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Imaginação e experiência em processos criativos teatrais na infância 3 3 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 4 4 Normalização, preparação e revisão textual: Andréa de Freitas Ianni. andreaianni1@gmail.com

Imagination and experience in children’s theater creative process

Resumo

O presente artigo propõe uma reflexão sobre o processo criativo de cenas teatrais, por crianças, a partir da imaginação. Será analisada, nos aspectos relacionados ao fazer teatral propriamente dito, a relação das crianças com a experiência artística na intersecção entre a experiência e a imaginação. Utilizam-se, como campo privilegiado para olhar essa questão, experiências de teatro com crianças. Para produção de sentidos, a experiência com o teatro apresenta-se como potente ferramenta para imaginar e produzir conhecimento na busca de um teatro efetivamente das crianças.

Palavras-chave
criança; teatro infantil; processo criativo

Abstract

This article proposes a reflection about the creative process of theatrical scenes, by children, based on their imagination. This work focusses on the relationship between children’s artistic experiences in the intersection between experience and imagination in the theater creative process. It is considered, how a privileged field to look at this issue, theater’s experiences with children. To produce meanings, the experience with theater presents itself as a powerful tool to imagine and produce knowledge in the search for an effective children’s theater.

Keywords
children; children's theatre; creative process

Introdução

Foco de muitos debates, o processo criativo de atores é tema de discussões empreendidas há muito tempo por filósofos, psicólogos, teóricos e encenadores teatrais. Se em 1769 Diderot já apontava o paradoxo do comediante e questionava a natureza das emoções dos atores, essa discussão é aprofundada no século XX por autores como Stanislávski (2010) e Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
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, 7bem como por vários trabalhos teóricos e práticos que os sucederam. Entretanto, nenhum dos autores citados adentra na questão do processo de criação e da emoção na infância.

Considerando a situação exposta, o presente texto traz a discussão acerca do modo como as crianças se relacionam com o fazer teatral e de como suas experiências servem de base para seus processos criativos e acionam os mecanismos das chamadas funções superiores da mente ‒ atenção, memória, imaginação, pensamento e linguagem ‒ bem como sua intersecção com a emoção. Esse é um tema amplo e que requer atenção, pois existem diversos modos de fazer teatro para crianças e com crianças.

Ainda que não seja o foco deste artigo, em nossa pesquisa, verificamos que o teatro para crianças é, geralmente, concebido apenas por adultos, que partem de pressupostos daquilo que as crianças apreciam, tanto do ponto de vista da estética teatral quanto dos temas preferidos. Temos consciência de que o teatro infantil é um filão da chamada indústria cultural, tal como aponta Machado (2020)Machado, M. M. (2020, julho/setembro). Vida ou morte para o teatro infantil? Contrapontos ‒ Revista da FUNDARTE, 20(42), 1-20. http://.seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/index
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: “É próprio do nosso tempo o consumo de produções adultas criadas para as crianças ... e a sedução dos pais que são os adultos que pagarão os ingressos, e que desejarão estar junto, ‘no mundo da criança’” (p. 11).

Para conceituarmos o teatro para criança ou com criança, consideramos todo o teatro que tenha como público-alvo crianças de zero a 12 anos. Seguimos também o entendimento de Ferreira (2005)Ferreira, T. (2005). Teatro infantil, crianças espectadoras, escola: um estudo acerca de experiências e mediações em processos de recepção [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]., que, em seu trabalho, intercala

o uso dos termos teatro infantil e teatro para crianças, conferindo aos dois o mesmo sentido: de produções teatrais realizadas por produtores adultos, destinadas ao público infantil composto por crianças de colo até mais ou menos 12 ou 13 anos de idade. (p. 51)

Já no teatro feito com as crianças, verificamos duas vertentes principais: uma tradição em que o texto teatral ou mesmo um roteiro elaborado a priori ‒ e por um adulto ‒ passa por um processo de memorização por parte das crianças, que o repetem diversas vezes, com marcações no palco a partir de uma ideia que não parte delas; e uma segunda abordagem do processo criativo na qual o ponto de partida são as experiências das próprias crianças, dentro e fora do teatro. Assim sendo, classificamos o processo criativo no teatro com crianças a partir da experiência que origina a cena, que pode ser exógena, quando as crianças atuam como replicadoras das concepções dos adultos, ou de origem endógena, quando as cenas partem das experiências e concepções de mundo das crianças.

É certo que um processo criativo é sempre uma vivência coletiva e colaborativa, em maior ou menor grau, mas o que chama a atenção em processos criativos que acompanhamos ao longo da nossa pesquisa é justamente o espaço de invenção ao qual a criança tem acesso a partir do fazer teatral. Dessa maneira, sem entrar em discussões que atribuam valor a um ou a outro fazer, procuramos abordar neste artigo processos criativos em teatro com crianças que partam das experiências das próprias crianças para a construção da cena ‒ e que, assim, estimulem a imaginação e desenvolvam a autonomia dos envolvidos. Para desenvolver esse viés, é necessário de antemão que discorramos acerca das circunstâncias em que essa concepção se pauta, nos aspectos relacionados às intencionalidades estéticas e, consequentemente, educativas.

Vygotsky e a psicologia como ferramenta para compreender o trabalho do ator

O fim do século XIX é marcado por uma grande virada tecnológica e metodológica que deixou suas mudanças registradas em todas as áreas do conhecimento, contando inclusive com a criação de diversas disciplinas, como a psicologia. É nesse contexto que nasce, em 1896, Lev Semenovich Vygotsky5 5 Adotamos essa forma para grafar o nome do autor quando nos referimos ao conjunto de sua obra ou a sua pessoa. . Mesmo que sua vida tenha sido relativamente breve, pois morreu aos 37 anos, o seu legado ainda hoje não foi totalmente explorado. Uma vertente importante de seu trabalho e de sua vida é sua relação com o teatro, uma verdadeira fonte de inspiração para seus estudos.

Vygotsky vivenciava o teatro não só como espectador mas também como um fazedor, como relatam Barros et al. (2011)Barros, E. R. O. de, Camargo, R. C. de, & Rosa, M. M. (2011). Vigotski e o teatro: descobertas, relações e revelações. Psicologia em Estudo, 16(2), 229-240.:

Durante a sua juventude, esse homem de cultura tão diversificada, além dos estudos dos textos dramáticos, atuou como diretor, produziu espetáculos de teatro e interpretou, entre outras, a personagem Hamlet, conforme informa (Iarochevski, 2007, citado por Prestes, 2010, p. 40). Durante suas férias de verão encenou também a peça O Casamento, de Gogol, que ele mesmo dirigiu. (p. 231)

Certamente, a sua vivência e o gosto pelo fazer teatral influenciaram as inúmeras resenhas que Vygotsky produziu ao longo de sua carreira, bem como trabalhos administrativos ligados ao teatro e especialmente a sua produção teórica, que ora usa a literatura dramática e a literatura como suporte para as discussões, ora tematiza o próprio fazer teatral a partir das ferramentas da psicologia, e propõe muitas vezes a importância educacional dessa arte na formação dos indivíduos. Nessa segunda possibilidade, enquadram-se alguns textos que servem de base para a discussão que trazemos, como: Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
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) e ‒ texto que retomou algumas discussões trazidas no anterior ‒ Imaginação e criação na infância (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática.), originalmente publicado em 1930.

Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
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, em seu texto “Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator” compara especialmente duas concepções sobre o trabalho que o ator faz sobre as suas emoções. Se, na compreensão que esse autor tem de Konstantín Stanislávski, o ator passaria pelas emoções da personagem, para o filósofo Denis Diderot, o ator seria um fingidor e a emoção estaria mais no público do que no palco. Essa discussão tem por trás uma palavra-chave que pouco é abordada nos estudos em português da obra de Vygotsky: experiência.

A palavra “experiência”, em português, pode ser utilizada para traduzir dois diferentes termos russos: opit e perejivanie. Essa palavra é crucial para compreender sobre o que se está falando. O encenador e pedagogo teatral Stanislávski, por exemplo, nomeia seu livro de Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi v tvórtcheskom protsésse perejivániia, cuja tradução em português mais aproximada que encontramos toma como base a tradução espanhola feita diretamente do russo por Jorge Saura (Stanislávski, 2010Stanislávski, K. (2010). El trabajo del actor sobre sí mismo en el proceso creador de la vivencia (J. Saura, Trad). Barcelona Alba.) e ficaria traduzido como O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre si mesmo no processo de criação da experiência. Percebe-se que logo no título o encenador russo traz à tona o tema ao qual se relaciona o trabalho do ator: trabalhar sobre si mesmo para criar uma experiência (perejivániia).

Para compreender a diferença entre os termos na visão de Vygotsky, propomos a análise da parte do texto em que o autor se refere ao trabalho de Stanislávski:

Os sistemas cênicos que partem do ator, da pedagogia teatral, da observação realizada nos ensaios e durante o espetáculo, e que são comumente enormes generalizações da experiência do ator ou do diretor, enfatizam características da vivência específicas, peculiares, pertinentes apenas ao ator, esquecendo-se de que elas devem ser compreendidas no contexto de leis psicológicas gerais, esquecendo-se de que a psicologia do ator constitui apenas uma parte da psicologia geral no sentido tanto abstrato e científico quanto concreto e real da palavra. E quando esses sistemas tentam se apoiar na psicologia geral, as tentativas revelam ligações mais ou menos casuais, à maneira do que ocorre entre o sistema de Stanislávski e o sistema psicológico de T. Ribot.

(Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
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)

No trecho marcado com um asterisco, experiência traduz a palavra russa opit e faz menção ao conhecimento derivado da repetição, da prática de uma atividade. Já no trecho marcado com duplo asterisco, experiência traduz a palavra perejivaniia, que pode ser traduzida como experiência emocional ou mesmo como experiência estética. Ainda é importante considerar que a conexão identificada por Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
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como mais ou menos acidental é hoje reconhecida como fruto de um estudo de Stanislávski e de estudiosos como Ribot e outros (Carneiro, 2013Carneiro, L. M. (2013). A experiência do teatro: de John Dewey ao espectador do teatro contemporâneo. Sala Preta, 13, 56.). Dessa maneira, pode-se compreender que Stanislávski já estava empreendendo, de dentro do campo teatral, um estudo da psicologia do ator.

Conforme apontado por Vigotski (2023)Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
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, para compreender a psicologia do trabalho do ator, é necessário que esta seja vista como uma categoria histórica e de classe, não sendo possível separar a psicologia do palco daquela aplicada à vida cotidiana.

Para desenvolver um estudo da psicologia do ator, bem como para todos os estudos que versam sobre a infância, Vygotsky lançou mão das chamadas funções superiores da mente e dedicou-se especialmente à imaginação. No entanto, sua abordagem está permanentemente ancorada em uma visão holística do funcionamento das funções superiores da mente, como memória, atenção, pensamento e linguagem ‒ estas duas últimas mereceriam obras exclusivamente dedicadas a elas.

Imaginação, teatro, narrativa e infância

A imaginação, elemento fundamental no ato criador, é a força motriz tanto na concepção e na construção em si como na fruição artística. Por meio do teatro, a fantasia e a realidade vinculam-se uma à outra e a experiência com o fazer teatral apresenta-se como uma potente ferramenta para imaginar e produzir conhecimento. Vygotsky (2009)Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática. acrescenta ainda que,

no cotidiano, designa-se como imaginação ou fantasia tudo o que não é real, que não corresponde à realidade e, portanto, não pode ter nenhum significado prático sério. Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural ... Nesse sentido, necessariamente, tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia. (p. 14)

A imaginação mostra-se, desse modo, como uma capacidade humana inerente a todos os indivíduos, que amplia exponencialmente o vivido, pois parte da realidade e a expande, tornando possível o ato criativo propriamente dito (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática.). Outro aspecto fundamental relacionado com a imaginação e que tem relação intrínseca com o teatro é a narrativa. Elaborada por meio da relação com o outro, pois ouvindo histórias aprendemos a contá-las, a narrativa alicerça-se na linguagem como elemento estruturante do pensamento (Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes.a) e é a ferramenta essencial para compreensão do mundo. Em uma complexa trama, a narrativa ancora-se na linguagem, e com ela sistematiza nosso ser e estar no mundo. Se nossas vivências cotidianas são organizadas pelas narrativas (Bruner, 2001Bruner, J. (2001). A cultura da educação. Artmed.), temos na imaginação um elemento fundamental no processo de interiorização das funções psicológicas superiores (Vygotsky, 1991Vygotsky, L. S. (1991). A formação social da mente. Martins Fontes.). A imaginação tem uma importante função no comportamento e no desenvolvimento humano, pois ela

transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal. A pessoa não se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria experiência, mas pode aventurar-se para além deles, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica ou social alheia.

(Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática., p. 25)

Do ponto de vista da criação, qualquer que seja, ela tem sua origem na imaginação, sendo o ponto de apoio para as futuras criações baseado naquilo que a pessoa vivenciou vendo e ouvindo (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática.). Assim, “a imaginação é a base de toda a atividade criadora, que se manifesta por igual em todos os aspectos da vida cultural e possibilita a criação artística, científica e técnica” (p. 10).

Por ser a constituição da criança como sujeito desenvolvida no seio da cultura, ela, criança, apropria-se gradativamente dos modos de pensar e agir a partir do meio em que se encontra. A imaginação, para as crianças, comporta-se do mesmo modo, sendo paulatinamente ampliada de acordo com a quantidade e o nível de complexidade das experiências por elas vivenciadas (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática.). Assim, de acordo com Vygotsky, as crianças têm capacidade imaginativa menor que os adultos, pois têm menos experiência que os mais velhos. Essa afirmativa soa estranha, pois as crianças nos parecem mais dispostas a imaginar. Isso ocorre porque elas acreditam mais na fantasia e têm menor controle sobre os frutos da imaginação.

Se a imaginação se apoia no bojo das experiências vividas, é fundamental considerar esses aspectos e entender que “quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou mais ela sabe e assimilou; quanto maior a quantidade de elementos da realidade de que ela dispõe em sua experiência, ... mais significativa e produtiva será a atividade de sua imaginação” (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática., p. 23). A experiência, desse modo, atua como matéria-prima para a imaginação, que, por sua vez, possibilita a criação.

Assim, se a quantidade de experiências vividas pela criança alimenta sua imaginação, o papel do adulto pode muito contribuir para esse processo, fomentar experiências singulares para as crianças ou permitir que elas próprias estabeleçam relações com o mundo, sem imposição de restrições desnecessárias. A imaginação medeia a relação da criança com o mundo, com o espaço do possível, real ou não. Girardello (2011)Girardello, G. (2011, agosto). Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posições, 22(2), 75-92. https://doi.org/10.1590/S0103-73072011000200007
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, acerca desse aspecto, diz:

Sensível ao novo, a imaginação é também uma dimensão em que a criança vislumbra coisas novas, pressente ou esboça futuros possíveis. Ela tem necessidade da emoção imaginativa que vive por meio da brincadeira, das histórias que a cultura lhe oferece, do contato com a arte e com a natureza, e da mediação adulta: o dedo que aponta, a voz que conta ou escuta, o cotidiano que aceita. (p. 76)

Por meio da mediação adulta, conscientemente, devem-se criar situações para essas experiências com as crianças, pois, como observa Gardner (1982)Gardner, H. (1982). Estruturas da mente. A teoria das inteligências múltiplas. Artmed., “assim como o entendimento lógico da criança, também sua habilidade de se envolver com o faz de conta e a fantasia precisa ser construída” (p. 182). Essa mediação adulta deve se apresentar como um favorecimento para a imaginação da própria criança, não a orientação de como ou o que imaginar. A esse respeito, Sampaio (2020)Sampaio, J. C. C. (2020). Mergulho arrepiante no ensino de teatro para/com crianças: adultos têm medo? In L. Carneiro & H. Araujo, Experiências de formação em artes na Amazônia (pp. 13-27). Stricto Sensu. narra sobre a mediação em um experimento cênico criado pelas crianças:

Quando assumimos trabalhar sobre terror, horror e medo, com fogo, caixão e escuro, por escolha das crianças, precisamos como pessoas mediadoras da experiência, permitir que a inquietação das crianças nos inquiete para que possam ter abertura para a experiência emergente delas, sem fazer das nossas representações anteriores a respeito do tema e dos objetos e situações fonte de interdição da criação. (p. 23)

A produção de sentidos, no exemplo anteriormente citado, deu-se por meio das experiências prévias e dos significados atribuídos aos elementos cênicos pelas próprias crianças, e que foram construídos conjuntamente. Ao adulto, “implica em acompanhar a experiência e gradualmente permitir que ela se torne mais complexa” (Sampaio, 2020Sampaio, J. C. C. (2020). Mergulho arrepiante no ensino de teatro para/com crianças: adultos têm medo? In L. Carneiro & H. Araujo, Experiências de formação em artes na Amazônia (pp. 13-27). Stricto Sensu., p. 23). Verificamos nessa experiência aquilo que Vygotsky (2009)Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática. chama de uma busca de um teatro efetivamente das crianças, no qual elas atuam no figurino, no cenário, na dramaturgia, na iluminação, na direção etc.

A relação das crianças com as artes cênicas está justamente no entrecruzamento do teatro com os jogos e as brincadeiras, que é onde se encontra a raiz da criação infantil (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática.), pois o teatro é a linguagem artística que mais aglutina elementos artísticos. Mas, se o ponto de partida, por sua vez, está na reprodução de um teatro adulto, é uma atividade que pouco sentido terá para as crianças. Para Vygotsky, é fundamental ter clareza nos propósitos da relação da criança com o teatro em seus aspectos artísticos e pedagógicos, para que a experiência com o teatro tenha significado para as crianças:

Alguns pedagogos declaravam-se radicalmente contra a criação teatral infantil. Eles apontavam o perigo que essa forma tem para o desenvolvimento prematuro da vaidade e do comportamento artificial das crianças etc. Na realidade, a criação teatral infantil, quando objetiva reproduzir diretamente as formas do teatro adulto, é uma atividade pouco conveniente para as crianças. Iniciar por um texto literário, decorar as falas, como fazem os atores profissionais, com palavras que nem sempre são entendidas e sentidas pelas crianças, engessa a criação infantil e transforma a criança no transmissor de palavras alheias encadeadas num texto. Eis por que estão bem mais próximas da compreensão infantil as peças compostas pelas próprias crianças ou produzidas e improvisadas por elas ao longo do processo de criação. (p. 100)

Baseadas nessa provocação de Vygotsky, existem vertentes do teatro com crianças que primam por um teatro com crianças em que o processo de criação parte das experiências dos próprios sujeitos e no qual os adultos são mediadores dos processos, o que potencializa as experiências.

Processos de criação no teatro contemporâneo com crianças

Foco deste trabalho, o teatro com crianças não é recente, ainda que não se saiba exatamente em que momento da história as crianças passaram a estar em cena. Certamente, desde o surgimento de um teatro infantil, que ostenta uma ideia determinada de infância, o teatro tornou-se mais acessível às crianças, que passaram a ter a possibilidade de vivenciar a experiência teatral antes da idade adulta.

Com o advento da cena contemporânea, especialmente a partir dos anos 2000, a participação das crianças na cena bem como os modos de trabalhar com elas se modificaram bastante. Se em espetáculos como os da trupe francesa Théâtre du Soleil a figura das crianças já aparecia desde a década de 1990 e as improvisações eram um espaço de liberdade para a criação das crianças (Cruvinel, 2013Cruvinel, T. de B. (2013). Criança em cena: análise da atuação e de processos criativos com crianças-atores [Dissertação de Mestrado em Artes, Universidade de Brasília].), alguns outros diretores, como Romeo Castellucci, por exemplo, preferem trabalhar de maneira direta com a presença das crianças, a exemplo do espetáculo Inferno, de 2008, ou mesmo da criação mediada, proposta por Philippe Quesne no espetáculo Next Day, de 2014.

As formas do espetáculo refletem, de certo modo, as concepções dos trabalhos criativos com as crianças, que resultaram na cena. No caso da peça Les Éphémères, do Théâtre du Soleil, o processo de criação baseado em improvisações oferecia um espaço de criação para a criança limitado a uma temática e à escolha dos adultos, como podemos ver em Cruvinel (2013)Cruvinel, T. de B. (2013). Criança em cena: análise da atuação e de processos criativos com crianças-atores [Dissertação de Mestrado em Artes, Universidade de Brasília].. O próprio processo era de certa maneira análogo ao dos adultos, ainda que guardadas as devidas especificidades, conforme o relato da diretora Ariane Mnouchkine (citada por Cruvinel, 2013Cruvinel, T. de B. (2013). Criança em cena: análise da atuação e de processos criativos com crianças-atores [Dissertação de Mestrado em Artes, Universidade de Brasília].):

elas improvisaram assim como os adultos, mas em condições de tempos diferentes, afinal elas ainda estão na escola. Os ensaios eram às quartas-feiras [dia em que as crianças não têm aula na França]. Mas, às vezes, se durante o trabalho sobre uma visão [algo parecido com o surgimento de uma ideia ou percepção] que necessita a presença de uma criança, é um adulto que a substitui. A criança improvisa logo em seguida as falas. É lógico que uma criança não trabalha como um adulto. Tem que lhe proporcionar materiais para a imaginação, os relatos, as sensações. Ela não pode se transformar num macaco que imita os adultos. É mais difícil no teatro, que no cinema, onde eu sei o que tirar das crianças o que pretendo, pois é realizado uma vez só. Mas no caso preciso dos Éphémères foi fácil e feliz. As crianças se sentiam livres no palco. As imposições eram feitas apenas nas entradas e saídas, além de umas poucas indicações no interior da cena. No resto tinham uma grande liberdade. (p. 100)

Já no caso dos trabalhos de Romeo Castellucci com a Socìetas Raffaello Sanzio, percebemos uma ligação direta com a proposta da Scuola Sperimentale di Teatro Infantile criada por Chiara Guidi em 1995, dentro da mesma companhia. A proposta da escola é trabalhar diretamente sobre a experiência das crianças, com presença e interferência mínimas dos adultos, o que fica claro no relato da experiência do primeiro ano da escola:

Ao entrarem no teatro, as crianças eram recebidas pelos atores, já devidamente caracterizados conforme seus personagens, e inseridas imediatamente no contexto da ficção, sem explicações ou apresentações. A ambientação cênica, os objetos, bem como os figurinos dos atores, eram elaborados conforme o tema de cada encontro.

(Ferreira, 2014Ferreira, M. da S. (2014). A presença da criança nos espetáculos da Socìetas Raffaello Sanzio. Urdimento-Revista de Estudos em Artes Cênicas, 2(23), 132-148., p. 121)

Na terceira proposta que comentamos percebemos que o diretor Philippe Quesne, no espetáculo Next Day, de 2014, opta por um processo criativo mediado que é trazido diretamente para a cena. Conforme o material disponível no site do Teatro Nanterre Amandiers e no programa do espetáculo,

como todas as peças de Philippe Quesne, Next Day reúne uma pequena comunidade de artistas no palco, um grupo de seres vivos como eles, examinados ao microscópio por um entomologista. ... Os 13 intérpretes de Next Day têm entre 7 e 11 anos, um período fascinante de observar porque é transitório, delicado e comovente: o tempo das metamorfoses, da convivência entre a infância despreocupada e as questões da adolescência, antes do grande embate. Todos praticam música, foram escolhidos durante um workshop do qual emergiram personalidades proeminentes e um coletivo.

(Joubert, 2014Joubert, S. (2014). Apresentação. In P. Quesne (Dir.), Next Day [Próximo Dia]. https://nanterre-amandiers.com/evenement/next-day-philippe-quesne-2014/
https://nanterre-amandiers.com/evenement...
)

Essas são três das muitas possibilidades de processos criativos que temos atualmente no teatro com crianças, realizados por reconhecidos encenadores. Fica claro nos três processos o papel e a importância da memória e da imaginação na construção da experiência que poderá ou não ser apresentada na forma de um espetáculo teatral.

Ainda é possível analisar que, das três propostas, a peça Next Day estaria mais próxima do idealizado por Vygotsky (2009)Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática.: uma “verdadeira encenação infantil [onde] tudo ‒ desde as cortinas até o desencadeamento final do drama ‒ deve ser feito pelas mãos e pela imaginação das crianças” (p. 101).

No esteio da proposta defendida por Vygotsky (2009)Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática., de um teatro feito pelas crianças, no qual o processo de criação seja um espaço para o desenvolvimento da imaginação e que este seja mais importante do que o resultado cênico final, trazemos a experiência que desenvolvemos, segundo esses pressupostos, no ano de 2019, com o Grupo de Teatro da Universidade Federal do Acre (UFAC).

Nortes para a imaginação: uma experiência teatral no coração da Amazônia

Para fomentar ainda mais a presente discussão, elencamos uma experiência em que atuamos como orientadores de licenciandos em teatro. Como campo privilegiado para olhar essa questão da relação das crianças com o teatro, tomamos as oficinas de iniciação teatral desenvolvidas no âmbito do Grupo de Teatro da UFAC, com crianças de 7 a 11 anos, em 2019. A oficina de iniciação ao teatro acontecia nas salas de trabalho prático do curso de Licenciatura em Artes Cênicas, nessa Universidade, e teve duração de 4 meses ‒ iniciou-se com 15 crianças, das quais 7 permaneceram até a apresentação final. Nesses encontros, as práticas teatrais foram desenvolvidas tendo o brincar com os elementos da natureza como mote da criação cênica, em que a imaginação colaborava para a construção narrativa conduzida pelas crianças.

Trazemos relatos dos proponentes da oficina ‒ retirados todos dos diários de campo dos proponentes estudantes de teatro ‒, que serão, logo mais, apresentados no texto. Os relatos dos proponentes permitem-nos uma aproximação do modo como estruturaram a oficina e pensaram a sequência dos encontros, tendo a ênfase no processo.

Os professores em formação organizaram os encontros iniciais e buscaram criar experiências significativas com o teatro, pois, para algumas crianças, seria o primeiro contato com a linguagem teatral. O intuito desses jovens professores era transpor o ensino de teatro pautado no texto, na memorização de falas e na marcação de ações. O objetivo era fomentar a criação artística das crianças.

No entanto, ao longo dos encontros iniciais, foram percebendo que os exercícios de imaginação e criação narrativa pautados na oralidade ainda representavam um obstáculo para muitas das crianças, pois a timidez ao se expor para um grupo criava um bloqueio criativo. Ao mesmo tempo, os professores foram observando que as mesmas crianças que apresentavam timidez demonstravam disponibilidade corporal para os jogos teatrais, permeados de elementos lúdicos e coletivos. Assim, a relação das crianças com o fazer teatral fortaleceu-se a partir da compreensão dos adultos de que, para elas, o jogo é uma condição primordial. O brincar foi o ponto de partida, pois, para as crianças, é um modo de estar no mundo (Huizinga, 1999Huizinga, J. (1999). Homo Ludens: o jogo como elemento na cultura (1938). Perspectiva.). Os proponentes tinham um desejo comum, conforme discorre a proponente Alonita Martinho6 6 Os nomes dos professores de teatro em formação são reais para darmos a devida referência ao trabalho realizado. : “No processo da oficina nós procurávamos trazer jogos, histórias e músicas que continham temáticas com a natureza e especificamente integrados com a cultura e ecossistema do território que estávamos inseridos”, em solo amazônico.

A história “Igaranhã ‒ A canoa encantada”, do povo Kamaiurá, foi o mote inicial. Nela, uma canoa feita com a casca do jatobá ganha vida e recolhe muitos peixes, para ela e para o seu criador. Em uma segunda vez que ela recolhe os peixes, o indígena Kamaiurá, em atitude de ganância, pega todos os peixes para si. Avistando essa ação, a canoa ‒ cujo nome é Igaranhã, o jacaré ‒ devora o seu próprio dono. A contação de história, com a participação de todas as pessoas e a inserção de elementos e sonorizações, continuou ao longo dos encontros. Esses momentos eram de grande satisfação para as crianças, pois “a narrativa encontra-se próxima da forma dramática da criação infantil, ou seja, a criação verbal das crianças e a dramatização, no sentido estrito dessa palavra” (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática., p. 103).

A participação de adultos e crianças fez com que se estabelecesse uma relação de proximidade e de liberdade criativa entre eles e deu elementos para que, aos poucos, as crianças criassem sua própria narrativa. A esse respeito, em seu diário de campo, Alonita Martinho conta:

As brincadeiras com os jogos e músicas passavam muito pelo corpo e voz, nós facilitadores também participávamos, fazendo as ações juntos, não só como articuladores. Percebíamos que as crianças que sentiam vergonha e não brincavam nesses formatos, se permitiam a fazer as práticas porque também fazíamos.

O papel do adulto como mediador em arte pode ser ampliado, pois “muitas das experiências das crianças seriam muito melhores se os professores, ao invés de gastarem tanta energia vigiando-as, procurassem, eles mesmos, ... usufruir o prazer advindo da experiência” (Holm, 2004Holm, A. M. (2004, janeiro/abril). A energia criativa natural. Pro-Posições, 15(1) 83-95. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643844/11324
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, p. 86). Percebemos que os jovens professores, nos encontros com as crianças, estavam interessados em criar conexões entre elas e o teatro. Holm orienta que “os adultos devem ser co-criativos, não controladores. As crianças são cheias de entusiasmo e energia, elementos importantes do processo criativo, que não devem ser destruídos” (p. 93).

O enriquecimento da experiência amplia as possibilidades para a imaginação e para o ato criativo, pois a criação prescinde de repertórios. A integração do momento do lanche com as brincadeiras e as histórias contadas foram trazendo elementos para que as crianças pudessem nutrir a imaginação. O professor em formação Rafael Woss narra sobre os modos que conduziam:

Adaptamos a brincadeira “O mestre mandou”, para “O pajé nos ensinou”, propondo às crianças a criarem formas ligadas à floresta. Essa atividade adaptada também trouxe elementos que nos organizaram sensivelmente, como é o caso da nossa alimentação, a maneira que ela era feita, em quais espaços, com quais sons. Dessa forma, nos encontros, fomos para o intervalo procurando locais próximos de árvores e terra, para estender uma toalha e lancharmos juntos. Essa atividade era realizada em todos os encontros, com as crianças intercalando esse personagem do pajé, conhecendo os espaços do campus da UFAC e escolhendo ambientes para ter essa alimentação. Nestes momentos, as crianças recolhiam elementos da floresta, procuravam plantas, abraçavam árvores. Em muitos desses encontros, os elementos encontrados na floresta passaram a ser nossos brinquedos, vendo neles suas particularidades, os quais eram levados para a sala de ensaio.

A percepção de fazer do momento do lanche uma nutrição também estética ampliou e integrou as possibilidades com o fazer teatral: “Os momentos de lanches eram junto à natureza, onde observávamos o comportamento dos animais e plantas; todos os deslocamentos eram feitos com jogos e músicas. Fizemos experimentos com elementos da natureza, como instrumentos musicais e figurino”, conta Alonita Martinho. A ampliação das possibilidades a partir da coleta e ressignificação de elementos da natureza permitiu com que todos explorassem a potencialidade narrativa desses materiais. Cores, formas, texturas e cheiros compondo um relicário para a criação artística.

A criação da narrativa das crianças foi feita em um primeiro momento com os objetos recolhidos, quando elas trouxeram elementos das histórias ouvidas, conforme Rafael Woss relata:

Um exemplo de como essa memória e imaginação se manifestaram na prática foi quando as crianças pegaram uma casca de semente que encontramos em nossas vivências, e relembraram da canoa Igaranhã - o jacaré. Essa casca passou a ser a canoa da história criada por elas, na contação com objetos.

As crianças realizaram uma primeira apresentação da história criada com os objetos, a partir da qual elas foram se apropriando da história, incorporando novos elementos e se sentindo mais à vontade na relação palco/plateia ao longo dos experimentos narrativos, uma vez que “as crianças se revezavam como espectadores e atores, possibilitando a observação e percepção das suas próprias construções e dos seus colegas, se articulavam em grupos pequenos e no grande grupo”, relata Alonita Martinho.

As crianças contavam histórias utilizando os elementos da natureza que apareciam inclusive na estrutura dramatúrgica, em que montanhas, rios e formigas eram personagens da narrativa. Aos poucos, as crianças foram assumindo esses papéis, inserindo-se paulatinamente na cena, como relata Rafael Woss:

Fomos propondo que, nos jogos, trabalhássemos personagens que estavam na nossa história, que muitas vezes eram formigas, pensando também em outros elementos da floresta que poderiam se relacionar com a história. Esse processo de trazer para o corpo esses personagens nas brincadeiras foi proporcionando às crianças assumirem papéis construídos por elas mesmas nas atividades, com os adultos também fazendo parte desse criar e contar.

Ao longo dos encontros, as narrativas, os jogos e os elementos da natureza presentes nas vivências fomentaram a construção de uma dramaturgia das crianças. Deusa Maria conta como esse processo se desenvolveu:

Levamos as crianças para uma vivência no Parque Zoobotânico da UFAC. A aula aconteceu debaixo de grandes árvores e cipós. Ministramos os jogos teatrais utilizando os elementos da natureza. Antes de voltar, pedimos que recolhessem alguns elementos naturais para levar para a sala de ensaio. Com sua liberdade de imaginação, levaram muitos objetos interessantes, como casinha de sementes, galhos diferentes, folhas e etc. ... Separamos a turma em grupos e pedimos para que criassem uma história a partir desses elementos. Surgiram histórias muito criativas e que falavam da natureza. A partir delas, fomos juntos criando a dramaturgia da peça teatral “Festa no formigueiro”, a qual foi apresentada com sucesso na finalização da oficina.

A apresentação final, feita para as famílias e a comunidade, foi marcada pela evidente apropriação da narrativa por parte dos atores, crianças e adultos. A fluidez com que a narrativa se desenvolveu e a familiaridade com que as crianças organizavam o cenário, trocavam de figurino e manipulavam adereços e objetos revelaram o quanto eram pertencentes àquele teatro, um teatro efetivamente das crianças. Rafael Woss conta:

Na finalização podíamos sentir como cada elemento da história estava conectado ao processo, com os passeios pela floresta, com os ensinamentos dos e das pajés, com as contações de histórias, com os momentos de alimentação e com o conhecimento de objetos que compunham as apresentações e a floresta. Tudo isso foi se juntando e se transformando, nos ensinando profundidades em cada etapa de vivência.

A experiência narrada deu-nos subsídios para refletir sobre a prática teatral com crianças e seu papel no desenvolvimento infantil. Os professores em formação criaram espaços para a imaginação, fomentaram o jogo criativo, a expressão corporal, a construção poética e a socialização. Elencamos alguns procedimentos metodológicos por eles trazidos que se mostraram bastante eficientes na condução das oficinas e contribuíram para o fazer teatral: a ênfase no jogo e no brincar, como uma linguagem natural das crianças; a conexão com o contexto de floresta; a inserção de narrativas indígenas na ampliação de repertórios; a utilização de elementos naturais como fomentadores da criação narrativa; a utilização dos elementos da natureza como suporte para a contação de histórias; e a transposição gradativa da narrativa com objetos para o corpo. Esse processo contou com uma atenta observação dos professores em formação ao longo dos encontros ‒ eles refletiram acerca dos encaminhamentos e os planejaram, a fim de que as crianças tivessem uma relação significativa com o teatro e se apropriassem, paulatinamente, do fazer teatral.

As crianças têm muito apreço pelo teatro, pois “o drama baseado na ação - na ação realizada pela criança - é mais íntimo, mas ativo e relaciona de maneira direta a criação artística com a vivência pessoal” (Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática., p. 97). No entanto, como adultos, muitas vezes os professores ou os diretores acabam conduzindo os processos artísticos com as crianças de maneira a enviesar as escolhas ou até mesmo impossibilitar que elas ocorram. Como diz Holm (2004)Holm, A. M. (2004, janeiro/abril). A energia criativa natural. Pro-Posições, 15(1) 83-95. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643844/11324
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sobre os processos criativos com crianças, se sabemos o resultado final antes mesmo de iniciar, estamos fazendo algo que não é arte. Assim, mais do que trazer respostas, os adultos mediadores das experiências entre as crianças e a arte podem auxiliar na formulação de perguntas e na investigação das possibilidades ‒ e ampliar os referenciais, fomentando, assim, a imaginação que levará à criação. Certamente os resultados serão diferentes ‒ em relação às escolhas mais coerentes, com melhor acabamento ‒ daqueles que teríamos se o processo fosse todo controlado pelos adultos, mas o aprendizado seria o mesmo? A esse respeito, Vygotsky (2009)Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática. diz:

Tais peças serão inevitavelmente mais incoerentes e menos literárias do que aquelas prontas, escrita por adultos. Mas terão uma vantagem enorme por surgirem no processo de criação infantil. Não se deve esquecer que a lei principal da criação infantil consiste em ver seu valor não no resultado, não no produto da criação, mas no processo. O importante não é o que as crianças criam, o importante é que criam, compõe, exercitam-se na imaginação criativa e na encarnação dessa imaginação. (p. 101)

Acerca da importância do teatro das crianças e do teatro com as crianças, Vygotsky (2009)Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática. diz que “o importante não é o que as crianças criam, o importante é que criam, compõem, exercitam-se na imaginação criativa e na encarnação dessa imaginação” (p. 100). O teatro cria um espaço singular para o exercício da imaginação, no qual ela se vale das experiências prévias e as reorganiza com outras possíveis. Essa criação teatral pode se tornar evidente nos diferentes aspectos do fazer teatral, desde a dramaturgia até os aspectos relacionados à iluminação da cena, pois,

na verdadeira encenação infantil, tudo - desde as cortinas até o desencadeamento final do drama - deve ser feito pelas mãos e pela imaginação das crianças, e somente assim a criação dramática adquire para elas todo o seu significado e toda a sua força.

(Vygotsky, 2009Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico (Z. Prestes, Trad.; A. L. Smolka, Apres.). Ática., p. 101)

Assim como observamos nas vivências apresentadas como exemplo, a plena participação no processo traz para as crianças uma condição de sujeito ativo, detentor de seu fazer, o que repercute em sua atuação no processo, inclusive na cena, seja atuando, fazendo sonoplastia ou como contrarregra. O sentido emerge, pois esse fazer veio de dentro das crianças.

Considerações finais

Neste artigo buscamos salientar os aspectos que permeiam a experiência das crianças com o fazer teatral quando suas vivências e perspectivas são o ponto de partida para a criação. Refletimos sobre o papel do adulto como mediador dos processos criativos, como agente potencializador ‒ e não cerceador ‒ da criação infantil. Machado (2020)Machado, M. M. (2020, julho/setembro). Vida ou morte para o teatro infantil? Contrapontos ‒ Revista da FUNDARTE, 20(42), 1-20. http://.seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/index
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defende

que as crianças possam construir algo autoral na dramaturgia vivida cotidianamente: advogo, sim, as crianças como protagonistas, no entanto em uma posição como plateia pensante e pulsante, pessoas que têm algo a dizer sobre o que veem e vivem – e dizem. E que subam no palco, e desçam do palco, tornando-se capazes de dramaturgias e performances: não pelo cachê, mas pelo ato performativo e sua potência de expressividade; pela possibilidade da presença; e por meio do desejo e do convite de dizer algo a alguém. É sobre ser escutado. (p. 12)

Para que isso ocorra, é preciso que seja revisitado o papel do adulto como mediador dos processos criativos, pois “as crianças são cheias de entusiasmo e energia, elementos importantes do processo criativo, que não devem ser destruídos” (Holm, 2004Holm, A. M. (2004, janeiro/abril). A energia criativa natural. Pro-Posições, 15(1) 83-95. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643844/11324
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, p. 93).

A experiência com o teatro partindo das próprias crianças mostra-se como a natureza própria do teatro: seja com a criança enfrentando os próprios medos, como na experiência narrada por Sampaio (2020)Sampaio, J. C. C. (2020). Mergulho arrepiante no ensino de teatro para/com crianças: adultos têm medo? In L. Carneiro & H. Araujo, Experiências de formação em artes na Amazônia (pp. 13-27). Stricto Sensu., seja com ela mesma em cena, como na peça Next Day, ou ainda quando ela explora as possibilidades narrativas dos elementos naturais e os traz para a cena. Essa experiência de teatro com as crianças fomenta reflexões, amplia referenciais, permite expressar as emoções humanas, que são, nesses casos, emergentes da perspectiva das próprias crianças: “Foi tudo a gente que inventou”, narra uma criança que participou das oficinas de teatro na UFAC. Talvez seja a mais importante conquista da vivência com o teatro com crianças: possibilitar aos jovens sujeitos essa interação ‒ pautada na imaginação ‒ com o mundo.

  • 1
    Para mais informações, ver: Vigotski (2023).
  • 2
    Dossiê Temático organizado por: Priscila Nascimento Marques https://orcid.org/0000-0002-7111-6372 e Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391.
  • 4
    Normalização, preparação e revisão textual: Andréa de Freitas Ianni. andreaianni1@gmail.com
  • 5
    Adotamos essa forma para grafar o nome do autor quando nos referimos ao conjunto de sua obra ou a sua pessoa.
  • 6
    Os nomes dos professores de teatro em formação são reais para darmos a devida referência ao trabalho realizado.

Referências

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3
Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2021
  • Revisado
    13 Jul 2022
  • Aceito
    19 Ago 2022
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