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Teatro social dos afetos: sobre a potência da arte cênica na superação de relações opressivas na escola 3 3 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 4 4 Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br 5 5 Versão em inglês: Henrique Akira (Tikinet) traducao@tikinet.com.br 6 6 Apoio: Programa de incentivo à pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PIPEc/PUC-SP

Resumo

Considerando, a partir das reflexões de Vigotski sobre o trabalho criativo do ator, que a construção da personagem pode ser uma vivência transformadora em que o corpo e os afetos têm papel preponderante, apresentamos uma proposta cênica que transporta tais potencialidades às relações sociais como estratégia de superação da opressão social na escola. Trata-se do Teatro Social dos Afetos (TSA), cujos pressupostos são baseados em Spinoza, Vigotski e Boal, com destaque aos conceitos de emoção inteligente, catarse, corpo, dialética singular/universal e sofrimento ético-político. Exemplificamos a partir de uma intervenção cênica em escolas municipais, visando ao enfrentamento à violência de gênero na escola. As ações cênicas colocam o ator também como dramaturgo e a plateia como ator, entrelaçando-os no sentimento do comum e na potência de imaginar e ensaiar estratégias de superação de opressões cristalizadas nos afetos e nas relações sociais. Assim, no ato criador o sofrimento individual se transforma em ação coletiva.

Palavras-chave
teatro; catarse; corpo; dialética singular/universal; afetos; escola; opressão psicossocial ou sofrimento ético-político

Abstract

Considering, based on Vigotski’s reflections on the actor’s creative work, that character building can be a transformative experience in which the body and affections play a crucial role, we propose a scenic experience that transports such potentialities to social relations as a strategy for overcoming oppression at school. It is the Social Theater of Affections (TSA), the assumptions of which are based on Spinoza, Vigotski and Boal, especially on the concepts of intelligent emotion, catharsis, body, singular/universal dialectic and ethical-political suffering. As an example, we discuss a scenic intervention performed in municipal school aimed at confronting gender violence. The scenic actions place the actor as a dramatist and the audience as an actor, intertwining them in the feeling of the common and in the power to imagine and rehearse strategies to overcome oppressions crystallized in affections and social relations. Thus, in the creative act, individual suffering is transformed into collective action.

Keywords
theatre; catharsis; body; singular/universal dialectic; affections; school; sociohistorical psychology, ethical-political suffering

Introdução

Este artigo apresenta o Teatro Social dos Afetos (TSA) como metodologia de intervenção psicossocial, elaborada durante quatro anos de atividades na rede pública de ensino fundamental – anos finais, na cidade de São Paulo, com o objetivo de motivar os alunos à criação de grêmios estudantis, diminuir a violência e a evasão escolar, utilizando a metodologia do Teatro do Oprimido (TO), sob a coordenação de Kelly C. Fernandes, uma das autoras deste texto.

O TSA trata-se de uma derivação do TO, metodologia teatral sistematizada pelo teatrólogo Augusto Boal (1931-2009), que visa à transformação de realidades cotidianas marcadas por desigualdade e opressão, por meio de ações sociais concretas como a democratização do fazer artístico, o protagonismo do espectador, a liberação dos oprimidos e da potência do teatro como linguagem humana.

As atividades se iniciaram com teatro fórum, uma das técnicas do TO. Nela, são criadas peças baseadas em histórias verídicas de opressão, sobre as quais o grupo quer dialogar com um público específico. O protagonista da peça é o oprimido e o antagonista, o opressor. Essas peças são construídas coletivamente e mediadas pelo “curinga”7 7 Vale destacar que estamos de acordo com esse termo utilizado no TO, o qual, segundo Santos (2016), é um/uma artista-ativista em constante aprendizagem. Esse conceito será aprofundado abaixo. , nomeado assim por Boal (2005)Boal, A. (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. (7a ed.). Civilização Brasileira., que, além de mestre de cerimônia, pode ser o mediador do processo grupal.

O Teatro Fórum – talvez a forma de TO mais democrática e, certamente, a mais conhecida e praticada em todo o mundo – usa ou pode usar todos os recursos de todas as formas teatrais conhecidas, a estas acrescentando uma característica essencial: os espectadores – aos quais chamamos de espect-atores – são convidados a entrar em cena e, atuando teatralmente e não apenas usando a palavra, revelar seus pensamentos, desejos e estratégias que podem sugerir, ao grupo ao qual pertence, um leque de alternativas possíveis por eles próprios inventadas: o teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real e não um fim em si mesmo

(Boal, 2005Boal, A. (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. (7a ed.). Civilização Brasileira., p. 19).

Essa técnica foi utilizada com o intuito de fomentar a reflexão sobre as desigualdades sociais, a violência na escola e a importância da ação coletiva para o enfrentamento dessa condição social injusta. A ideia também era formar professores como multiplicadores do Teatro do Oprimido. Porém, durante nossa atividade com os professores e com os jovens, fomos percebendo a necessidade de introduzir a técnica arco-íris do desejo (Boal, 2002Boal, A. (2002). O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. (2a ed.). Civilização Brasileira.), aprofundá-la e criar outros elementos para dar conta dos afetos que insistiam em demonstrar sua centralidade positiva no processo de conscientização das forças sociais opressoras. Assim, criamos novos jogos e técnicas como: afeto e instituições, os “desescutadores”, acordos grupais, entre vários8 8 Esses jogos e a própria metodologia ainda estão sendo investigados em termos de dramaturgia e novos jogos e técnicas. Os jogos e técnicas estão descritos no ebook Teatro social dos afetos nas escolas (Di Bertolli & Garcia, 2021) e parte delas na tese Teatro social dos afetos (Fernandes, 2019). Ressaltamos que a aplicação do TSA exige prática. Esta pesquisa só foi possível porque tanto a coordenadora quanto o grupo Coletivo Garoa, que aplicou o TSA nas escolas, já possuíam anos de prática nas técnicas abordadas. O artigo é demasiado curto para expor todas as relações entre TSA e TO, portanto convidamos as/os leitoras/es que se interessarem por conhecer melhor essas questões a consultarem a bibliografia encontrada nas referências, inclusive a dissertação de mestrado Teatro do oprimido: em busca de transformação social (Fernandes, 2014). .

Logo percebemos que, antes da ação política, e sustentando-a, estavam os nós da opressão e da violência, que eram, inclusive, os assuntos mais escolhidos para as encenações. Os temas das peças propostos pelos jovens giravam em torno dos conflitos cotidianos vividos na escola e na família e os sofrimentos vivenciados. Nessas instâncias, relatavam tentativas de suicídio, automutilação, abuso sexual, assédio, homofobia, abandono, rejeição por parte dos pais e violência doméstica envolvendo drogas. Os professores reclamavam da violência relacionada à hierarquia na instituição escolar, como problemas com a equipe escolar, incluindo a sabotagem de projetos na escola, questões de gênero e violência dos alunos. Durante as criações e as apresentações das peças, foi possível perceber circuitos de opressões dentro do ambiente escolar, no qual os socialmente oprimidos viravam opressores de seus pares, sem lugares fixos. Muitas vezes, uma pessoa que era agente da opressão em uma situação, era a oprimida em outra. Também, a escola se tornava cúmplice da violência quando chamava a polícia para resolver uma questão de bullying9 9 Utilizaremos a palavra bullying neste texto, considerando que ela circula entre os jovens e na comunidade escolar para indicar assédio escolar entre pares. Porém, tendo em vista que a palavra pode mascarar tensões ligadas a opressões como racismo, machismo, homofobia, destacamos que seu sentido no texto se aproxima da ideia de “síndrome do pequeno poder” de Saffioti (1989), que indica o sentimento ilusório de poder que reproduz a violência entre pares, contaminando todas as relações na escola e encobrindo a violência estrutural. e pelo fato de a violência ser sistematicamente produzida no ambiente escolar, perpetuando-se. Vejamos um relato de Kelly:10 10 Kelly C. Fernandes, coordenadora do projeto e coautora deste texto.

Durante o período de treinamento dos professores nas técnicas do TO, eu realizava visitas de apoio semanais.11 11 As visitas de apoio eram realizadas nas escolas durante o processo de aplicação do TSA, de modo que fosse possível garantir que os professores não estivessem sozinhos diante das dificuldades na reaplicação da metodologia. No dia em que os alunos apresentaram uma peça sobre bullying, fiquei sentada com o público, atenta às falas da peça e também às conversas paralelas que se davam na plateia. Um garoto próximo a mim estava batendo e humilhando um outro menino menor, autista. Era tamanha a brutalidade que precisei intervir, pedindo que ele parasse de bater no pequeno, mas não adiantou. A agressividade desmedida estava sendo realizada em ato, ao mesmo tempo que a cena “fictícia” sobre violência era apresentada. Vale pontuar que, durante a cena, a polícia militar estava na sala da direção, resolvendo “uma questão de bullying”; inclusive, esse foi o motivo para que a diretora não fosse assistir a peça. Então, indignada com a violência, foi impossível não intervir de maneira incisiva, infelizmente reativa. Era sabido que alguns jovens tentaram suicídio por conta do “bullying”; ademais, nesse dia uma garota tinha dado seu depoimento a uma das pessoas da equipe do TO, narrando o desejo de tirar sua vida por conta da violência continua e insuportável na escola. Então, eu disse, de maneira cortante, para o jovem que não cessava de atormentar o garoto autista: “Você sabia que tem muita gente que se mata por causa de bullying?” e ele respondeu enfático: “Sim, E daí? Eu também vou me matar, quando tiver 18 anos, e vou matar todo mundo que me fez mal.” Me calei e lembrei da fala da escola, que ele era um menino “problema”. Fiquei intrigada, e o procurei para conversar, logo após a cena. Foi comovente, pois quando olhei nos olhos do garoto, ele ficou emocionado como se não tivesse sido olhado há muito tempo. Seus olhos lacrimejaram e ele disfarçou. A sensação foi de que, por um momento, ele havia deixado de ser “fantasma”, começamos a conversar, era evidente que ele tinha uma gagueira que o fragilizava, e sua fraqueza desmistificava seu jeito de valentão, trazendo contradição para o rapaz de calças rasgadas e cara de mau. Ele contou sobre sua vida sem mãe, sobre abandono e abuso. A narrativa era permeada por sofrimento, de forma que o menino “problema”, agressivo e que batia nos menores e mais fracos, se mostrava um ser humano sensível e sofrido. Logo, pensei na potência do teatro e dos vínculos em um grupo para acolher o garoto; então, perguntei a ele se queria fazer teatro, e ele respondeu de pronto “Sim!”.

No dia seguinte, logo na entrada, encontrei o mesmo menino; ele me olhou, e começou a bater em uma outra criança na minha frente, com o olhar voltado para mim, certificando-se de que eu estava vendo sua ação agressiva. Fiquei pensando no significado daquela atitude, que precisava do meu olhar atento de expectadora. Seria um pedido de ajuda? Um arrependimento da emoção expressada no encontro anterior? Uma demonstração que estava totalmente preso ao rótulo de problema? (Relato de Kelly Fernandes).

Não havia uma só pergunta e nem uma resposta, mas uma única certeza: por trás da violência havia o terrível sofrimento do garoto, demonstrando que ela não é uma entidade abstrata, com vida própria, ou inerente à personalidade do menino ou às paredes da escola. Ela é alimentada por afetos tristes, como nos ensina Spinoza ao analisar as causas da servidão, que equivale a violência, afetos de ódio, medo, humilhação, dentre outros (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677).

A violência na escola não se reduz à relação professor opressor e aluno oprimido, ou aluno bom e aluno ruim, concepção que tendia a culpabilizar, patologizar e/ou criminalizar os jovens, estigmatizando-os como alunos “problema” e suas famílias como “desestruturadas” e com “carência cultural”. Desta maneira, o sofrimento das crianças e jovens disfarçava o preconceito e os estereótipos reproduzidos na instituição12 12 Patto (2015), em seu estudo sobre fracasso escolar, aponta a história de um movimento na escola que, ao propor trabalhar com afeto e emoção, isola os sujeitos, tornando-os “alunos problema”, sujeitos que precisam ser “normatizados”. . A violência na escola é bastante complexa, envolve o conselho tutelar, a polícia, a medicina e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)13 13 Entidade vinculada ao SUS. , mas não de forma interativa, olhando a criança/adolescente em sua totalidade. Ao invés de se articularem, o que ocorre é que esses campos jogam um para o outro a responsabilidade, de forma que a violência fica circulando nas instituições, um encaminhando ao outro, endossando, assim, fazeres contrários a seus objetivos.

Ficava cada vez mais claro, no decorrer das atividades de teatro, que não estávamos lidando com a violência ou com um menino violento, mas com um clima afetivo marcado por paixões tristes, como a melancolia, o medo, a raiva, o ódio, a vingança, envolvendo alunos, professores e pessoal administrativo. Um clima em que a opressão era o modelo de relação. A professora, que sofre a opressão de gênero em sua casa, é a opressora nas salas de aula, as crianças e adolescentes, que sofrem da brutal desigualdade e injustiça, tornam-se algozes de seus pares, reproduzindo a opressão de gênero, de raça e contra deficientes e mais fracos. Essa reprodução da opressão entre iguais é um dos sustentáculos da alienação: a quebra do comum, da união dos que partilham a opressão estrutural, o que poderia fortalecer a luta coletiva contra a opressão.

Também constatamos que os professores sentiam, mesmo que confusamente, que esses afetos tristes, polarizadores e violentos eram imunes à razão: não havia conselhos, reflexões e castigos que os persuadissem a mudar, levando os professores a usarem a violência e a criminalizar as paixões tristes.

Nessa atmosfera afetiva que atravessava as relações na escola, nada propícia ao objetivo de fomentar a participação política ou de enfrentar a evasão escolar, era preciso trabalhar, em primeiro lugar, os nódulos opressivos sustentados pela instituição. Todavia, indo além, trabalhar os afetos tristes que os alimentavam, ao mesmo tempo que eram produzidos por eles. O que nos levou a aprofundar a análise dos afetos, buscando dois pensadores que superaram a dicotomia razão/emoção: Vigotski, psicólogo e crítico de arte russo, criador da teoria sócio-histórica do psiquismo; e seu filósofo preferido, Spinoza, um revolucionário que introduz os afetos como lugar da ética e campo da política14 14 O objetivo não é apontar falhas na obra de Boal, um grande pensador nunca é reducionista, mas indicar os fios que ele lança para que outros possam avançar sua obra, sendo um deles a emoção e a catarse. Boal reflete sobre a emoção, especialmente quando ele destaca o pensamento sensível e o pensamento simbólico como dimensões da estética. “Pensar é sobretudo sentir”, diz ele, como sempre dando uma aula de psicologia. Também, inspirado em Stanislavski, fala sobre o valor da emoção na interpretação do ator. .

Emoção

Segundo Vigotski (1926/2010)Vigotski, L. S. (2010). Psicologia pedagógica (P. Bezerra, trad., 3a ed.). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1926, ninguém age, pensa e sente sem estar emocionado. As emoções constituem a motivação de nossas ações e são frutos de nossa condição social. Aquele menino que batia em outro, menor e autista, não temia que ele morresse, pois ele próprio iria morrer logo. A cena revela um drama afetivo comandado pela (des)esperança, que é a essência do espírito trágico, que, por sua vez, conduz à resignação e/ou à violência. Trata-se do sentimento de que a vida não pode oferecer nenhuma satisfação, portanto não merece nossa lealdade nem nosso esforço, aprisionando-nos à inexorabilidade do presente que nos amedronta.

“Quando a mente imagina sua impotência, por isso mesmo, ela se entristece .... Essa tristeza é ainda mais intensificada se a mente imagina ser desaprovada por outros”. (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677, p. 227). Desde o início de nossas intervenções na escola, era visível o recrudescimento, na instituição, das paixões tristes, movidas pelo desejo de destruir a alegria alheia, pela inveja e por ódio. Aos poucos, fomos constatando o que já havíamos aprendido com Spinoza e Vigotski: as relações sócio-históricas são vividas e sustentadas por redes de afetividades que tecem o cotidiano da comunidade escolar expressas nos corpos e rituais. A opressão, na perspectiva spinozista (Spinoza, 1677/1977Spinoza, B. (1977) Tratado político (M. Castro, trad., 2a ed.). Estampa. (Obra original publicada em 1677)), é vista como um regime de pessoas tristes, no qual todos são servos do medo, ainda que com privilégios diferenciados. Os que exercem o poder precisam do medo do oprimido para se manterem, ao mesmo tempo que têm medo de perder o poder e precisam da tristeza dos subalternos para viver. Os que sofrem a dominação, por sua vez, têm medo do poder do opressor, de sua violência, sendo obrigados muitas vezes a renunciarem a sua autonomia e liberdade. Estes, uma vez no reino das paixões alienantes, oprimem seus próprios pares, criando marcadores de diferenciação social, especialmente o de gênero, como já narrado acima.

Para caracterizar esses afetos dos que sofrem desigualdade e opressão, Sawaia (1999)Sawaia, B. B. (1999). Artimanhas da exclusão: uma análise ético-psicossocial da desigualdade. Vozes. se vale da expressão sofrimento ético-político, visando destacar que os afetos sintetizam a opressão e a desigualdade na dimensão subjetiva. Esse conceito permite trabalhar a opressão na dialética singular, particular e universal, sustentando a ideia de que ela é social, histórica, econômica e política, ao mesmo tempo em que é sustentada, experimentada e vivida singularmente, a partir das relações sociais e dos afetos que estas produzem. Portanto, como nos ensina Spinoza, para analisar e tratar a violência, não se deve criticar e eliminar os afetos que a sustentam, mas compreendê-los para transformá-los (Spinoza, 1677/1977Spinoza, B. (1977) Tratado político (M. Castro, trad., 2a ed.). Estampa. (Obra original publicada em 1677), p. 11).

Assim refletindo, o filósofo nos demonstra sua tese revolucionária de que a vida ética está nos afetos, ela começa quando as paixões mais fortes, de alegria, sobrepujam as mais fracas, relacionadas a medo, ódio, vingança e inveja. Os afetos não são contingentes, são ontológicos, refletem o aumento ou diminuição de nossa potência de agir e pensar. Quando os encontros não compõem com nossa potência, reduzindo-a, a mente imagina a impotência do corpo, o que é experimentado como tristeza. Quando ocorre o contrário, sentimos alegria. Em outras palavras, o afeto é o marcador da variação de minha potência de vida – há uma ligação existencial entre os afetos alegres e autonomia, que, por sua vez, está ligada à resistência ativa e ao sentimento do comum, portanto à cidadania. O contrário ocorre com os afetos tristes, que estão ligados à servidão, à violência e à polarização vingativa (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677).

É essa concepção de emoção que orienta o TSA15 15 O TSA é destinado ao trabalho com comunidades e grupos, facilitando a vivência de emoções jamais experimentadas e a busca das ideias adequadas dessas afetações em um ambiente democrático, que tensiona as relações em direção à potencialização dos sujeitos à transformação social. : a emoção racional ou razão emocionada16 16 É importante ressaltar a zona de ressonância entre TSA e TO sobre a emoção, representada pela frase de Boal: “a emoção em si, desordenada e caótica, não vale nada. Não podemos falar de emoção sem razão ou, inversamente, de razão sem emoção” (Boal, 2006, p. 7). , que se encaminha a sua outra categoria analítica central, a catarse como reação estética da arte.

Catarse vigotskiana17 17 Vigotski, foi defensor do teatro como instrumento pedagógico e revolucionário. Foi crítico de arte e buscou a psicologia para entender a recepção da obra de arte, concluindo que a psicologia precisa da arte e não o inverso, reflexões que ele publica em seu primeiro livro denominado Psicologia da Arte (1965/1999), no qual dialoga com Stanislavski, Tolstói e vários outros artistas da vanguarda russa, e apresenta seus pressupostos sobre arte e catarse.

Considerando que a opressão é vivida como paixões tristes, especialmente o ódio, a humilhação, o medo, a vingança que enredam os indivíduos em relações violentas, e que uma emoção não se transforma por uma ideia, mas pela ação de uma emoção mais potente e contrária, o TSA aposta na catarse vigotskiana, caracterizando-se como teatro catártico.

A catarse do TSA não é a aristotélica, não visa à harmonização, ao desabafo ou ao controle das emoções, na forma de risos ou choros, dentro do paradigma da adaptação, mas o confronto com outras contrárias e mais poderosas, levando espectadores e atores a experimentarem emoções jamais vividas, de forma a mudar a constelação de afetos negativos que os mantém na servidão18 18 Boal, já em seus escritos, nos entusiasmou a avançar em relação aos estudos sobre catarse no TSA; em O arco-íris do desejo ele diz que: “A finalidade do Teatro do Oprimido não é criar repouso, o equilíbrio, mas é de criar o desequilíbrio que dá início a ação. Seu objetivo é dinamizar. Essa dinamização e ação que provém dela (exercida pelo expect-ator) destroem bloqueios prejudiciais que proibiam a realização dessa ação. Isso quer dizer que ela purifica os espectadores, que ela produz uma catarse. A catarse dos bloqueios prejudiciais. Que seja bem-vinda!” (Boal, 2002, p. 83) .

Analisando a violência na escola por essa perspectiva, entende-se que não seria com a truculência, isolamento de alguns jovens ou a punição destes que se modificaria o cenário relacional; ao contrário, com emoções contrárias de generosidade, reconhecimento e amizade, entre os jovens. “Não é pelas armas [no caso dos jovens, a violência], entretanto, que se pacificam os ânimos, mas pelo amor e pela generosidade” (Spinoza, 1677/2013, p. 353).

Era preciso imaginar e oferecer outras maneiras de o corpo afetar e ser afetado por outros corpos, imaginar coisas antes impossíveis de serem pensadas, criar novas práticas no cotidiano que saíssem do padrão automatizado e do reino das paixões tristes19 19 “A alegria é dinâmica, social e crítica, a tristeza tende a ser imobilista, solitária e fatalista” (Boal, 2009, p. 241) . Nesse contexto, o TSA passou a exercer a função de um espaço de experimentação do diferente, e de motivação da ação coletiva. Os alunos que eram taxados de violentos, passaram a ser vistos como seres de paixão e de imaginação, nem bons, nem maus, que sofrem a opressão, mas se oprimem entre si, pensando ilusoriamente deter poder, sob as forças de sustentação da desigualdade estrutural capitalista e colonialista que cristalizam identidades e afetos estereotipados na escola. Não havia o oprimido e o opressor, o violento e o cordato, mas seres buscando perseverar na existência, um desejo que jamais é destruído. Mesmo adestrados, ou dessensibilizados, o corpo e a mente não perdem a potência da vida.

Temos aqui a ontologia do TSA. Ela rompe com visões estáticas e monolíticas das determinações sociais perversas sobre os oprimidos, que entendem que os pobres não têm sutilezas afetivas e a determinação social é absoluta, criando dois tipos de pessoas: as que têm direito a emoções alegres e as que não têm. Sua concepção de ser humano como ser de desejo e imaginação demonstra que as determinações, por mais severas, não conseguem destruir a potência de vida que caracteriza todos os seres, e que o ser humano não é bom ou mau, mas um ser de paixão e imaginação, cujo psiquismo tem que ser analisado como drama, flutuante e conflituoso. O objetivo do TSA é recuperar a positividade das emoções ao conhecimento, entendendo que elas não ocupam lugar hierarquicamente inferior à consciência ou a razão, risco que o exercício do TO corre, embora Boal afirme a união entre razão e emoção.

São esses os pressupostos que orientam as formas de ação do TSA e que nos levaram à inspiração no arco-íris do desejo; são esses também os elementos dos círculos restaurativos do TO20 20 As técnicas de arco-íris do desejo de Boal nos inspiraram na elaboração do TSA. São técnicas consideradas introspectivas, jogos e encenações que utilizam palavras e sobretudo imagens na teatralização de opressões introjetadas, que pretendem mostrar onde elas tiveram origem, sendo que elas sempre guardam relação com a vida social (Boal, 2005). Os círculos restaurativos também nos inspiraram em suas práticas, eles são uma modalidade da Justiça Restaurativa, que, em sua prática circular, busca construir um espaço de confiança, sem julgamentos, no qual, através de uma pergunta geradora, ocorre a contação de histórias pessoais, que possibilitam a reparação das relações, responsabilizando o autor da violência e a comunidade envolvida no processo em reparar o dano causado pela violência. Entende-se que todos os participantes têm necessidades não atendidas que precisam ser olhadas. Dessa forma, constrói-se um espaço para o consenso das formas em que a reparação irá ocorrer. . Apresentamos a seguir algumas das dimensões da forma de atuar do TSA:

1. Garantia da distribuição conjunta das vivências emocionais na relação ator-espectador, de forma que o espectador não ocupe uma posição passiva, contrapondo-se a Stanislavski, que coloca ênfase na capacidade do primeiro de seduzir ou encantar o segundo. Para Vigotski, a arte do ator consiste em provocar o interesse do espectador para o meio social circundante e não para suas habilidades artísticas ou para sua psicotécnica. Isto porque a função do papel representado é ser uma “imagem semântica generalizada”.

2. Sentimento do comum e a co-emoção: o TSA, em consonância com o que fala Vigotski (1965/1999)Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, trad.). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1965), não objetiva o contágio dos afetos, não busca que os outros atores do grupo, ou mesmo os espectadores, sejam movidos por emoções idênticas às da personagem, mas que estas promovam novas vivências. Seria muito triste se o teatro se reduzisse ao contágio. “Não se pode admitir nem a ideia de que seu papel se reduza a comunicar sentimentos e que ela não implique nenhum poder sobre seus sentimentos.” (Vigotski, 1965/1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, trad.). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1965), p. 310). É fundamental essa distinção, tendo em vista que a co-emoção pode ser extremamente alienante e arrebatadora, como acontece muitas vezes quando se assiste a novelas ou séries – nas quais, em grande parte, vivencia-se a emoção da personagem e afasta-se da vida real e de si próprio, assumindo uma vida paralela de fantasia. Uma peça triste não objetiva causar apenas tristeza nos espectadores, mas transformar a tristeza em algo diferente, promover o estranhamento, a reflexão e a transformação das emoções e ideias.

[se] vivo com Otelo a sua dor, os seus ciúmes e tormentos, ou o terror de Macbeth diante do espectro de Banquo, trata-se de uma co-emoção; se temo por Desdêmona, quando esta ainda ignora o perigo que corre, trata-se da emoção do próprio espectador, que precisa ser distinguida da co-emoção (Vigotski, 1965/1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, trad.). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1965), p. 262).

É desse modo que o TSA visa afetar a emoção do espect-ator, o que envolve imaginação e a singularidade, olhando-o como “testemunha”, para trabalhar o sentimento do comum. A testemunha, que não está da mesma forma sendo oprimida, pode contribuir para manter a opressão quando se omite e se escolhe não perder seus privilégios. Testemunha: entendida, na perspectiva de Paulo Freire (2005)Freire, P. (2005), Pedagogia do oprimido. (49a reimp). Paz e Terra, como ocupante de lugar diferente dentro das forças de opressão, o que lhe possibilita, de modo geral, um poder de agir sobre as forças opressoras de forma diferenciada e, de modo específico, de acordo com o espaço relacional vivenciado. Ser testemunha não os tira do lugar de excluído, mas os situa diferentemente dentro das forças de opressão naquele espaço.

3. Corpo: Uma das forças do teatro nas escolas é a possibilidade de trabalhar o corpo vivo e potente para a ação e a mente para a reflexão. Além das ideias, as imagens corporais criadas nos jogos teatrais desenvolvidos na escola e na reflexão das afetações que elas promoveram, possibilitaram observar os corpos, seus gestos, seus rituais e os códigos sociais nele encravados, bem como o sofrimento e as pequenas alegrias que configuram o cotidiano da violência nas escolas. O corpo que sofre a servidão pode perder a sensibilidade de ser afetado e afetar como fala Spinoza (1677/2013)Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677 sendo orientado por estereótipos sociais. O TSA busca orientação no TO para ampliar o campo de expressividade dos corpos e se inspira no gestus e em Brecht para composições cênicas nas quais o corpo e suas expressões revelam as contradições sociais em cada personagem, para que cada um possa sentir com o outro, fazendo com que o jovem se defronte com sentimentos desconhecidos.

4. Com relação à criação do personagem, é necessário destacar a diversidade, o trabalho coletivo, a improvisação e a junção entre autor e ator: a rigidez de identidade, de afetações, é contrária à potência de vida, os corpos são potência em ato, a fixação em uma dor, sofrimento, é um constrangimento das possibilidades de composição de um corpo, contrário à ordem necessária de sua natureza (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677, p. 179). Daí o recurso de viver diferentes personagens e inverter papéis no TSA. Quanto mais diversos forem os encontros, mais diversas as afetações e mais apta a potência de agir e pensar de nossos corpos e mentes.

Para criar a vida de uma personagem, pode-se ativar o ator por meio de ações físicas, por exemplo: o ator pode ser perseguido por outro, e na ação de correr do perigo, sentir medo. Outras correntes procuram o medo nas memórias do ator e acessam essas emoções emprestando essas memórias para a personagem, sem a necessidade de a ação física ser a propulsora da emoção. O TSA considera a técnica da vivência em cena como propulsora da emoção: ainda que o trabalho com a memória seja ativado de maneira intensa nas atividades, procura-se a criação e a vivência dos encontros entre os personagens e com a plateia.

5. O TSA também trabalha com o curinga, classicamente considerado o mediador e fomentador do debate, ponderando, como dizia Boal (Barbara Santos, Helen Sarapeck, Geo Britto e outros curingas) que ele nunca é neutro e sempre tem um lado, o lado dos oprimidos. Ele nunca deixa de questionar ou até mesmo impedir que modos de opressão sejam operados durante a aplicação do teatro. Por exemplo, em uma sessão de teatro fórum em que formas opressivas sutis podem estar sendo reforçadas, o curinga há de se posicionar visando a promoção da catarse. Ele trabalha segundo a proposta de perguntas geradoras de Paulo Freire, para fomentar o debate. Inclusive, é importante que sejam perguntas para as quais o curinga não saiba a resposta, para constituir um diálogo genuíno, já que não se trata de reafirmar nossas opiniões. Mas o “como” se pergunta importa tanto quanto “o que” se pergunta, pois o curinga trabalha com emoções. Assim, pode ajudar a promover a catarse, o confronto das emoções e a reflexão sobre elas, entendendo que elas constituem o subtexto da consciência.

Nesses mais de 20 anos praticando cotidianamente e pesquisando a atuação do Teatro do Oprimido, vemos a fragilidade do/a curinga e a importância de enunciar esses momentos para uma reflexão coletiva tal como proposto no artigo. Ele/ela é um ser humano e está suscetível a ser afetado pelas falas dos espect-atores, o que pode influenciar o debate, nem sempre promovendo diálogo em busca da transformação social. O/a curinga pode ter raiva, e terá: a questão é como usá-la estrategicamente para processos de transformação e não apenas para produzir mais violência, especialmente no contexto escolar no qual se insere o texto.

Os grupos criam as peças e estas com frequência se baseiam em histórias reais, individuais ou coletivas, ou em suas vivências, as quais se transformam coletivamente em metáforas, em ficção, além de se conectarem a dados reais do contexto social que envolvem o tema da peça. Não há um texto dramatúrgico prévio; ele é construído no processo criativo do grupo, nas falas de cada personagem, bem como as ações físicas e os gestus21 21 A ampliação do campo de expressividade enquanto gestus, da forma compreendida neste artigo, refere-se ao conceito desenvolvido por Brecht (2005) e diz respeito a uma construção de gestos que denotam a situação social do personagem, apontando contradições e ambiguidades. Ou seja, refere-se a uma composição cênica que revela as contradições impostas pelo campo do social. O trabalho do ator de modular seu corpo, sua voz, para além da sua própria máscara social, contribui para que, por exemplo, a acentuação da palavra ou do modo de andar, interfiram na lógica da personagem. Brecht (2005) traz o conceito de gestus, o qual é importante para que se pense o corpo do ator e suas máscaras sociais. Assim, as imagens na cena ou jogo teatral não devem ser vistas apenas como parte da individualidade, mas como atitudes sociais. Investigá-las e analisar como o corpo se relaciona em relação aos outros em determinadas circunstâncias é de suma importância para que seja possível compreender as personagens para além de seu caráter. “Os gestus se compõem de um simples movimento de uma pessoa diante de outra, de uma forma social ou corporativamente particular de se comportar” (Pavis apud Piacentini, 2018, p. 35). “As atitudes que as personagens tomam umas com as outras e que constituem o que denominamos domínio gestual. As atitudes corporais, entonações, jogos fisionômicos são determinados por um gestus social: as personagens se xingam, se cumprimentam, trocam conselhos” (Brecht apud Piacentini, 2018, p. 35). em cena.

O TSA prioriza a criação coletiva da dramaturgia o que dá liberdade para que não se prendam em “como dizer” um texto já pronto, para que não fique mecanizado, e tomem um tempo longo de preparação dos atores. Isso não quer dizer que não haja o trabalho de desmecanização das falas, pois mesmo que estas sejam criadas pelos atores, a tendência é cristalizar um jeito de falar que, muitas vezes, não se relaciona com o que a personagem sente ou deseja. O TSA é sempre improvisação. Quando a criação do grupo for apresentada, os atores, além de representarem a peça, improvisam com o público, que acaba partilhando o protagonismo.

Para ilustrar, apresentamos uma cena do TSA: “O caso do shortinho”. A cena a seguir é uma das primeiras atividades do TSA, que ajudou em sua elaboração22 22 Narração extraída da tese de doutorado de Fernandes (2019). . Ela aconteceu em uma sala de aula que era considerada “problema”, visto que reunia muitos dos “alunos problema” ou os “difíceis de lidar” em um mesmo espaço. Importante mencionar que essa instituição escolar tem uma longa história que dá suporte a esses estigmas vigentes. O grupo que participou tinha aproximadamente 25 alunos, com idades entre 13 e 15 anos, incluindo jovens cadeirantes, adolescentes grávidas, autistas e garotos em liberdade assistida, que já haviam decidido que o tema escolhido pelos alunos seria o machismo. A sala contava com grande polarização de opiniões sobre o tema; algumas garotas eram ativistas feministas com muitas informações sobre sua luta pelos seus direitos; alguns garotos convencidos que o machismo era uma posição de privilégio natural e que não deveria ser questionada23 23 Vale ressaltar que não estamos igualando o grupo em relação às opressões que circulam na sala de aula. Machismo não se equipara à luta feminista, o feminismo é luta pela libertação e o machismo representa o conservadorismo. O ponto é que os dois grupos estavam em um campo de luta em que o machismo precisava ser combatido. Para tanto, os meninos precisavam sentir desconforto em suas posições. Daí levá-los a interpretar mulheres com quem mantinham vínculos afetivos. . Ainda, havia uma parte da sala que preferia não se posicionar. Importante sublinhar que não havíamos sido informados de que o tema debatido seria o machismo; aliás, nem a professora sabia. Foi uma surpresa para toda a equipe a organização dos jovens, esperando nossa chegada na escola.

Os jovens dessa escola já conheciam o debate mediado pelo teatro, visto que havia um grupo atuante há mais de um ano que, inclusive, realizou apresentações públicas na escola. No ano anterior, havia sido apresentada uma peça sobre machismo para os alunos dos anos finais do ensino fundamental dessa escola, reunindo mais de 200 jovens no pátio para assistir à peça. O debate promovido por essa peça foi fervoroso, causou muita polêmica entre os jovens mas não provocou mudanças nas relações, levando-nos a rever a questão dos afetos no teatro voltado à superação da dominação. Começava, ali, a criação do TSA.

A peça “O caso do shortinho”, apresentada em 2014, foi criada pelo grupo que participava do TO voltado à criação do grêmio escolar. Tratava de como as garotas, tanto na rua como na escola, sofriam assédio. Apontava, rigidamente, para o problema de o uso de roupas curtas estar associado ao abuso sexual. Esse grupo de estudantes, a partir do compartilhamento de histórias reais de opressões que viviam na escola, elegeram o machismo como tema urgente a ser discutido. As(os) estudantes narraram diversas histórias de opressões que viviam por conta do gênero, por exemplo: quando as meninas se abaixavam para pegar alguma coisa no chão os meninos começavam a assobiar e a zoar. As meninas relataram falas constrangedoras que ouviam na rua e contaram que os meninos desenharam obscenidades (pênis) nas cadeiras da escola para que elas se sentassem, caçoando delas.

À época, constatamos muitos estigmas como: mulheres que ficam com homens são galinhas e homens que ficam com mulheres são garanhões; mulheres têm que cuidar dos afazeres da casa e homens, não; mulheres que vestem certas roupas podem ser discriminadas; entre outros. Os meninos desse grupo, por sua vez, relataram a dificuldade de se expressar livremente, pois qualquer tipo de manifestação diferente das atitudes machistas era entendido como homossexualidade, suscitando violência. Os meninos narravam, também, sobre o incômodo com o tom pejorativo que acompanhava a palavra “viado”. Mesmo que os garotos do grupo não fossem homossexuais, relataram que sofriam com a homofobia. Logo, a questão de gênero e sexualidade foi vista por eles como algo urgente a ser debatido dentro do espaço escolar, para colocar em questão, inclusive, o bullying que, segundo os jovens, ocorria, em grande parte, em decorrência da discriminação que se constitui a partir dessa temática.

Assim, iniciou-se a criação da peça, que narrou a experiência de uma estudante que enfrentava o bullying; representando a violência de gênero, por conta de suas roupas, até chegar ao extremo de sofrer um abuso sexual. Quando a peça estreou na escola em que estudavam os jovens atores, as discussões realizadas foram polêmicas. As mais fervorosas giravam em torno dos trajes usados pelas garotas, o que eximia a culpa dos meninos. Repetiam, inclusive as meninas, que, se uma garota estivesse usando roupa curta, como short, ela “estava pedindo para ser abusada”. Aliás, tanto a proposta da cena quanto os comentários foram feitos por meninas que concordavam com a representação do abuso sexual de “meninas que não se vestiam direito”. Após a peça, um grupo de garotas esperaram as atrizes para uma briga; queriam bater nessas garotas que “se achavam”. Foi necessário que a equipe do projeto acompanhasse o grupo, mediando a conversa fora da escola para que não houvesse agressão física. No entanto, a polarização continuou aparecendo nos discursos e ações que a peça desencadeou na escola.

O teatro explicitou a polarização, mas não a resolveu. É válido considerar que erramos ao promover o embate violento entre os jovens, ao nos posicionarmos com raiva diante das opiniões machistas do público. Ficou evidente que a atitude raivosa, vinda dos atores e da equipe, só aumentou o ódio nos sujeitos com opiniões diferentes e não diminuiu o assédio na escola. De fato, não diminuiu a violência, ainda que, positivamente, tenha incentivado o desejo de debater mais sobre o assunto24 24 Neste caso, a curinga fez perguntas aos espec-atores, mas com muita raiva, em seu espaço de poder no palco faz uma pergunta, irada, diante do comentário do público. A ira da curinga, que aconteceu naquele momento diante de 200 jovens com opiniões muito diferentes sobre o caso do abuso sexual, foi um erro. Ela se posiciona com sua raiva pessoal, decorrente de todos os abusos que ela própria sofreu e, ao se posicionar desta maneira, infla os ânimos dos jovens, inclusive de meninas que achavam que quem usava shortinho estava pedindo para ser abusada. Dessa forma, impediu que um diálogo fosse possível e a luta, que era para que os abusos acabassem na escola, não ganhou com esse posicionamento da curinga. Já que o compromisso da figura do curinga é com a transformação social, é preciso ter responsabilidade pelas consequências de uma intervenção teatral que coordena. .

Enfim, a discussão, mediada pelo teatro, colocou luz no tema do machismo nessa escola, que era rotineiro e quase naturalizado, passando a provocar estranhamento. Inclusive, houve mobilização de algumas professoras, que criaram um espaço para discutir questões de gênero e violência na escola, desenvolvendo atividades extracurriculares sobre o tema. Entretanto, após essas vivências, a coordenação da escola convenceu a supervisão escolar a afastar a equipe do teatro.

Após um ano, voltamos à escola, para uma visita de apoio à professora, que estava aplicando técnicas e jogos teatrais com seus alunos. Quando chegamos, logo na porta de entrada, a coordenadora olhou-nos nada receptiva; na verdade, fingiu que não nos viu. Ela não saiu de sua sala, com a porta semiaberta ficou em silêncio diante da nossa invisibilidade desejada.

Imediatamente, veio pelo corredor a professora que estava treinando a técnica do TSA. Estava sorridente. Eis que ainda no corredor da escola aparece um professor com a testa sangrando. Ele reclamava dos “marginais” que jogaram um apagador na sua cabeça, dizendo que “por causa de alguns marginais ninguém na sala estuda”. Afirmava também, com ódio e vitimização: “eles me agrediram”.

A professora nos olhou com certo embaraço, dizendo: “é pra essa sala que nós vamos”. Nos entreolhamos e respiramos fundo sabendo que o momento era delicado. Pensamos que a classe iria discutir esse fato, já que acabara de ocorrer. Entretanto, ao entrarmos na sala de aula percebemos a inquietação dos jovens. Havia um pano de prato que voava para cima das meninas, as quais bravamente jogavam de volta nos meninos. O tal pano representava o papel social da mulher restrito à cozinha. Era evidente que os jovens nos reconheciam, que já sabiam que éramos os professores de “teatro” e que esse título nos dava certo poder de ação na sala de aula. Então esperei o momento de o pano de prato cair na mão de um menino e o cumprimentei com tom satírico: “muito bem, pano de prato com um menino! Você deve gostar de lavar louça, não é?” Risos no fundo da sala. Ele riu também com certo constrangimento. Outros dois garotos se esforçavam para esconder algo embaixo da carteira. Perguntei: “o que tem aí?”. E eles: “nada, não”. Insisti e eles saíram com um monte de folhas impressas com o objetivo de serem cartazes machistas. Os dizeres repetiam: tudo puta e vai lavar louça. Perguntei: “vocês são machistas?” Eles responderam em coro, bem alto, um sonoro “sim!!!!”.

Era o momento de começar a transformar a sala em espaço cênico, promovendo um diálogo diferenciado dos que já havíamos realizados com eles. Ao contrário do ódio e da raiva, era nossa possibilidade de fazê-los experimentar novos sentimentos e personagens, bem como experimentar paixões contrárias às cristalizadas nos estereótipos e buscar ideias adequadas.

Convidamos os garotos: “Já que vocês são machistas e estão tão certos dessa opinião, venham, aqui (apontando para a frente da sala, onde fica a mesa da professora e a lousa) e digam por que vocês são machistas”. Quase todos foram para a frente da sala de aula, mas foram com os panfletos nas mãos. Era visível que, fora das aulas, eles se prepararam para discutir, despenderam energia, tempo e pesquisa para que pudessem manifestar seus estereótipos quando fôssemos visitar a escola.

O ódio parecia motivar as ações e as falas dos meninos; aliás, este era um afeto que circulava na escola, unindo grupos, além de ser apoiado também pelos risos e omissões dos colegas. Avaliamos que este afeto triste causava uma sensação de pertencimento, passando a ser uma identidade, seja dos “machos”, das “pessoas de bem”, ou de alguma ideia que justificasse a violência desmedida contra determinada ideia e grupo de pessoas.

Spinoza, novamente nos ofereceu elementos de análise dos afetos na violência. Segundo ele, o ódio nunca pode ser bom e a inveja, o escárnio, o desprezo, a ira, a vingança estão relacionadas a esse afeto, intensificando sua associação com a violência (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677). E mais, ele introduz a força da imaginação na configuração dessa relação polarizada:

Quem imagina que alguém ou alguma coisa que ele odeia é afetado de tristeza se alegrará; se contrariamente imagina que é afetado de alegria, se entristecera .... E um ou outro desses afetos será maior ou menor à medida que o seu contrário for, respectivamente, maior ou menor na coisa odiada.

(Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677, p. 191).

Era preciso, então, criar uma rede de personagens que se unissem por outros sentimentos que não o ódio e sentissem a flutuação de seus afetos. Um afeto contrário ao ódio, que apareceu com muita potência, foi a alegria que os jovens sentiram ao se ajudarem mutuamente e ao verem o outro alegre, bem como ao criarem o senso de coletivo. Quando os sujeitos contam suas histórias de vida para serem representadas, essa narração deve gerar compaixão e não riso ou desprezo. Para tanto, é preciso quebrar a polarização e os afetos que a sustentam. Só assim o grupo consegue ser afetado pelo sofrimento relatado, se entristecer, entender e agir para reverter a situação. Dessa maneira, cria-se nos grupos uma potência para a ação coletiva.

Se imaginarmos que alguém semelhante a nós é afetado por algum afeto, essa imaginação exprimirá uma afecção de nosso corpo semelhante àquele afeto .... Mas, se odiamos uma coisa semelhante a nós, seremos afetados, neste caso, não de um afeto semelhante ao seu, mas de um afeto contrário

(Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677, p. 195).

Voltando à sala de aula, Elisa25 25 Nome fictício. , a protagonista da peça do ano anterior e que gritava com os meninos, parou para ver o que seria essa “intervenção”. Nós apostamos no potencial do teatro para desbloquear a capacidade dos corpos de serem afetados, mesmo que abafados pelos estereótipos e paixões tristes, e para trazer à tona emoções diversas e até contraditórias, para que pudessem ser refletidas de maneira crítica no grupo, especialmente os estereótipos que reafirmaram a violência na sala de aula.

O garoto que tinha lançado o apagador contra o professor, disse aparentando alegria: “até que enfim alguém vai discutir isso, a gente tá pedindo desde o começo do ano e nenhum professor quer discutir isso com a gente”. Ao terminar sua frase, a classe toda o apoiou. A sala ainda estava em alvoroço, mas queriam debater o tema.

Sabíamos que era desnecessário exigir que todos ficassem quietos e sentados nos seus “lugares”. No entanto, esse tipo de diálogo contava com a paciência, porque em vários momentos eles não se escutavam. Foi preciso apartar brigas e lidar com a possibilidades de diálogo com as pessoas falando ao mesmo tempo. De fato, com tudo isso, o envolvimento e o debate começaram a acontecer.

Os meninos se posicionaram na frente da sala, no espaço cênico para o qual o grupo olhava; um a um foram convidados a argumentar sobre sua posição machista. O primeiro garoto foi um menino que tinha autismo. Repetia em seu discurso, com convicção, o que já tinha ouvido sobre o tema; eram palavras e frases decoradas que, provavelmente, foram ouvidas na escola, na televisão ou na família, como “a mulher tem que ficar em casa para cozinhar e lavar louça” e outros estereótipos que marcam o machismo na sociedade.

O segundo a falar foi um jovem que estava em liberdade assistida. Tinha um cartaz que levantava com orgulho, no qual estava escrito: “Tudo puta”. Então, perguntei: “Tudo puta? Tem certeza?” E ele disse com firmeza: “Com certeza”. Respondi calmamente: “Ah, então, eu sou puta, a sua mãe é puta, todas as mulheres são putas, é isso?” Ele, rapidamente, mudou de opinião e disse: “Não! Só as meninas do baile.”, sugerindo que elas tinham que se privar de seus desejos. As falas eram permeadas por moralismo e estereótipos, como a de que “uma menina ‘direita’ não pode ouvir funk”.

Contraditoriamente, os meninos achavam bom o funk e consideravam que eles podiam e deviam ouvir esse tipo de música. Também afirmavam, indignados, que as mulheres feministas ficavam querendo revolucionar com os “peitos de fora” nas manifestações. Em uníssono, eles afirmavam que isso era um absurdo. Afinal, para eles, a mulher tem peitos grandes e não é como o homem que pode ficar sem camisa; ficar com o “peito de fora” era sinônimo de “não se dar o respeito”.

Por um tempo, incentivamos que garotas e garotos se posicionassem sobre o direito do desejo das meninas e dos meninos. Houve muitas controvérsias, mas o grupo estava todo envolvido e atento. Até que, depois de quase uma hora, um dos garotos disse: “não é que a gente seja machista, a gente é só contra algumas coisas do feminismo”. A gritaria, os socos e as piadinhas, que estavam presentes no início do encontro, acalmaram-se.

Foi importante vivenciar a empatia no grupo; muitos dos meninos não consideravam as agressões cotidianas que faziam com as meninas como prejudiciais, não se davam conta da alegria servil que sentiam agredindo-as. Um dos garotos, que carregava o cartaz “tudo puta”, rasgou-o.

Depois de uma curta parada, iniciamos com o grupo a dramatização de uma história que tivesse sido vivenciada por alguém que estava naquela classe, relacionada à agressão de gênero. Três meninas contaram uma história que tinha acontecido com elas e com os meninos da sala em um clube que frequentavam. Disseram que os meninos, quando as viam no clube, não as respeitam e falavam coisas “desagradáveis”. Logo, alguns meninos disseram: “Foi com a gente. A gente falou isso mesmo”.

Então, pedimos para que três meninas e três meninos que participaram da história real improvisassem a cena para que pudéssemos juntos analisá-la. Assim fizeram e, pela primeira vez, os meninos falaram, enquanto as meninas ficavam quietas na cena. Sugerimos que na segunda improvisação elas fizessem um coro de resposta a todas as falas dos meninos, em tom alto e claro; ao invés de ficarem de fato em silêncio, elas deveriam pronunciar a palavra silêncio, como resposta a cada uma das falas abusivas.

Menino1: Gostosaaaa!

Todas (coro): Silêncio.

Menino 2: Ai, se eu te pego!

Todas(coro): Silêncio.

Menino 3: Ôoooo lá em casa!

Todas(coro): Silêncio.

Depois, pedimos para que invertessem os papéis, o que foi bem aceito pelo coletivo, visto que aquele pedido era passível de ser realizado pelos meninos, pois se tratava de dramatização. Dessa maneira, as meninas fizeram as personagens dos meninos e estes, os das meninas.

Menina que faz o menino 1: GOSTOSAAAA, se eu te pego!

Menino que faz a menina 1: Vêm…. que eu quebro toda tua cama! (sensualmente)

Menina que faz o menino 2: Ah se eu te pego!

Menino que faz a menina 2: Vem que te faço um… (grotescamente)

Menina que faz o menino 3: Te racho no meio menina!

Menino que faz a menina 3: Vêm gostoso!!! (sensualmente)

Os meninos pareciam acreditar que agradavam as meninas, ao se posicionarem agressiva e sexualmente perante elas. Mas o corpo não mente em cena: a voz, os movimentos, todos os pequenos gestos contam coisas sobre as personagens e seus rituais sociais, demonstrando que os garotos “coisificavam” as meninas, diante das respostas e das agressões que deram, de modo que para eles suas falas eram naturais e não representavam nenhuma violência. Desse modo, ponderamos ser importante considerar que os garotos que causavam sofrimento às meninas nem se davam conta disso, uma vez que elas praticamente não existiam para eles como sujeitos na relação, com igualdade de direitos.

Mais uma vez, pedimos que o grupo fizesse a improvisação da cena. Dessa vez, os meninos, ainda invertendo os papéis de gênero, criaram respostas como personagens de mulheres que eles amavam, respeitavam e conheciam muito bem. Assim, eles escolheram representar a mãe, a irmã e a prima. Compreende-se que a dramatização espontânea, com a proteção de serem eles “personagens” em ação, propiciou aos jovens que se colocassem no jogo cênico, dispondo-se a vivenciar outros lugares nas relações já estabelecidas e estratificadas na forma de certas máscaras sociais, vividas no cotidiano daquele coletivo.

Menina que faz o menino 1: Gostosa, se eu te pego!!!!

Menino – mãe: Mais respeito menino!!! (indignadamente)

Menina que faz o menino 2: Se eu te pego…

Menino – irmã: Se meu irmão te pega ele te quebra!!! (bravamente)

Menina que faz o menino 3: Te racho no meio, menina!!!

Menino – prima: Vou chamar meu primo e você vai ver! (corajosamente)

Como esperávamos, modificaram-se completamente os afetos envolvidos nas respostas oferecidas pelos meninos ao representarem papéis de outro gênero. As modificações foram ainda mais efetivas quando se envolveram com personagens que representavam pessoas que lhes despertavam afetos como amor, alegria e cuidado. Desse modo, foi possível constatar que afetos contraditórios se chocavam na vivência dos meninos, que cometiam atos agressores, motivando outras falas e ações.

“O desprezo é a imaginação de alguma coisa que toca tão pouco a mente que esta diante da presença dessa coisa, é levada a imaginar mais aquilo que a coisa não tem do que aquilo que ela tem” (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677, p. 241).

Em outras palavras, as personagens representadas no início despertavam o desprezo e o ódio dos atores ao que as meninas da sala significavam para eles. Na troca dessas personagens por alguém que os atores amavam na realidade, o choque de emoções causou um curto-circuito, que gerou estranhamento e indignação. Os meninos foram motivados a agir diferente, mobilizados pela empatia com as garotas da sala, ao aproximá-la de sujeitos do gênero feminino que eles amavam.

Por fim, pedimos que fizessem uma última improvisação, na qual continuariam a inversão de papéis: mais uma vez, os meninos fariam o papel das meninas e as meninas fariam os meninos, mas, agora, a cena se passaria na sala de aula.

Menina que faz o menino 1: Abaixa pra pegar a borracha, vai...

Menino que faz a menina 1: Vou falar pra professora!

Menina que faz o menino 2: Se eu te pego, menina!

Menino que faz a menina 2: Se você não parar, eu chamo a diretora!

Menina que faz o menino 3: Vai lavar louça, menina!!!

Menino que faz a menina 3: Vai você!!!

Os meninos davam “dicas” de como as meninas podiam reagir. Contudo, o que importava não eram essas “dicas”, mas o fato de os meninos conseguirem se deslocar de suas posições de poder e privilégio para viverem outros personagens. Vale lembrar que as posições de poder nos pequenos grupos precisam ser questionadas, pois são relevantes para as transformações sociais, tanto no âmbito da micro quanto da macropolítica.26 26 Tanto meninas como meninos puderam, ao representar o papel oposto, experimentar as imagens, ideias, estereotipias, caricaturas a respeito do sexo oposto, imagens construídas socialmente que podem ser vivenciadas corporalmente e refletidas. No livro Arco-íris do desejo, inclusive, encontra-se o jogo “Imagem da tela” (Boal, 2002, p. 200) que pode contribuir para que se entenda nossa intervenção. Vale ressaltar que, em um segundo momento, a estratégia de diferenciar o discurso genérico de mulheres das que tinham um vínculo afetivo com os meninos possibilitou escancarar o estereótipo que estigmatiza as meninas mais autônomas, desconstruindo imagem, própria do machismo, de que a mulher empoderada é hiperssexualizada e disponível para os homens, em concordância com teorias feministas. Como diz Helena Buarque de Hollanda: “se o homem pode ocupar um lugar no feminismo é se descontruindo”; a intervenção, nesse sentido, abriu espaço para essa desconstrução.

Para finalizar a sessão, solicitou-se que o grupo se dividisse em dois: um de meninas e o outro de meninos. Propôs-se que cada grupo criasse uma música para falar do que aprenderam, levando em consideração o que cada grupo desejava dividir com o outro grupo sobre questões de gênero. Ambos os grupos criaram músicas e com alegria mostraram-nas, uns aos outros.

As meninas cantaram afirmando que “a mulher não precisa se dar o respeito, que o respeito já é seu por direito”. Os meninos cantaram felizes e rasgaram os papéis com os escritos que tinham trazido no início da intervenção. Óbvio que não houve mágica. Na letra dos meninos, o machismo não desapareceu por completo. A mudança é um processo em ato, continuamente alimentado por bons ou maus encontros. Uma vez desencadeado, não é uma via de mão única na direção da desconstrução dos estigmas sociais, mas um processo ininterrupto que se dá na dialética singular/particular/universal.

Um mês após esse encontro, entramos em contato com Elisa para investigar o impacto que a dramatização havia deixado ou não nos sujeitos daquela sala de aula. Ela informou que, após a dramatização, os meninos pararam de “mexer com as meninas como antes” e que estavam agindo com mais respeito. A potência foi vertida na direção da luta contra os estigmas e a violência e em favor dos vínculos de amizade e respeito entre os sujeitos na escola.

Com relação às afetações singulares, cabe informar, ainda, que o processo da construção dos personagens pode ser considerado transformador. Elisa tornou-se líder ativista contra a opressão de gênero. Um jovem, ao fazer um personagem machista e homofóbico, percebeu que agia nesses mesmos padrões que sua personagem. Outro exemplo é o de uma professora que, ao fazer uma personagem opressora, percebeu que agia dessa maneira na sala de aula. Um confronto de emoções que impulsionaram mudança em sua ação pedagógica, lembrando, como afirma Vigotski, que: “Arte é antes uma organização do nosso comportamento visando o futuro, que nos leva a aspirar acima de nossa vida”. (Vigotski, 1965/1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, trad.). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1965), p. 320).

Considerações finais

Ao final, cabe retomar as proposições que orientam o presente texto, as quais, em nossa avaliação, tiveram a pertinência demonstrada pelas experiências promovidas pelo TSA.

A primeira, de que a violência na escola não tem como causa o “menino problema” ou a relação entre oprimido e opressor. A violência não é uma entidade, não tem vida própria, não pode ser reificada. Ela é uma configuração afetiva, que, por sua vez, não se reduz à escola, mas se manifesta nela, marcada por paixões tristes, como a melancolia, o medo, a raiva, o ódio, a vingança, envolvendo alunos, professores e pessoal administrativo.

A segunda, de que nessa atmosfera afetiva, que atravessa as relações institucionais e seus membros, lidar com a violência exige passar da tristeza profunda à potência de vida, confrontando as paixões de ódio e medo, que marcam a atmosfera relacional da escola e a configuração das individualidades, com outros afetos mais poderosos e contrários, no caso, a amizade e o sentimento de comum.

A terceira, os afetos não são fenômenos psíquicos, mas ético-políticos, conforme nos ensinam Spinoza (1677/2013)Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677 e Vigotsky (1982/1990)Vigotsky, L. S. (1990). Obras escogidas, tomo I (J. M. Bravo, trad.). Visor. (Obra original publicada em 1982). Eles têm uma importância determinante na dinâmica política, dividem os homens politicamente, criam polarizações, mantêm a ilusão da liberdade na servidão, sustentam as desigualdades e unem as pessoas em torno de ideias e sentimentos comuns, da defesa da democracia e de interesses comuns à maioria.

No universo dinâmico que é o de Spinoza, as variações inerentes às coisas são constitutivas de sua essência, pois são a concretização da potentia agendi de Deus/Natureza (Ferreira, 2014Ferreira, M. L. R. (2014). As metamorfoses da alegria [Artigo apresentado]. X Colóquio Internacional Spinoza, Rio de Janeiro/Fortaleza, Brasil.). Essas variações são experimentadas como afetos ou paixões, lembrando que o afeto chamado paixão é uma ideia confusa pela qual a mente afirma uma força de existir de seu corpo (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677). Uma paixão não se combate pela razão, mas por outra paixão mais forte que lhe deverá ser contraposta de modo a atenuar seu efeito. O teatro oferece tal oportunidade ao adotar, como escreveu Vigotski (1965/1999)Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, trad.). Martins Fontes. (Obra original publicada em 1965), a linguagem dos afetos, os quais não se separam da imaginação27 27 Sobre imaginação na obra de Vigotski, ver Sawaia, Magiolino e Silva (2020). .

A quarta proposição defende que o TSA, construído a partir desse referencial, oferece uma experiência afetiva catártica em relação à violência na escola. Nele, a criação das personagens e das ações cênicas coloca o ator também como dramaturgo e a plateia como testemunha, entrelaçando-os em sentimentos comuns e na potência de buscar as ideias adequadas de seus afetos violentos e/ou servis, bem como ensaiar estratégias de superação de opressões cristalizadas nos afetos e nas relações sociais. Assim, no ato criador, o sofrimento individual se transforma em ação coletiva, favorecido pela criação coletiva e pela imaginação. A imaginação é uma maneira de ampliar a experiência do ser humano, como escreveu Spinoza: “a mente, enquanto pode, esforça-se por imaginar aquilo que aumenta ou estimula a potência de agir do corpo” (Spinoza, 1677/2013Spinoza, B. (2013). Ética (T. Tadeu, trad., 3a ed.). Autêntica. (Obra original publicada em 1677, p. 179).

A técnica da inversão de papéis foi a que se destacou nessa direção. Foi fundamental para a superação da cristalização dos afetos tristes, mas, é preciso salientar, isso só acontecia quando associavam os estereótipos justificadores da violência às pessoas queridas aos que exercem a violência. Nem sempre essa técnica deve ser utilizada. Por exemplo, a inversão de papéis não contribui para os objetivos desta metodologia quando se tenta dar uma “lição moral de como agir” ou quando alguém apenas representa uma personagem bem distante de si e recomenda como o outro deve agir. A inversão deve envolver afeto para acionar a memória afetiva e provocar o choque catártico. No caso aqui narrado, a inversão possibilitou a sensibilização dos corpos e mentes ao sofrimento dos que eram alvos de estereótipos generalizados. A amizade se tornou o antígeno do ódio às meninas que usavam o “shortinho” e gostavam de frequentar bailes funk, e a garota que sofria bullying tornou-se ativista.

Mas isso não significa que foram felizes para sempre e a desigualdade desapareceu. Embora o TSA tenha sido um momento importante no desenvolvimento desses jovens, eles continuam afetados pelo sofrimento ético-político da desigualdade, mas puderam exercitar coletivamente a competência de pensar as causas de seus afetos e o poder da amizade contra o ódio. O TSA trabalhou para o aumento dessa potência de liberdade, da capacidade de selecionar bons encontros e de superar a síndrome do pequeno poder (Saffioti, 1989Saffioti, H. I. (1989). A síndrome do pequeno poder. In M. A. Azevedo, & V. N. A. Guerra (Orgs.), Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. Iglu.) e as polarizações. De fato, isso não significa responsabilizar cada um ou culpabilizá-los pela violência, nem vitimizá-los. No exercício catártico, no confronto de emoções em busca das ideias adequadas das causas de seus afetos e sofrimentos, os jovens vão sentindo que a escola pode ser espaço de alegria e de bons encontros entre colegas e professores, alegria do conhecimento, da amizade, do sentimento do comum, de que é possível mudar e do contentamento de si. Assim, passam a desejar permanecer nela e procurá-la ao invés de se afastar.

Muitas vezes nos esquecemos de que os que sofrem a opressão têm corpo igual aos nossos e sofrem dos mesmos desejos e dores; agimos como se esse corpo fosse totalmente dessensibilizado pelas determinações sociais, um corpo humano. É impossível dissociar a opressão social do sujeito que a sofre e a sustenta, ou que contra ela se rebela, o que necessariamente passa pela experiência.

A trama de afetos tristes na escola sustentava modelos de integração perversos, que polarizavam para incluir, processo em que se destacou o marcador de gênero como afeto desestabilizador do sentimento do comum.

Ficou claro durante o TSA que a escola emancipadora é a do bom encontro, cujo norte é a potencialização da ação coletiva, um coletivo não identitário, articulado por marcas de gênero ou raça, mas pelo sentimento do comum e pelo desejo de felicidade. A insurgência mudou de foco, antes contrário a professores e pares, para as políticas educacionais e de enfrentamento da desigualdade. Os estudantes começam a sentir que é função da escola e do Estado zelar pelos bons encontros e pelas necessidades de liberdade e expansão dos indivíduos e do coletivo, mas que, para tanto, é preciso uma vigilância constante, possibilitada apenas pela união dos conatus dos que sofrem a exclusão.

  • 1
    Para mais informações, ver: Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
    https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
    .
  • 2
    Dossiê Temático organizado por: Priscila Nascimento Marques https://orcid.org/0000-0002-7111-6372 eAna Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391.
  • 4
    Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br
  • 5
    Versão em inglês: Henrique Akira (Tikinet) traducao@tikinet.com.br
  • 6
    Apoio: Programa de incentivo à pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PIPEc/PUC-SP
  • 7
    Vale destacar que estamos de acordo com esse termo utilizado no TO, o qual, segundo Santos (2016)Santos, B. (2016). Teatro do oprimido: raízes e asas – uma teoria da práxis. Ibis Libris., é um/uma artista-ativista em constante aprendizagem. Esse conceito será aprofundado abaixo.
  • 8
    Esses jogos e a própria metodologia ainda estão sendo investigados em termos de dramaturgia e novos jogos e técnicas. Os jogos e técnicas estão descritos no ebook Teatro social dos afetos nas escolas (Di Bertolli & Garcia, 2021Di Bertolli, K., & Garcia, D. (2021). Teatro social dos afetos na escola. https://antigo.fundaj.gov.br/images/Ebook_TeatroSocialAfetos.pdf
    https://antigo.fundaj.gov.br/images/Eboo...
    ) e parte delas na tese Teatro social dos afetos (Fernandes, 2019Fernandes, K. C. (2019). Teatro social dos afetos. [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22108
    https://tede2.pucsp.br/handle/handle/221...
    ). Ressaltamos que a aplicação do TSA exige prática. Esta pesquisa só foi possível porque tanto a coordenadora quanto o grupo Coletivo Garoa, que aplicou o TSA nas escolas, já possuíam anos de prática nas técnicas abordadas. O artigo é demasiado curto para expor todas as relações entre TSA e TO, portanto convidamos as/os leitoras/es que se interessarem por conhecer melhor essas questões a consultarem a bibliografia encontrada nas referências, inclusive a dissertação de mestrado Teatro do oprimido: em busca de transformação social (Fernandes, 2014Fernandes, K. C. (2014). Teatro do oprimido: uma prática em busca de transformação social. [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/17078
    https://sapientia.pucsp.br/handle/handle...
    ).
  • 9
    Utilizaremos a palavra bullying neste texto, considerando que ela circula entre os jovens e na comunidade escolar para indicar assédio escolar entre pares. Porém, tendo em vista que a palavra pode mascarar tensões ligadas a opressões como racismo, machismo, homofobia, destacamos que seu sentido no texto se aproxima da ideia de “síndrome do pequeno poder” de Saffioti (1989)Saffioti, H. I. (1989). A síndrome do pequeno poder. In M. A. Azevedo, & V. N. A. Guerra (Orgs.), Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. Iglu., que indica o sentimento ilusório de poder que reproduz a violência entre pares, contaminando todas as relações na escola e encobrindo a violência estrutural.
  • 10
    Kelly C. Fernandes, coordenadora do projeto e coautora deste texto.
  • 11
    As visitas de apoio eram realizadas nas escolas durante o processo de aplicação do TSA, de modo que fosse possível garantir que os professores não estivessem sozinhos diante das dificuldades na reaplicação da metodologia.
  • 12
    Patto (2015)Patto, M. H. S. (2015). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. (4a ed. ver. amp.). Intermeios., em seu estudo sobre fracasso escolar, aponta a história de um movimento na escola que, ao propor trabalhar com afeto e emoção, isola os sujeitos, tornando-os “alunos problema”, sujeitos que precisam ser “normatizados”.
  • 13
    Entidade vinculada ao SUS.
  • 14
    O objetivo não é apontar falhas na obra de Boal, um grande pensador nunca é reducionista, mas indicar os fios que ele lança para que outros possam avançar sua obra, sendo um deles a emoção e a catarse. Boal reflete sobre a emoção, especialmente quando ele destaca o pensamento sensível e o pensamento simbólico como dimensões da estética. “Pensar é sobretudo sentir”, diz ele, como sempre dando uma aula de psicologia. Também, inspirado em Stanislavski, fala sobre o valor da emoção na interpretação do ator.
  • 15
    O TSA é destinado ao trabalho com comunidades e grupos, facilitando a vivência de emoções jamais experimentadas e a busca das ideias adequadas dessas afetações em um ambiente democrático, que tensiona as relações em direção à potencialização dos sujeitos à transformação social.
  • 16
    É importante ressaltar a zona de ressonância entre TSA e TO sobre a emoção, representada pela frase de Boal: “a emoção em si, desordenada e caótica, não vale nada. Não podemos falar de emoção sem razão ou, inversamente, de razão sem emoção” (Boal, 2006Boal, A. (2006). Jogos para atores e não atores (9a ed.). Civilização Brasileira., p. 7).
  • 17
    Vigotski, foi defensor do teatro como instrumento pedagógico e revolucionário. Foi crítico de arte e buscou a psicologia para entender a recepção da obra de arte, concluindo que a psicologia precisa da arte e não o inverso, reflexões que ele publica em seu primeiro livro denominado Psicologia da Arte (1965/1999), no qual dialoga com Stanislavski, Tolstói e vários outros artistas da vanguarda russa, e apresenta seus pressupostos sobre arte e catarse.
  • 18
    Boal, já em seus escritos, nos entusiasmou a avançar em relação aos estudos sobre catarse no TSA; em O arco-íris do desejo ele diz que: “A finalidade do Teatro do Oprimido não é criar repouso, o equilíbrio, mas é de criar o desequilíbrio que dá início a ação. Seu objetivo é dinamizar. Essa dinamização e ação que provém dela (exercida pelo expect-ator) destroem bloqueios prejudiciais que proibiam a realização dessa ação. Isso quer dizer que ela purifica os espectadores, que ela produz uma catarse. A catarse dos bloqueios prejudiciais. Que seja bem-vinda!” (Boal, 2002Boal, A. (2002). O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. (2a ed.). Civilização Brasileira., p. 83)
  • 19
    “A alegria é dinâmica, social e crítica, a tristeza tende a ser imobilista, solitária e fatalista” (Boal, 2009Boal, A. (2009). A estética do oprimido. Garamond., p. 241)
  • 20
    As técnicas de arco-íris do desejo de Boal nos inspiraram na elaboração do TSA. São técnicas consideradas introspectivas, jogos e encenações que utilizam palavras e sobretudo imagens na teatralização de opressões introjetadas, que pretendem mostrar onde elas tiveram origem, sendo que elas sempre guardam relação com a vida social (Boal, 2005Boal, A. (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. (7a ed.). Civilização Brasileira.). Os círculos restaurativos também nos inspiraram em suas práticas, eles são uma modalidade da Justiça Restaurativa, que, em sua prática circular, busca construir um espaço de confiança, sem julgamentos, no qual, através de uma pergunta geradora, ocorre a contação de histórias pessoais, que possibilitam a reparação das relações, responsabilizando o autor da violência e a comunidade envolvida no processo em reparar o dano causado pela violência. Entende-se que todos os participantes têm necessidades não atendidas que precisam ser olhadas. Dessa forma, constrói-se um espaço para o consenso das formas em que a reparação irá ocorrer.
  • 21
    A ampliação do campo de expressividade enquanto gestus, da forma compreendida neste artigo, refere-se ao conceito desenvolvido por Brecht (2005)Brecht, B. (2005). Estudos sobre teatro. Nova Fronteira. e diz respeito a uma construção de gestos que denotam a situação social do personagem, apontando contradições e ambiguidades. Ou seja, refere-se a uma composição cênica que revela as contradições impostas pelo campo do social. O trabalho do ator de modular seu corpo, sua voz, para além da sua própria máscara social, contribui para que, por exemplo, a acentuação da palavra ou do modo de andar, interfiram na lógica da personagem. Brecht (2005)Brecht, B. (2005). Estudos sobre teatro. Nova Fronteira. traz o conceito de gestus, o qual é importante para que se pense o corpo do ator e suas máscaras sociais. Assim, as imagens na cena ou jogo teatral não devem ser vistas apenas como parte da individualidade, mas como atitudes sociais. Investigá-las e analisar como o corpo se relaciona em relação aos outros em determinadas circunstâncias é de suma importância para que seja possível compreender as personagens para além de seu caráter. “Os gestus se compõem de um simples movimento de uma pessoa diante de outra, de uma forma social ou corporativamente particular de se comportar” (Pavis apud Piacentini, 2018Piacentini, N. (2018). O ator dialético. [Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. https://doi.org/10.11606/T.27.2018.tde-03102018-154628
    https://doi.org/10.11606/T.27.2018.tde-0...
    , p. 35). “As atitudes que as personagens tomam umas com as outras e que constituem o que denominamos domínio gestual. As atitudes corporais, entonações, jogos fisionômicos são determinados por um gestus social: as personagens se xingam, se cumprimentam, trocam conselhos” (Brecht apud Piacentini, 2018Piacentini, N. (2018). O ator dialético. [Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. https://doi.org/10.11606/T.27.2018.tde-03102018-154628
    https://doi.org/10.11606/T.27.2018.tde-0...
    , p. 35).
  • 22
    Narração extraída da tese de doutorado de Fernandes (2019)Fernandes, K. C. (2019). Teatro social dos afetos. [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22108
    https://tede2.pucsp.br/handle/handle/221...
    .
  • 23
    Vale ressaltar que não estamos igualando o grupo em relação às opressões que circulam na sala de aula. Machismo não se equipara à luta feminista, o feminismo é luta pela libertação e o machismo representa o conservadorismo. O ponto é que os dois grupos estavam em um campo de luta em que o machismo precisava ser combatido. Para tanto, os meninos precisavam sentir desconforto em suas posições. Daí levá-los a interpretar mulheres com quem mantinham vínculos afetivos.
  • 24
    Neste caso, a curinga fez perguntas aos espec-atores, mas com muita raiva, em seu espaço de poder no palco faz uma pergunta, irada, diante do comentário do público. A ira da curinga, que aconteceu naquele momento diante de 200 jovens com opiniões muito diferentes sobre o caso do abuso sexual, foi um erro. Ela se posiciona com sua raiva pessoal, decorrente de todos os abusos que ela própria sofreu e, ao se posicionar desta maneira, infla os ânimos dos jovens, inclusive de meninas que achavam que quem usava shortinho estava pedindo para ser abusada. Dessa forma, impediu que um diálogo fosse possível e a luta, que era para que os abusos acabassem na escola, não ganhou com esse posicionamento da curinga. Já que o compromisso da figura do curinga é com a transformação social, é preciso ter responsabilidade pelas consequências de uma intervenção teatral que coordena.
  • 25
    Nome fictício.
  • 26
    Tanto meninas como meninos puderam, ao representar o papel oposto, experimentar as imagens, ideias, estereotipias, caricaturas a respeito do sexo oposto, imagens construídas socialmente que podem ser vivenciadas corporalmente e refletidas. No livro Arco-íris do desejo, inclusive, encontra-se o jogo “Imagem da tela” (Boal, 2002Boal, A. (2002). O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. (2a ed.). Civilização Brasileira., p. 200) que pode contribuir para que se entenda nossa intervenção. Vale ressaltar que, em um segundo momento, a estratégia de diferenciar o discurso genérico de mulheres das que tinham um vínculo afetivo com os meninos possibilitou escancarar o estereótipo que estigmatiza as meninas mais autônomas, desconstruindo imagem, própria do machismo, de que a mulher empoderada é hiperssexualizada e disponível para os homens, em concordância com teorias feministas. Como diz Helena Buarque de Hollanda: “se o homem pode ocupar um lugar no feminismo é se descontruindo”; a intervenção, nesse sentido, abriu espaço para essa desconstrução.
  • 27
    Sobre imaginação na obra de Vigotski, ver Sawaia, Magiolino e Silva (2020)Sawaia, B. B., Magiolino, L. L. S., & Silva, D. N. H. (2020). Imagination and emotion as the basis of social transformation. In A Tanzi Neto, F. Liberali, & M. Dafermos (Orgs.), Revisiting Vygotsky for social change (pp. 241-261). Springer..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2021
  • Aceito
    19 Ago 2022
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