
  • Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir (Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna, 317 pp.). Fabrecatum.
  • Daniels, H. (2010). Motives, emotion, and change. Cultural-historical psychology, 2, 24-33.
  • Delari Jr., A., & Bobrova Passos, I. V. (2009). Alguns sentidos da palavra “perejivanie” em Vigotski: notas para estudo futuro junto à psicologia russa. Anais do III Seminário Interno do Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem, Campinas, pp.1-40.
  • Diderot, D. (1769/1979). O paradoxo do comediante. Textos escolhidos.(Trad. e notas de Marilena de Souza Chauí, J. Guinsburg, 462 pp.). Abril Cultural.
  • Ferholt, B. (2009). The development of cognition, emotion, imagination and creativity as made visible through adult child joint play: Perezhivanie through play worlds (Unpublished doctoral dissertation). University of California.
  • Fleer, M., González Rey, F., &Veresov, N. (Org.). (2017). Perezhivanie, Emotions and Subjectivity: Advancing Vygotsky’s Legacy (265 pp.). Springer.
  • Magiolino, L. L. S. (2014). A significação das emoções no processo de organização dramática do psiquismo e de constituição social do sujeito. Psicologia & Sociedade, 26 (n. spe. 2), 48-59.
  • Magiolino, L. L. S., & Smolka, A. L. B. (2013). How do emotions signify? Social relations and psychological functions in the dramatic constitution of subjects. Mind, Culture, and Activity, 20(1), 96-112.
  • Prestes, Z., & Tunes, E. (2011). Notas biográficas e bibliográficas sobre L. S. Vigotski. Universitas: Ciências da Saúde, 9(1), 101-135.
  • Sawaia, B. B., & Magiolino, L. L. S. (2016). As nuances da afetividade: emoção, sentimento e paixão em perspectiva. In L. Banks-Leite, A. L. B. Smolka, & D. D. Anjos. (Org.), Diálogos na perspectiva histórico-cultural: interlocuções com a clínica da atividade (pp. 61-86). Mercado de Letras.
  • Sawaia, B.B., Silva, D.N.H. & Magiolino, L.L.S. (2022). Imagination et émotion dans la puissance créatrice de la subjectivité révolutionnaire : une rencontre entre Spinoza, Marx et Vygotskij. In Schneuwly, B., Martin. I., & Silva, D.N.H. (Eds.), L.S. Vygotskij - Imagination: textes choisis (1ed., V. 1, pp. 491-508).
  • Silva, A. E. B. (2008). Vakhtangov em busca da teatralidade [Dissertação de Mestrado]. Universidade Estadual de Campinas, Instituto das Artes III, Campinas.
  • Silva, D.N.H. (2006). Imaginação, criança e escola: processos criativos na sala de aula [Tese de doutorado Programa de Pós-graduação em Educação]. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
  • Silva, D. N. H., & Magiolino, L. L. S. (2018). Imaginação e emoção: liberdade ou servidão nas paixões? Um ensaio teórico entre L. S.Vigotski e B. Espinosa. In Sawaia, B. B., Albuquerque, R., & Busarello, F., Afeto & Comum: reflexões sobre a práxis psicossocial. (pp. 39-60). UFAM (AM), Aexa (SP), Edua (AM).
  • Smolka, A. L. B., & Magiolino, L. L. S. (2009). Modos de ensinar, sentir e pensar. Lev Vigotski: contribuições para a Educação. Revista Educação - Lev Vigotski (Coleção História da Pedagogia, n. spe. 2, , 30-39). Segmento.
  • Stanislávski. C. S. (1986). Dos Cadernos de Anotações [Iz zapisnyh knizhek]. Em 2 Vol. Moscou.
  • Toassa, G., & Souza, M. P. R. (2010). As vivências: questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas do legado do Vigotski. Psicologia USP, 21(4), 757-779. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400007
    » https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400007
  • Vakhtangov, E. (2000) Écrits sur le théâtre (391 pp.). L’age D’homme.
  • Van Der Veer, R., & Valsiner, J. (1996). Vygotsky: uma síntese. Loyola.
  • Veresov, N. (2016). Perezhivanie as a phenomenon and a concept: Questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, 12(3), 129-148.
  • Vigotski, L. S. (1919/2015) Teatro e Revolução. (Tradução P. N. Marques). O Percevejo Online, 7(2), p. 191–206. https://doi.org/10.9789/2176-7017.2015.v7i2.p. 191-206.
    » https://doi.org/10.9789/2176-7017.2015.v7i2.p.
  • Vigotski, L. S. (1925/1999). Psicologia da arte (377 pp.). Martins Fontes.
  • Vigotski, L. S. (1929/2000). Psicologia concreta do homem. Educação e Sociedade, 21(71), 21-44.
  • Vigotski, L. S. (1926/2001). A educação estética. In L. S. Vigotski, Psicologia pedagógica (pp. 323-363). Martins Fontes.
  • Vigotski, L. S. (1930/2009). Imaginação e criação na infância (135 pp.). Ática Editora.
  • Vigotski, L. S. (2018). Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia (Trad. e Org. Zoia Prestes e Elizabeth Tunes; Trad.: Cláudia da Costa Guimarães, 176 p.). Santana. E-Papers.
  • Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
    » https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2021
  • Revisado
    26 Jul 2022
  • Aceito
    01 Set 2022
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br