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Habitus de gênero: tensionamentos ao conceito de habitus em Bourdieu 1 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha – verah.bonilha@gmail.com 3 3 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (MCTI/Brasil), processo 423626/2018-3.

Habitus de género: tensar el concepto de habitus en Bourdieu

Resumo

A noção de habitus de Bourdieu é considerada um importante instrumento conceitual que auxilia compreender a dinâmica das relações sociais, mediadas pelos condicionamentos sociais exteriores e subjetivos. O artigo objetiva tensionar o conceito de habitus de Bourdieu, de forma a apresentar o conceito de “habitus de gênero” como um recorte que problematiza o entendimento das relações sociais/educacionais. Apresenta-se uma revisão bibliográfica de parte da literatura feminista para articular o pensamento de Bordieu com o conceito de habitus de gênero e reafirma-se a fecundidade da Sociologia do autor para o campo educacional. O campo da educação tem um habitus de gênero que se movimenta com capacidade de (re)produzir práticas, que podem provocar microdeslocamentos ou transformar as relações de poder socialmente constituídas.

Palavras-chave
Gênero; Habitus ; Habitus de gênero

Resumen

La noción de habitus de Bourdieu se considera una importante herramienta conceptual que ayuda a comprender la dinámica de las relaciones sociales mediadas por condicionamientos sociales externos y subjetivos. El artículo pretende tensionar el concepto de habitus de Bourdieu para presentar el concepto de "habitus de género" como un recorte que problematiza la comprensión de las relaciones sociales/educativas. Presentamos una revisión bibliográfica de parte de la literatura feminista para articular el pensamiento de Bordieu con el concepto de habitus de género y reafirmar la fecundidad de la sociología del autor para el ámbito educativo. El campo de la educación tiene un habitus de género que se mueve con la capacidad de (re)producir prácticas, que pueden causar microdesplazamientos o transformar las relaciones de poder socialmente constituidas.

Palabras clave
Género; Habitus; Habitus de género

Abstract

Bourdieu's notion of habitus is considered an important conceptual tool that helps to understand the dynamics of social relations mediated by external and subjective social conditioning. The article aims to discuss Bourdieu's concept of habitus in order to present the concept of "gender habitus" as a way to problematize the understanding of social/educational relations. We present a bibliographic review of part of the feminist literature to articulate Bordieu's thought with the concept of gender habitus and reaffirm the richness of Bourdieu's sociology for the educational field. The field of education has a gender habitus that moves with the capacity to (re)produce practices, which can cause micro-dislocations or transform socially-established power relations.

Keywords
Genre; Habitus; Gender habitus

1. Introdução

A noção bourdieusiana de habitus tem sido considerada como um importante instrumento conceitual que auxilia compreender a dinâmica das relações sociais, mediadas pelos condicionamentos sociais exteriores e pela subjetividade dos sujeitos (Adkins, 2003Adkins, L. (2003, dez.). Reflexitivity: Freedom or Habit of gender? In L. Adkins, & B. Skeggs, (dir), Feminism after Bourdieu (pp. 191-210). Blackwell Publishing. https://doi.org/10.1177/0263276403206002.
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; McNay, 1999McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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; Setton & Vianna, 2014Setton, M. Da G. J., & Vianna, C. (2014). Socialização de gênero e violência simbólica: um diálogo com Joan Scott, Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. In L.Gomes,& M. dos Reis (Org.), Infância: sociologia e sociedade (pp. 34-65). Attar Editorial.). Este texto busca dialogar com a bibliografia desenvolvida no campo das ciências humanas de forma a articular o conceito de gênero com as noções de habitus, campo e poder simbólico, elaboradas por Pierre Bourdieu.

A ascensão do debate em torno das relações de gênero e da compreensão de gênero como uma categoria de análise (Scott, 1995Scott, J. W. (1995, jul./dez.). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99.) da realidade permitiu às ciências humanas um olhar mais aprofundado sobre a constituição das relações e das ações humanas. Entender os possíveis atravessamentos de gênero nos dispositivos que caracterizam o ser humano como ser social – o habitus – constitui-se em um importante aporte téorico-metodológico para o campo educacional.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é tensionar o conceito de habitus de Pierre Bourdieu, a partir do conceito de gênero, a fim de apresentar o conceito de “habitus de gênero” como um recorte que problematiza e aprofunda compreender sobre as relações sociais presentes nos dias atuais. Para tanto, apoiamo-nos nas teorias da sociologia da ação, nos estudos de gênero e feministas.

Este artigo está organizado em três sessões, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira sessão, apresentamos as análises sobre a existência de uma tensão inevitável que traduz o rompimento das dualidades na modernidade e, também, a compreensão sobre a teoria bourdieusiana, em especial, sobre a noção de habitus. Na segunda, fazemos uma aproximação da perspectiva de Bourdieu à educação e tratamos de possíveis “vazamentos”4 4 Vazamentos, em contraposição às cunhagens, é aquilo que não se consegue controlar, as incertezas produzidas pelo simples fato do agir. Há sempre uma fissura por meio da qual os(as) agentes podem se movimentar (Silva & Ferreira, 2019). na relação entre campo e habitus. E na terceira, à luz do olhar dos estudos feministas sobre a teoria de Bourdieu, tensionamos o trabalho desse autor no que diz respeito à articulação estrutura versus interação, pois essa articulação raramente considera uma análise de gênero. Assim, invocamos, a partir dos próprios argumentos bourdieusianos, a geração de um habitus e as disposições específicas de gênero, que podem gerar transformações nos estudos sobre a realidade social nos dias atuais.

2. Bourdieu e o rompimento das dualidades entre a objetividade e a subjetividade

A modernidade, normalmente caracterizada por uma mudança paradigmática, implicou o rompimento com o pensamento escolástico, o estabelecimento da razão como forma autônoma de construção do conhecimento e consequente dicotomização da relação sujeito-objeto no campo epistemológico. Essas mudanças são cruciais para a realização de pesquisas nas ciências sociais e na educação, especificamente (Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. ; Chauí, 2003Chauí, M. (2003). Filosofia e ensino médio. Ática.; Touraine, 1994Touraine, A. (1994). Crítica da modernidade. Vozes.).

O problema da dicotomia entre a objetividade e a subjetividade no processo de construção do saber e da ação humana foi uma grande preocupação de Pierre Bourdieu. Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. realizou uma análise de fôlego sobre o dilema objetivismo-subjetivismo, na busca de transcender essa dicotomia representada pelas teorias estruturalista e existencialista, respectivamente, profundamente enraizadas nos modos de pensar o mundo social moderno. Por exemplo, na pesquisa sobre a Argélia (1958), Bourdieu entendeu que deveria haver uma reconciliação entre as duas tradições do pensamento moderno, de modo que analisou as estruturas como sistemas simbólicos para descobrir a lógica da prática. Assim, procurou ele desenvolver uma abordagem teórica para explicar a atividade híbrida da prática social.

Bourdieu também desenvolveu seu debate a partir da teoria weberiana, evidenciando o que, para ele, é um paradoxo em Weber. Para Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , há uma exaltação do tipo ideal carismático, criado por Weber, que, no intuito de estabelecer a relação entre as intenções dos agentes e o sentido histórico de suas ações, em um esforço por buscar a eficácia histórica das crenças religiosas contra as expressões mais reducionistas da teoria marxista, entende o líder carismático como “a força revolucionária especificamente criadora da história” (p. 79).

Em resposta a esse paradoxo, Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. evidencia o que para ele não foi elemento de análise tanto de Weber como de Marx – o trabalho religioso. Para Weber, o trabalho religioso é aquele realizado pelos agentes e porta-vozes especializados, investidos de poder (institucional ou não) de responder, por meio de um tipo determinado de práticas e discursos, a uma categoria particular de necessidades própria a grupos sociais determinados.

No entanto, na visão de Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , Weber teria dificuldade em definir os “protagonistas” da ação religiosa: o profeta, o feiticeiro e o sacerdote. Para Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , essas dificuldades derivam de sua concepção do “tipo-ideal” que o compele a se contentar com definições universais, mas de uma extrema pobreza. Propõe, então, operar uma dupla ruptura: a primeira com a metodologia de Max Weber sobre a representação, denominada por Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. como interacionista, porque os habitus são moldados por interações dentro das relações entre os agentes religiosos. Bourdieu busca explicações pelas semelhanças no habitus e não o contrário. A segunda ruptura sugerida por ele seria subordinar a análise da lógica das interações (que pode se estabelecer entre os agentes diretamente defrontados) e, particularmente, as estratégias que os opõem à construção da estrutura das relações objetivas (as posições que ocupam no campo religioso). É essa relação com a estrutura que determina a forma que podem tomar suas interações e a representação que delas possam ter. Objetivando efetivar essas rupturas, o autor (2005) lança mão da noção de campo social. Para ele, o conceito de campo social5 5 Aliado aos conceitos de habitus, posição e capital social. procura promover uma superação da concepção weberiana do carisma que, aos seus olhos, seria subjetivista.

Para o autor (2005), romper com essa definição, pautada no ato de reconhecimento, passa por compreender o profeta não como “um indivíduo isolado, destituído de qualquer caução a não ser ele mesmo” (p. 93). Reforça que é necessário entendê-lo “como um indivíduo em relação com representações coletivas (sentimentos, apropriações) que já existiam antes dele, em que se pese de modo implícito, semi ou inconsciente” (p.93). O autor continua seu pensamento, dizendo que não se deve, então, colocar em oposição a invenção individual e o hábito coletivo. Não se deve confundir as causas coletivas, orgânicas, com a ação de indivíduos que delas são muito mais intérpretes do que senhores. Isso para acabar de vez com a representação do carisma como uma propriedade ligada à natureza de um indivíduo singular, ou seja, subjetivista.

A teoria da prática, portanto, caracteriza os estudos de Bourdieu que buscou enxergar uma “cumplicidade ontológica” entre as estruturas objetivas e as internalizadas (Grenfell, 2018Grenfell, G.M. (2018). Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Vozes.). A base da ciência de Bourdieu é identificar a conexão do indivíduo tanto com o mundo material quanto com o social, sendo “possível analisar como as mesmas relações estruturais são efetivadas tanto no social quanto no individual através do estudo das estruturas de organização, pensamento e prática” (Grenfell, 2018Grenfell, G.M. (2018). Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Vozes., p. 71). Bourdieu (1990)Bourdieu, P. (1990). Coisa ditas. Brasiliense. se pergunta “como as condutas podem ser regradas sem ser produto da obediência a regras?” (p. 83). Assim, a noção de habitus procura ajudar a compreender a prática social.

3. O habitus e o campo: do viés da reprodução e permanência à possibilidade de descontinuidade, vazamento e ruptura

À medida que se constitui6 6 A vida intelectual e artística vai ganhando autonomia (relativa) econômica e social da tutela da aristocracia e da Igreja, bem como de suas demandas éticas e estéticas, pelos motivos de: formação de um público de consumidores que, a par de lhes dar autonomia financeira, lhes concedia ainda legitimação; profissionalização de produtos de bens simbólicos; e diversificação de instâncias de consagração, competindo pela legitimidade cultural, como academia e salões (Bourdieu, 2005). um campo intelectual, as responsabilidades que cabem aos diferentes grupos, em função da posição que ocupam no sistema relativamente autônomo das relações de produção intelectual, tendem cada vez mais a se tornar o princípio unificador e gerador (e, portanto, explicativo) dos diferentes sistemas de tomadas de posição culturais e, também, o princípio de sua transformação no curso do tempo.

Esse campo se forma inclinado a levar em conta exclusivamente as regras firmadas na tradição de seus predecessores e que lhes fornecem um ponto de partida ou um ponto de ruptura: liberar seus produtos de qualquer dependência social, seja de censuras morais e programas estéticos, seja de controles acadêmicos e das encomendas do poder político. Essa tendência foi acelerada com a revolução industrial e, com a reação romântica desenvolveu-se uma verdadeira indústria cultural (produção em série de obras elaboradas, folhetim, melodramas, etc.) que coincidiu com a generalização do ensino regular nos países desenvolvidos.

Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. afirma que, pelo fato de toda ação pedagógica se definir como um ato de imposição de um arbitrário cultural que se dissimula como tal e que dissimula o arbitrário daquilo que inculca, o sistema de ensino cumpre, inevitavelmente, uma função de legitimação7 7 Bourdieu se inspira em Weber quanto à noção de legitimidade. O sistema das instâncias de conservação e consagração cultural, investido do poder que lhe foi delegado para defender a esfera da cultura legítima contra as mensagens concorrentes, cumpre, no interior do sistema de produção e circulação dos bens simbólicos, uma função homóloga à da Igreja. Para Weber, a Igreja deveria ter o papel de fundação e delimitação sistemática da nova doutrina vitoriosa ou, por outro lado, defender a antiga doutrina contra os “ataques proféticos” e estabelecer o que deveria ter e o que não deveria ter valor sagrado. Finalmente, deveria inculcar tudo isso na fé dos leigos (Bourdieu, 2005). cultural. Isso ocorre ao converter em cultura legítima, exclusivamente pelo efeito de dissimulação, o arbitrário cultural que uma formação social apresenta pelo mero fato de existir. De modo mais preciso, também o faz, ao reproduzir pela delimitação do que merece ser transmitido e adquirido e do que não merece.

Segundo as tradições históricas próprias, a cada formação social, as funções de reprodução e de legitimação podem estar concentradas em uma única instituição ou, então, divididas entre instituições diferentes, como o sistema de ensino, as academias, as instâncias oficiais de difusão ou semioficiais, como os museus, os teatros, a sala de concerto; e podem ainda utilizar instâncias de menor reconhecimento, mas que exprimem de forma mais direta as reivindicações dos produtores culturais, como as revistas, as galerias.

O autor (2005) fala da existência de um “processo de canonização” que é “montado por estas instâncias antes de concederem sua consagração. [Tal processo vai] depender diretamente da medida em que sua autoridade é reconhecida e capaz de se impor de maneira duradoura” (pp. 121-122).

Assim, é uma característica do sistema de ensino – que é capaz de afetar e estruturar suas relações com as demais instâncias de produção e circulação de bens simbólicos – o ritmo lento de evolução, paralelo a uma inércia estrutural muito forte. Essa lentidão8 8 Talvez essa percepção de certa lentidão, o que caracterizaria uma supremacia da estrutura sobre o sujeito, seja também um dos fatores que posicionem Bourdieu no rol de estruturalistas. No entanto, é preciso destacar que o autor não nega a mudança provocada pela ação do(a) agente. e inércia caracterizam a instituição de conservação cultural e, os(as) professores(as) são os(as) agentes envolvidos(as) nessa “ação lenta” em relação a possíveis rupturas (Bourdieu et al. 2004Bourdieu, P., Champagne, P., & Landais, E. (2004). Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Editora da Unesp.).

Há, então, uma defasagem temporal entre a produção intelectual e a consagração escolar – entre a escola (e seus(as) agentes) e a arte viva. Essa é uma oposição entre o campo de produção erudita e o sistema de instâncias incumbidas de difundir, conservar e consagrar um tipo determinado de bens culturais e, ao mesmo tempo, de produzir incessantemente novos produtores e novos consumidores dotados de uma disposição duradoura para que possam se apropriar simbolicamente desses bens.

Outra oposição é que, na medida em que o campo de produção erudita amplia sua autonomia, os(as) produtores(as) tendem a se conceberem como “intelectuais de direito divino”. Tornam-se, então, os(as) “criadores(as)” e reivindicam o lugar de autoridades pelo seu carisma (tal como os profetas em Weber) e quase sempre passam a se forjar como igrejinha ou seita, na medida em que reconhecem exclusivamente a autoridade do grupo de pares; reduzindo a isso inclusive as atividades científicas.

Tal resistência (oposição) é ainda maior quando os(as) agentes educacionais são percebidos(as) como meros lectores que comentam e expõem as obras produzidas por outros. Há, por outro lado, uma relação ambivalente entre produtores(as) e autoridade escolar: é essa última que lhes concederá o reconhecimento, ou seja, a mesma autoridade contestada por meio tanto de suas práticas como de sua ideologia profissional.

Essas instâncias estão mais bem aparelhadas para parecer como se fossem fundadas em um princípio de legitimidade propriamente cultural em oposição às ingerências de um poder econômico, político ou religioso, uma vez que agem encobrindo essas últimas. A ação dos mecanismos sociais tende a assegurar uma espécie de harmonia preestabelecida entre os postos e os ocupantes, como a modéstia do(a) leitor(a) e a invenção criadora do(a) autor(a). Apresenta-se aqui uma divisão social do trabalho simbólico.

Partindo dessa ideia, Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. ressalta que um dos efeitos ideológicos produzidos pelo sistema de ensino, mais paradoxal e determinante, reside no fato de que tal sistema consegue obter dos que lhe são confiados (ou seja, quase todos os indivíduos, pois o regime de escolaridade é obrigatório) o reconhecimento da lei cultural objetivamente implicada no desconhecimento do arbitrário9 9 Aqui a fundamentação de Bourdieu (2005) é a noção de arbitrário cultural que, partindo de uma concepção antropológica da cultura, entende que nenhuma cultura pode ser definida objetivamente como superior a nenhuma outra. Nessa perspectiva, os valores que orientam as atitudes e os comportamentos dos diversos grupos seriam arbitrários, pois não estariam fundamentados em nenhuma razão objetiva ou universal. No entanto, esses valores, apesar de arbitrários (a cultura de cada grupo), “seriam vividos como os únicos possíveis ou, pelo menos, como únicos legítimos” (Cavalcanti, 2014, p. 2). dessa lei, inclusive os(as) próprios(as) professores(as).

Mas, então, na acepção de Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , não haveria saída para o arbitrário cultural? O trecho transcrito a seguir nos remete à impressão de que o autor pressupõe a possibilidade de as pessoas produzirem “vazamentos” a esse arbitrário cultural dissimulado, quando diz que:

a lei cultural pode não determinar em nada as práticas, pode apresentar apenas exceções, pode inclusive não ser sentida nem reconhecida, mormente nos casos em que é transgredida, como por exemplo, a lei a que obedecem as condutas culturais quando são ou pretendem ser legítimas, ou então, como no caso do código não-escrito que permite, entre outras coisas, julgar e classificar qualquer conduta possível do ponto de vista de sua conformidade a tal código [ênfase adicionada].

(Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , p.135)

A transgressão ao arbitrário cultural aparece, do mesmo modo, no exemplo que Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. nos apresenta, quando o ladrão que reconhece a legitimidade da lei se esconde para roubar. No caso da escola e da ação em relação à discussão de gênero, podemos pensar nas ações de resistência ao sexismo produzidas por estudantes e professores(as) como transgressões ao arbitrário cultural que legitima a opressão e a dominação seculares contra as mulheres, bem como sua expressão pela oposição binária construída entre os gêneros masculino e feminino.

Sobre as posições e as tomadas de posição pelos sujeitos, Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. nos diz que as práticas dos diferentes agentes no campo cultural dependem diretamente da posição que ocupam no interior do sistema de produção e circulação de bens simbólicos e, simultaneamente, da posição que ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus da consagração. Independentemente das consciências e das vontades, essa posição impõe-se, fazendo-se ideologia10 10 A teoria da violência simbólica e do desconhecimento em Bourdieu conduz ao que pensamos configurar sua noção de ideologia. própria e engendrando suas tomadas de posição, mesmo quando esses agentes querem desafiar ou transgredir a ordem estabelecida.

Não há posição no sistema de produção e circulação de bens simbólicos (e, em geral, na estrutura social) que não envolva um tipo determinado de tomadas de posição e que não exclua todo um repertório das tomadas de posição ou, se inviáveis, se tornem objeto de proibições ou prescrições explícitas. A lei que rege a relação entre as estruturas objetivas do campo (em particular, a hierarquia objetiva dos degraus de consagração) e as práticas por intermédio do habitus11 11 O habitus é uma estrutura aberta, pois (para ao autor, os agentes podem se utilizar de estratégias inconscientes engendradas pelo habitus) pode engendrar estratégias inconscientes ou semiconscientes, que podem ser produzidas em resposta a uma situação estruturada, segundo os esquemas constitutivos do habitus. – princípio gerador de estratégias inconscientes ou parcialmente controladas tendentes a assegurar o ajustamento às estruturas de que é produto tal princípio – são apenas um caso particular da lei que define as relações entre as estruturas, o habitus e a prática, segundo a qual as aspirações subjetivas tendem a se ajustar às oportunidades objetivas.

Para Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , as disposições mais inconscientes, como as que resultam da interiorização de um habitus primário de classe, constituíram-se por meio da interiorização de um sistema objetivamente selecionado de signos, índices e sanções, que nada mais é do que a materialização nos objetos, nas palavras e nas condutas, de um sistema particular de estrutura, objetivos. Podemos inferir, a partir da ideia de classe de Bourdieu, que isso também ocorre no que diz respeito às interiorizações de gênero.

Em suma, de acordo com Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , os juízos mais pessoais que se podem fazer (a respeito, por exemplo, no caso do estudo proposto, das relações de gênero, das políticas públicas de gênero e da feminização do trabalho docente) são juízos coletivos por serem tomadas de posição tanto de maneira direta e consciente como de maneira indireta e inconsciente, por intermédio das relações objetivas entre as posições de seus autores no campo. São juízos ao mesmo tempo determinados e determinantes por meio das sanções objetivas impostas pelo mercado de bens simbólicos às “aspirações” e às “ambições” do agente. Em particular, também impostas pelo grau de reconhecimento e consagração que o mercado lhes concede, defrontando-nos com a estrutura inteira do campo que se interpõe entre o agente e sua ação passada e futura, impondo-lhe a delimitação do campo das ambições que são vividas como legítimas ou ilegítimas, cuja probabilidade de realização se encontra objetivamente inscrita em sua posição ou dela excluída.

Assim, a posição ocupada por um(a) professor(a) no campo educacional e a maneira de ocupá-la dependem de toda a trajetória conducente à posição, ou seja, dependem da posição inicial, a da família de origem, também ela definida por certa trajetória. São essas as condições para se detectar tudo que há de fictício em tal problemática. Os fatores sociais mais importantes para determinar as leis de funcionamento de um campo educacional são os estruturais: como a posição hierárquica das carreiras e a posição dos diferentes agentes na hierarquia própria a cada uma dessas carreiras. Essas posições são vividas como se fossem inspiradas pela “vocação” ou determinadas pela lógica de um itinerário intelectual. No entanto, são reconversões destinadas a assegurar o melhor rendimento econômico ou simbólico a um tipo de capital cultural.12 12 A noção de “capital cultural” em Bourdieu parte da perspectiva de que não é uma cultura em si que traz elementos que a tornam superior ou inferior, mas são as operações dos grupos dominantes que as tornam como tais.

Dessa maneira, para uma análise sólida e interna da estrutura do sistema de relações simbólicas, é necessário subordiná-la a uma análise sociológica da estrutura do sistema de relações sociais de produção, circulação e consumos simbólicos em que tais relações são engendradas e em que são definidas as funções sociais que elas cumprem objetivamente em um dado momento.

Segundo Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , para compreender o agente no campo educacional, antes é preciso situar o corpus assim constituído no interior do campo ideológico de que faz parte, bem como estabelecer as relações entre a posição desse corpus nesse campo intelectual do grupo de agentes que o produziu. Dito de outra forma, conforme Pierre Bourdieu, a ordem social é também uma ordem dos corpos. Assim, cabe considerar o princípio da teoria do conhecimento social, segundo o qual as condições objetivas determinam as práticas e os limites mesmo da experiência que o indivíduo pode ter de suas práticas e das condições que as determinam. Nessa lógica, não é a condição de classe que determina o indivíduo, mas o agente que se autodetermina a partir da tomada de consciência, parcial ou total, da verdade objetiva de sua situação de classe (e por que não de gênero?).

Fazendo uma analogia de como Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. analisa o agente escritor, poderíamos dizer que nossa indagação deveria buscar não como tal professora chegou a ser o que é, mas o que as diferentes categorias de professoras situadas em certa época e em determinada sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus socialmente constituído, para que lhes tivesse sido possível ocupar as posições que lhes eram oferecidas por um determinado estado do campo educacional e intelectual e, simultaneamente, adotar as tomadas de posição estéticas e ideológicas objetivamente vinculadas a essas posições.

Para Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , o princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular, das orientações comumente descritas como “escolhas” da “vocação” e, muitas vezes consideradas como efeitos da tomada de “consciência”, não é outra coisa senão o habitus. O habitus, tido como sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e como lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende (portanto, uma tendência e não uma determinação) a produzir práticas e, por essa via, carreiras objetivamente ajustadas às estruturas objetivas.

O campo educacional, para Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , é basicamente um espaço de jogo de estratégias no qual se estabelecem relações entre os participantes, chamados por ele de agentes. Essas relações estabelecidas são da ordem da luta, da ordem dos conflitos de interesse. Cada agente que participa desse jogo de estratégias o faz a partir de uma posição dentro desse campo e ali pode lutar, criar, recriar, não sendo sujeitos estáticos, já que, nesse campo, há uma margem de manobra. Os agentes (de classes, de gênero, de raça/etnia diferentes e submetidos a diversos tipos de desigualdades) posicionados nesse campo lutam por um capital simbólico para o que realizam alianças, estratégias, criação e ruptura em busca do capital simbólico que poderá lhes outorgar legitimidade, prestígio e autoridade. Diversos e diferentes campos são formados, e cada um tem suas instituições e regras específicas.

O habitus é um conceito central na teoria do campo social de Bourdieu, pois nos ajuda a compreender como os agentes se movem dentro desse campo, ou seja, como o manobram. Habitus, então, é o elemento que vincula o mundo subjetivo ao mundo objetivo. Ele é um modo de ação e de pensar originado da posição do(a) agente dentro do campo. Esse conceito abarca as margens de manobra, pois o(a) agente aprende as regras da instituição, ou seja, o que é esperado dele(a). O(A) agente internaliza as pautas e as regras específicas das instituições dadas pelas condições objetivas, não sendo mera peça estática do processo. O(A) agente aprende também a se movimentar em relação ao que dele(a) se espera, inclusive, no sentido das relações de gênero que serão estabelecidas, quanto a comportamentos, atitudes, enfim, modos de agir na profissão.

Esse campo tem posições de antemão determinadas, até mesmo no que tange às questões de gênero, e o subjetivo é referido a como o(a) agente pensa, sente e atua dentro desse campo. Essa atuação é explicada pelo conceito de habitus, que procura apreender as relações de afinidade entre os comportamentos dos(as) agentes posicionados(as) e as estruturas e os condicionantes sociais. Para Bourdieu (2002, p. 83)Bourdieu, P. (2002). Pierre Bourdieu. Eduerj. Entrevista concedida a Maria Andréa de Loyola., o “habitus é um operador, uma matriz de percepção e não uma identidade ou uma subjetividade fixa”. Esse conceito diz respeito às disposições incorporadas por esses(as) agentes ao longo de seu processo de socialização, integrando as experiências passadas. São essas disposições que nos oferecem os esquemas necessários para nossas percepções, apreciações e ações, isto é, nossa intervenção na vida diariamente. Como um produto da história, é um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado pelas experiências novas e, também, permanentemente afetado por elas. Para Bourdieu (2002)Bourdieu, P. (2002). Pierre Bourdieu. Eduerj. Entrevista concedida a Maria Andréa de Loyola., o habitus é durável, pois expressa uma fé prática, ou seja, uma crença na veracidade das regras do campo no qual está imerso, e isso inclinaria o agente a agir em conformidade a essas regras, mas o habitus não é imutável.

Diante do exposto, acreditamos que Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. propõe uma importante inversão metodológica que ajuda a análise aqui proposta. Tal inversão comporta três momentos que se imbricam: primeiro, fazer uma análise da posição dos intelectuais na estrutura da classe dirigente (ou em relação a essa estrutura nos casos em que dela eles(as) não fazem parte nem por sua origem nem por sua condição); segundo, uma análise das estruturas das relações objetivas entre as posições que os grupos colocados em situação de concorrência pela legitimidade intelectual ocupam num dado tempo na estrutura do campo intelectual; e o terceiro momento corresponde à construção do habitus como sistema das disposições socialmente constituídas que, como estruturas estruturadas e estruturantes, são o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. Tais práticas e ideologias poderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos favoráveis que lhes propiciem uma posição e uma trajetória determinadas no interior de um campo intelectual que, por sua vez, ocupa uma posição estabelecida na estrutura da classe dominante.

Em síntese, Bourdieu (1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus., 2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , ao olhar para a ação humana a vê como práxis, mas aprofunda a análise, olhando o que é possível nessa ação: apontando tanto o viés da reprodução e permanência como o da possibilidade de descontinuidade e ruptura, quando anuncia a ideia de campo social, capital cultural e habitus. O autor faz um esforço teórico, buscando entender o campo educacional e como os agentes da educação se movimentam e se posicionam nesse mesmo campo. Assim, para estabelecer a relação entre as intenções dos agentes e o sentido histórico de suas ações, a partir de uma crítica a Weber, lança mão da ideia de campo social e de habitus como elementos importantes de resolução da relação dicotômica entre objetividade e subjetividade.

Para Bourdieu (1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus., 2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. , os(as) agentes, conforme o seu volume de capital característico, determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso e do peso de todos(as) os(as) outros(as) agentes, isto é, de todo o espaço. Portanto, dependem do volume e da estrutura do capital eficiente dentro do campo em questão. Assim, Bourdieu cria uma interdependência entre os(as) agentes e desses(as) também em relação aos campos. Nesse sentido, é como se a práxis dos(as) agentes fosse também caracterizada por essa gama de capital do(a) agente em relação ao campo e a todo o espaço.

A teoria de habitus de Bourdieu, no entanto, para alguns autores, não deixa de apresentar controvérsias. O trabalho de Lahire (2002)Lahire, B. (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Vozes., por exemplo, dialoga com o conceito de habitus de Bourdieu e dedica-se a refletir sobre os seus limites, principalmente quanto à sua capacidade de apreender a totalidade das práticas sociais, apontando para o que chama de algumas generalizações abusivas.

Lahire (2002)Lahire, B. (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Vozes. propõe um olhar mais atento em relação à diversidade de experiências no processo de socialização, ao caráter plural e até contraditório das disposições e à multiplicidade dos contextos de ação a que um mesmo agente é submetido. As experiências de socialização, por exemplo, podem ser mais ou menos precoces, sistemáticas, intensas e coerentes entre si; o caráter plural e contraditório das disposições estaria no fato de poderem ser mais ou menos fortes, estáveis e transferíveis; e os contextos de ação seriam múltiplos, porque nem sempre são passíveis de serem descritos como um campo. Assim, para Lahire, o agente seria socializado por uma pluralidade de mundos heterogêneos e, às vezes, contraditórios e não por uma única forma geradora, como acredita que o trabalho de Bourdieu propõe.

O argumento de Lahire (2002)Lahire, B. (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Vozes. é que Bourdieu, seguindo uma premissa da sociologia em geral, tende a invocar abstratamente os processos de incorporação de experiências do passado pelos atores e a propor o uso dessas experiências em situações práticas de ação. De acordo com Lahire (2002)Lahire, B. (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Vozes., seria necessária uma análise mais detalhada e empírica da complexidade dos processos de socialização através dos quais as disposições são incorporadas, de um lado; e, de outro, uma análise dos contextos de ação, a partir dos quais parte dos comportamentos, das práticas e das representações do passado são incorporadas e reativadas.

Marangon (2003)Marangon, D. (2003, dez.). Homem plural: os determinantes da ação. Educar em revista, 22, 406-408. http://dx.doi.org/10.1590/0104-40602190.
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considera que Lahire acaba caindo exatamente no reducionismo criticado em Bourdieu, sugerindo contrapor “a pluralidade à unicidade do ator e a homogeneidade do mundo social” (p. 412). Isso porque as complexas experiências de socialização dos atores e atrizes são, ao mesmo tempo, homogêneas e heterogêneas. Portanto, a unicidade e a pluralidade se articulam na formação humana.

Lahire (2002)Lahire, B. (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Vozes. chama a atenção para a importância de os(as) pesquisadores(as) se debruçarem direta e empiricamente sobre as disposições de cultura para identificar e interpretar os comportamentos, as práticas e as representações, o que evidenciaria as estratégias e os princípios que geram as incorporações diversas, seja de cunho ético, seja estético.

Apesar das controvérsias apresentadas por Lahire (2002)Lahire, B. (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Vozes., a força da noção de habitus está em propor um instrumento conceitual (Setton, 2002Setton, M. da G. J. (2002, ago.). A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Rev. Bras. Educ, 20, 60-70. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000200005 .
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) que possibilite pensar mais profundamente a dinâmica das relações sociais que se processam entre as práticas, as condições estruturais e simbólicas da vida. Nessa dinâmica, podemos vislumbrar as possibilidades e as formas de cunhagens e vazamentos entre estruturas objetivas e subjetivas.

Algumas estudiosas e estudiosos de gênero (Almeida, 1997Almeida, M. M. (1997). Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas. Serie Estudos, 94, 10-35.; McCall, 1992McCall, L. (1992, dez.). Does gender fit? Bourdieu, feminism and conceptions of social order. Theory and society, 21(6), 837-867. https://www.jstor.org/stable/657646.; McLeod, 2005McLeod, J. (2005). Feminists re-reading Bourdieu: old debates and new questions on gender habitus and gender change. Theory and Research in Education, 3(1), 11-30. https://doi.org/10.1177/1477878505049832.
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; McNay, 1999McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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; Ramires Neto, 2006Ramires Neto, L. (2006). Habitus de gênero e experiência escolar: jovens gays no Ensino Médio em São Paulo. [Dissertação de Mestrado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-03022012-163059/pt-br.php.
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) têm realizado o esforço de tensionar a noção de habitus, pensando-a como um instrumento de análise interessante para os estudos de gênero, provocando e operando um recorte de gênero na noção de habitus – o que tem sido chamado de habitus de gênero.

4 Tensionando o habitus pelo recorte de gênero

Pierre Bourdieu foi bastante criticado pelas feministas que o consideram pouco influenciado pela discussão de gênero. O fato é que, dentre outras críticas,13 13 Leslie McCall (1992), por exemplo, critica o habitus perspectivado para as mulheres. Na medida em que o habitus é globalmente vinculado à posição da mulher no mundo doméstico e na família, a sua pertença ao mundo público do trabalho ou da formação parece não poder constituir uma fonte de transformação de seu habitus. Assim, as diferenças das posições entre homens e mulheres no campo parecem não acarretar consequências sobre a formação dos habitus sexuados. por muito tempo, Bourdieu tomou os papéis sexuais como estáticos, vendo-os apenas como uma variante demográfica. Somente com a emergência de uma consciência e de um movimento feminista, fundamentalmente a partir da publicação de A dominação masculina, é que ele passa a evocar a ideia de “classes sexuais” e adota a noção de hierarquia entre classes e sexos nos moldes da análise marxista de classe, ou seja, o sexo teria um caráter secundário em relação à classe, pois o sexo seria menos social do que a classe (Devreux, 2014Devreux, A. M. (2014). Pierre Bourdieu e as relações entre os sexos: uma lucidez obstruída. In D. Chabaud-Rychter et al. (Org.), O gênero nas ciências sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour (pp. 85 - 104). Editora Unesp; Editora Universidade de Brasília.).

Segundo Devreux (2014)Devreux, A. M. (2014). Pierre Bourdieu e as relações entre os sexos: uma lucidez obstruída. In D. Chabaud-Rychter et al. (Org.), O gênero nas ciências sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour (pp. 85 - 104). Editora Unesp; Editora Universidade de Brasília., em sua obra A dominação masculina, Bourdieu teceu toda a sua conceituação “ignorando soberanamente os trabalhos dos sociólogos e etnólogos, feministas ou não, que tratavam da questão da mulher ou do gênero” (p. 85). No entanto, apesar dessa “negligência relativa” de Bourdieu às discussões sobre as questões de gênero, algumas estudiosas desse tema e feministas têm se apropriado criticamente de suas teorias e conceitos para pensar as relações sociais a partir de um “recorte” de gênero. Nessa direção, em que pesem as lacunas dos estudos de Bourdieu no que diz respeito à articulação estrutura versus interação raramente considerar uma análise de gênero, os estudos invocam, com base nos próprios argumentos bourdieusianos, a geração de um habitus e disposições específicas de gênero, que podem gerar transformações nos estudos da realidade social nos dias atuais.

Leslie McCall (1992)McCall, L. (1992, dez.). Does gender fit? Bourdieu, feminism and conceptions of social order. Theory and society, 21(6), 837-867. https://www.jstor.org/stable/657646., no artigo “Does gender fit? Bourdieu, feminism and conceptions of social order”, apoia-se na teoria do habitus de Bourdieu para reverter sua própria lógica. Diz que a posição das pesquisadoras feministas, por exemplo, no campo acadêmico (e das mulheres em geral no campo social) gera um habitus e disposições específicos, pois, pela experiência de opressão e dominação vivida por essas pesquisadoras, é possível ver que elas são socializadas de tal maneira que acabam mobilizando “tecnologias visuais” que permitem que vejam o que está escondido, o que está sutilmente posto e, com isso, adquiram uma visão sociológica específica (de gênero) do mundo social que modifica esse próprio mundo social.

Grande parte das críticas à teoria bourdieusiana se vincula à compreensão de que essa teoria teria dificuldade de recepcionar a mudança social no seu contexto de análise. Essa crítica está apoiada principalmente na ideia bourdieusiana de que o habitus pressupõe que o campo seja a sua própria condição de possibilidades, isto é, de que o habitus expressa uma “fé prática”, uma crença na veracidade das regras desse campo que “inclinaria” o(a) agente a agir de acordo com elas. Entretanto, como já dito, quando Bourdieu (1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus., 2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. fala em inclinação, parece deixar abertura para outra possibilidade de ação do(a) agente que não seguir as regras do campo. Isso é evidenciado quando se refere tanto às margens de manobras dos(as) agentes dentro do campo, quanto às relações entre campos.

Lois McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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, no artigo “Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity”, argumenta que a teoria de Bourdieu abarca a mudança social, na medida em que faz do pensamento reflexivo a possibilidade de transformação social. Tal reflexividade viria da discordância entre habitus e campo. Para McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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, o trabalho de Bourdieu sobre a incorporação do social no corpo é mais desenvolvido que outras teorias da reflexividade, sob dois aspectos. Primeiro, a ideia de habitus produz uma teoria mais dinâmica de incorporação, pois pensa a materialidade do corpo e suas vacilações entre o determinismo e o voluntarismo. 14 14 Quando aborda os termos determinismo e voluntarismo, faz menção à discussão na qual a França do pós-guerra se viu imersa entre dois eminentes pensadores, Lévi-Strauss e Sartre, respectivamente. Foi nesse clima de polarização que Bourdieu foi formado e buscou superar a oposição entre o objetivismo e o subjetivismo (McNay, 1999). Para a autora, essa noção dinâmica e não dicotômica da incorporação das disposições (embodied dispositions) é central para uma compreensão feminista da identidade de gênero como uma norma durável, mas não imutável. Segundo, a ideia de “campo” fornece uma análise mais diferenciada do contexto social em que se desenrola a transformação reflexiva da identidade de gênero. Este, por sua vez, oferece uma forma de pensar as transformações possíveis dentro de identidade de gênero como fenômenos desiguais e não síncronos. McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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acredita que a feminização crescente do mundo público pode provocar transformações do habitus feminino no mundo no qual ele é dissonante nas relações sociais, logo, capaz de despertar as consciências e romper com as tradições. Enquanto Bourdieu atribui uma durabilidade às normas de gênero, McNay defende um maior reconhecimento da instabilidade das normas de gênero (McLeod, 2005McLeod, J. (2005). Feminists re-reading Bourdieu: old debates and new questions on gender habitus and gender change. Theory and Research in Education, 3(1), 11-30. https://doi.org/10.1177/1477878505049832.
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).

Por outro lado, ressaltando o valor da teoria bourdieusiana para o entendimento das relações de gênero, McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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critica certas teorias da transformação da identidade reflexiva que, ao considerarem as questões ligadas à identidade de gênero, tendem a dar ênfase exagerada às possibilidades expressivas geradas por processos de rompimento com as tradições, desconsiderando a materialidade dos corpos. Essa ênfase excessiva à natureza mutável da identidade é, em parte, o resultado de uma tendência de compreender a identidade de gênero como uma forma de identificação simbólica e não como uma forma profundamente arraigada de existência incorporada.

Assim, segundo McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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, quando essas teorias ignoram os aspectos profundamente incorporados e não consideram os obstáculos que uma pessoa enfrenta para transpor um habitus de gênero dentro dos diferentes campos de ação, acabam reproduzindo o pensamento machista. E conclui, dizendo que “Bourdieu’s concepts of habitus and the field offers a theory of embodiment in the context of differentiated power relations that maybe of use for feminist social theory” (p. 114).15 15 Tradução nossa: “Os conceitos de Bourdieu de habitus e de campo oferecem uma teoria da incorporação no contexto das diferenciadas relações de poder que pode ser útil para a teoria social feminista”.

Outra autora que entende a teoria de Bourdieu como útil aos estudos de gênero é Adkins (2003)Adkins, L. (2003, dez.). Reflexitivity: Freedom or Habit of gender? In L. Adkins, & B. Skeggs, (dir), Feminism after Bourdieu (pp. 191-210). Blackwell Publishing. https://doi.org/10.1177/0263276403206002.
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. Como McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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, ela afirma que a teoria de Bourdieu abarca a mudança social, na medida em que faz do pensamento reflexivo a viabilidade de transformação social. No entanto, Adkins (2003)Adkins, L. (2003, dez.). Reflexitivity: Freedom or Habit of gender? In L. Adkins, & B. Skeggs, (dir), Feminism after Bourdieu (pp. 191-210). Blackwell Publishing. https://doi.org/10.1177/0263276403206002.
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diverge de McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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quanto à forma e às consequências da reflexividade. Enquanto McNay (1999)McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
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entende que a crescente feminização do setor público pode gerar “uma transposição do habitus feminino” e a possibilidade de despertar as consciências e de romper com as tradições, Adkins (2003)Adkins, L. (2003, dez.). Reflexitivity: Freedom or Habit of gender? In L. Adkins, & B. Skeggs, (dir), Feminism after Bourdieu (pp. 191-210). Blackwell Publishing. https://doi.org/10.1177/0263276403206002.
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acredita que o pensamento reflexivo pode ser fator de engendramento de novos compromissos de gênero que mantenham o habitus de gênero como divisão social.

No artigo “Feminists re-reading Bourdieu old debates and new questions about gender habitus and gender change”, McLeod (2005)McLeod, J. (2005). Feminists re-reading Bourdieu: old debates and new questions on gender habitus and gender change. Theory and Research in Education, 3(1), 11-30. https://doi.org/10.1177/1477878505049832.
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analisa que a visão de McNay apresenta um maior reconhecimento da instabilidade das normas, ao passo que Adkins adota uma explicação mais cautelosa e cética das possibilidades de transformação.

Do nosso ponto de vista, o grau das tensões políticas provocadas nas relações de força e geradas sobre as experiências e as práticas sociais é que será capaz de tender o pensamento reflexivo dos(as) agentes ao rompimento ou à manutenção do habitus de gênero como divisão social. Essa tensão será tão potente quanto for “o poder material e simbólico acumulado pelos agentes envolvidos nessas relações” (Setton & Vianna, 2015Setton, M. Da G. J., & Vianna, C. (2014). Socialização de gênero e violência simbólica: um diálogo com Joan Scott, Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. In L.Gomes,& M. dos Reis (Org.), Infância: sociologia e sociedade (pp. 34-65). Attar Editorial., p. 230).

Como afirma Joan Scott (1995)Scott, J. W. (1995, jul./dez.). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99., “ são os processos políticos que vão determinar qual resultado prevalecerá” já que, nesse processo, atores e atrizes diferentes e também significados diferentes “ lutam entre si para assegurar o poder” (p. 93). Para a autora, tanto a natureza desse processo como a dos(as) atores e atrizes e também das suas ações somente poderão ser determinadas no contexto de tempo e espaço específicos.

McLeod (2005)McLeod, J. (2005). Feminists re-reading Bourdieu: old debates and new questions on gender habitus and gender change. Theory and Research in Education, 3(1), 11-30. https://doi.org/10.1177/1477878505049832.
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defende uma abordagem que aponta para coexistência da mudança e a continuidade em relações e identidades de gênero e que permite uma análise mais contextual dos diferentes graus de correspondência entre habitus e campo social. Ela entende que o interesse renovado em discutir o habitus e o campo na teoria bourdieusiana não se dá somente para reinscrever o velho debate entre “reprodução” e “liberdade”, mas como uma abertura para examinar mais profundamente os processos de contradição e ambivalência que governam as relações.

As análises de Scott (1995)Scott, J. W. (1995, jul./dez.). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99. e McLeod (2005)McLeod, J. (2005). Feminists re-reading Bourdieu: old debates and new questions on gender habitus and gender change. Theory and Research in Education, 3(1), 11-30. https://doi.org/10.1177/1477878505049832.
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parecem trazer uma perspectiva interessante ao nosso estudo, na medida em que colocam as experiências, as relações e as práticas humanas sob uma posição de tensão constante entre a reprodução e a liberdade.

No Brasil, a professora Marlise Almeida, no ano de 1997, publicou o trabalho “Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas”, no qual investiga alguns conceitos na obra de Bourdieu, como habitus, poder simbólico, classe, dominação masculina, entre outros, no sentido de estabelecer parâmetros para uma melhor compreensão das articulações possíveis com os estudos de gênero. Busca, a partir das conceituações de Bourdieu, encontrar um espaço novo para discutir as relações de gênero. Nesse sentido, questiona-se se é plausível ou possível falar em habitus de gênero.

Almeida (1997)Almeida, M. M. (1997). Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas. Serie Estudos, 94, 10-35. baseia-se, inicialmente, nos estudos de MacCall (1992)McCall, L. (1992, dez.). Does gender fit? Bourdieu, feminism and conceptions of social order. Theory and society, 21(6), 837-867. https://www.jstor.org/stable/657646., a partir do interesse dessa autora em teorias que dessem conta de relacionar as estruturas de dominação masculina e as experiências intersubjetivas das mulheres. Baseada nos questionamentos de MacCall (1992)McCall, L. (1992, dez.). Does gender fit? Bourdieu, feminism and conceptions of social order. Theory and society, 21(6), 837-867. https://www.jstor.org/stable/657646. e nos escritos de Bourdieu, Almeida (1997)Almeida, M. M. (1997). Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas. Serie Estudos, 94, 10-35. percebe o habitus como “aquilo que faz a intermediação entre as estruturas e as práticas dos agentes” (p. 21), produzindo um duplo processo (dialético) de interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade. Almeida (1997)Almeida, M. M. (1997). Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas. Serie Estudos, 94, 10-35. apresenta diversas mudanças nos padrões de relacionamento de gênero ‒ mulheres que trabalham fora, que são chefes de família, que controlam sua fecundidade, que investem em sua formação profissional, etc. ‒ que compreende como “novos habitus de gênero”.

Para a autora, já está em andamento uma “revolução simbólica” que se processa e modifica o plano da cultura e da subjetividade. Muitas transformações estão em curso nas relações amorosas, com novas práticas sexuais, novas formas de negociação do poder, etc. Essas mudanças, que geralmente começam no plano micro, no entanto, não foram capazes de abolir a atuação dos mecanismos de dominação masculina, inclusive no modo como as mulheres operam com as formas de controle masculino. Mas, ainda assim, segundo Almeida (1997)Almeida, M. M. (1997). Pierre Bourdieu e o gênero: possibilidades e críticas. Serie Estudos, 94, 10-35., já se pode “constatar a presença de aparatos alternativos e heterogêneos, sociais e subjetivos, a partir dos quais uma nova sociedade parece se remodelar e se reconstruir” (p. 41).

Com efeito, cabe pesquisar os vazamentos possíveis que se constituem nesse processo histórico que movimenta as estruturas e as representações simbólicas que participam da sociedade ao longo do tempo. O campo da educação tem um habitus de gênero que se mobiliza com capacidade de (re)produzir práticas e que podem provocar microdeslocamentos ou transformar as relações de poder socialmente constituídas. São as ações dos(as) agentes, no jogo de estratégias do campo educacional, que movimentarão as estruturas e as representações simbólicas, em que a participação crítica e a organização coletiva dos(as) trabalhadores(as) docentes têm um papel fundamental.

Considerações finais

As ações dos(as) agentes no campo educacional, como práticas estruturadas e estruturantes, tendem a se constituir com referência às práticas características da posição social de quem as produz, inclusive pela posição de gênero. Nesse campo, os(as) diferentes e diversos agentes (de classes, de gênero, de raça/etnia diferentes e submetidos a diversos tipos de desigualdades) podem estabelecer lutas por um capital simbólico. Nessa luta, realizam alianças, criam estratégias, estabelecem rupturas, incorporam modelos em busca do capital simbólico que poderá lhes outorgar legitimidade, prestígio e autoridade. Diversos e diferentes campos, como o educacional, são constituídos, e cada um tem suas instituições e regras específicas, sendo estes também lugar de violência simbólica que se estabelece para manter o poder.

As reflexões apresentadas neste texto, em relação ao pensamento tanto de Bourdieu quanto das autoras que tensionam sua teoria, levam-nos a compreender que a configuração de novos habitus, inclusive de gênero, é sempre uma possibilidade. Isto porque, os(as) agentes do campo das organizações, dentre as quais o da educação, têm uma margem de manobra que estabelece confrontar a estrutura e a liberdade de agir dos(as) agentes e de transformar a ordenação estruturada. As forças mobilizadas pelos(as) agentes provocam deslocamentos no ajustamento entre campo e habitus. Assim, acabam por romper com estigmas e estereótipos institucionalizados, provocando um processo de questionamento à realidade estabelecida e notadamente a desejada, e quicá “vazamentos”, ao estabelecido.

O habitus, no que se refere às relações de gênero, demonstra esse deslocamento, quando são provocadas diversas mudanças nos padrões de relacionamento e de organização social (mulheres que assumem novos territórios de trabalho, que rejeitam estereótipos dos territórios de trabalho majoritariamente femininos, que controlam seu corpo, que adotam novas formas de se relacionar, etc.), o que vem delineando “novos habitus de gênero”.

Diante do exposto, entendemos que o habitus de gênero é um conceito importante e necessário para compreender as relações sociais, tanto para os estudos de gênero quanto para os estudos no campo educacional, pois propicia um recorte de gênero sobre as disposições incorporadas pelas trabalhadoras e trabalhadores da educação. Em assim sendo, este artigo vem reafirmar a fecundidade da Sociologia de Pierre Bourdieu para a reflexão do campo educacional, sob uma perspectiva de gênero e o próprio campo dos estudos de gênero.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha – verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (MCTI/Brasil), processo 423626/2018-3.
  • 4
    Vazamentos, em contraposição às cunhagens, é aquilo que não se consegue controlar, as incertezas produzidas pelo simples fato do agir. Há sempre uma fissura por meio da qual os(as) agentes podem se movimentar (Silva & Ferreira, 2019Silva, E. M. da, & Ferreira, E. B. (2019, set.). Os movimentos das professoras da educação básica na constituição das políticas de gênero na escola. Educ. Pesqui. 45, e 200235. https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945200235.
    https://doi.org/10.1590/s1678-4634201945...
    ).
  • 5
    Aliado aos conceitos de habitus, posição e capital social.
  • 6
    A vida intelectual e artística vai ganhando autonomia (relativa) econômica e social da tutela da aristocracia e da Igreja, bem como de suas demandas éticas e estéticas, pelos motivos de: formação de um público de consumidores que, a par de lhes dar autonomia financeira, lhes concedia ainda legitimação; profissionalização de produtos de bens simbólicos; e diversificação de instâncias de consagração, competindo pela legitimidade cultural, como academia e salões (Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. ).
  • 7
    Bourdieu se inspira em Weber quanto à noção de legitimidade. O sistema das instâncias de conservação e consagração cultural, investido do poder que lhe foi delegado para defender a esfera da cultura legítima contra as mensagens concorrentes, cumpre, no interior do sistema de produção e circulação dos bens simbólicos, uma função homóloga à da Igreja. Para Weber, a Igreja deveria ter o papel de fundação e delimitação sistemática da nova doutrina vitoriosa ou, por outro lado, defender a antiga doutrina contra os “ataques proféticos” e estabelecer o que deveria ter e o que não deveria ter valor sagrado. Finalmente, deveria inculcar tudo isso na fé dos leigos (Bourdieu, 2005Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. ).
  • 8
    Talvez essa percepção de certa lentidão, o que caracterizaria uma supremacia da estrutura sobre o sujeito, seja também um dos fatores que posicionem Bourdieu no rol de estruturalistas. No entanto, é preciso destacar que o autor não nega a mudança provocada pela ação do(a) agente.
  • 9
    Aqui a fundamentação de Bourdieu (2005)Bourdieu, P. (2005). A economia das trocas simbólicas (6. ed.). Perspectiva. é a noção de arbitrário cultural que, partindo de uma concepção antropológica da cultura, entende que nenhuma cultura pode ser definida objetivamente como superior a nenhuma outra. Nessa perspectiva, os valores que orientam as atitudes e os comportamentos dos diversos grupos seriam arbitrários, pois não estariam fundamentados em nenhuma razão objetiva ou universal. No entanto, esses valores, apesar de arbitrários (a cultura de cada grupo), “seriam vividos como os únicos possíveis ou, pelo menos, como únicos legítimos” (Cavalcanti, 2014Cavalcanti, J. C. (2014). A escola reproduz desigualdades? http://www.creativante.com.br/download/A%20escola%20reproduz%20desigualdades%20sociais.pdf.
    http://www.creativante.com.br/download/A...
    , p. 2).
  • 10
    A teoria da violência simbólica e do desconhecimento em Bourdieu conduz ao que pensamos configurar sua noção de ideologia.
  • 11
    O habitus é uma estrutura aberta, pois (para ao autor, os agentes podem se utilizar de estratégias inconscientes engendradas pelo habitus) pode engendrar estratégias inconscientes ou semiconscientes, que podem ser produzidas em resposta a uma situação estruturada, segundo os esquemas constitutivos do habitus.
  • 12
    A noção de “capital cultural” em Bourdieu parte da perspectiva de que não é uma cultura em si que traz elementos que a tornam superior ou inferior, mas são as operações dos grupos dominantes que as tornam como tais.
  • 13
    Leslie McCall (1992)McCall, L. (1992, dez.). Does gender fit? Bourdieu, feminism and conceptions of social order. Theory and society, 21(6), 837-867. https://www.jstor.org/stable/657646., por exemplo, critica o habitus perspectivado para as mulheres. Na medida em que o habitus é globalmente vinculado à posição da mulher no mundo doméstico e na família, a sua pertença ao mundo público do trabalho ou da formação parece não poder constituir uma fonte de transformação de seu habitus. Assim, as diferenças das posições entre homens e mulheres no campo parecem não acarretar consequências sobre a formação dos habitus sexuados.
  • 14
    Quando aborda os termos determinismo e voluntarismo, faz menção à discussão na qual a França do pós-guerra se viu imersa entre dois eminentes pensadores, Lévi-Strauss e Sartre, respectivamente. Foi nesse clima de polarização que Bourdieu foi formado e buscou superar a oposição entre o objetivismo e o subjetivismo (McNay, 1999McNay, L. (1999). Gender, habitus and the field: Pierre Bourdieu and the limits of reflexivity. Theory, Culture & Society,16(1), 95-117. https://doi.org/10.1177/026327699016001007.
    https://doi.org/10.1177/0263276990160010...
    ).
  • 15
    Tradução nossa: “Os conceitos de Bourdieu de habitus e de campo oferecem uma teoria da incorporação no contexto das diferenciadas relações de poder que pode ser útil para a teoria social feminista”.

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Editado por

1
Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2020
  • Revisado
    10 Mar 2021
  • Aceito
    14 Jan 2022
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