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A formação do habitus religioso e os estabelecimentos de ensino confessionais conveniados com o Estado: questões e conflitos 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior - revisao@tikinet.com.br

Resumo

Apresentamos neste artigo uma discussão sobre escolas públicas e formação do habitus religioso. A pesquisa foi realizada em três estabelecimentos escolares confessionais, que estabelecem convênio entre ordem religiosa e Estado. Operou-se com a teoria bourdieusiana. Foram realizadas entrevistas e aplicados questionários com 5 mães, 1 pai e 542 estudantes. Os resultados sinalizaram que as famílias mobilizam estratégias para formar e manter o habitus religioso dos filhos. Nas escolas investigadas, a característica confessional se revelou como o principal elemento motivador para a realização das matrículas. Consideramos que o poder público deve ser guardião do espaço laico e envidar esforços na efetivação da laicidade, elemento que é colocado em risco nesses estabelecimentos.

Palavras-chave
escolas públicas; habitus religioso; laicidade

Abstract

In this article we present a discussion about public schools and the formation of religious habitus. The research was carried out in three confessional school establishments, which establish an agreement between the religious order and the State. It operated with the Bourdieusian theory. Interviews were conducted and questionnaires were applied to five mothers, one father and 542 students. The results indicated that the families mobilize strategies for the maintenance and formation of their children’s religious habitus. In the schools investigated, the confessional characteristic proved to be the main motivating element for enrollment. We believe that the government should be the guardian of secular spaces and make efforts to make secularism effective, which is jeopardized in these establishments.

Keywords
public schools; religious habitus; secularism

Introdução

Apresentamos neste artigo um recorte de pesquisa realizada para produção de tese de doutorado em Educação. A referida tese propôs uma discussão sobre a formação do habitus religioso a partir das ações combinadas entre famílias e instituições públicas de ensino. Tal exercício nos possibilitou refletir sobre o princípio da laicidade e as relações desenvolvidas entre Estado, campo religioso e campo educacional. No presente artigo, temos como objetivo apresentar alguns resultados da pesquisa, bem como, discutir a questão da formação do habitus religioso em escolas públicas, a partir das percepções de pais e estudantes de tais instituições.

Nosso problema de pesquisa se revela a partir da compreensão de que no contexto do Estado laico, as instituições públicas de ensino devem se apresentar como espaços seguros para a manifestação da pluralidade religiosa (Fischmann, 2009Fischmann, R. (2009). Estado Laico. Memorial da América Latina.). Entendemos que, ao assumir uma confessionalidade específica, a escola pública contribui para que os dogmas religiosos adotados pela instituição se multipliquem pelos mais diversos espaços sociais, pois “… a educação permite a incorporação do habitus, que depois permanecerá no cidadão” (Orlandi, 2007Orlandi, M. A (2007). Obras sociais maristas e formação do habitus religioso. [Dissertação de mestrado]. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul., p. 115). Assim, ao privilegiar determinados dogmas, a escola deixa garantir que as diferentes denominações religiosas ocupem esse espaço com igualdade.

A investigação foi realizada em três escolas públicas localizadas na cidade de Campo Grande (MS). A escolha das escolas se deu pela relação desses estabelecimentos com a Igreja Católica, o que possibilita que essas instituições sejam reconhecidas como confessionais. Ao contatarmos a Secretaria Estadual de Educação (SED/MS)3 3 De acordo com a Resolução/SED nº 3.012, de 29 de janeiro de 2016, disponível na página 4 do Diário Oficial nº 9.096, de 1º de fevereiro de 2016. , fomos informadas da presença de quatro instituições de ensino que funcionam a partir do estabelecimento de convênio entre Estado e ordem religiosa católica. O convite para participar da pesquisa estendeu-se para todas as instituições, sendo aceito por três.

Consideramos que estas instituições confessionais e conveniadas constituem um paradoxo aos estudos de laicidade. Procuramos designá-las de escolas confessional-públicas, haja vista que funcionam em prédio de propriedade de instituição religiosa e a partir de um contrato de aluguel, o Estado fica possibilitado de ocupar esses espaços para o desenvolvimento das atividades escolares. Nessas instituições de ensino, os cargos da direção escolar são indicação da ordem religiosa, mas todo o corpo docente e os técnicos administrativos são oriundos do funcionalismo estatal. Além disso, em suas estruturas curriculares observa-se a presença da disciplina de Ensino Religioso (ER). Entendemos que tais aspectos se revelam como uma estratégia para prevenir que mudanças filosóficas e metodológicas interfiram na organização escolar. Dessa forma, consideramos que os agentes/estudantes são inseridos em espaço favorável à constituição e manutenção do habitus religioso católico.

O que afirmamos encontra fundamento nos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) das instituições de ensino. Nestes documentos, identificamos a opção pela metodologia de ensino de Dom Bosco. Compreendemos que, ao optarem por uma metodologia de ensino pautada em princípios religiosos católicos, essas instituições possibilitam um espaço de privilégio à religião católica, visto que, mediante tal escolha, as escolas desenvolvem suas práticas a partir de uma lógica do campo religioso católico, que se reproduz e se propaga em outros espaços sociais por meio das ações de agentes/estudantes.

No decorrer da pesquisa, não identificamos produções que se dedicassem a investigar a formação do habitus religioso em instituições escolares públicas conveniadas4 4 Tal constatação se deu a partir do desenvolvimento de revisão de literatura realizada nas bases BDTD e SciELO (primeiro semestre de 2018). . Assim, entendemos nosso trabalho como uma possibilidade de repensar práticas desenvolvidas no cenário educativo brasileiro. O habitus religioso caracteriza-se por ser o “… princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações, segundo as normas de uma representação religiosa” (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva., p. 57). A partir do conceito de habitus religioso, Bourdieu demonstra a influência dos princípios religiosos na formação da identidade dos agentes.

Dessa forma, com a incorporação do habitus religioso, observa-se nos agentes uma disposição (tendência) para o desenvolvimento de práticas que são orientadas por princípios de determinada denominação religiosa. Importante esclarecer que o habitus religioso, não é entendido como único elemento influenciador das escolhas e ações a serem desenvolvidas pelos agentes. É necessário observar que sua influência não ocorre isolada de outros fatores. Dessa forma, as análises revelam a intenção de

… compreender como as disposições programáticas contidas nas diferentes denominações religiosas (e suas tendências congregacionais locais) interagem com as disposições de origem não religiosa (ou, ao menos, não-confessional) correntes na sociedade e, sobretudo, como os sujeitos sociais constroem suas trajetórias de vida com base nessa trama complexa de possibilidades

(Duarte, 2006Duarte, L. F. D. (2006). Ethos privado e modernidade: o desafio das religiões entre indivíduo, família e congregação. In L. F. D. Duarte, M. L. Heilborn, M. L. Barros, & C. Peixoto (Orgs.), Família e religião (pp. 51-88). Contra Capa., p. 52).

Entende-se que, ao valorizar princípios religiosos como elementos definidores de regras e comportamentos, a religião passa a ser considerada como um dos elementos-chave para o estabelecimento/reconhecimento da ordem social (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva.). O habitus religioso possibilita aos agentes ter o sentimento de pertencer a determinada ordem religiosa. Munido desse sentimento de pertença, o agente passa a reconhecer e compreender símbolos, práticas, pensamentos, condutas e regras que são próprias desse grupo. A incorporação de um habitus religioso acaba por “… modificar em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos” (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva., p. 57).

No contexto laico, problematiza-se esse tipo de posição por parte das instituições públicas, visto que algumas questões sociais passam a ser resolvidas considerando uma religiosidade que nem sempre é compartilhada por todos. Ao lançar um olhar investigativo sobre os espaços públicos de ensino, problematizamos seus compromissos com o princípio da laicidade.

Entende-se o campo religioso como espaço social em que o elemento de interesse em comum entre agentes e instituições são as diferentes denominações religiosas, suas crenças, práticas, simbolismos, regras e maneiras de manifestarem-se. No campo religioso, “… a religião contribui para a imposição (dissimulada) dos princípios de estruturação, da percepção e do pensamento do mundo” (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva., p. 33). Assim como nos demais campos, observamos disputas no interior do campo religioso que revelam o interesse pelo “… monopólio da gestão dos bens de salvação e do exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representações e práticas dos leigos” (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva., p. 57).

No Brasil, uma análise histórica sobre as relações entre Estado e campo religioso nos revela que, “… durante aproximadamente quatro séculos, a Igreja Católica esteve na América Portuguesa, depois Brasil, na condição de instituição religiosa oficial do Estado” (Aquino, 2012Aquino, M. (2012). Modernidade republicana e diocesanização do catolicismo no Brasil: a construção do bispado de Botucatu no sertão paulista (1890-1923) [Tese de doutorado]. Universidade Estadual Paulista., p. 57). Tal relação provocou o enraizamento de práticas e costumes relacionados à fé cristã, que foram “naturalmente” incorporados em nossa cultura. Importante observar que, no Brasil, a instituição da laicidade passa por dois caminhos, “… um proclamado pela lei, e o outro, o vivido, no plano cultural e social, no qual persistem ambiguidades e anacronismos, a se manifestar de múltiplas formas” (Fischmann, 2009Fischmann, R. (2009). Estado Laico. Memorial da América Latina., p. 27).

Em nosso país, a religião é vista como “… a mais importante ou talvez a única fonte de moralidade existente na sociedade” (Giumbelli; Carneiro, 2006Giumbelli, E., & Carneiro, S. S. (2006). Religião nas escolas públicas: questões nacionais e a situação no Rio de Janeiro. Revista Contemporânea de Educação, 1(2)., p. 173). Assim, reconhecemos que uma análise sobre a relação entre Estado e Igreja exige um olhar cuidadoso, que compreenda os movimentos dinâmicos que envolvem as relações entre tais instâncias. Importante esclarecer que o Estado laico não é aquele em que a religião está ausente, mas sim aquele que possibilita o desenvolvimento seguro de diferentes confissões e práticas religiosas, sem que se tenha preferência por algum tipo de denominação religiosa.

Entendemos que a formação do habitus religioso no espaço escolar público configura-se como prática que fere princípio, haja vista que cabe ao Estado uma posição imparcial em relação à religião. Ainda que seja possível que o Estado laico proporcione ao campo religioso a possibilidade de desenvolver suas práticas e que seja promotor da ideia do respeito à diversidade religiosa, é preciso que essas ações não sejam confundidas com uma obrigação estatal de “ensinar” a religião, algo que aparece, por exemplo, nas discussões em relação a presença da disciplina de ER nas escolas públicas, onde se observa uma preferência pelos elementos da doutrina Cristã (Cunha, 2007Cunha, L. A. (2007). Sintonia oscilante: religião, moral e civismo no Brasil – 1931/1997. Cadernos de Pesquisa, (131)., 2016Cunha, L. A. (2016). A entronização do ensino religioso na Base Nacional Curricular Comum. Educação & Sociedade, 37(134).; Fischmann, 2006Fischmann, R. (2006). Ainda o ensino religioso em escolas públicas: subsídios para a elaboração de memória sobre o tema. Revista Contemporânea de Educação, 1(2).).

A observação desses espaços, bem como a análise de seu contexto, é significativa para as discussões sobre a questão da laicidade nas instituições escolares públicas (Cunha, 2009Cunha, L. A. (2009). A luta pela ética no Ensino Fundamental: religiosa ou laica? Cadernos de Pesquisa, 39(137).; Fischmann, 2012Fischmann, R. (2012) Estado laico, educação, tolerância e cidadania: para uma análise da concordata Brasil-Santa Sé. Factash Editora.). Entende-se o princípio laico como elemento que garante o respeito às mais diversas denominações religiosas, que ocupam os espaços públicos. Dessa forma, é notória a defesa da escola pública como espaço plural, que não desenvolva práticas que proporcionem espaços de privilégio para determinados grupos. Temos como suposição que as famílias que optam por essas escolas possuem interesse na formação do habitus religioso de seus filhos, e que enxergam nessas instituições a possibilidade de garantir que os filhos não se desviem do caminho “religioso” traçado pelos pais.

A escolha do estabelecimento de ensino, entendido como uma estratégia de parentocracia5 5 Identifica-se a parentocracia como “… um meio de seleção legítimo, em que os pais surgem como os responsáveis pelo percurso escolar dos filhos” (António; Teodoro, 2011, p. 174). Um movimento em que os pais se encarregam de organizar investimentos e estratégias para que os filhos desenvolvam uma trajetória escolar de sucesso. , se revela como elemento que permite a identificação das preferências e objetivos familiares em relação às trajetórias escolares de seus filhos. Ao considerar a escola como uma continuidade do espaço familiar, os pais buscam por aquelas que assegurem a afinidade do habitus, que permita ao filho um reconhecimento do que “… se pode ou se não pode ‘permitir-se a si mesmo’ implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos limites” (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Bertrand Brasil., p. 141).

Adotamos como metodologia entrevistas e questionários com cinco mães e um pai de estudantes das instituições lócus que professam a fé católica. Chamamos atenção para algo que se identifica nos estudos das relações famílias e escolas que revela uma participação majoritária das mães nas pesquisas, enquanto os pais seguem como elemento raro (Saraiva-Junges; Wagner, 2016Saraiva-Junges, L. A., & Wagner, A. (2016). Os estudos sobre a Relação Família-Escola no Brasil: uma revisão sistemática. Educação, 39.). Além disso, foram aplicados questionários com 542 estudantes de turmas do 6º ano 9º ano do Ensino Fundamental dessas instituições.

Em nossas entrevistas, buscamos compreender a visão que mães e pai tinham das instituições escolares escolhidas para a matrícula de seus filhos. Pretendíamos identificar se havia um interesse pela formação, ou manutenção do habitus religioso e se a confessionalidade era o elemento que despertava o interesse pelas instituições escolhidas.

No que diz respeito aos espaços lócus de nossa pesquisa, observamos a presença de um habitus religioso católico, que se revela não apenas pela ligação com ordem religiosa católica, mas também pelas práticas desenvolvidas no cotidiano escolar. Em nossa pesquisa, desenvolvemos um olhar sobre as famílias que professam a fé católica, apesar de identificarmos nesses espaços a presença de agentes que adotam outras religiões, a opção pelas famílias católicas se deu pelo interesse em compreender aspectos próprios do campo religioso católico, que conforme se observa, vem perdendo a hegemonia e identificando a necessidade do desenvolvimento de novas estratégias para

… recuperar o espaço perdido ou para evitar a perda maior …. Entre eles estão a incorporação das práticas evangélicas dos grandes espetáculos, a ênfase nas prédicas carismáticas, a revalorização dos milagres, o recurso aos padres cantores, redes de TV e, finalmente, mas não secundariamente, a efetivação do Ensino Religioso nas escolas públicas

(Cunha, 2013Cunha, L. A. (2013). O sistema nacional de educação e o ensino religioso nas escolas públicas. Educação & Sociedade, 34(124)., p. 929).

Compreendemos as instituições lócus de nossa pesquisa, como uma dessas estratégias que podem ser observadas em busca de uma preservação da hegemonia católica. Ao optarmos pelas famílias católicas, pretendíamos identificar a maneira como essas estratégias estariam sendo recebidas. A observação desses aspectos possibilita a identificação da harmonia do campo, algo necessário para a garantia de sua força simbólica.

Objetivos familiares e a opção pela escola confessional conveniada: o habitus religioso como elemento de interesse

Neste tópico as discussões propostas são organizadas a partir das seguintes problematizações: a matrícula em escolas confessional-públicas é motivada pela confessionalidade das instituições? Que tipo de ações familiares podem ser consideradas como favoráveis à formação do habitus religioso dos filhos? Quais conflitos podem surgir a partir das relações estabelecidas entre famílias e escola confessional-pública? A organização do tópico se dará a partir da exposição e discussão das informações produzidas por meio de questionários e entrevistas semiestruturadas realizadas com mães e pais de estudantes das instituições lócus de pesquisa.

Em relação às estratégias familiares desenvolvidas durante a trajetória escolar dos filhos, identifica-se que “… independente do contexto cultural, os pais tendem a participar e se envolver das mais variadas formas com a escola” (Saraiva-Junges; Wagner, 2016Saraiva-Junges, L. A., & Wagner, A. (2016). Os estudos sobre a Relação Família-Escola no Brasil: uma revisão sistemática. Educação, 39., p. 115). Esse envolvimento pode se revelar em momentos de mobilização de recursos econômicos, sociais e culturais. Bourdieu (2007b, 2011) identifica que a hierarquização social e a possibilidade de investimentos na educação escolar, se dá pela análise do volume e estrutura dos diferentes tipos de capitais.

Tem-se que “… a escolha da escola significa um primeiro movimento familiar na construção da trajetória escolar dos filhos” (Brandão, 2010Brandão, Z. (2010). Práticas cotidianas na escola e na família. Hipóteses sobre a constituição de habitus escolares [Artigo apresentado]. 33ª Reunião Anual da Anped, Caxambu, Brasil., p. 12). Compreender as motivações familiares consiste em um exercício que se revela como uma possibilidade de entender as diferentes estratégias desempenhadas pelas famílias em busca do sucesso escolar de seus filhos. O estabelecimento de ensino deve, portanto, estar de acordo com aquilo que faz parte do projeto desenhado pelos pais, visto que, “… cada família educa seus filhos tem referência em suas crenças, perspectivas futuras e na maneira como compreendem o mundo e suas vivências” (Franco, 2012Franco, F. S., & Szymanski, H. (2012). Práticas parentais: um estudo sobre escolhas educativas. Memorandum, 22., p. 212).

A família, ao realizar ações de inculcação do habitus religioso, demonstra a intenção de que seus filhos estabeleçam e vivenciem uma relação com o sobrenatural, resultando na incorporação de ações que revelam o pertencimento a determinadas denominações religiosas. A escola confessional passa a ser, portanto, uma alternativa para que os filhos continuem em contato com essas práticas e crenças mesmo fora do ambiente familiar. Uma escolha que desencoraja “… as relações socialmente discordantes” (Bourdieu, 2007bBourdieu, P. (2007b). A distinção: crítica social do julgamento. Edusp; Zouk., p. 228).

As seis famílias participantes de nossa pesquisa podem ser classificadas como famílias nucleares constituída pelo pai, mãe e filho(s). Sendo que somente em um dos casos a figura paterna, por já ter falecido, não compôs o quadro familiar. Além de professarem a religião católica, e terem filhos matriculados em instituições públicas confessionais conveniadas, as famílias foram classificadas como pertencentes à classe média, que no Brasil, “… não constituem um universo social homogêneo” (Romanelli, 2010Romanelli, G. (2010). Famílias de camadas médias e escolarização superior dos filhos: o estudante-trabalhador. In M. A. Nogueira, G. Romanelli, & N. Zago. Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Vozes., p. 102).

Essas informações foram levantadas a partir da aplicação de um questionário, em que as mães e o pai participante informaram, entre outros elementos, a religião professada pela família, renda mensal, profissão, número de residentes no domicílio etc. O questionário pretendeu uma aproximação com a realidade social e cultural das famílias. A partir desse instrumento, foi possível identificarmos que os investimentos na escolarização dos filhos feitos por essas famílias são em momentos de “compra de materiais didáticos” e “matrículas em cursos (línguas, informática)”, opções como: “professores particulares” e “viagens de intercâmbio” não foram citadas pelas famílias. Identificamos que o mercado escolar6 6 O termo mercado escolar é utilizado para fazer referência a uma lógica do mercado que permeia as relações estabelecidas no campo educacional (Ball, 1995). não é muito explorado por essas famílias, que se limitam a investimentos mais tradicionais.

Entendemos que a frequência nos mais diversos espaços sociais pode representar o desenvolvimento de investimento na educação, assim, é possível observarmos o desenvolvimento de “… práticas específicas, objetivando o sucesso escolar dos filhos” (Romanelli, 2010Romanelli, G. (2010). Famílias de camadas médias e escolarização superior dos filhos: o estudante-trabalhador. In M. A. Nogueira, G. Romanelli, & N. Zago. Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Vozes., p. 102). Buscamos compreender que tipo de práticas são desenvolvidas pelas famílias. Entre as opções “parques/praças”, “clubes”, “shopping”, “livrarias”, “museus”, “teatro”, “shows” e “igreja”, identificamos a igreja como o espaço mais frequentado por essas famílias, sendo que somente uma das participantes indicou não frequentar a igreja. Frequentar igreja faz parte da gama de estratégias que favorecem a incorporação do habitus religioso católico, o que se configura como elemento revelador do interesse familiar pelo habitus religioso. As outras opções com maior número de respostas foram “praças/parques” e “livrarias”, revelando o estímulo ao hábito da leitura, que contribui diretamente para o bom desempenho escolar dos estudantes.

Seguindo com nossos olhares sobre a importância dada pelas famílias em relação aos aspectos religiosos, todos optaram por responder que a religião é algo “muito importante”, quando perguntaram sobre a opinião dos filhos em relação à religião, revelaram considerar que há uma unidade de pensamento no seio familiar, visto que, todos assinalaram acreditar que o filho “considera a religião como algo importante”, as demais opções “não considera a religião como algo importante, mas frequenta a igreja e tem alguns hábitos religiosos por influência da família e da escola”, “não considera a religião como algo importante e não inclui práticas religiosas em seus hábitos” que relativizavam a relação dos filhos com a religião não foram assinaladas em nenhum dos casos. Entende-se a família como lugar da “… acumulação, de conservação, e de reprodução” (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Papirus., p. 177), ao observarem a relação estabelecida pelos pais com os aspectos da religiosidade, os filhos tendem ao desenvolvimento de comportamentos semelhantes, que passam a ser naturalizados e incorporados.

Sobre as práticas religiosas, todas as famílias descreveram que os filhos estão habituados desde a infância a realizar orações e frequentar igrejas, 5 famílias indicaram como prática frequente desde a infância celebrar datas comemorativas relacionadas a religião, e 3 descreveram ainda fazer leitura de livros ou textos religiosos e estar em contato com símbolos religiosos. Identificamos nesse caso uma contradição, visto que se todas indicaram que os filhos frequentam igrejas desde a infância, seria uma consequência que eles também estivessem em contato com símbolos religiosos desde a infância, pois dificilmente uma igreja católica não possui em seu interior símbolos que remetem a religião, como exemplo, podemos citar imagens de santos católicos.

Em relação a esse aspecto, consideramos que a naturalização desses símbolos pode ocasionar essa falta de atenção dos pais ao responderem sobre o contato com símbolos religiosos desde a infância dos filhos, visto que passam a considerar os símbolos como aspectos comuns, próprios aos lugares, e não necessariamente religiosos. Entende-se que “… as representações de mundo, de homem, de sociedade que o ideário cristão defende estão encarnados nos indivíduos, com tal profundidade, que estes não conseguem desgarrar-se desses valores” (Rocha, 2016Rocha, M. Z. B. (2016). Expressões religiosas em escolas públicas: representações sociais ou ideologia? Acta scientiarum. Education, 38(3)., p. 244). Há nesse sentido, um afastamento do símbolo de seu significado.

Há por parte das famílias uma tendência em concordar com a premissa de que a religião contribui para a formação ética dos indivíduos, sendo que “… a conduta moral se daria pelo sentimento de sagrado … consistiria em obedecer a mandamentos de um superior, temido e desejado” (Lima, 2008Lima, A. P. (2008). O uso da religião como estratégia de educação moral em escolas públicas e privadas de Presidente Prudente. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual Paulista., p. 28). Em relação a esse aspecto, três famílias responderam que a religião é fundamental para a formação ética do seu filho, e as outras três optaram pela afirmativa “é importante para formação ética do seu filho, mas não é o único meio de garantir essa formação.”, nenhuma das famílias considera a religião como algo que “não exerce influência na formação ética do seu filho”. De acordo com as famílias, a religiosidade no ambiente escolar contribui para: “uma melhora na qualidade do ensino”, “uma melhora no comportamento dos estudantes”, “uma melhora nas relações desenvolvidas entre professores e estudantes”, “uma melhora no comportamento dos estudantes”. Nenhum dos pais indicou que a presença da religiosidade não traga contribuições ao ambiente escolar.

Sobre a responsabilidade da escola como instituição promotora da formação religiosa dos filhos, nenhum considerou ser uma responsabilidade apenas da família, revelando concordarem com a ideia de que família e escola devem dividir essa tarefa (Lima, 2008Lima, A. P. (2008). O uso da religião como estratégia de educação moral em escolas públicas e privadas de Presidente Prudente. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual Paulista.). Sendo que 5 consideraram que “sim, mas todas as religiões devem ser trabalhadas” e 1 afirmou que “sim, desde que esteja de acordo com os ensinamentos da religião adotada por minha família”, nesse caso, observamos a preocupação com a preservação dos valores religiosas adotados pela família. Tal cenário revela a crença de que existem valores religiosos universais a serem transmitidos para a sociedade como um todo, o que se revela um pensamento errôneo ao considerarmos a pluralidade religiosa que compõe o quadro cultural e social da sociedade brasileira.

A partir das respostas levantadas com os questionários, foi possível observamos uma aceitação das famílias em relação às práticas religiosas dentro dos espaços escolares. Além disso, indicaram a mobilização familiar que objetiva a formar e valorizar o habitus religioso, revelando que se trata de famílias em que a religião consiste em um aspecto de muita relevância, que se faz presente nas práticas e relações estabelecidas no ambiente familiar.

O segundo instrumento de coleta de dados com a família consistiu na realização de entrevistas. Esclarecemos que, a fim de preservar a identidade dos participantes, utilizaremos nomes fictícios. Conforme mencionado anteriormente, contamos com a participação de 5 mães (Isabela, Júlia, Rosana, Paula e Sofia) e 1 pai (Carlos)7 7 Isabela, esteticista: indicou renda familiar mensal de 5 a 15 salários mínimos; Júlia, desempregada: indicou renda familiar mensal de 2 a 5 salários mínimos; Rosana, professora: indicou renda mensal de 2 a 5 salários mínimos; Paula, funcionária pública: indicou renda familiar mensal de 2 a 5 salários mínimos; Sofia, faturista: indicou renda mensal de 2 a 5 salários mínimos; Carlos, policial militar: indicou renda familiar mensal de 5 a 15 salários mínimos. . Ficou estabelecido com os participantes, que a gravação do áudio aconteceria em hora e local de preferência dos mesmos. Isabela e Júlia optaram por nos receber em suas próprias residências, o que possibilitou a observação de alguns aspectos.

Ao chegarmos à casa de Isabela, observamos na TV a transmissão de programas de um canal de TV católico, além disso, símbolos religiosos estavam presentes pelo ambiente, o mesmo foi observado na residência de Júlia. Identificamos essas ações como maneiras de informar e reforçar sua crença, numa situação de entrevista, ou seja, uma reafirmação da fé, que se revela nas ações incorporadas pelo habitus religioso. As demais entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho dos participantes.

A partir do relato dos pais em relação à trajetória escolar dos filhos, observamos que antes de frequentar as instituições públicas confessionais lócus de nossa pesquisa, algumas dessas famílias já demonstravam a preferência pelas escolas confessionais. Isabela, Rosana e Paula descrevem situações parecidas, em que mudanças de cidades causaram preocupações familiares, pois mudar-se para uma cidade maior poderia colocar em risco os valores adotados pelas famílias. Paula relata que a opção por uma escola confessional privada nos anos iniciais da escolarização do filho foi o caminho encontrado para garantir que ele não perdesse a formação recebida em casa.

O mesmo aconteceu com Isabela, que optou por uma escola confessional do setor privado de cunho evangélico. Segundo Isabela, a diferença entre a confessionalidade da escola e a fé professada pela família foi causadora de conflitos. A entrevistada lembrou de uma situação específica, em que sua filha foi obrigada pela diretora a deixar de usar um crucifixo no pescoço. Após a mudança para a instituição confessional conveniada com o Estado, a mãe revelou não recordar de situações conflituosas, observamos que a similaridade da religiosidade familiar e da confissão religiosa adotada pela instituição de ensino, corroboram em relações mais harmoniosas para as famílias. Sofia também revelou a opção por instituições confessionais mesmo antes das filhas alcançarem a idade necessária para a matrícula. A opção das famílias pelas instituições confessionais está atrelada a uma ideia de preservação dos valores ensinados aos filhos.

Nos casos de Rosana, Carlos e Júlia, não identificamos em outros períodos da trajetória escolar dos filhos a opção pela matrícula em instituições confessionais. Sendo que nesses últimos três casos, a questão da localização foi o primeiro aspecto observado ao escolherem as instituições de ensino. Observamos que no caso de Rosana, a opção pela escola confessional conveniada surgiu a partir da mobilização de seu capital social, visto que a escolha foi baseada na convivência com outras pessoas que já haviam estudado na instituição, de acordo com ela, “… terminaram a faculdade, hoje já estão todos empregados, então quer dizer que a gente tem referência da escola” (Rosana, 2020). Identificamos nesse um interesse familiar pela longevidade escolar de seus filhos, visto que a mãe faz uma projeção do que pode acontecer baseando-se na experiência de outros agentes.

Júlia e Carlos apontaram como elemento de influência de sua escolha, em primeiro lugar, a questão da localização. Carlos afirmou que a opção pela escola confessional conveniada se deu “… por ser uma escola também que tem uma relação com a minha religião” (Carlos, 2020). No caso de Júlia, o capital social também influenciou sua decisão sobre a escola, pois ao mudar-se para o bairro onde reside, ouviu relatos positivos quanto à instituição. Segundo Júlia, a boa imagem da escola estava relacionada aos cuidados da ordem religiosa proprietária do prédio escolar. Apesar disso, ao ser questionada sobre a característica confessional da escola ter sido algo que influenciou sua escolha, indicou que “… me foi recomendada como uma ótima escola, com ótimos professores e pela organização, não pelo fato de ser confessional” (Júlia, 2020).

Observamos uma contradição no relato de Júlia, que pode se justificar por uma incompreensão do conceito de escola confessional. A mãe não estabeleceu uma relação entre a forma como a escola se organiza e os pressupostos religiosos, que regem as regras e condutas escolares. Ao analisar o seu relato, identificamos que para ela a instituição religiosa está afastada do cotidiano escolar, sendo um elemento que exerce um cuidado, mas que não uma influência nas práticas e ações desenvolvidas.

Para os outros casos, a confessionalidade foi apontada com uma característica relevante para as escolhas. Sofia descreve que a afinidade com a instituição se deu pela característica confessional da instituição, pois está “… dentro dos mesmos pensamentos de religião” (Sofia, 2020). Para Paula, a confessionalidade desperta nos estudantes uma tendência ao desenvolvimento de uma disciplina necessária não apenas para a trajetória escolar, como também para as fases posteriores da vida. Rosana também estabelece uma relação da confessionalidade com a formação para a vida em sociedade, sendo essa uma característica importante para a instituição de ensino. Na compreensão de Carlos, a religião deve fazer parte da educação dos filhos de maneira a abranger todos os espaços sociais em que eles se inserem, sendo que

a gente acredita que hoje a educação de um filho já é bem difícil, com a igreja está muito difícil, imagine sem né?a gente acredita que seja importante para o desenvolvimento intelectual, como ser humano dela

(Carlos, 2020).

Isabela descreve que a escolha pela instituição confessional faz parte do hábito familiar de buscar constantemente estar próximo às “… coisas de Deus” (Isabela, 2020). Acrescenta uma aceitação dos filhos sobre a escolha pela instituição confessional, algo que se justifica pelo habitus religioso já incorporado pelas crianças que, segundo ela, apresentam um comportamento diferente de outras crianças da mesma idade. Descreve que “… eles não escutam rádio ou músicas assim que tenham palavrão, esses tipos de música, mas não porque eu impus ou o pai, mas porque eles sabem que não é de Deus” (Isabela, 2020).

Apesar dos filhos nunca terem tido contato com uma escola confessional, Rosana relata que percebeu a aceitação dos filhos sobre a escola confessional, tal característica agradou os estudantes, sendo entendida como algo positivo. Para Carlos, apesar de não ter desenvolvido uma conversa com a filha antes da realização da matrícula sobre a característica confessional da instituição, não houve nenhum tipo de reclamação, e descreve notar uma melhoria no comportamento da filha após a entrada na instituição, algo que atribui ao desenvolvimento de práticas religiosas.

Sofia informou que suas filhas já tinham conhecimento da confessionalidade da escola, e que esse nunca foi um fator que causasse incômodo. Júlia revelou uma aceitação imediata de seu filho: “… eu acredito que não tenha nada contra porque ele é católico né, fez primeira comunhão, é criado dentro da religião, então não tem nenhum problema” (Júlia, 2020). No caso de Paula, houve uma resistência por parte do filho, que se demonstrou contrário à decisão familiar:

no primeiro bimestre, ele conheceu os professores, sentiu um pouco de rigidez em alguns professores, mas no segundo semestre ele falou: “mamãe, é aqui o lugar onde eu quero ficar. Eu aprendi muito mais aqui do que numa escola particular, hoje eu sou uma outra pessoa”. Então eu tive relato dele que aquilo foi bom para ele, não só a minha observação

(Paula, 2020).

De maneira geral, identificamos nas famílias um comportamento que prevê o consenso dos filhos diante de suas decisões, sendo que parecem não sentir necessidade de estabelecer um diálogo para que a questão da confessionalidade seja explicada, pois ela já está incorporada nas práticas familiares formadora do habitus. No caso de Paula, a mãe afirma que o filho superou os sentimentos de resistência apresentados no início de sua trajetória na instituição, pois o estudante compreendeu a importância das regras estabelecidas pela instituição. Isabela associa o bem-estar dos estudantes com a presença dos símbolos religiosos no interior das escolas, pois

no momento em que você olha para um quadro, ou alguma coisa que te lembre uma coisa boa, porque eu duvido alguém olhar para a imagem de Jesus ou de Maria e lembrar de uma coisa ruim. Por mais que seja de outra religião, vai olhar para aquilo lá e vai passar, sabe que é de Deus, por mais que não seja da religião a pessoa vai olhar e falar: “é de Deus”, só por isso já te passa uma coisa

(Isabela, 2020).

Identificamos na fala de Isabela essa associação entre símbolos religiosos e bem-estar, característica associada aos resquícios de uma tradição escolar, que atribui aos elementos do campo religioso uma determinada “… força ideológica coercitiva sobre o meio social” (Rocha, 2016Rocha, M. Z. B. (2016). Expressões religiosas em escolas públicas: representações sociais ou ideologia? Acta scientiarum. Education, 38(3)., p. 240). Assim, aos símbolos, são atribuídas as funções de tranquilizar e inculcar nos estudantes comportamentos que demonstrem respeito pela ordem estabelecida.

Diferente de Paula e Isabela, Sofia não considera que os símbolos religiosos exerçam algum tipo de influência no comportamento dos estudantes. No entanto, para ela, o significado dos símbolos remete ao amor, caridade e respeito ao próximo, por isso a importância de se fazerem presentes. Sofia entende que os símbolos católicos presentes na instituição não interferem no comportamento dos estudantes que não professam a fé católica.

Rosana observou um comportamento de aceitação da presença de símbolos religiosos não só dos filhos, mas também de estudantes não católicos sendo possível ver “… o respeito que eles têm, eles não mexem, não criam… como se diz, brincadeiras ou fazem qualquer piada em hipótese nenhuma. Eles respeitam o símbolo” (Rosana, 2020). Para Carlos, a aceitação da presença de símbolos religiosos é algo benéfico, pois “… é uma forma de estar, no caso no meu ambiente no caso da minha filha na minha família que é uma família católica né, de estar incutindo nela já essas práticas e a cultura da nossa religião” (Carlos, 2020).

Júlia realizou uma análise exclusiva para o filho, sem mencionar os demais estudantes, sendo que acredita que os símbolos presentes na instituição não afetam seu comportamento pois “… esses símbolos ele está acostumado aqui em casa a ter. Minha mãe tem altar, ele mesmo usa escapulário essas coisinhas ligadas à religião. Então não afeta” (Júlia, 2020). Consideramos que, ao dizer que os símbolos não afetam o comportamento do filho, Júlia revela a continuidade das ações familiares na instituição escolar, no caso, algo que poderia causar estranhamento seria a ausência dos símbolos.

Para essas famílias, os símbolos religiosos presentes nas instituições confessional-públicas não afetam o comportamento dos filhos por ser algo que faz parte da vida familiar dos estudantes. Há uma naturalização da presença dos símbolos religiosos nas escolas, que reforça a ideia de que a religião católica possui princípios que podem ser considerados como universais, portanto, não há problema que os símbolos ocupem os espaços públicos, desconsiderando que

… os aspectos materiais dos estabelecimentos de ensino compõem um fator relevante na constituição de determinadas práticas que podem constranger ou estimular a disseminação de certos conhecimentos ….

(Branco, 2016Branco, J. C. (2016). O amor de Jesus preenche todos os vazios: os discursos religiosos nas paredes de uma escola de educação infantil em Duque de Caxias (RJ). Educação em foco, 21(2)., p. 352).

Isso pode resultar em ações de silenciamento de grupos professantes de outras crenças, que, mesmo sendo minoria, possuem os mesmos direitos em relação ao espaço público. Ainda em relação à confessionalidade das instituições, identificamos que os pais atribuem a essa característica a possibilidade de distingui-las de outras escolas públicas, sendo que “… por ser cuidado pelas freiras não vai entrar qualquer coisa, não é qualquer tipo de material que vai ser dado para os alunos, que não esteja de acordo com as nossas normas né” (Isabela, 2020). Carlos, que é policial militar, ainda aponta a confessionalidade como uma garantia de segurança para o ambiente escolar

conheço algumas escolas da rede pública, estadual principalmente e a gente tem notado diversos problemas, principalmente relacionado ao uso e consumo de entorpecentes, algum tipo de violência, bullying. E lá sinceramente eu não notei nenhum casoexistem escolas que existem situação de violência briga de aluno, essas coisas, e lá a gente não observa

(Carlos, 2020).

Para Rosana, a confessionalidade é um diferencial que norteia as escolhas das famílias, que optam por essas instituições, visão compartilhada com Sofia. Paula descreve que as regras escolares dão a distinção à instituição. Os pais informam que as instituições têm o costume de realizar reuniões antes do início período letivo em que as regras são discutidas, momento em que, para eles, as famílias têm a possibilidade de refletir sobre a escolha e decidir se os filhos manterão os filhos na instituição. Assim, aqueles que não se adequam ao que está estabelecido podem retirar-se

E se tem algum pai que até seja de outra religião, porque lá é misturado é uma escola pública (sic), ela deixa bem esclarecido que lá é cuidado pelas freiras e vai ter as coisas assim, da igreja. E eu conheço pessoas assim, inclusive uma que é amiga minha, que é louca para colocar a filha dela lá e ela é evangélica, justamente por causa das normas que são mais rígidas

(Isabela, 2020).

Descrevem ainda, além da presença de símbolos religiosos, práticas escolares seguidas do costume de orações, como, por exemplo, o momento de acolhida antes do início das aulas, sendo que todas essas questões são informadas nessa reunião que antecede o início do período letivo. Sobre a possibilidade de matricular os filhos nas instituições no caso de não seguirem a mesma confessionalidade professada pela família, Carlos, Rosana e Paula sinalizam uma aceitação sobre essa possibilidade, para eles o importante é a presença dos princípios religiosos, independente da denominação religiosa que rege o ambiente.

Paula, no entanto, deixa claro sua preferência por escolas confessionais de denominações cristãs.

Independente da religião, porque eu não tenho preconceito com nenhuma e eu acho assim, onde Deus estiver, independente da casa que ele estiver, para mim ele sempre será Deus …. Eu acho que a doutrina muda em alguma casa, mas o pai sempre será o mesmo

(Paula, 2020).

Júlia e Sofia explicitaram claramente suas restrições quanto às matrículas em instituições de confessionalidade diferentes da católica. Sofia afirma que não matricularia as filhas em instituição de confessionalidade diferente da cristã: “… se fosse em outra não, porque eu acho assim que a educação parte de casa, então não adianta eu só esperar da escola, também tenho que ir buscar” (Sofia, 2020). As entrevistadas demonstram uma preocupação com a preservação do habitus religioso já inculcado. Júlia descreve que “… se fosse uma escola que impusesse não, é uma escola, por exemplo, adventista e tem que ser adventista, aí não, com certeza não (Júlia, 2020).

Em relação aos papeis a serem exercidos por cada uma das instituições na educação religiosa dos filhos, os pais compreendem que o trabalho da escola e da família são complementares, sendo que a família é entendida como aquela que deve dar o primeiro exemplo, ser “… educador e evangelizador também, e incentivador. E transmitir a prática, o hábito né, através dos exemplos você levar seu filho para esse caminho” (Carlos, 2020). Os pais atribuem às escolas o papel de informar aos filhos sobre a diversidade religiosa, mas por outro lado indicam uma preferência para que seus filhos permaneçam professando a fé católica.

Sofia relaciona a disciplina de ER como a ferramenta escolar para a promoção da formação religiosa, sendo que considera importante que a filha participe das aulas da disciplina por acreditar que nesse momento são transmitidos os ensinamentos presentes em sua família e na igreja que frequentam. Júlia entende a disciplina como a possibilidade que seu filho tem de conhecer as demais religiões, para “… descobrir o que é bom e o que não é bom pra ele” (Júlia, 2020). Paula atribui ao ER o papel de ensinar aos estudantes valores morais, e Carlos considera o ER como “… instrumento que a gente tem para estar semeando o pensamento cristão” (Carlos, 2020). Isabela demonstra concordar com os demais pais, pois considera que no ER “… você também vai moldando a criança dentro de valores, e valores bons. Porque toda religião tem o seu alicerce bom” (Isabela, 2020).

Reconhecemos nessas famílias casos que revelam a internalização do habitus religioso católico, uma naturalização de práticas que desconsidera a presença da diversidade religiosa nas escolas públicas. O diagnóstico que fazem sobre as escolas está voltado aos próprios filhos, desconsiderando a presença daquilo que lhes é “diferente”. No entanto, suas falas contribuem para identificação das instituições confessionais públicas conveniadas como espaço de privilégio para determinadas religiões, em especial, o catolicismo.

A confessionalidade se revelou como característica que atraiu os pais para esses estabelecimentos de ensino, sendo que em alguns casos o capital social mobilizou a procura, revelando que essas instituições atingem o objetivo de disseminar uma boa imagem social. Há um combinado harmonioso entre família e escola que possibilita uma aceitação mútua das escolhas feitas em relação ao modo de educação que deve ser ofertada, evitando a presença de conflitos e problematizações. As famílias parecem ter a certeza de que os filhos, e os demais estudantes das instituições, estão de acordo a organização escolar, sendo que não consideram a presença de conflitos nessas escolas como uma realidade possível.

Os estudantes das escolas confessionais conveniadas e suas percepções sobre a confessionalidade das instituições de ensino lócus da pesquisa

Neste tópico analisamos questionários respondidos por estudantes das instituições participantes. Nosso corpus de análise contou com a participação de 542 estudantes de turmas do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Tratou-se de um questionário contendo 9 questões, em que os estudantes poderiam assinalar uma, ou mais de uma opção de resposta, dependendo da pergunta. Deixamos em aberto a possibilidade de que eles incluíssem novas opções de resposta caso considerassem necessário. Nossa intenção era a de realizar uma aproximação com a realidade escolar vivenciada por esse grupo, bem como identificar indícios da maneira como a relação entre pais e filhos se estabelece e se desenvolve nos momentos de decisões sobre as trajetórias escolares. Objetivamos compreender também se as motivações dos estudantes para permanecer nessas instituições estavam alinhadas aos desejos parentais.

Inicialmente, buscamos identificar se os estudantes conheciam as razões que levaram suas famílias a optarem pelas instituições em que estão matriculados. Diante da questão “você conhece as motivações que levaram sua família a optar por esta escola?”, 72,04% dos estudantes indicaram conhecer tais motivações, enquanto 27,96% afirmaram não saber. Compreendemos que o fato de saber ou não saber os motivos que levam seus pais a escolherem a instituição de ensino, revela o desenvolvimento de diálogos entre pais e filhos sobre as trajetórias escolares e os objetivos traçados para ela. Um movimento que pode indicar que os pais agem no sentido de incluir os filhos nas decisões sobre sua vida escolar. Sendo que se tratando de estratégias de parentocracia, tem-se “… a necessidade de considerar o papel do aluno como parte ativa do seu próprio percurso” (Zago, 2010, p. 21). Para que essas estratégias alcancem os objetivos previstos, pais e filhos devem demonstrar estar em sintonia.

Para que fosse possível observar essa possibilidade, perguntamos aos estudantes se a opinião deles foi considerada antes das matrículas. Observamos um cenário que nos permite dizer que a suposição levantada sobre o desenvolvimento de diálogos entre pais e filhos sobre a trajetória escolar se confirma, pois 60,34% dos estudantes afirmaram ter sua opinião ouvida pelos pais, e 39,66% disseram não terem sido ouvidos. Em relação aos motivos apontados pelos estudantes como elementos influenciadores da decisão dos pais, identificamos as seguintes categorias: confessionalidade/religiosidade, disciplina escolar, influência do capital social e qualidade de ensino. Sobre cada um dos aspectos, apresentamos algumas respostas deixadas de forma literal pelos estudantes nos questionários.

  1. Confessionalidade/religiosidade: “Porque a escola é boa e religiosa”; “Regras rígidas, boa qualidade de ensino e a proximidade com a religião”; “Por questão de ser uma escola católica e ser rígida”; “Porque é de freira”; “Por ser da minha religião, por ser boa e rigorosa”; “O bom ensinamento dela e a religião entre outras atividades como a festa de Nossa Senhora Auxiliadora”; “Por ter aula de ER”; “Por ser uma boa escola e pelo fato de minha mãe não ter aceitado o fato de eu ser ateu. Ela achou que uma escola religiosa me ajudaria a me encontrar”.

  2. Disciplina: “Eles acham essa escola muito boa na questão de ela ser bem rígida e meus pais acham que quanto mais rígida ela vai ser melhor”; “Porque aqui é bom e puxado e minha mãe gosta de escolas puxadas”; “Pelo ensino e pela ‘fama’ da escola ser rígida”; “Por ela ser rígida, ter um ensino bom, não ter mal elemento nela”; “Método de estudo mais rigoroso, um colégio que todos elogiam”; “Os estudos, a diretora e os professores rígidos”; “Bons professores, regras e disciplina”; “Porque eu era preguiçoso ai mandaram para essa escola para eu me ajudar a ser mais atento”; “Minha mãe dizia que o ensino aqui era melhor e que também me traria disciplina”;

  3. Influência do capital social: “Bom ensino e boas recomendações”; “Porque meu primo estudava aqui”; “Parceiros da minha família falaram que essa escola era muito boa, então ela foi incentivada por eles”; “Porque todos falaram muito bem dessa escola”; “Pois minha prima já estudou nesta escola”; “Indicação de várias pessoas da minha família por ter uma ótima educação” “Porque minha mãe estudou aqui e ela gosta da educação dessa escola”; “Porque o ensino é muito bom e porque familiares falaram que aqui nessa escola tem oportunidades que em outras escolas não tem”.

  4. Qualidade de ensino: “Eles acham uma escola boa, organizada, tranquila, diferente de outras escolas públicas”; “Porque o número de estudantes que passam no Enem aqui é alto e também por ser uma ótima escola”; “A escola tem bons professores e é uma ótima escola pois sempre entre as melhores”; “Por ser uma das melhores escolas por ter professores capacitados”; “Porque foi a escola com mais aproveitamento dos alunos em vestibulares e é bem concorrido as vagas e por ser uma escola de auge”; “ela tem o ensino bom ela é bem exigente e ela é uma das escolas mais concorridas do Estado”; “A escola possui uma boa qualidade de ensino”; “O ensino aqui é ótimo, inclusive os professores, e na minha outra escola o ensino era muito fraco então eu não aprendia quase nada, e nessa aprendi bastante coisa”; “O ensino é excelente e acolhedor”; “é uma boa escola que meus pais possam confiar”; “Para eu ser alguém na vida para formar na faculdade”.

Com base nas respostas dos estudantes observamos um consenso com as considerações apresentadas pelos pais participantes da pesquisa. De maneira geral, o público da escola é composto por estudantes provenientes de famílias que tendem a dar preferência para uma educação escolar, que proporcione momentos com aspectos de âmbito religioso. Sendo que

… a educação confessional, promovida por uma instituição confessional de educação, prevê que o todo da escola – a começar pelo seu projeto educativo – seja orientado pelos valores da tradição religiosa e do carisma religioso professados pela instituição

(Borba, 2014Borba, F. M. (2014). Confessionalidade na escola: a relação entre religião e educação no projeto educativo da rede Marista [Dissertação de mestrado]., p. 24).

Em alguns casos, essas instituições de ensino são entendidas como uma possibilidade de corrigir comportamentos considerados inadequados pelos pais, como no caso do estudante que descreveu que a mãe optou pela escola por discordar de sua opção pelo ateísmo. O contato com a prática religiosa seria a alternativa encontrada por essa mãe para que o filho modificasse sua maneira de pensar, a incorporação de um habitus religioso resultaria da vivência de práticas religiosas desenvolvidas no ambiente escolar a partir da “… apropriação (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas” (Bourdieu, 1983Bourdieu, P. (1983). Esboço de uma teoria da prática. In R. Ortiz. A sociologia de Pierre Bourdieu (pp. 46-81). Ática., p. 83).

Para identificar interesses entre pais e estudantes sobre aspectos que motivam a permanência deles nas instituições, questionamos quais seriam os elementos que contribuem para que eles permaneçam estudando nas instituições. As opções dadas foram: (i) A escola possui uma boa qualidade de ensino; (ii) Tenho bons professores; (iii) A direção e coordenação pedagógica desenvolvem um bom relacionamento com professores, alunos e toda a comunidade escolar; (iv) A escola é próxima da minha casa, ou do local de trabalho dos meus pais; (v) Me sinto bem estudar em um espaço que proporcione uma proximidade com questões da religiosidade; (vi) A escola possibilita momentos de discussões sobre práticas e princípios religiosos que considero importante para minha formação em geral; (vii) A escola oferece atividades extracurriculares que são do meu interesse.

A opção mais indicada foi “a escola possui uma boa qualidade de ensino”, escolhida por 29,85% dos estudantes. Seguida de “tenho bons professores”, opção marcada por 20,88%. A terceira característica mais indicada foi “a escola é próxima da minha casa, ou do local de trabalho dos meus pais”, que teve 15,55% das respostas. Um total de 12,3% dos estudantes indicou como motivação para permanecer nas instituições “a direção e coordenação pedagógica desenvolvem um bom relacionamento com professores, alunos e toda a comunidade escolar”. A opção “me sinto bem em estudar em um espaço que proporcione uma proximidade com questões da religiosidade” foi indicada por 8,74% dos estudantes, sendo a sexta razão mais indicada a alternativa “a escola oferece atividades extracurriculares que são do meu interesse” que teve 7,97% das respostas, e por fim, com 4,72% a opção “a escola possibilita momentos de discussões sobre práticas e princípios religiosos que considero importante para minha formação em geral”.

A partir das respostas indicadas nos questionários respondidos pelos estudantes, é possível afirmarmos que os interesses deles em relação às instituições de ensino em que estão matriculados não estão relacionados à questão da confessionalidade. Sendo que as alternativas que remetiam a essa característica foram pouco indicadas.

Sobre a opção “a escola possibilita momentos de discussões sobre práticas e princípios religiosos que considero importante para minha formação em geral” ter ocupado a última posição, levantamos duas hipóteses: a primeira considera um cenário em que as instituições não desenvolvem momentos de discussões sobre práticas e princípios religiosos, o que consideramos como menos provável, visto que além das práticas relatadas pelos pais, relembramos a presença da disciplina de ER nos currículos, que tem como objetivo, justamente ser um momento em que a religião seja assunto de discussão nas aulas, os próprios estudantes corroboram com essa suposição, visto que 62,18% afirmaram identificar a manifestação religiosa na disciplina de ER.

Outra suposição considerou que para os estudantes as discussões sobre práticas e princípios religiosos não são importantes para sua formação em geral. Algo demonstrado por opinião completamente contrária ao apresentado pelo grupo dos pais entrevistados. Se para as famílias a religião se configura como elemento que contribui para a formação para a vida em sociedade, os estudantes parecem não concordar. Apoiam uma formação escolar que se baseie em princípios de uma ética laica, que se empenhe em “… discernir entre os valores nacionais em construção, entre os que têm origem cultural e os que têm origem religiosa (em uma ou outra fé)” (Fischmann, 2006Fischmann, R. (2006). Ainda o ensino religioso em escolas públicas: subsídios para a elaboração de memória sobre o tema. Revista Contemporânea de Educação, 1(2)., p. 230). Uma ética que não atue no sentido de impor arbitrários culturais, contribuindo para uma organização que hierarquize denominações religiosas, seus valores e crenças.

Bourdieu (2011)Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2011). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Vozes. define o arbitrário cultural como um movimento de imposição de práticas culturais e sociais. Cria-se a ideia de que existem culturas de menor “… valor em um mercado econômico ou simbólico” (Bourdieu, 2011Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2011). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Vozes., p. 51), que devem ser superadas e ajustadas ao que se considera como o melhor ou mais correto. A escola contribui para a perpetuação do arbitrário cultural (Bourdieu, 2011Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2011). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Vozes.). Dessa forma, ao privilegiar princípios religiosos de determinada religião, contribui para o fortalecimento de determinados grupos religiosos, reafirmando seu poder social.

Alguns aspectos também podem ser destacados, conforme observado em alguns questionários no que tange às opiniões negativas deixadas pelos estudantes sobre as instituições de ensino. Embora tenham sido poucos, apresentamos aqui como forma de indicar insatisfações com o ambiente escolar, a saber: “Nenhum, vou mudar de escola ano que vem se, Deus quiser”; “Sou obrigada”; “Não quero estudar aqui, mas minha matrícula caiu nessa escola e não sinto vontade de permanecer aqui”; “Não gosto, meu último ano. A escola já foi boa”; “É meu último ano e não tive autorização para mudar”; “Não, a escola pode ser de qualidade, mas é extremamente chata e irritante ao extremo, muito mesmo”; “Eu não tive interesse em vir para essa escola, mas meus pais sim”. Esclarecemos que apesar de demonstrarem a insatisfação, não apresentaram uma justificativa, o que nos impossibilita afirmar que seja devido a característica da confessionalidade.

De maneira geral, consideramos que os estudantes demonstram ter a consciência de que a confessionalidade é um fator importante para que seus pais decidissem matriculá-los nas instituições confessionais conveniadas. No entanto, o interesse do grupo de estudantes por essas escolas distancia-se das questões que envolvem a religião/religiosidade; os pais atribuem a motivação à confessionalidade, já aos estudantes, pouco importou este fator na escolha. O que nos parece é a existência de um conflito de interesses, que pode levar os estudantes a uma insatisfação quanto ao ambiente escolar ocasionando resultados insatisfatórios para o bom desempenho escolar.

À guisa de considerações finais

A presença da religiosidade no espaço escolar público configura-se como um problema irresoluto para as escolas lócus de nossa pesquisa, que denominamos de escolas confessionais-públicas. A adoção do princípio da laicidade induz ao entendimento de que a religião é aspecto a ser resolvido no âmbito privado, o que significa afirmar que apesar de ter como dever a garantia das manifestações religiosas de forma segura, não cabe ao Estado a promoção de uma formação religiosa.

Historicamente, o campo religioso católico desenvolveu uma aproximação com o campo político brasileiro, o que contribui para a aceitação e naturalização de práticas nos estabelecimentos escolares públicos de ensino. Dessa forma, observamos uma legitimação de princípios religiosos como elementos orientadores das práticas desenvolvidas no campo educativo em que a escola atua, no sentido de modificar práticas e inculcar um habitus religioso (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva.).

As instituições lócus de nossa pesquisa indicam um cenário em que pais e estudantes demonstram ter interesses diferentes sobre suas trajetórias escolares. Enquanto os pais privilegiam os espaços confessionais por compreenderem a religião como aspecto necessário à formação de seus filhos para a vida em sociedade, os estudantes parecem dar pouca importância aos aspectos religiosos. As famílias consideram a religião como aspecto fundamental para a garantia de que seus filhos incorporem princípios morais e éticos, e consideram as instituições de ensino como espaços próprios para a formação religiosa, que deve ocorrer concomitantemente às ações familiares.

Há por parte das famílias uma naturalização das práticas religiosas, que se coaduna na aceitação da ideia de que a religião é a responsável pela manutenção da ordem escolar, exercendo influência na maneira como as relações se desenvolvem, identificando uma “… necessidade de ‘moralização’ e de ‘sistematização’ das crenças e práticas” (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva., p. 34). O habitus religioso católico compartilhado por escolas e famílias corrobora para o desenvolvimento de uma relação harmoniosa, em que não se questiona a ordem já estabelecida, sendo essa premissa um elemento desejado e considerado como aspecto positivo, desconsidera-se a presença de uma diversidade religiosa, que passa a ser silenciada em favorecimento da perspectiva cristã, em especial, católica.

As instituições confessionais conveniadas do estudo configuram-se como espaços em que a religião católica ocupa lugar de privilégio que contribui diretamente “… para a ‘legitimação’ do poder dos ‘dominantes’ e para a ‘domesticação dos dominados’” (Bourdieu, 2007aBourdieu, P. (2007a). A economia das trocas simbólicas. Perspectiva., p. 32). Tal privilégio se revela em ações e práticas como, por exemplo, o processo de escolha da direção escolar, a presença da disciplina de ER nos currículos, a adoção da metodologia de ensino de Dom Bosco, a presença de símbolos religiosos católicos no interior das instituições, entre outros relatados por famílias e estudantes

As práticas são indicadores de estratégias do campo católico em busca da manutenção de uma ordem, em que o catolicismo se manifeste de maneira hegemônica. Ainda que nesses espaços não se impeça a presença de agentes/estudantes professantes de outras denominações religiosas, há uma desconsideração da pluralidade religiosa ao optarem por uma organização escolar em que a lógica católica rege o ambiente.

Identificamos a presença de um conflito com o princípio da laicidade que surge a partir do estabelecimento desse tipo de convênio Corre-se o risco de que esse tipo de prática seja causadora de um silenciamento de determinados grupos religiosos que se manifestam de forma minoritária nos espaços públicos escolares, sendo expostos às mais diversas situações em que um arbitrário cultural se legitima, condicionando um favorecimento do desenvolvimento de ações de violência simbólica motivada pela intolerância religiosa.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior - revisao@tikinet.com.br
  • 3
    De acordo com a Resolução/SED nº 3.012, de 29 de janeiro de 2016, disponível na página 4 do Diário Oficial nº 9.096, de 1º de fevereiro de 2016.
  • 4
    Tal constatação se deu a partir do desenvolvimento de revisão de literatura realizada nas bases BDTD e SciELO (primeiro semestre de 2018).
  • 5
    Identifica-se a parentocracia como “… um meio de seleção legítimo, em que os pais surgem como os responsáveis pelo percurso escolar dos filhos” (António; Teodoro, 2011, p. 174). Um movimento em que os pais se encarregam de organizar investimentos e estratégias para que os filhos desenvolvam uma trajetória escolar de sucesso.
  • 6
    O termo mercado escolar é utilizado para fazer referência a uma lógica do mercado que permeia as relações estabelecidas no campo educacional (Ball, 1995Ball, S. J. (1995). Mercados educacionais, escolha e classe social: o mercado como uma estratégia de classe. In P. Gentili. Pedagogia da exclusão: o neoliberalismo e a crise da escola pública (pp. 196-227). Vozes.).
  • 7
    Isabela, esteticista: indicou renda familiar mensal de 5 a 15 salários mínimos; Júlia, desempregada: indicou renda familiar mensal de 2 a 5 salários mínimos; Rosana, professora: indicou renda mensal de 2 a 5 salários mínimos; Paula, funcionária pública: indicou renda familiar mensal de 2 a 5 salários mínimos; Sofia, faturista: indicou renda mensal de 2 a 5 salários mínimos; Carlos, policial militar: indicou renda familiar mensal de 5 a 15 salários mínimos.

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Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2020
  • Revisado
    02 Abr 2022
  • Aceito
    17 Maio 2022
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