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O outro como eu em Vygotsky: o conceito de deficiência a partir da experiência de um judeu em contexto antissemita 1 1 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. <https://orcid.org/0000-0001-8889-750X> 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha. e-mail revisor: <verah.bonilha@gmail.com>

The other like me in Vygotsky: the concept of disability from the experience of a Jew in an anti-Semitic context

El otro como yo en Vygotsky: el concepto de discapacidad a partir de la experiencia de un judío en un contexto antisemita

Resumo

O presente trabalho trata-se de um estudo teórico derivado de revisão literária integrativa, o qual teve por objetivo estabelecer paralelos entre a imersão de Vygotsky em análises sobre crianças com deficiência e sua condição de judeu como outro, dado o contexto antissemita que o envolvia. Principia, ao destacar o caráter histórico e datado de suas contribuições, demarcando as dificuldades enfrentadas por Vygotsky no que se refere a viver em um contexto idealizado de forma a que fosse tomado como estrangeiro em sua própria terra; pontua também os impactos que a Revolução de 1917 plasmou em sua psique e escolhas, dada a dimensão deste fenômeno. Finaliza, ao asseverar que a predileção na análise de questões envolvendo crianças com deficiência em seus textos se vinculam à sua experiência de judeu em contexto antissemita, relação ainda não explorada pela literatura.

Palavras-chave
pessoa com deficiência; preconceito; educação; alteridade, Psicologia Sócio-histórica

Abstract

The present work is a theoretical study derived from a literary integrative review, which aimed to establish parallels between Vygotsky's immersion in analyzes of children with disabilities and his condition as a Jew as another, given the anti-Semitic context surrounding him. It begins by highlighting the historical and dated character of his contributions, demarcating the difficulties faced by Vygotsky when it comes to living in an idealized context so that he would be taken as a foreigner in his own land; it also points out the impacts that the 1917 Revolution had on his psyche and choices, given the dimension of this phenomenon. It ends by asserting that his predilection for analyzing issues involving children with disabilities in his texts is linked to his experience as a Jew in an anti-Semitic context, a relationship not yet explored in the literature.

Keywords
disabled person; prejudice; education; Alterity, Sociohistorical Psychology

Resumen

El presente trabajo es un estudio teórico derivado de una revisión literária integrativa, que tuvo como objetivo establecer paralelismos entre la inmersión de Vygotsky en los análisis de niños con discapacidad y su condición de judío como otro, dado el contexto antisemita que lo rodea. Comienza destacando el carácter histórico y fechado de sus aportes, demarcando las dificultades que enfrentó Vygotsky en cuanto a vivir en un contexto idealizado para ser tomado como extranjero en su propia tierra; también señala los impactos que la Revolución de 1917 tuvo en su psiquis y opciones, dada la dimensión de este fenómeno. Termina afirmando que su predilección por analizar temas que involucran a niños con discapacidad en sus textos está ligada a su experiencia como judío en un contexto antisemita, relación aún no explorada en la literatura.

Palabras-clave
persona con discapacidad; prejuicio; educación; alteridad; Psicologia sociohistórica

Introdução

O pensamento de Vygotsky se popularizou no Ocidente no último quartil do século XX, assumindo em tempo presente proeminente posição no cenário das teorias psicológicas e educacionais. Perfilhada ao materialismo histórico, a Psicologia Histórico-Cultural, campo epistemológico arquitetado por Vygotsky, eclodiu em um contexto político fervilhante, marcado pela queda do imperialismo russo, e, com ele, a presunção da criação de uma nova sociedade fincada em ideais igualitários.

O cenário turbulento em que emergiram as ideias de Vygotsky é relativamente bem conhecido do público geral, assim como as censuras e as proibições que foram impostas sobre suas obras e textos, especialmente, durante os anos de regime stalinista. Tais elementos fizeram com que as apropriações de seus supostos tardassem a ganhar fronteiras territoriais além Rússia, e, quando o fizeram, por diversas vezes, acabaram por despolitizar a obra de forma a torná-la mais palatável ao ocidente (Toassa, 2006Toassa, G. (2006). Conceito de consciência em Vigotski. Psicologia USP [online]. 17(2). 2, 59-83. <https://doi.org/10.1590/S0103-65642006000200004>.
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).

A condução pelo regime stalinista do pensamento de Vygotsky ao campo do interdito, acrescido, quando de sua tradução aos países ocidentais do esvaziamento político de seus textos, atravancou o estabelecimento de importantes diálogos e produziu como consequência direta a falsa suposição de que o autor estaria à frente de seu tempo, dado o caráter progressista de suas ideias que parecem inovadoras, inclusive, no século XXI.

Ora, nada mais falso que esta relação a um materialista histórico. O homem é seu tempo, pois suas relações apenas se originam a partir de condições concretas de existência. Por mais produtores de inovações que somos, estas se mostram condicionadas ao desenvolvimento de forças produtivas e espirituais da época. Tunes e Prestes (2009)Tunes, E., & Prestes, Z. (2009). Vigotski e Leontiev: ressonâncias de um passado. Cadernos de Pesquisa [online]. 39(136), 285-314. <https://doi.org/10.1590/S0100-15742009000100014>.
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destacam que as criações científicas refletem e ecoam as indagações do presente, já que “existe uma relação íntima entre o contexto histórico e a elaboração de teorias. Seria impossível avaliar a evolução de um pensamento fora do tempo, fora dos fatos, sem levar em conta o zeitgeist” (p.286).

O contexto social em ebulição que envolveu Vygotsky certamente exerceu interferência decisiva na produção de seus escritos e condicionou a maneira pela qual ele visualizava o mundo, suas estruturas e interações. Portanto, é inapropriado, pois falso e idealista, afirmar que algumas problemáticas por ele levantadas somente apareceriam de maneira concreta décadas após seu precoce falecimento. Recorrendo a Marx (1989)Marx, K. (1989). Elementos Fundamentales Para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) (16. ed.). Siglo Veintiuno., temos que o concreto, ainda que apareça no pensamento como síntese, é o ponto de partida efetivo de qualquer intuição e representação gnosiológica. É a unidade do diverso que comporta a síntese de múltiplas determinações e sobre o qual o pensamento se escora, independentemente da orientação que produzirá. Até para falsear a realidade é preciso partir dela.

Dito isto, os problemas enfrentados por Vygotsky fizeram parte do tempo e do espaço social em que habitava. Inconcebível se mostra analisar os conceitos destacados pela Psicologia Histórico-Cultural sem tomar em conta o contexto da sociedade russa à época, marcada pelas intensas crises que levaram a derrubada da monarquia de Nicolau II (Revolução de fevereiro de 1917) e, posteriormente, pela destituição do governo provisório e anunciação do governo socialista (Revolução de outubro de 1917).

Os desafios enfrentados pelos intelectuais russos à época vinculavam-se de maneira inarredável a este composto histórico particular. Não estavam adiantados no tempo, muito contrário, pois ancorados a ele de maneira umbilical. Devemos, por conseguinte, encarar Vygotsky como um estudioso que produziu originais conceitos a partir das demandas da insurgente sociedade comunista e não um futurista.

Apresentado este prelúdio, urge pontuar a existência de considerável lacuna no Brasil quanto à produção de textos que deslindem paralelos entre os escritos de Vygotsky e o contexto que circunscreveu sua trajetória como sujeito histórico, o qual viveu na época pós-revolucionária como constitutiva de uma paisagem psíquica esperançosa, mas também que forjou inseguranças, derivadas de um judeu vivendo em espaço antissemita.

Para se ter uma dimensão da escassez de textos acerca desta relação, encontramos na plataforma Google Acadêmico/Scholar, ao combinarmos os descritivos Vygotsky/Vigotski e Judeu no campo “pesquisa avançada/com todas as palavras/em qualquer lugar do artigo” somente 20 textos. Destes, 04 trabalharam como a condição judaica de Vygotsky influenciou a formação de sua personalidade (ainda que este tema não fosse o objetivo principal de nenhum destes estudos), quais sejam: De Paula (2019)De Paula, S. R. V. (2019). LS Vigotski e a cidade de Gomel: uma teoria histórico-cultural das vivências. Educação em Foco., Prestes (2010)Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade de Brasília, Brasília, DF., Lordelo (2007)Lordelo, L. da R. (2007). A consciência como objeto de estudo na psicologia de LS Vigotski uma reflexão epistemológica. [Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia]. UFBA, Bahia. e Moron (2017)Moron, S. I. (2017). Subjetividade e constituição do sujeito em Vygotsky. Vozes Limitada..

Já quando substituímos o descritivo Judeu por Jewish, objetivando alargar a dimensão da procura e acessar artigos em língua inglesa, encontramos um total de 27 textos. Entre estes, cabem citar os de Smagorinsky (2012)Smagorinsky, P. (2012). Vygotsky, “Defectology” and the inclusion of people of difference in the Broader Cultural Stream. Journal of Language and Literacy Education [Online], 8(1), 1-25. http://jolle.coe.uga.edu/wp-content/uploads/2012/05/Vygotsky-and-Defectology.pdf
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, Kotik-Friedgut e Friedgut (2008)Kotik-Friedgut, B., & Friedgut, T. (2008). A man of his country and his time: Jewish influences on Lev Semionovich Vygotsky's world view. History of Psychology, 11(1), 15-39. https://doi.org/10.1037/1093-4510.11.1.15
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, Sobkin e Klimova (2016)Sobkin, V., & Klimova, T. (2016). The unknown Vygotsky: on the experience of a literary translation from Hebrew. Journal of Russian & East European Psychology, 53 (6), 1-31., Zavershneva e Van der Veer (2018aZavershneva, Е., & Van Der Veer, R.(2018a). Not by bread alone: Lev Vygotsky’s Jewish writings. History of the Human Sciences, 31(1), 36-55., 2018b)Zavershneva, Е., & Van Der Veer, R. (2018b). Vygotsky's Notebooks: A Selection. Springer., os quais estabelecem hipóteses sobre como a condição judaica de Vygotsky interferiu em seus estudos e constituição como ser social. Por fim, nenhum destes textos estabeleceu qualquer paralelo entre a condição de judeu de Vygotsky como outro, dado o contexto antissemita de seu país, e sua predileção pela experiência da deficiência, tida como condição extranormativa clássica, o que não deixa de ser surpreendente e injustificável gnosiológica ou ontologicamente.

Isto posto, resta evidente a pouca atenção dada a uma questão central nos escritos de uma das figuras mais celebradas hodiernamente no campo da Psicologia e que tem desempenhado interferência ativa em diversas abordagens educacionais.

A experiência ordinária de um judeu que passou toda a infância e juventude em uma Zona de Assentamento Judaica (Pale), inegavelmente exerceria interferência na forma pela qual Vygotsky se relacionou com o mundo, ao configurar a perspectiva do outro como ponto de partida não apenas de suas análises epistêmicas, mas da própria vida. A vivência de jure e de facto como estrangeiro desdobrou no autor uma preocupação inaugural em relação à extranormatividade, inquietação que se encontra presente de maneira flagrante em seus estudos sobre defectologia, categoria por sobre a qual medram parte significativa das mais inovadoras e importantes análises da Psicologia Histórico-Cultural sobre o desenvolvimento humano.

Entretanto, antes de esta relação ser apresentada de maneira mais direta, basilar se mostra discorrer sobre as condições concretas de existência de Vygotsky de forma a compreender o cenário sobre o qual se derivaram suas preocupações.

O eu como outro: um judeu na Rússia antissemita

Para Riasanovsky (1984)Riasanovsky, N. V. (1984). A History of Russia, (4th ed.). Oxford University Press., a presença de judeus na Rússia pode ser verificada desde o século VII e se intensificou com o passar dos anos, tornando o país o destino dileto da diáspora religiosa promovida contra judeus há séculos na Europa. O crescimento e o sucesso econômico dos judeus transcorreram em paralelo à precária situação social vivida pela quase totalidade da população russa, conjuntura que teve como produto a transformação dos judeus em alvo de ira dos russos, os quais visualizaram dita prosperidade como relacionada diretamente às mazelas enfrentadas pelos nativos.

Sob essa falsa lógica principiaram conspirações contra judeus de todos os tipos na Rússia. Catarina II, ao final do século XVIII, criou zonas territoriais circunscritas a serem habitadas por judeus, chamadas de Pale, cuja consecução promoveu um confinamento de judeus à área restritas e segregadas. Para sair destas zonas e emigrar a outras partes da Rússia, os judeus necessitavam de autorizações especiais, normativas estas que perduraram de 1791 a 1917.

Outras medidas discriminatórias contra judeus se desdobraram em solo russo para além das Pale, sendo a mais terrível delas, nas palavras de Klier (2011)Klier, J. (2011). Russians, Jews, and the Pogroms of 1881-1882. Cambridge and New York, Cambridge University Press., os pogroms, que consistiam em ações previamente planejadas (toleradas pelo governo) que materializavam perseguições, pilhagens e assassinatos de cunho étnico e religioso, no caso da Rússia, contra os judeus, as quais tinham por objetivo destruir suas casas, negócios e centros religiosos, inclusive, atentar à própria vida. O ano de 1881 marcou uma explosão destes movimentos na Ucrânia, os quais se espalharam sobre todo o território russo após os judeus terem sido erroneamente responsabilizados pelo assassinato do czar Alexandre II.

A crise provocada pela existência dos pogroms, nas palavras de Klier (2011)Klier, J. (2011). Russians, Jews, and the Pogroms of 1881-1882. Cambridge and New York, Cambridge University Press., fizeram com que o governo tzarista editasse Regulamentos Temporários sobre os judeus (conhecido como Leis de Maio), editados por Alexandre III e que previam uma série de restrições à população judaica nas mais diversas esferas econômicas e culturais do território russo. As Leis de Maio, projetadas como medidas temporárias, perduraram por mais de 30 anos e produziram como efeito direto a tessitura de adicionais medidas impeditivas, tais como a regulação do número de judeus que podiam ser admitidos em escolas secundárias e universidades, dentre outras, objetivando reduzir as possibilidades de ascensão social deste grupamento.

Somente com a eclosão da Revolução Russa e ascensão bolchevique ao poder que tais regulamentos e restrições foram revogados ou suspensos. Em um primeiro momento, como aponta Deutscher (1968)Deutscher, I. (1968). A revolução inacabada: Rússia 1917-1967. Civilização Brasileira., a posição firme de Lênin no combate ao antissemitismo conjuntamente à abolição de milhares de éditos concatenados com a previsão de punição a ações discriminatórias àqueles que atentassem contra judeus, se comparou a libertação de escravos no cativeiro do Egito conduzida por Moisés.

Contudo, como aponta Volkogonov (1999)Volkogonov, D. (1999). Autopsy for na empire: the seven leaders who built the soviet regime. Free Press., por mais que o antissemitismo fosse oficialmente considerado sob a perspectiva de infração legal, as práticas contra judeus não cessaram do dia para noite. Décadas de perseguição material e simbólica que estereotiparam a população judaica como inimiga do povo russo produziram efeitos cujas ações se desdobraram sobre o tempo.

Tal posição encontra guarida em Deutscher (1968)Deutscher, I. (1968). A revolução inacabada: Rússia 1917-1967. Civilização Brasileira., para quem, a Revolução de 1917 fez da Rússia uma espécie de repositório de esperanças de diversas classes e povos, entre eles, os judeus. De início, ao abolir o vil confinamento descrito nas Pale, encorajar a publicação de livros em idish (língua vernácula) e permitir a organização de judeus em partidos políticos, a Revolução parecia entregar o que prometera de imediato. Todavia, quando se materializou a violenta transformação social operada pela presença de suas matrizes, foi perceptível a existência de um doloroso impacto sobre parcela significativa da população judaica, a qual tivera de abandonar muitas de suas atividades econômicas características, tais como o comércio, artesanato e trabalhos financeiros, para se dedicarem a atividades consideradas fundamentais pela Revolução. Liberto dos pogroms e das perseguições, mas ameaçados quanto a seus tradicionais afazeres, o período imediatamente pós-revolucionário decididamente não passou sob calmaria aos judeus.

Exposto tal contexto, mostra-se como inegável que a conjunção destes elementos interferiu na formação de Vygotsky e deve ser considerada, ao analisar o pensamento do autor.

Vygotsky nasceu em 1896 em uma família judaica que habitava a cidade de Orcha, Bielo-Rússia, tendo mudado no ano seguinte para Gomel, também na Bielo-Rússia, ambas situadas em Zonas de Assentamento, definidas pelo tzarismo. Dados de 1987 de Kotik-Friedgut e Friedgut (2008)Kotik-Friedgut, B., & Friedgut, T. (2008). A man of his country and his time: Jewish influences on Lev Semionovich Vygotsky's world view. History of Psychology, 11(1), 15-39. https://doi.org/10.1037/1093-4510.11.1.15
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apontam que dos 37355 habitantes de Gomel, 20 385 eram judeus, correspondendo a 54,6% da população. De família abastada, Vygotsky teve tutor particular que o auxiliou na apropriação de línguas, assim como de textos históricos e filosóficos, tendo entrado em instituições formais de ensino somente no curso secundário.

De acordo com Prestes (2010)Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade de Brasília, Brasília, DF., Vygotsky ingressou na Universidade de Moscou em 1914 para cursar Medicina. Concomitantemente, se matriculou no Departamento Acadêmico da Faculdade de História e Filosofia da Universidade Popular Chaniavski, tendo lá desenvolvido seu primeiro trabalho de expressão: A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, redigido em 1916, porém publicado somente após cinco décadas.

Iarochevski (citado em Prestes, 2010Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade de Brasília, Brasília, DF.) vincula o interesse de Vygotsky por Shakespeare como derivado de uma dupla razão: a influência exercida pelo professor Airrenvald e o fato de, em 1916, se comemorar 300 anos da morte do célebre dramaturgo. Em que pese a veracidade e a razoabilidade dos argumentos mencionados como motivos para a escrita da obra, eles representam parte e não a totalidade dos fenômenos que levaram Vygotsky a desenvolver seu primeiro ensaio de fôlego teórico.

A realização de uma leitura atenta de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Shakespeare, 1999Shakespeare, W. (1999). Hamlet. Príncipe da Dinamarca. L&PM Pocket.) e A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca (Vygotsky, 1999Vygotsky, L. S. (1999). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. (1. ed.). Martins Fontes.), torna nítido que a obra do bielorrusso se concentra extensivamente sobre a primeira cena do terceiro ato da peça de Shakespeare, sendo que desta se retiram as principais análises contidas no texto de Vygotsky (1999)Vygotsky, L. S. (1999). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. (1. ed.). Martins Fontes..

O ato em questão tem como passagem mais conhecida o trecho imortalizado por Shakespeare (1999)Shakespeare, W. (1999). Hamlet. Príncipe da Dinamarca. L&PM Pocket. “Ser ou não ser, eis a questão. Será mais nobre na mente sofrer as fundas e flechas com que a fortuna, enfurecida, nos alveja, ou pegar em armas contra um mar de problemas e em luta pôr lhes fim? ”(p. 63). A dúvida existencial decantada pelo bardo inglês e que ronda Hamlet, guarda paralelos, ainda que revestidos por outras contradições, com a existência concreta da vida em deslocamento de Vygotsky, marcada pela presença de interações sociais, obliteradas por sua condição de judeu vivendo em terra antissemita. Pertencer ou não ao espaço que habitava como um igual correspondia ao ser ou não ser de Vygotsky.

A complexidade da condição de ser visto como um outro no país natal impactou as preferências acadêmicas e de vida de Vygotsky, assim como exerceu interferência decisiva na configuração de seus textos e ideias. Para Vigodskaya (1995)Vygodskaya, G. L. (1995). His life. School Psychology International, 16(2):105-116. doi:10.1177/0143034395162002
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, tal marca existencial é visível quando ele escolheu cursar Medicina e, em seguida, Direito (por orientação dos pais), uma vez que tais desígnios se fizeram a fim de se adaptar às restrições do tzarismo, que permitia a médicos e advogados se deslocarem para além das fronteiras das Zonas de Assentamento, e, consequentemente, alcançar posição de destaque na sociedade. Já quando optou, de maneira paralela, por cursar humanidades na Universidade Popular Chaniavski, formada por professores dissidentes da Universidade de Moscou e vinculados à movimentos de trabalhadores, a escolha projetada anunciava seu desejo pessoal de compreender o desenvolvimento humano e a construção de um novo mundo.

A partir destas contradições, Kotik-Friedgut e Friedgut (2008)Kotik-Friedgut, B., & Friedgut, T. (2008). A man of his country and his time: Jewish influences on Lev Semionovich Vygotsky's world view. History of Psychology, 11(1), 15-39. https://doi.org/10.1037/1093-4510.11.1.15
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afirmam que Vygotsky “procurou misturar harmoniosamente todos os elementos interagentes do mundo em que viveu, de forma a colocar-se naquele universo e integrar-se à sociedade; não ser 'o outro' rejeitado por ser diferente” [destaque no original] (p. 16). A afirmação guarda relativa correspondência à gramática moral que rondava Vygotsky à época, entretanto, jamais tal mediação poderia ser harmoniosa como pressupunham os autores. Não por acaso, o conceito de “crise” é dos principais elementos trabalhados por Vygotsky e tido como marco nas transformações sociais, acadêmicas e humanas.

A sensação relatada de deslocamento que acompanhou Vygotsky durante toda a infância e juventude, composta como parte orgânica da experiência de viver em um sistema que objetivava marginalizar judeus mediante a criação de normativas que os impedissem de serem considerados como iguais, torna-se clara quando da publicação de Vygotsky's Notebooks: A Selection, livro editado por Zavershneva e Van Der Veer (2018b)Zavershneva, Е., & Van Der Veer, R. (2018b). Vygotsky's Notebooks: A Selection. Springer., que reúne escritos do bielorrusso de 1914 a 1917.

Os primeiros capítulos de Vygotsky's Notebooks: A Selection (Zavershneva & Van Der Veer, 2018bZavershneva, Е., & Van Der Veer, R. (2018b). Vygotsky's Notebooks: A Selection. Springer.) mostram um cenário pouco conhecido no campo acadêmico, a citar, os escritos de juventude do fundador da Psicologia Histórico-Cultural, os quais tinham como preocupação central a questão judaica. Neles, se mostram evidentes a preocupação com o povo judaico, como tema de interesse literário, e a existência de leituras dedicadas a Torá e ao Talmud, paulatinamente incrementadas por análises humanistas.

Os primeiros escritos da coletânea abordam a vida de Vygotsky em uma Zona de Assentamento e a maneira pela qual a sociedade russa tratava os judeus, estejamos nos referindo quer às possibilidades de ocupação de espaços sociais quer ao contexto espiritual da época, cujo conteúdo se manifestava, especialmente, na literatura. Singular, nesse sentido, é o artigo publicado em 1916 por Vygotsky (citado em Feingenberg, 2000Feigenberg, I. M. (2000). From Gomel to Moscow: The beginning of L. S. Vygotsky creative way. S. F. Dobkin's memoirs L. S. Vygotsky's early essays. The Edwin Mellen Press.), o qual fora dedicado ao 75.º aniversário de morte de Mikhail Lérmontov, proeminente romancista russo e que se mostrou um mordaz crítico do regime tzarista e de práticas antissemitas. Citado artigo promoveu uma crítica à habitual personificação operada pela literatura russa do judeu como alguém não digno de reconhecimento; ademais, enaltecia Lermontov por se posicionar contrariamente a esta tradição. Para Vygotsky (citado em Feingenberg, 2000Feigenberg, I. M. (2000). From Gomel to Moscow: The beginning of L. S. Vygotsky creative way. S. F. Dobkin's memoirs L. S. Vygotsky's early essays. The Edwin Mellen Press.):

É estranho e incompreensível que a literatura russa, promovendo o princípio do humanismo, mostre tão pouco humanismo em suas representações do judeu, em quem o artista nunca sentiu o ser humano. Sempre e em toda parte o judeu é a personificação das deficiências humanas....Gogol poderia notar aspectos cômicos mesmo em um pogrom contra os judeus. Dostoievski zombou das orações de um judeu, e Turgenev se superou ao rir graciosamente de um judeu condenado à morte. Ao mesmo tempo, Lermontov dedica uma tragédia aos judeus. Os judeus são seu foco, suas vidas são seu tema, um judeu é seu herói. Ele lança as figuras dos judeus em um espaço sombrio, mas grandioso, leve, ouve lágrimas onde outros notaram apenas o cômico; e vê características humanas individuais onde todos os outros, com a mão leve de Gogol, viram apenas imagens distorcidas pelo medo. No próprio empreendimento de uma tragédia sobre os judeus, Lermontov falou novas palavras, nunca traduzidas anteriormente [ênfase no original]. (pp.100-101)

A forma desdenhosa pela qual renomados literatos russos desferiam palavras contra judeus foi motivo de preocupação constante em Vygotsky e auxilia-nos na compreensão da imersão deste ao universo da arte. Chama a atenção também a analogia feita por Vygotsky (citado em Feingenberg, 2000Feigenberg, I. M. (2000). From Gomel to Moscow: The beginning of L. S. Vygotsky creative way. S. F. Dobkin's memoirs L. S. Vygotsky's early essays. The Edwin Mellen Press.) de que “sempre e em toda parte o judeu é a personificação das deficiências humanas”[ênfase no original] (p.100), ou seja, tratado como outro, desrespeitado, não digno em direitos. Expressos estes elementos, inescapável se faz questionar se a preocupação manifestada por Vygotsky em relação à categoria deficiência, objeto de seus primeiros trabalhos psicológicos desde seu retorno a Gomel, não estaria de alguma forma relacionada ao fato de ela ser historicamente entendida também sob a perspectiva do outro, do estranho e anormal, materializando quase que uma sinédoque para todas as formas de expressões não normativas desde a modernidade. Haveria algum paralelo lógico na sobeja concentração das experiências laborais de Vygotsky sobre crianças com deficiência como denotando um derivativo de sua experiência de judeu ou tratar-se-ia apenas de casualidade? Para responder a esta contenda, fundamental se mostra dialogar sobre as atividades por ele empenhadas quando de seu retorno à Gomel.

O regresso de Vygotsky à cidade que habitou por toda a infância ocorrera em um contexto nacional marcado por convulsões sociais que culminariam na derrubada do Tzar e do sistema de Governo. Em suas palavras, “nestes dias de libertação, um Hagada vivo está sendo criado na esperança de que a profunda decadência que os judeus experimentaram deve dar lugar a um renascimento da consciência do povo” (Vygotsky, 1917Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., citado por Kotik-Friedgut, 2015Kotik-Friedgut, B. (2015). Vygotsky & Bernstein in the Light of Jewish Tradition. Academic Studies Press., p.99).

Em Gomel, Vygotsky ministrou aulas de Filosofia, Literatura, Psicologia e Lógica em escolas e insituições públicas, atividades vedadas no período pré-revolucionário. Ademais, criou um laboratório de Psicologia no interior de uma antiga faculdade, onde iniciou experimentações com cegos, surdos e deficientes intelectuais (Vygodskaya, 1995Vygodskaya, G. L. (1995). His life. School Psychology International, 16(2):105-116. doi:10.1177/0143034395162002
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).

Tais estudos se intensificaram a partir da década de 1920, quando da criação da União das Repúblicas Socialista Soviéticas em 1922 e a constatação de um preocupante problema social derivado dos anos de guerras, revoluções e conflitos, a citar: a existência de um verdadeiro exército de aproximadamente 7,5 milhões de crianças orfãs, abandonadas, negligenciadas de todas as formas, muitas das quais, com impedimentos variados (Prestes, 2010Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade de Brasília, Brasília, DF.). Foi sobre este cenário desesperador que o governo socialista assumiu como responsabilidade nacional abrigar e educar estas crianças, algumas das quais excluídas de participação escolar sob a alegação de que não aprenderiam e que a intervenção sobre elas deveria residir mais nas esferas médicas que propriamnete pedagógicas, fato que chamou a atenção de Vygotsky por entender tal posição como um equívoco angular da defectologia, campo correspondente àquilo que hoje nominamos Educação Especial.

Na senda destes elementos, Vygotsky se dedicou intensamente aos problemas da defectologia, aprofundando estudos e experimentos, inicialmente, no que tange às crianças cegas e surdas, e, posteriormente, em relação a outros impedimentos. Não é de se estranhar que, de acordo com Iarochevski (citado em Prestes, 2010Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade de Brasília, Brasília, DF.), a primeira coletânea de trabalhos científicos publicada por Vygotsky seja Questões de educação de crianças cegas, surdo-mudas e com retardo mental. Desde então, o autor jamais se separou desse tema, que permaneceu como objeto de sua investigação até 1934, data de seu falecimento.

A imersaõ de Vygotsky nos estudos sobre deficiência reflete, para além de preocupação científica e governamental, uma predileção pessoal, na medida em que, ao responder pergunta elaborada pelo Departamento de Defesa de Menores quando de sua contratação, destacou que o campo em que se considerava mais útil á nação era justamente “na área de educação de crianças cegas, mudas e surdas” (Lifanova, citado em Prestes (2010, p.231)Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. [Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação]. Universidade de Brasília, Brasília, DF.).

Movido por interesses pessoais e públicos, Vygostky colocou de cabeça para baixo os pressupostos que escoravam a antiga defectologia, ao verter da perspectiva clínica para a histórico-cultural a lógica constitutiva da deficiência. Tanto o é que sua apresentação no Congresso Russo de Defectologia, em 1924, causou enorme impacto entre os participantes por colocar sob suspeição o que antes era tomado como verdade inconteste. Dentre os diversos pontos de sua participação, cabe destacar em seu discurso um trecho tornado epítome da nova forma pela qual se deveriam modelar as relações entre educação e criaças com deficiência, qual seja:

Aquilo com que sempre sonhou a humanidade como um milagre religioso ‒ que os cegos vejam e que os mudos falem ‒a educação social que surge na época mais grandiosa da reorganização definitiva da humanidade é chamada a realizá-lo. É provável que a humanidade, mais cedo ou mais tarde, triunfe sobre a cegueira, sobre a surdez e sobre a deficiência intelectual, mas as vencerá no plano social e pedagógico muito antes que no plano biológico e médico.

(Vygotsky, 1989Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., p.61)

A partir de então, o caminhar dos estudos de Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. sobre a defectologia aponta para uma clara separação entre aquilo que ele chama por defeito (que hoje nominariamos como lesão/impedimento, portanto, de ordem biológica) e deficiência (desvantagem produzida socialmente), cabendo ao trabalho educacional impedir que a lesão se converta em deficiência. Seus experimentos buscaram entender como as crianças poderiam superar limitações funcionais, mediante o desenvolvimento centrífugo de vias colaterais consubstanciadas pela utilização de signos e ferramentas, cuja apropriação é parte fundamental no que tange à participação plena em sociedade.

Destes experimentos iniciais, depreenderam-se alguns dos postulados mais importantes da Psicologia Histórico-Cultural, quais sejam: o entendimento do desenvolvimento humano como arquitetado dialeticamente por duas linhas de ação, biológica e cultural; a sobreposição em termos qualitativos dos compostos culturais sobre os biológicos na formação da personalidade e das funções psíquicas superiores; a ideia de que a aprendizagem alavanca e potencializa o desenvolvimento; e, por fim, o suposto de que a inclusão do sujeito ao meio materializa uma rica relação na qual se operam profundas e impactantes transformações subjetivas e materiais que conferem humanidade ao ser, conceito que possibilita compreender a dinâmica de uma abordagem dialética de desenvolvimento.

A dimensão destes achados, os quais tinham potencial para reordenar o campo da Psicologia, dinamitava o entendimento da defectologia como campo menor de estudos e reconfigurava a valência do próprio saber educacional. Partindo deste suposto, para Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular, uma vez que um campo de estudos historicamente secundarizado e rejeitado por acadêmicos (defectologia) se quedou como crucial no entendimento do próprio processo de formação humana.

Arquiteto de um novo entendimento acerca da categoria deficiência, Vygostky foi escolhido como representante da União Soviética para discursar na Conferência Internacional de pessoas surdas-mudas, que ocorrera em Londres, no ano de 1925. Em sua fala no evento se percebe a defesa proclamada da Revolução de Outubro e da União Soviética, pois foi o primeiro país a implantar princípios socialistas sustentados pelo materialismo histórico, ciência que descortina contradições e limites da Psicologia.

Isto posto, as novas janelas que se abriram aos judeus após 1917 fez de Vygotsky (citado em Zavershneva & Van Der Veer, 2018aZavershneva, Е., & Van Der Veer, R.(2018a). Not by bread alone: Lev Vygotsky’s Jewish writings. History of the Human Sciences, 31(1), 36-55.) um fervoroso defensor da Revolução, tomando esta como bússola orientadora de suas ações e aproximando-o do materialismo histórico, base por sobre a qual se erigiria os princiais conceitos e postulados por ele desenvolvidos, ainda que fossem muito presentes, em seus textos, diálogos com Piaget, Freud, Koffka, Thorndike, Stern, Claparéde, além da influência marcante de Espinosa, motivos que legaram à Vygotsky a pecha posterior de marxista insincero pela ortodoxia stalinista.

A caracterização de Vygotsky como marxista insincero o descontentou, novamente posicionado-o como o outro, marca que o acompanharia quase que durante toda a sua vida e se configurou justamente como um dos motivos pelos quais defendia a Revolução de Outubro como sua própria revolução (Kotik-Friedgut, 2015Kotik-Friedgut, B. (2015). Vygotsky & Bernstein in the Light of Jewish Tradition. Academic Studies Press.). Isto porque, a Revolução, ao abolir as Zonas de Assentamento e proibir quaisquer discriminações contra judeus, permitiu a Vygotsky ocupar espaços e contratar interações sociais jamais vivenciadas, daí sua defesa incondicional ao movimento, fermentada mesmo em um cenário no qual sua abastada família tenha perdido propriedades e passado a viver dificuldades econômicas nunca dantes experimentadas.

Ver-se novamente como outro, desta vez no seio do próprio projeto que defendia, exerceu profundo impacto psicológico no bielorrusso. Já atormentado pela tuberculose, seus últimos anos foram marcados por intensa pesquisa e produção acadêmica inidvidual, à medida que Vygotsky se mostrava cada vez mais recluso em razão da doença que o deixaria acamado diversas vezes, assim como da censura stalinista, a qual batia à sua porta e cerceava seu pensamento. Em 1934, Vygotsky, mesmo debilitado, concluiu Pensamento e Linguagem e deu entrada pela útlima vez em um hospital, levando consigo um único pertence, Hamlet, de Shakespeare, e com ele o dilema existencial incorporado e experimentado como questão íntima durante toda a vida. Ser ou não ser.

O outro como eu: a defectologia em Vygotsky

As experiências sociais de Vygotsky como outro foram consideráveis ao longo de sua vida. Desde seu nascimento, presenciou o aparecimento de uma série de legislações nacionais que discriminavam judeus como política de Estado. Ademais, a partir de 1903, viu a eclosão de pogroms em Gomel, fenômeno que configurou um cenário de terror e intimidação que moldou a cultura e as relações por ele vivenciadas desde a mais tenra idade (Johnson, 2011Johnson, S.(2011). Pogroms, peasants, jews: britain and eastern europe's "Jewish Question" 1867-1925. Palgrave Macmillan.).

Envolvido por um sentimento de exclusão e rejeição derivado do pertencimento a um grupo desprezado, Vygotsky, assim como a quase totalidade dos judeus que habitavam a Rússia de outrora, sentiu na própria carne a forma pela qual sistemas societais produzem o outro como estranho/estrangeiro e o adjetivam sob o estigma do interdito, materializando uma constante sensação de inadaptação ao ordenamento existente. Em razão dessas arbitrariedades, para participar da vida em comunidade, tais sujeitos tiveram de se valer de mecanismos criativos no sentido de projetar possibilidades não evidentes àqueles assentados e adaptados aos costumes comuns. As necessidades adicionais enfrentadas pelos judeus quanto ao processo de inclusão em contextos antissemitas, de acordo com Vygotsky (citado em Zavershneva & Van Der Veer, 2018aZavershneva, Е., & Van Der Veer, R.(2018a). Not by bread alone: Lev Vygotsky’s Jewish writings. History of the Human Sciences, 31(1), 36-55.), fizeram com os que eles se desenvolvessem psicologicamente em um patamar qualitativo superior, quando comparado aos nativos. O caráter profícuo desta relação inventiva é exarado por Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., quando este assevera que uma criatura perfeitamente adaptada ao seu ambiente nada teria pelo que se esforçar e, por consequência, não seria capaz de criar o novo. Neste diapasão, a criação é sempre baseada na falta de adaptação, o que dá origem a necessidades, motivos e desejos.

Para Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., nos sistemas escolares, ninguém representava melhor essa falta de adaptação ao ordenamento normativo do que as crianças com deficiência, as quais foram historicamente excluídas das relações ordinárias forjadas neste espaço formativo devido à suposta indisponibilidade em aprender. Daí seu interesse nelas, pois rememorava, de certa forma, sua condição como estrangeiro em espaços que tornaram consuetudinários a aversão aos judeus.

Se a Vygotsky, como mostram seus textos de juventude, interessou analisar os percalços na sociedade que impediam os judeus de se inserirem de maneira paritária nas interações sociais; no sistema escolar, despertou sua atenção perquirir a forma pela qual eram impostos obstáculos, seja por ação seja por omissão, com vistas a impedir o pertencimento, a participação e, por conseguinte, obstaculizar o desenvolvimento de crianças com deficiência. Como o desenvolvimento humano ocorre de maneira correlacionada aos problemas e questões colocadas pelo meio ambiente, uma vez que as estruturas complexas para o pensamento se erigem em práticas executadas no enfrentamento de tais obstáculos, é inegável que a passividade ou a ausência de desafios não se mostram bons acompanhantes quanto à formação psíquica humana, por isso, as ferrenhas críticas de Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. aos supostos que propunham separar as crianças com deficiência do restante dos estudantes de determinada sala de aula sob a justificativa de que aquele contexto era deveras desafiador a todos. Nesse sentido, deve ser entendida também a contestação do bielorrusso da ideia de ensino perfilhado àquilo que o estudante já consegue fazer individualmente, pois traria como resultado o achatamento nas possiblidades de devir. Desenvolver-se é se aventurar com o inédito e se apropriar da situação por superação.

Com base nestes elementos, Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. elaborou sua abordagem educacional em relação à defectologia, objetivando promover um sistema escolar no qual os estudantes se vinculassem à totalidade da vida social. Tal intento consiste na contestação radical a qualquer engenho que objetive como transformação exclusivamente a mutação dos corpos e não a revolução dos espaços. Nas escolas, esse mundo artificial lembra mais um hospital que uma sala de aula, posto que se sustente a partir da equivocada ideia de que o corrigir/normalizar precede o educar, raciocínio de profundas implicações negativas ao universo educacional e cujo materializar produziu como consequência o atrofiar das forças que as crianças com deficiência apresentavam para superar suas limitações. Em outros termos, tais espaços focavam somente nas lesões/comprometimentos e não na deficiência.

A abordagem educacional de Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. é, portanto, positiva, pois voltada ao futuro e dedicada a fomentar o potencial de cada sujeito, que apenas se mostra possível, quando de sua participação paritária no universo social. Ao contrário da defectologia tradicional que tomava a deficiência sob a perspectiva do déficit, a concepção ali inaugurada parte do suposto que a criança com deficiência não é uma criança menos desenvolvida que seus pares, mas uma criança que se desenvolve de maneira diferente e atinge objetivos correlacionados mediante a utilização de artifícios culturais. Para Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., importa as implicações sociais da deficiência, posto que ela não somente afeta os aspectos sensoriais, mentais, psicológicos ou motrizes, mas, sobretudo, reconfigura os processos de interação das pessoas com a sociedade, comprometendo, quando estas são deslocadas da vivência coletiva, o intrincado processo de humanização que somente se efetiva quando do domínio mediado de funções culturais.

Neste diapasão se depreende a afirmação de Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. de que um ponto do sistema Braille fez mais pelos cegos que milhares de filantropos, uma vez que a possibilidade de ler e escrever amplia infinitamente a experiência cotidiana destas pessoas e entrelaça-as ao tecido geral do mundo. Rememora-se, assim, o ensinamento marxiano de que os seres humanos se mostram superiores a outros animais na exata medida em que o raio de suas atividades se amplia de forma ilimitada em decorrência da utilização de ferramentas e instrumentos em interação ao meio, suposto que estabelece uma lógica radicalmente distinta da adaptação linear ao ambiente, pois, quando nos relacionamos com a natureza, nós a modificamos e, por consequência, transmutamos nosso ser ao avivar potências antes adormecidas. Esse processo jamais ocorre solo.

O nascimento, no caso humano, é um ato que se supera dia após dia pela apropriação das conquistas acumuladas pela humanidade, realização social e coletiva, catalisada sempre por um outro. Nós nos tornamos quem somos a partir de nossa relação com um não eu, princípio hegeliano que suporta a essência do desenvolvimento entendido sob a perspectiva cultural. Não é de se estranhar que, para Vygotsky (2001)Vygotsky, L. S. (2001). A construção do pensamento e da linguagem (P. Bezerra, Trad.). Martins Fontes., nos espaços e tessituras em que problemas parecem insolúveis, eles acabam por se mostrarem solucionáveis, quando outros seres humanos e a sociedade como um todo são levados a vivenciar este cenário. O que parece impossível para um mostra-se realizável em dois, para nos valermos de uma velha alegoria de Feuerbach (2012)Feuerbach, L. (2012). Para a Crítica da Filosofia de Hegel. ‎ Liber Ars..

Daí a necessidade em se contestar qualquer tentativa de definir o outro como o estranho, exótico, forasteiro, pois, rememorando Gardou (2005)Gardou, C. (2005). Quais os contributos da antropologia para a compreensão das situações de deficiência?. Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 12, n. 13. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/1694. Acesso em: 31 maio de 2022.
https://revista.fct.unesp.br/index.php/N...
, temos que “para além das formas de estar e de agir no mundo, aparentemente estranhas e estrangeiras, o outro é um homem como eu” (p. 146). Compreender o outro da deficiência sob a perspectiva da alteridade é elemento basilar na transformação de práticas segregacionistas, ao demarcar como necessária a presença da pessoa com deficiência em todo e qualquer espaço público não por dádiva e, sim, pelo fato de ela enriquecer o ambiente físico, assim como as relações desenvolvidas em sociedade. Uma escola sem crianças com deficiência seria mais pobre e margearia o desenvolvimento de todos, pois algumas das mais criativas soluções pedagógicas somente podem se afigurar como possíveis, quando do enfrentamento de questões reais que envolvem verter o estado de coisas tido como normativo.

Por isso, quando da análise de seus experimentos com crianças surdas, cegas e com comprometimentos intelectuais diversos, Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. confere interesse não à definição do quantum cada grau de limitação impedia a execução de determinadas atividades ou desviavam da norma, mas, sim, as consequências que as lesões desempenhavam no que tange às restrições em participar das atividades de trabalho, lazer, política, educação, enfim, na vida social como um todo; constituintes contingentes e variáveis que se afiguram como determinantes nas potencialidades de desenvolvimento humano e ao qual o bielorrusso nomina como deficiência secundária. Logo, o componente social, considerado como suplementar, quando tomado em sua raiz, se mostra o elemento basilar.

Tal entendimento possui implicações decisivas na análise da deficiência como categoria histórica, pois rompe com a linearidade expressa pelo saber médico que toma a existência de limitações biológicas como desencadeadoras de prejuízos certos e dos quais não se podem escapar, rememorando, assim, a velha máxima de Procusto de que a anatomia é o fim. Contrariamente a sentenciar as lesões e impedimentos como limitações intransponíveis nos seres humanos, para Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., “se de um lado, o defeito é a limitação, a debilidade, a diminuição do desenvolvimento; de outro, precisamente porque origina dificuldades, ele estimula o movimento elevado e intensificado para o desenvolvimento” (p. 14), raciocínio cuja lógica define o postulado central da nova defectologia, a saber, qualquer limitação origina estímulos para formar sua compensação.

A compensação de que aqui se fala não retrata uma relação simplista de substituição de um órgão ou função comprometida por outra, denotativa de um viés naturalista que acaba por reduzir as ações educativas ao reestabelecimento de certas formas de conduta; trata-se de uma compensação dialética, complexa, multifacetada e que afigura novas formas de desenvolvimento mediante apropriação de ferramentas e signos culturais que possibilitam o enfrentamento colateral de uma tarefa anteriormente inviável.

Refere-se, por conseguinte, ao engenhar de caminhos novos e cujo desdobrar expressa a peculiaridade do desenvolvimento da criança com deficiência como originário de formas criativas, singulares e, às vezes, caprichosas de desenvolvimento em relação àquelas que observamos nas demais crianças. A partir deste entendimento complexo, Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación. não sentencia que todo e qualquer processo de compensação será bem-sucedido, mesmo porque, se assim o fosse, estaria indo na contramão de uma perspectiva dialética. Contudo, independentemente do resultado da compensação, o desenvolvimento intrincado pela deficiência firma um processo inventivo de organização e reordenamento da personalidade da criança que configura uma verdade libertadora aos pedagogos, pois confere à mediação o papel de catalisador nas transformações que alavancam o desenvolvimento humano, interposição externa que jamais pode ser confundida com a construção de um elo entre coisas. Mediação, na Psicologia Histórico-Cultural, é produção do novo, jamais ato passivo ou desinteressado.

Na educação, tal produção se dá no sentido da apropriação dos saberes historicamente acumulados pela humanidade, por isso, a aprendizagem intensifica e alavanca o processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores, raciocínio tornado cardeal no pensamento de Vygotsky (1993)Vygotsky, L. S. (1993). Obras escogidas (J. M. Bravo,Trad., Vol.2). Aprendizaje Visor., quando este anuncia sua Lei Genética Geral, a qual torce o conhecido suposto piagetiano de que o desenvolvimento precede a aprendizagem.

A ideia de que a aprendizagem conduz ao desenvolvimento é revolucionária em termos pedagógicos, posto que implode qualquer raciocínio que secundarize a importância da educação na sociedade ou que desconsidere a relevância do ensino sistematizado. A partir dela, é possível visualizar como as conquistas do gênero possibilitam a configuração do humano a nosso ser. Todavia, a relação ensino-aprendizagem defendida é aquela que induz a pessoa a um novo patamar de relações com a sociedade, que a desafia para além daquilo que já sabe fazer individualmente, enfim, aquilo que somente pode se desdobrar a partir de um outro.

E é escorado nestes lineamentos que Vygotsky (1991)Vygotsky, L. S. (1991). Formação social da mente (4. ed.). Martins Fontes. apresenta uma de suas ideias mais utilizadas no campo educativo: a zona de desenvolvimento proximal. A bem da verdade, tal conceito fora pouco desenvolvido pelo autor, entretanto, via de regra, podemos entendê-lo como a desproporção entre o nível de desenvolvimento atual determinado pela resolução independente de problemas e o nível de desenvolvimento potencial determinado pela resolução de problemas sob orientação ou em colaboração com parceiros mais competentes. O bom ensino é aquele que desenovela aprendizagens proximais e antecipa, pela ação mediada, funções que somente poderiam quedar manifestas em um momento posterior. Não por acaso, o desafio escolar reside justamente em irradiar em seus sujeitos relações e conhecimentos não acessíveis na prática cotidiana, funcionando como estopim ao aparecimento de funções psíquicas mais complexas, as quais emergem socialmente e depois se configuram como produto da própria individualidade.

Em Vygotsky, o ensino não é percebido como um fim em si mesmo, uma vez que, para além de sua função precípua de inconteste validade, se consubstancia concomitantemente como elo da tensa relação entre aprendizagem e desenvolvimento, que é de unidade e não de identidade, pois se inter-relaciona dialeticamente e não por sobreposição como supunha a antiga defectologia, a qual tomava a educação quase que como uma espécie de ortopedia mental. Sob este cabedal de provocações, a antiga defectologia se vê confrontada com novos conceitos que promovem uma drástica mudança na análise da categoria deficiência, na medida em que a transformação coletiva objetada em termos inclusivos passa a ser visualizada pela mudança do mundo e não dos corpos, ainda que essa não seja descartada, dada a antítese componente da relação e a validade deste mecanismo como ampliador da fruição cultural disponibilizada.

O novo discurso anunciado apresentava diversas vantagens, se comparado aos anteriores, a citar: não era imobilista, pois, ao prever que as crianças com deficiência se desenvolvem quando mediadas intencionalmente rumo à apropriação de conquistas históricas, valorizam-se a agência da educação e a docência como elementos essenciais na transformação pessoal; estava ancorado em uma perspectiva de mundo fincada em parâmetros de justiça e igualdade; por fim, traduzia o chamado à revolução socialista para dentro dos muros escolares, ao demarcar o vir a ser como possibilidade objetiva de existência. A tríade expressa anteriormente contribui para a definição da Psicologia como a ciência que analisa as maneiras pelas quais o mundo subjetivo de uma pessoa emerge do mundo objetivo do trabalho, da arte, da educação e da apropriação das ferramentas e dos signos culturais, principal achado de Vygotsky e que sintetizava parte da crise da Psicologia à época, assim como apontava para a necessidade de pensarmos na construção desta ciência sob novos princípios.

Construção essa que partiu de outras bases epistêmicas e teve na redefinição da categoria deficiência um de seus motores diletos e sobre o qual se anunciou um novo entendimento do desenvolvimento humano como marcado pelo signo da história e da cultura. A condição de deficiência, tida como sinédoque do desvio corporal, fez-se o outro que Vygotsky buscou como elemento essencial na compreensão dialética do humano, processo complexo e carreado de contradições. Para além disso, a forma pela qual a sociedade se projeta para excluir a pessoa com deficiência e, com isso, dificultar sua adaptação ao tecido social rememorou sua condição de judeu em contexto antissemita e a vivência de opressões dos mais diversos tipos.

Vygotsky necessitava pensar o outro como componente do eu, pois, para além de tema de estudo, tratava-se de uma questão existencial. Foi exatamente isso que o fez, ao se debruçar sobre as experiências educativas de crianças com deficiência e tomar como gramática moral o entendimento de que a inadaptação produz comportamentos inventivos que incrementam patamares de desenvolvimento social e, portanto, humano. Tal constructo revolucionou a maneira pela qual se projetavam intervenções educacionais sobre crianças com deficiência, plasmando possiblidades em espaços anteriormente marcados somente por limitações.

Isto posto, por mais que a terminologia empregada por Vygotsky para se referir ao campo da Educação Especial, a citar, defectologia, assim como outros vocábulos utilizados pelo autor como defeito, atraso mental, fraqueza mental, oligofrenia, debilidade, imbecilidade, idiotice, entre outros, os quais parecem impróprios e pejorativos no tempo presente, não devem ser vistos como uma atitude depreciativa em relação à análise da categoria deficiência, uma vez que era a linguagem disponível à época. Evidente que não estamos, com isso, destacando a linguagem como fator sem importância no entendimento do fenômeno, pois, se em parte é verdadeira a anátema de Marx e Engels (1980)Marx, K., & Engels, F. (1980). A ideologia Alemã. (Vol. I., 4. ed.). Editorial Presença; Martins Fontes. de que não é lutando contra a fraseologia do mundo que se luta contra o que existe, também o é que a forma como determinado fenômeno é significado interfere no sentido que construímos sobre ele, até porque, tal qual pontua Luria (1986)Luria, A. R.(1986). Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria (D. M. Lichtenstein & M. Corso, Trad.). Artes Médicas., a palavra é a célula da consciência.

A transformação do vocábulo referente à deficiência deve ser vista com bons olhos e não apenas dentro da esfera do politicamente correto. Parte dessa transformação se relaciona a esta nova maneira de entender o fenômeno, da qual as contribuições de Vygotsky (1989Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., 1993)Vygotsky, L. S. (1993). Obras escogidas (J. M. Bravo,Trad., Vol.2). Aprendizaje Visor. se mostram importantes e orientadoras a um pensar libertário em teorias sociais, psicológicas e educacionais. Em um contexto marcado pela autoridade do saber clínico como aparato oficial do Estado e guia das relações que se estabeleciam sobre as pessoas com deficiência, transmutadas tal qual uma relação entre médico e paciente, Vygotsky (1989)Vygotsky, L. S. (1989). Fundamentos de defectologia. Editorial Pueblo y Educación., utilizando uma máxima de Espinosa, desafiou aludida autoridade, que contradizia razão e inteligência por entender destacada posição intelectiva como estreita e limitada.

Era preciso implodir esta lógica arbitrária e projetar um novo arcabouço teórico que não restringisse a pessoa com deficiência ao seu déficit. Foi justamente isso que Vygotsky fez em uma época em que ainda não se falava sobre modelo social da deficiência, anunciando contribuições tornadas célebres e destacadas como inovadoras meio século após sua morte. O outro, na escrita, se fez eu.

Considerações finais

Após mais de 70 anos da morte prematura de Vygotsky, diversas de suas ideias têm sido utilizadas a fim de se interpretar fenômenos educativos e psicológicos atuais. Nem poderia deixar de ser diferente. Com uma escrita deslindada em um período efervescente e de grande projeção ideativa, sua vasta produção ficou por décadas censurada pelo regime stalinista, sendo traduzida ao Ocidente, de maneira parcelar, as vezes com significativas mutilações, somente após a década de 60 do século XX.

Isto posto, não é exagerado asseverar que diversas relações que envolvem o fundador da Psicologia Histórico-Cultural ainda se mostrem inauditas e pouco trabalhadas. Uma destas relações seguramente diz respeito ao impacto que o antissemitismo desempenhou na vida de Vygotsky desde a mais tenra idade, assunto pouco abordado na literatura e que ganhou relevo quando da publicação de Vygotsky's Notebooks: A Selection, livro editado por Zavershneva e Van Der Veer (2018b)Zavershneva, Е., & Van Der Veer, R. (2018b). Vygotsky's Notebooks: A Selection. Springer., o qual realça a questão judaica como uma de suas preocupações mais presentes na juventude e mostra sua incompreensão referente ao fato de a literatura russa promover o princípio do humanismo e se mostrar, concomitantemente, tão avessa às representações do judeu, sempre marcado como o estrangeiro, um outro.

Raros se mostram os estudos que se debruçaram sobre como a condição de judeu moldou a feição dos escritos de Vygotsky em decorrência do antissemitismo russo, conforme destacamos em buscas realizadas no portal Google Acadêmico/Scholar, o que parece uma lacuna a ser deslindada. Possivelmente, o subsequente horror nazista com a barbárie do Holocausto em 1941, o qual, de acordo com Gilbert (1993)Gilbert, M. (1993). Atlas of the Holocaust. William Morrow & Company., exterminou aproximadamente 6 milhões do total de 7,3 milhões de judeus que habitavam a Europa ocupada pela Alemanha nazista, período não vivenciado pelo bielorrusso, falecido há cinco anos, quando do início do confronto bélico mundial. Isso fez com que se relegasse a segundo plano as inúmeras perseguições a judeus que ocorriam em outras nações em função da atrocidade que representou o genocídio alemão. Todavia, essa é uma questão central na vida de Vygotsky e sem a qual não se é possível compreender seu processo de formação como sujeito histórico. Por isso, é desse ponto que partimos, da experiência de crise, da dúvida existencial.

É a partir da condição concreta de Vygotsky como um judeu vivendo em contexto antissemita que deslindamos sua predileção na análise dos fenômenos que envolvem crianças com deficiência, dado que referida condição é encarada como situação extranormativa clássica. Como foi destacado ao longo do texto, parcela significativa das contribuições de Vygotsky à educação se derivaram de seus estudos sobre a deficiência, daí se desdobrando algumas de suas mais potentes teses. Neste sentido, nas palavras de Smagorinsky (2012)Smagorinsky, P. (2012). Vygotsky, “Defectology” and the inclusion of people of difference in the Broader Cultural Stream. Journal of Language and Literacy Education [Online], 8(1), 1-25. http://jolle.coe.uga.edu/wp-content/uploads/2012/05/Vygotsky-and-Defectology.pdf
http://jolle.coe.uga.edu/wp-content/uplo...
, salta aos olhos a pouca atenção dispensada aos estudos da deficiência em Vygotsky, dada a importância que ele exerce em suas teses educacionais gerais.

Para Vygotsky (1993)Vygotsky, L. S. (1993). Obras escogidas (J. M. Bravo,Trad., Vol.2). Aprendizaje Visor., a tarefa da educação consiste em introduzir a criança com deficiência na vida comunitária, engenhando compensações culturais para que possa participar paritariamente nos múltiplos espaços de interações sociais. Objetivo geral que não se distingue daquele esperado para o restante das outras crianças. Logo, é angular que a Educação Especial não se aparte da educação geral, sendo que sua adjetivação característica somente faz sentido se relacionada ao substantivo que a compõe. O objetivo educacional, no que diz respeito às crianças com deficiência, espelha a meta geral da educação, qual seja: projetar intencionalmente em cada indivíduo singular, mediante aprendizagens diversas, a humanidade arquitetada pelo conjunto das gerações que nos antecederam. A consubstanciação destes elementos nos permite pensar não apenas no nascimento como ato que, no caso humano, se supera historicamente, ao se estabelecer para além da linha do biológico, mas também em visualizar alternativas que antes pareciam intangíveis de serem plasmadas para pessoas com deficiência, reordenando a feitura e as ocupações de espaços pela construção de uma sociedade justa e acessível, portanto, inclusiva.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha. e-mail revisor: <verah.bonilha@gmail.com>

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Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. <https://orcid.org/0000-0001-8889-750X>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2021
  • Revisado
    17 Ago 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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