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Fracasso escolar e alfabetização de crianças no Projeto Principal de Educação (PPE) para a América Latina e o Caribe (1980-2000) 1 1 Editor responsável: Ana Lúcia Guedes Pinto. https://orcid.org/0000-0002-0857-8187 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Parte da pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

Resumo

Este artigo analisa ideias centrais que permearam as discussões promovidas pela Unesco sobre alfabetização infantil e fracasso escolar produzidas no âmbito do Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe (PPE – 1980-2000). Problematiza a suposta neutralidade na atuação da Unesco por meio da análise crítica de textos publicados nos Boletins produzidos na vigência desse projeto. Toma como referencial teórico-metodológico pensamentos de Mikhail Bakhtin. Conclui que o fracasso escolar foi considerado problema central da educação na América Latina e no Caribe, com base em balizas economicistas que muito se aproximavam dos interesses de instituições procuradas para financiamento de iniciativas educativas para redução desse grande desafio.

Palavras-chave
Core Education Project; Unesco; Children literacy; School failure; Latin America and the Caribbean

Abstract

The paper analyzes central ideas that permeated the discussions promoted by Unesco on children’s literacy and school failure. The discussions were developed in the scope of the Core Education Project for Latin America and the Caribbean (CEP - 1980-2000). It challenges the supposed neutrality in the action of Unesco through the critical analysis of Bulletins produced throughout this project. It takes Mikhail Bakhtin’s thoughts on the notion of utterance as a theoretical-methodological reference. It concludes that school failure was seen as a core education problem in Latin America and the Caribbean, based on economic guidelines that were very close to the interests of institutions that were sought to fund educational initiatives to reduce this great challenge.

Keywords
Projeto Principal de Educação; Unesco; Alfabetização de crianças; Fracasso escolar; América Latina e Caribe

Considerações iniciais

O Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe (PPE – 1980-2000), aprovado em 1980, na 21ª Reunião da Conferência Geral da Unesco, e desenvolvido entre os anos de 1980 e 2000, visava proporcionar escolarização básica para as crianças, superar o analfabetismo e aprimorar a qualidade e a eficiência dos sistemas educativos latino-americanos e caribenhos. Para o alcance dessas metas, os países envolvidos decidiram “asegurar a todos el pleno e igual acceso a la educación, la libre búsqueda de su verdad objetiva y el libre intercambio de las ideas y conocimientos” (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura [Unesco], & Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe [Orealc]Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación de la Unesco para América Latina y el Caribe (Chile) (1982). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 1, 1-18. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146869_spa
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4 4 A Oficina Regional de Educación para América Latina e o Caribe (Orealc), que assina junto com a Unesco a produção dos Boletins, constitui-se como um dos seus escritórios com clara função de implementar suas atividades regionais. Além do situado em Santiago, no Chile, outros estavam espalhados pelas regiões da África, dos Estados Árabes, da Ásia e do Pacífico, da Europa, da América do Norte, da América Latina e do Caribe. Além da Orealc, identificamos outros três escritórios regionais com referências direcionadas especificamente para a educação: um em Dakar (atuando na África), um em Beirute (atuando nos Estados Árabes) e outro em Bangkok (agindo na Ásia e no Pacífico). , 2001). Vale a ressalva de que a acessibilidade universal à educação se constitui como um dos pilares da Unesco para a manutenção da paz no mundo desde sua criação (16 de novembro de 1945). Na divulgação dessa intenção, esse organismo internacional construiu, ao longo da história, uma imagem alinhada a uma ação supostamente neutra e desvinculada de interesses privados.

Fundamentadas na perspectiva bakhtiniana de linguagem, nosso ponto de ancoragem teórico-metodológico, objetivamos compreender as ações dirigidas à alfabetização de crianças, o que implica analisar os textos que a ela foram dirigidos, porque, nas ciências humanas e sociais, “Independentemente de quais sejam os objetivos de uma pesquisa, só o texto pode ser o ponto de partida” (Bakhtin, 2006Bakhtin, M. (2006). Estética da criação verbal. Martins Fontes., p. 308). Por isso a aposta em uma pesquisa documental (Sá-Silva Almeida & Guindani, 2009Sá-Silva, J. R., Almeida, C. D. de, & Guindani, J. F. (2009). Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 1(1), 1-14. https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/view/10351
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) por meio de lentes bakhtinianas para compreensão dos sentidos produzidos pelos discursos enunciados nesse Projeto que, prenhes de respostas (Bakhtin, 2006Bakhtin, M. (2006). Estética da criação verbal. Martins Fontes.), exigem do pesquisador uma postura dialógica diante dos documentos analisados.

Fazendo essa escolha ético-política, reconhecemos a palavra como “fenômeno ideológico5 5 Nossa fundamentação bakhtiniana compreende a ideologia a partir da ideia da polissemia das palavras, por isso difere dos conceitos marxista e althusseriano de ideologia. Compreendemos esse conceito a partir da ideia de enunciado proposta por Bakhtin e Volochínov (2010), produto da interação verbal, ponte lançada entre os sujeitos e, também, arena em que se refletem e refratam diferentes posições de mundo. , por excelência” (Bakhtin & Volochínov, 2010Bakhtin, M., & Volochínov. (2010) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Hucitec., p. 36), porque é configurada a partir de pontos de vista sobre o mundo, ou melhor, de perspectivas históricas e socialmente referendadas – portanto, a palavra é carregada de sentidos. O PPE (1980-2000) situa-se nessa condição, dirigido intencionalmente por agentes que exigiram respostas de seus destinatários. Nesse caso, compatíveis com interesses que nada tinham de imparciais ou neutros. Logo, assumir a palavra como fenômeno ideológico implica compreendê-la em seu contexto de produção, em seu direcionamento (seu auditório social) e em suas intencionalidades.

Assim, com o objetivo de analisar as enunciações sobre alfabetização de crianças e sobre o fracasso escolar no PPE (1980-2000), partilhamos os dados produzidos a partir da leitura dos artigos dos Boletins, documentos elaborados durante o projeto, com a finalidade de refletir nossa compreensão sobre uma dinâmica intencionalmente produzida em torno de interesses economicistas. Analisando a seção de artigos dos Boletins e mantendo o foco sobre a alfabetização infantil, todos os enunciados produzidos tiveram as lentes bakhtinianas como principal aporte teórico-metodológico, entendendo que a suposta neutralidade atrelada à imagem da Unesco é passível de problematizações.

PPE (1980-2000): objetivos, dinâmica e seus Boletins

Compreendendo o contexto de constituição dos objetivos do PPE (1980-2000), torna-se necessário registrar que esse projeto emerge do pedido dos ministros da Educação, do Planejamento e da Economia, que participaram da Conferência Regional de Ministros da Educação e de Ministros Encarregados do Planejamento Econômico dos Estados-membros da América Latina e do Caribe, realizada no México, em 1979. Convocada pela própria Unesco, em cooperação com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e com a Organização dos Estados Americanos (OEA), as enunciações dessa reunião resultaram na Declaração do México (Declaración de México, 1979) que reconheceu a extrema pobreza na América Latina e no Caribe, a baixa escolarização de sua população, suas altas taxas de analfabetismo (quase 30%) e de “evasão”6 6 Fazemos uso das aspas para essa palavra a fim de demarcar um discurso que precisa ser problematizado. Tradução dada por nós à expressão em espanhol deserción escolar (que, por meio do dicionário, remeteria ao termo “desistência”), o enunciado “evasão” produz sentidos que culpabilizam os sujeitos e que obscurecem o processo contínuo e progressivo de exclusão das crianças da escola. Assim, com as aspas, gostaríamos de delimitar “palavra alheia”, que não queremos tornar nossa, conceito no qual não queremos deixar nossa “assinatura”. nos anos iniciais de escolarização, além da necessidade de readequação curricular. Dessa conjuntura, emergiu o PPE (1980-2000) que objetivava:

  1. alcanzar la escolarización básica a los niños en edad escolar y ofrecerles una educación general mínima de 8 a 10 años de duración;

  2. superar el analfabetismo, desarrollar y ampliar los servicios educativos para jóvenes y adultos con escolaridad incipiente o sin escolaridad;

  3. mejorar la calidad y la eficiencia de los sistemas educativos, y de la enseñanza en general, a través de la realización de las reformas necesarias y del diseño de sistemas efectivos de medición de los aprendizajes (Unesco/Orealc, 2001, grifos nossos).

Alcançar a universalização da educação básica, superar o analfabetismo e melhorar a qualidade e a eficiência dos sistemas educativos não se revelaram e nem se revelam contraditórios e/ou inoportunos. Muito satisfazem ao interesse público de garantir educação de qualidade a todas e todos. Contudo, quando compreendidos por meio das lentes que já situamos, mostram a necessidade de preparação de uma mão de obra com conhecimentos mínimos, supostamente capaz de transformar uma condição marginal, decorrência da também suposta ineficiência do Estado em propor educação adequada.

Segundo a Unesco, os objetivos do PPE (1980-2000) refletiram as reais necessidades educativas da América Latina e do Caribe. Por isso, esse organismo alinhou as discussões propostas em encontros promovidos pelo Comitê Regional Intergovernamental do PPE (1980-2000) a fim de alcançar as metas estabelecidas: Promedlac I (México, 1984); Promedlac II (Bogotá, 1987); Promedlac III (Guatemala, 1989); Promedlac IV (Quito, 1991); Promedlac V (Santiago, 1993); Promedlac VI (Kingston, 1996); e Promedlac VII (Cochabamba, 2001). Nelas era imperativa a participação dos ministros de Educação dos Estados-membros e representantes oficiais, o que garantia o devido destaque às declarações e recomendações produzidas nessas reuniões e dirigidas aos governos dos países da América Latina e Caribe.

Além desses documentos, durante a vigência do PPE (1980-2000) também foram produzidos 50 periódicos, denominados Boletins, cujas funções eram:

[…] registrar, comentar y difundir las actividades que los Estados Miembros de la región realicen en el marco del Proyecto Principal, así como aquellas que se desarrollen al nivel regional y subregional, como resultado de la cooperación horizontal y la cooperación internacional en apoyo de los esfuerzos nacionales para el cumplimiento de los objetivos señalados al Proyecto

(Unesco/Orealc, 1982, p. 3).

Os Boletins, portanto, tinham como finalidade o registro, o tratamento e a divulgação de demandas e de ações dos países envolvidos no PPE (1980-2000), além de contribuições teórico-práticas. Neles, as décadas de 1980 e 1990 foram frequentemente situadas em um contexto de profunda crise econômica e de urgente necessidade de reorganização dos sistemas públicos, visando sua maior eficiência. A produção desses materiais, contudo, caminhou alheia às análises críticas de diferentes autores sobre o neoliberalismo, que se tornava hegemônico na América Latina e no Caribe à época.

Anderson (1995)Anderson, P. (1995). Balanço do Neoliberalismo. In E. Sader & P. Gentili (Org.). Pós-Neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático (p. 9-23). Paz e Terra., por exemplo, já advertia quanto a essa lógica que questionava o Estado Providência ou de Bem-Estar Social, considerados como destruidores das ideias de liberdade e de concorrência, das quais dependia a prosperidade de todos. O autor já alertava quanto aos riscos da defesa de um Estado mínimo forte contra o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas fraco nos gastos sociais, com o objetivo de manter a estabilidade monetária. Para Saviani (2008)Saviani, D. (2008). História das ideias pedagógicas no Brasil. Autores Associados., no campo educacional, essas ideias consolidavam sentidos sobre uma incompetência do Estado em administrar o bem comum, uma das causas do fracasso da escola pública considerada sem qualidade e inadequada à época — retórica muito forte nos documentos.

Diante do silêncio dos Boletins em relação a essas críticas, apreendemos que a Unesco, por meio da Orealc, agregou no PPE (1980-2000) diferentes pontos de vista sobre questões a respeito da educação, especificamente da alfabetização das crianças, supervalorizando, no entanto, alguns correlatos a interesses privados que enfatizavam a ineficiência dos sistemas educativos. Esse indicativo, por si, provocou-nos a problematizar a suposta neutralidade das ações da Unesco. As configurações enunciativas (autoria, destinatários, composição organizacional) dos Boletins e suas enunciações sobre a apropriação da leitura e da escrita pelas crianças (concepções e discussões mais reiteradas) nos revelaram alguns indícios que reforçaram a necessidade dessa problematização.

Composição enunciativo-discursiva dos Boletins

De acordo com os sentidos dicionarizados, “boletim” pode ser definido como: “1 Resenha noticiosa para circulação interna ou externa. 2 Publicação oficial de entidade pública ou privada [...]” (Aulete, 2009Aulete, C. (2009). Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa: de acordo com a nova ortografia. Lexikon., p. 109). Logo, o material sobre o qual detivemos atenção teve funções descritivas, expositivas e informativas, com a finalidade de atualização dos destinatários. No Boletim 50 (Unesco/Orealc, 1999Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1999). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 50, 1-99. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000119117_spa
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, p. 2), esses sentidos foram confirmados, pois se definiu que esses documentos “[…] ha[n] hecho su aporte en la divulgación de los objetivos del Proyecto así como de los temas y materias que han conformado el rico bagaje de ideas que en la región fue surgiendo mientras se avanzaba en el cumplimiento de las metas educacionales propuestas”.

Com o propósito explícito de divulgar os objetivos do PPE (1980-2000), assim como matérias e temas discutidos nas reuniões, os 50 Boletins foram produzidos. Sua publicação iniciou-se em 1982 (dois anos depois do início dos trabalhos do Projeto Principal) e terminou em 1999, com periodicidade variando entre uma, duas e até três publicações anuais. A trimestralidade de produções foi a mais recorrente.

Em sua composição interna, observamos uma organização fixa composta por sumário, seção de apresentação (em que eram apresentadas finalidades do documento e síntese das discussões) seguida de textos que tratavam do Projeto Principal: acordos entre os países- membros, resoluções, artigos que contribuiriam com debates, atividades da Unesco/Orealc no Projeto, publicações patrocinadas, um contrato para a assinatura do Boletim, entre outros. Suas capas (Figura 1) evidenciaram três diferentes apresentações nos 20 anos de vigência do PPE (1980-2000).

Figura 1
Capas de Boletins produzidos na vigência do PPE (1980-2000)

Como podemos observar, há a presença efetiva da escrita (identificação do projeto, do próprio documento e da autoria) sem nenhuma imagem ou figura, o que pode ajudar a construir um caráter objetivo para os documentos. Essa apresentação, em nossa análise, corrobora o sentido dicionarizado e nos instiga a problematizar a natureza técnica e neutra que se queria imprimir ao texto, como se ele pudesse ser isento de interesses subjetivos ou mesmo ideologias. Como já afirmamos, o signo é uma produção humana e, por isso, ideológico, constituído por e constituinte de determinados contextos.

O Sumário e a Apresentação dos Boletins registram, mais intensamente, recomendações, resoluções, orientações e previsão de ações no âmbito do PPE (1980-2000), além de formalizar a constituição de grupos de trabalho. Quanto aos artigos, seção sobre a qual dedicamos maior atenção para o mapeamento das orientações para a alfabetização de crianças, cabe registrar que começaram a aparecer em 1986 e, gradativamente, tomaram a maior parte dos Boletins, pois, “Con el transcurrir del tiempo, […] se han convertido en parte del desarrollo del pensamiento educativo en la región, marcando un aporte concreto en la elaboración de los nuevos paradigmas en este campo” (Unesco/Orealc, 1999Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1999). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 50, 1-99. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000119117_spa
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, p. 3). Esses enunciados nos mostram como a pretensa neutralidade se esvanece, uma vez que, para além de descrever, expor e informar, os Boletins também orientaram e tentaram conformar as ações da região em torno dos objetivos do PPE (1980-2000) e dos interesses a ele vinculados.

Ainda sobre os artigos[7] e sobre suas intencionalidades, notamos que os temas “Qualidade da Educação” e “Alfabetização/Analfabetismo” foram dois dos mais presentes. Quanto à alfabetização especificamente, as enunciações foram enfaticamente voltadas para discussões sobre o fracasso escolar, compreendido pelo viés da falta de qualidade da educação e da ineficiência dos sistemas. Em síntese, além de contribuir com a conformação do pensamento latino-americano e caribenho para a consecução dos objetivos do PPE (1980-2000), os Boletins mostraram certo interesse por algumas temáticas em especial.

Quanto à autoria desses textos, é preciso registrar a forte presença de autores e autoras8 8 Vale registrar que há autores que desempenharam diferentes funções, vinculando-se a mais de uma instituição. vinculados/as a organismos internacionais — 9 diretamente ligados ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou ao Banco Mundial (BM) e 76 a Universidades ou Centros Acadêmicos de todo o mundo. Alguns deles também eram vinculados à Unesco. Além desses, houve uma efetiva participação de 40 sujeitos ligados diretamente à Unesco/Orealc (seus consultores), 41 atuando em variados cargos técnicos9 9 Incluímos nos cargos técnicos todos os autores ligados a qualquer instituição, pública ou privada, que destinava assessoria ou pareceres à educação dos países-membros do PPE (1980-2000). Acrescentamos também aqueles que participaram de diferentes projetos patrocinados por esses países e fundações de pesquisa. e 18 envolvidos em altos cargos políticos. Em número menor, podemos situar: um autor ligado ao Comitê do Ano Internacional da Alfabetização de Trinidade e Tobago e outro ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), um médico, um cientista social, um investigador da educação, um professor com alta titulação acadêmica, um economista, um especialista internacional em educação, um filósofo, duas psicólogas, três autores ligados a Organizações Não Governamentais e/ou Fundações, quatro especialistas e outros quatro vinculados à Cepal. Há também cinco autores cujas vinculações não foram informadas e dois de quem não conseguimos precisá-las (não havia a descrição das siglas indicadas em seus dados de autoria). Dois textos foram assinados pela própria Unesco e outros dois, pela Orealc. Além disso, a Anistia Internacional, os Governos do Peru e do Chile, a Unesco (em conjunto com a Unicef), o Banco Mundial (BM), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o BID também produziram artigos.

Diante desse panorama, observamos que a maioria dos autores que mais publicaram nos Boletins mantinha relações diretas com a Unesco/Orealc e/ou com organismos internacionais, fato que deve ser analisado no contexto de constituição do PPE (1980-2000) – em meio ao fortalecimento de políticas neoliberais em toda a América Latina e Caribe – e de atuação da Unesco – vinculada a entidades financiadoras.

Ainda sobre a autoria, os dados evidenciaram um aspecto que merece atenção: a presença de autores que mantiveram o foco nas temáticas “fracasso escolar” e “qualidade da educação”, optando por uma linha discursiva que ressaltou, deliberadamente, a perda de recursos produzida pela reprovação (já escassos devido à crise por que passava a região). Nesse sentido, seus artigos enunciaram pontos de vista marcados por um viés fortemente economicista. Em um período de profundos ajustes econômicos, de ampla defesa de princípios neoliberais e de influências de agências internacionais de financiamento (BM, por exemplo), seus textos alcançaram as discussões envolvendo a educação e a alfabetização especificamente, por uma lógica de mercado que indagava sobre a eficiência dos gastos.

A Unesco, em referência às pessoas e aos países envolvidos em seus projetos que abrangiam a educação, afirmou, em um de seus Boletins, que “sus miembros son especialistas o científicos o si se trata de organizaciones de masas (sindicatos, cooperativas, asociaciones y movimientos juveniles)” (Unesco/Orealc, 1998Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1998). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 47, 1-95. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000114723_spa
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, p. 72). Acreditamos na preocupação desse organismo em relação à confiabilidade de dados e à credibilidade dos apontamentos, bem como em relação à precaução com a competência autoral daqueles que dialogariam com os destinatários diretos dessas publicações (Governos da América Latina e Caribe) sobre o que seria necessário fazer para alcançar os objetivos pretendidos.

No entanto, diante do contexto de produção do PPE (1980-2000), avaliamos a intenção de uma instituição que, por meio da competência técnica e especializada de seus consultores, simulou uma aparente neutralidade de seus escritos, utilizando uma propaganda que a afirmava alinhada à promoção do bem comum. Tentou demostrar, portanto, uma atuação pretensamente neutra e sem vinculações ideológicas. Em nossa análise, essa estratégia da Unesco foi e é fundamental para a fabricação de consensos e permitiu, pelos Boletins, consolidar perspectivas que apostaram na primazia dos indicadores economicistas para se pensar a educação.

Compreendendo, portanto, a racionalidade técnica dos Boletins, a emergência do Projeto Principal em um contexto de crise da América Latina e do Caribe, a desconsideração de críticas à lógica neoliberal e uma suposta neutralidade dos atos discursivos propostos pela Unesco/Orealc, iniciamos a leitura detalhada dos Boletins, buscando os sentidos atribuídos à alfabetização. Esse processo compreensivo-responsivo desvelou pontos de vista exclusivos e excludentes para se pensar a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças latino-americanas e caribenhas. É o que desejamos discutir na próxima seção.

Enunciados sobre alfabetização infantil: o fracasso escolar como impeditivo do desenvolvimento das nações e marca da ineficiência dos sistemas educativos

A leitura crítico-responsiva dos enunciados dos Boletins dirigidos à alfabetização de crianças indicou uma mesma trama discursiva em torno de uma temática recorrente: o fracasso escolar. Durante os 20 anos de vigência do Projeto Principal, esse tema foi reiterado insistentemente nesses documentos, mudando nuanças no tratamento, mas enfatizado como problema fulcral da educação na América Latina e no Caribe. Em nossa análise, a repetição sistemática e ordenada dessas discussões corrobora uma hipótese de que esses materiais consistiram em estratégias para a constituição de consensos sobre a promoção de determinados projetos e programas na educação dos países da região.

Alguns desses projetos foram os Ciclos de Alfabetização instituídos nas décadas de 1980 e de 1990 em todo o Brasil. No Espírito Santo, especificamente, esses ciclos foram nomeados de Bloco Único e reestruturaram o tempo pedagógico das duas primeiras séries do antigo ensino de 1º grau em um único bloco de estudos, sem reprovação entre eles. Gontijo (2016)Gontijo, C. M. M. (2016). Alfabetização no Brasil e no Espírito Santo no período de 1985 a 2003: relatório de pesquisa. aponta o Bloco Único (entre outras ações oficiais) como uma das ações estratégicas para o alcance de objetivos estabelecidos pelo PPE, especificamente o oferecimento da educação básica a todas as crianças em idade escolar, ou seja, sua universalização. Para a autora, a ausência da reprovação, por si, garantiria a absorção de boa parte de novas matrículas a baixo custo. Desse modo, as estatísticas de fracasso escolar seriam diminuídas sem os investimentos necessários na construção de prédios escolares, por exemplo.

Na Tabela 1, organizamos dados produzidos a partir da leitura dos Boletins e delimitamos como o insucesso escolar foi analisado. Observamos mudanças no enfoque das enunciações que podem ser explicadas principalmente pelo contexto em que foram produzidas, contudo a reiteração foi constante. Compreendendo suas intencionalidades, a quem foram dirigidas e sua autoria, alcançamos o potencial ideológico dessas enunciações.

Tabela 1
Tratamento dado ao tema Fracasso Escolar nos Boletins (PPE – 1980-2000)10 10 A Tabela 1 foi elaborada a partir da leitura dos artigos dos Boletins. Embora um mesmo artigo dispensasse mais de um tratamento ao tema “fracasso escolar”, a Tabela 1 relata a maior ênfase evidenciada na leitura.

A Tabela 1 mostra o acento dado à temática fracasso escolar e a modificação das ênfases para a análise desse problema. Assim, as enunciações passaram da preocupação com a reprovação, a “evasão” e o abandono escolar (representações do insucesso escolar) e da sua relação com o analfabetismo adulto para a sua reiteração como sinônimo de ineficiência dos sistemas educativos (referindo-se aos desperdícios de investimento, à geração de mais custos, à falta de qualidade da educação ou, ainda, à necessidade da ação do Estado). Analisado inicialmente como uma preocupação, o fracasso escolar assumiu a centralidade das discussões sobre os problemas da educação da América Latina e do Caribe.

Nessa composição, ele foi considerado um importante obstáculo para o alcance dos objetivos do PPE (1980-2000), na medida em que representava perdas significativas dos escassos investimentos, além de ser um impeditivo para o desenvolvimento individual e das nações. É importante registrar que as discussões iniciais não foram abandonadas, mas entrelaçaram-se aos outros enfoques, agregando às antigas enunciações algo novo que progressivamente assumiu o foco das enunciações nos artigos: a inter-relação entre reprovação e ineficiência dos sistemas educativos (em ensinar e em gerir recursos públicos, além de promover desenvolvimento nacional).

A ênfase sobre esse tema foi tão forte que nem a própria alfabetização infantil foi tematizada na mesma proporção. Constatamos que 27 Boletins trataram do fracasso escolar em algum momento. Por sua vez, a alfabetização de crianças foi enunciada como campo de conhecimento específico em 12 Boletins (o que também pode indicar a possibilidade de a alfabetização nos países ser sinônimo de fracasso). Como o insucesso escolar das crianças se concentrava nas primeiras séries da educação básica (etapa da escolarização em que a alfabetização é exigida de maneira mais sistemática), até mesmo os diálogos sobre o ensino da leitura e da escrita às crianças foram atravessados pela preocupação com o insucesso escolar. Dada a ênfase, essa situação exigiu dos países ações que se concentraram em torno de novas metodologias, observando-se, nos Boletins, a reiteração de compartilhamento de inovações pedagógicas e de experiências exitosas (preocupações muito presentes desde o início do projeto, mas acentuadas nos materiais produzidos a partir de 1989).

É interessante ponderarmos, também, que os Boletins produzidos no final da década de 1980 e na década de 1990 recuperaram e ampliaram as enunciações sobre a ineficiência pedagógica (pelo viés da produção de analfabetos, engrossamento das fileiras de reprovados e “evadidos” e desqualificação da educação) e intensificaram as críticas quanto à ineficiência do sistema de forma mais ampla (desperdício de investimentos, geração de custos, péssima gestão pública de recursos) e aos prejuízos provocados ao desenvolvimento nacional. O contexto em que se inserem essas enunciações pode explicar a centralidade das discussões, uma vez que é nessa época que o neoliberalismo se fortalece, ditando regras para a eficiência dos gastos com políticas sociais.

Essa última assertiva prevalece em meio aos artigos produzidos sobre essa temática. Nesse sentido, avaliamos que há o predomínio de uma determinada perspectiva, um determinado ponto de vista, uma determinada intencionalidade sobre o tema mais referenciado nos Boletins no que se refere à educação primária e à alfabetização. Para Bakhtin (2006)Bakhtin, M. (2006). Estética da criação verbal. Martins Fontes., a intenção é um dos elementos fundamentais na produção dos enunciados, determinando uma certa inclinação. Em síntese, não há textos neutros.

Nossas análises não desconsideram a importância da preocupação com o fracasso escolar, pois também consideramos alarmantes os dados que demarcaram o início dessas discussões: “Sobre un número de 1.000 incorporados al primer grado, las estadísticas demuestran que en la mitad de los países considerados los que llegan al 4° grado no superan los 800, en tanto que menos de 700 alcanzan el 6° grado” (Unesco/Orealc, 1985Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación de la Unesco para América Latina y el Caribe (Chile) (1985). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 6, 1-32. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146844_spa
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, p. 8). As maiores taxas se concentravam nos primeiros anos desse nível de ensino e em regiões campesinas, segundo descrito nos Boletins. Em alguns países, os índices chegavam a 10% na educação primária e, em outros, eram superiores a 20%.

Mais ao fim da década de 1980, as preocupações se mantinham. Schiefelbein et al. (1989)Schiefelbein, E., Tedesco, J. C., Lira, R. R. de, & Peruzzi, S. (1989). La enseñanza básica y el analfabetismo en América Latina y el Caribe: 1980-1987. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 20, 17-56. https://unesdoc.unesco.org/ark:/ 48223/pf0000085711_spa
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afirmaram que um em cada quatro alunos sofria com a repetência. Se, na primeira série, metade dos alunos reprovava em 1980, em 1987 essa taxa era de 40%. Schiefelbein & Wolff (1993)Schiefelbein, E., & Wolff, L. (1993). Repetición y rendimiento inadecuado en escuelas primarias de América Latina: magnitudes, causas, relaciones y estrategias. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 30, 17-50. https://unesdoc.unesco.org/ark:/ 48223/pf0000095115_spa
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, no que se refere a esses enunciados, continuaram revelando estatísticas no decurso do PPE (1980-2000), assinalando que, em meados da década de 1990, na América Latina e no Caribe, estavam concentradas as maiores taxas de reprovação do mundo: cerca de 40%.

Nesse mesmo artigo, os autores afirmaram que as crianças das primeiras séries, de origem socioeconomicamente desfavorecida, moradoras de áreas campesinas e não falantes do idioma oficial, eram as mais atingidas: aproximadamente nove milhões de crianças de seis ou sete anos ingressavam na primeira série e quatro milhões eram retidas. A Orealc, na esteira dessas enunciações, também apresentou dados inquietantes:

De 16.5 millones de alumnos en el primer grado de la educación básica, unos 7 millones repiten; de 12 millones de alumnos del segundo grado, unos 4 millones repiten y de los 11 millones de alumnos del tercer grado, unos 3 millones son repitentes. Para los seis primeros grados de la educación básica, la región gasta US$ 3 500 millones por año en alumnos que repiten [...] Brasil, Colombia, Costa Rica, Chile, Jamaica y México sugieren que la mitad de los alumnos de cuarto grado no entienden lo que deletrean, lo que se suma a los problemas de repetición

(Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe, 1993Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1993). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 30, 1-89. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000095110_spa
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, p. 4-5).

Assim, as estatísticas revelavam uma necessária e urgente preocupação. O que nos impressiona é a perspectiva de análise desses números sempre reforçada pela indicação dos sujeitos mais afetados: crianças inseridas nas primeiras séries da educação básica e famílias social e economicamente desfavorecidas no campo, em áreas urbano-marginais e em comunidades indígenas. Em todos os Promedlacs, o fracasso escolar era tratado em meio a estatísticas, sempre reiterando os mesmos sujeitos afetados, demarcando o desafio que se impunha às nações da América Latina e Caribe, mas nunca movimentando o pensamento em torno da urgência de repensar a pobreza como consequência de um modelo de estrutura social excludente.

Nesse fluxo, aquilo que era sempre sinalizado como uma urgência a ser resolvida foi ganhando contornos qualificadores de ineficiência dos sistemas educacionais. Afinal, não sendo solucionado o problema, tornava-se evidente o desperdício dos poucos investimentos destinados à educação primária (da ordem de 50%), situação ainda mais complicada em um momento de crise na América Latina e no Caribe e de diminuição do gasto público dele decorrente. De maneira objetiva, o problema residia na perda dos subsídios e não nos prejuízos vividos pelos sujeitos.

Anualmente, de los US$ 7.5 billones de gasto público en educación primaria, US$ 2.5 billones (casi un tercio) se gasta en los que repiten educación primaria [...] el costo humano en términos de tiempo perdido y de acumulación de frustraciones puede ser incluso superior al costo de atender a los repitentes

(Schiefelbein, 1995Schiefelbein, E. (1995). La reforma educativa en América Latina y el Caribe: un programa de acción. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 37, 3-34. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000101639_spa
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, p. 16).

A reiteração da temática da reprovação (na sua correlação com o desperdício de investimentos) não pode ser considerada como desprovida de intencionalidade, neutra e imparcial. A perspectiva de análise era sempre acompanhada, nos Boletins, de apontamentos quanto à crise econômica que afetava a região latino-americana e caribenha e quanto aos desdobramentos dessa conjuntura, como que marcando um contexto sombrio, com enunciações sobre falta de investimentos, endividamento externo dos países e necessidade de políticas de ajustes econômicos. Essas políticas, por sua vez, emergiam explicando e justificando os cortes de gastos públicos e a necessidade de que os problemas educacionais fossem resolvidos com os poucos recursos disponíveis.

Nesse fluxo de enunciações, a reprovação e a “evasão”, onerosas e antieconômicas, precisavam ser “eliminadas” para o alcance da qualidade e da eficiência da educação (sinônimos de baixos índices de repetência e de redução de perda de recursos, respectivamente). Mesmo a pesquisadora Ferreiro (1987)Ferreiro, E (1987). Alternativas a la comprensión del analfabetismo en la región. Boletín Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 13, 7-17. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000076083_spa
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, uma referência nos estudos sobre alfabetização e uma das autoras presentes nos Boletins, afirmou a reprovação como uma solução onerosa. Essa retórica enfatizava a necessidade de eficiência na reorganização dos recursos possíveis, reconhecendo-se que a falta de investimentos também se evidenciava como causa para o aumento das estatísticas de repetência e evasão.

Nessa dinâmica, as enunciações sobre a melhor utilização dos recursos e sobre o urgente aumento de investimentos também se articulavam a discussões sobre mecanismos e instituições de cooperação internacionais e nacionais que se tornaram cada vez mais presentes nos Boletins. No Promedlac VI (1996), por exemplo, os ministros que dele participaram avaliaram como imperativa a busca por financiamento com agências internacionais parceiras – BM, BID, Organização dos Estados Americanos, dentre outras – ou com agências de cooperação subregional e bilateral. Essas instituições foram rememoradas em meio aos artigos, evidenciando como a Unesco conduziu os países latino-americanos e caribenhos para a busca de parcerias. Compreender as finalidades da educação para essas organizações endossou ainda mais nossos questionamentos a respeito da autoimagem imparcial construída pela Unesco, uma vez que essas mesmas finalidades são reforçadas nos discursos de diferentes autores coparticipantes das publicações dos Boletins.

De maneira geral, do início ao fim do PPE (1980-2000), a educação básica foi demandada, entendida como pré-requisito fundamental para a preparação de uma população economicamente ativa e para o desenvolvimento e a concorrência dos países. A educação básica garantiria os “recursos humanos con una sólida formación general, que permita pensar y ejecutar al mismo tiempo [...]” (Unesco/Orealc, 1992Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1992). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 28, 1-122. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000092862_spa
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, p. 16). Para Reimers (1990)Reimers, F. (1990). Educación para todos en América Latina en el siglo XXI: los desafíos de la estabilización, el ajuste y los mandatos de Jomtien. Boletín Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 23, 7-27. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/ pf0000088135_spa
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, outro autor presente nos Boletins, a educação tinha um papel central para a mobilidade social e o êxito material dos indivíduos, pois garantia as condições de competitividade do país no mercado internacional (mão de obra qualificada). Essa perspectiva muito se aproximou das motivações da Cepal assumidas a partir do Promedlac IV (1991) e se fortaleceu no desenvolvimento do PPE (1980-2000). Schiefelbein (1995)Schiefelbein, E. et. al. (1995). Calidad de la educación, desarrollo, equidad y pobreza en la región, 1980-1994. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 38, 3-51. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000103521_spa
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e Schiefelbein et al. (1994)Schiefelbein, E., Braslavsky, C., Gatti, B., & Farrés, P. (1994). Las características de la profesión maestro y la calidad de la educación en América Latina. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 34, 3-18. https://unesdoc.unesco.org/ark:/ 48223/pf0000100200_spa
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, nessa mesma perspectiva, enfatizaram a necessidade de capacitação de mão de obra que pudesse competir internacionalmente, o que melhoraria a equidade e reduziria a pobreza.

Schiefelbein et al. (1995)Schiefelbein, E. (1995). La reforma educativa en América Latina y el Caribe: un programa de acción. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 37, 3-34. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000101639_spa
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, mais especificamente, demarcaram a urgência de transformações educativas no contexto da globalização (vivenciada na década de 1990), uma vez que emergiam novos modelos de desenvolvimento organizados em torno da competência econômica internacional. Para incrementar o potencial científico e tecnológico das nações, era preciso melhorar a qualidade no ensinar e no aprender. O Promedlac VI (1996) e a Recomendação de Kingston (Educación, Democracia, Paz y Desarrollo: Recomendação de Minedlac VII, 1996) reafirmaram essas enunciações. Assim, a preparação necessária para garantir patamares de concorrência internacional (finalidade da educação) ganha força em meio às críticas quanto ao fracasso escolar e aos métodos tradicionais de ensino e nos revela o horizonte educacional requerido pelas parcerias: preparação de mão de obra competitiva internacionalmente.

É interessante ressaltar que as críticas aos métodos tradicionais de ensino reverberaram em torno da necessidade de inovação na educação básica e, consequentemente, na alfabetização infantil (gargalo das reprovações). Condição para o desenvolvimento das nações latino-americanas e caribenhas, a readequação curricular e metodológica poderia garantir a preparação da força de trabalho coerente com os contextos desses 20 anos. Nesse fluxo, a alfabetização foi demandada, inicialmente, para o ensino dos rudimentos da leitura e da escrita e, posteriormente, para a formação de sujeitos que entendessem o que liam e escrevessem com eficiência comunicativa. Embora visivelmente diferentes, essas demandas se fundamentam em uma, e somente uma, perspectiva de alfabetização: aquela vinculada ao domínio do código, da codificação e da decodificação da língua escrita.

Dessa forma, a preocupação com o ensino da leitura e da escrita tornou-se marcadamente presente nas discussões sobre o fracasso escolar, a ponto de tornar-se até tema de concurso de “proyectos demostrativos de intervención pedagógica en los problemas de la lecto-escritura y el cálculo como factores de fracaso escolar” (Unesco/Orealc, 1990, p. 77). Sempre acompanhadas de reflexões e de compartilhamento de experiências consideradas “exitosas”, as inquietações com a alfabetização das crianças desdobraram-se em inúmeras proposições de projetos e programas que mantinham a aprendizagem dos códigos como um requisito básico, dissociada da dimensão política da alfabetização.

Exemplos de experiências que viabilizaram essa análise podem ser identificados em muitos Boletins. Na Nicarágua (Unesco/Orealc, 1986Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura /Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1986). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 9, 1-32. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146842_spa
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), o método fônico-analítico-sintético foi definido como única estratégia para a aprendizagem da leitura e da escrita e para “eliminação” da repetência e da “evasão” escolares. Na Jamaica (Unesco/Orealc, 1988Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (Chile) (1988). Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 15, 8-96. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000079541_spa
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) foi desenvolvido um projeto voltado para o desenvolvimento de habilidades de decodificação, reconhecimento de palavras e compreensão da leitura. Como podemos perceber, nas duas proposições, bastava a codificação e a decodificação. A alfabetização era compreendida como técnica para aprender a ler e a escrever, marcadamente associada a métodos tradicionais de ensino e esvaziada de sua dimensão crítica e reflexiva.

Na progressão do tempo, as críticas aos métodos tradicionais de ensino, principalmente a partir da década de 1990, tornaram-se mais fortes (uma vez que não garantiram a diminuição das estatísticas de repetência e evasão) e encontraram, nas discussões construtivistas de Emilia Ferreiro, a fundamentação científica necessária. Acreditando na relação entre insucesso escolar da educação primária e fracasso da alfabetização das crianças, Ferreiro (1987, p. 8)Ferreiro, E (1987). Alternativas a la comprensión del analfabetismo en la región. Boletín Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 13, 7-17. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000076083_spa
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afirmou: “el filtro inicial se encuentra al inicio del ingreso al sistema (entre 1/3 y 1/4 parte de los que ingresaron repiten el primer año)”. Nesse sentido, seria impossível pensar o fim do analfabetismo sem melhorar a qualidade do ensino primário alfabetizador (assunto reiterado no Boletim nº 17) e inimaginável o alcance de uma democracia efetiva sem o acesso à linguagem escrita.

Paralelas às críticas construtivistas, as enunciações sobre necessidades básicas de aprendizagem também ganharam destaque. A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, em 1990, definia a leitura e a escrita como uma dessas necessidades, mas a partir de uma perspectiva meramente instrumental. No Promedlac IV (1991), a leitura e a escrita, além da expressão oral, do cálculo e da resolução de problemas, foram consideradas ferramentas essenciais para o aprendizado e os próprios conteúdos de aprendizagem. Contudo, sua redução a uma ação técnica, meramente instrumentalizadora, restrita à codificação e decodificação de textos, reforçou o afastamento da alfabetização de sua dimensão crítica nos moldes apontados por Freire (1984)Freire, P. (1984). A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. Cortez..

Em síntese, mesmo articulada a um discurso que buscava inovação, no que se refere ao ensino da leitura e da escrita, a concepção de língua como código continuava sendo reafirmada, mantendo, portanto, uma visão de mundo descomprometida com transformações sociais e com a formação de sujeitos críticos. Essas enunciações, esvaziadas de sentido político, ético e responsivo às classes desfavorecidas, podiam garantir mudanças pedagógicas restritas a aspectos metodológicos e didáticos (menos onerosos e mais simples).

Mesmo autores não diretamente vinculados a estudos sobre a alfabetização propuseram enunciações enviesadas por essa contradição que admitiu a necessidade de mudanças, no entanto limitadas a aspectos metodológicos e mantendo bases teóricas dos antigos métodos de ensino da leitura e da escrita. O excerto a seguir consegue exemplificar nossa consideração:

aspectos que se deben considerar en el diseño de las actividades requeridas para continuar avanzando hacia los objetivos del PPE: [...] mejorar los métodos, estructura, contenidos y procedimientos utilizados por los sistemas educativos, ya que el aumento de los recursos financieros es una condición necesaria pero no suficiente para el logro de los objetivos propuestos [...]

(Schiefelbein et al., 1989Schiefelbein, E., Tedesco, J. C., Lira, R. R. de, & Peruzzi, S. (1989). La enseñanza básica y el analfabetismo en América Latina y el Caribe: 1980-1987. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 20, 17-56. https://unesdoc.unesco.org/ark:/ 48223/pf0000085711_spa
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, p. 19).

Schiefelbein et al. (1989)Schiefelbein, E., Tedesco, J. C., Lira, R. R. de, & Peruzzi, S. (1989). La enseñanza básica y el analfabetismo en América Latina y el Caribe: 1980-1987. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 20, 17-56. https://unesdoc.unesco.org/ark:/ 48223/pf0000085711_spa
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reaparecem em meio a essas pontuações, assinalando, juntamente com outros autores, que bastavam melhorias em métodos e conteúdo. E mais: a partir dos recursos disponíveis (sem previsão de outros, portanto). Essa articulação entre melhorias superficiais e parcos recursos encaminha as enunciações para a valorização de medidas de baixo custo. Nesse sentido, uma série de artigos produzidos por esse autor, com ou sem colaboração, constituíram-se espaços de compartilhamento de experiências “exitosas” enviesadas por essa perspectiva. Cabe a consideração de que “êxito”, nesse contexto, foi sinônimo de diminuição de índices de reprovação utilizando pouco dinheiro. A progressão automática foi um exemplo compartilhado como uma estratégia para o tratamento do insucesso escolar (Schiefelbein, 1988Schiefelbein, E. (1988). Siete estrategias para elevar la calidad y eficiencia del sistema de educación. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 16, 30-55. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000081281_spa
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) e dinamizada por diferentes países, incluindo o Brasil, com os Ciclos de Alfabetização.

Mais ao final do PPE (1980-2000), outras enunciações aproximaram a aprendizagem da língua escrita de outra perspectiva, a do “aprender a aprender”, nova demanda do mundo globalizado. Essa ideia implicava, dentre outras questões, desenvolver nos sujeitos “a capacidade de se responsabilizar pela realização do seu projeto pessoal” (Delors, 1998Delors, J. (1998). Educação: um tesouro a descobrir. Cortez. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000009.pdf
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
, p. 16), dentro dos novos quatro pilares da educação (aprender a ser, aprender a fazer, aprender a conhecer e aprender a conviver) recomendados pelo Relatório Delors (Delors, 1998Delors, J. (1998). Educação: um tesouro a descobrir. Cortez. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000009.pdf
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
) e requeridos pela globalização mundial. Dentre as aprendizagens básicas definidas pela Declaração de Cochabamba (2001), “los ‘pilares de la educación’ aparezcan equilibradamente, tanto en sus dimensiones humanista como tecno-científica” (Unesco/Orealc, 2001Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura/Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (2001). Balance de los 20 años del Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe: Séptima Reunión del Comité Regional Intergubernamental del Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000135468
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, p. 11).

No que se refere à leitura e à escrita, especificamente, o ideário manteve a defesa de que a preparação de mão de obra qualificada requeria a aprendizagem dos conhecimentos mínimos (ler, escrever e contar). Contudo, em uma conjuntura de avanços tecnológicos, o aprender a aprender revestia-os de nova roupagem e de maior urgência, uma vez que era necessário formar “pessoas capazes de evoluir, de se adaptar a um mundo em rápida mudança e capazes de dominar essas transformações” (Delors, 1998Delors, J. (1998). Educação: um tesouro a descobrir. Cortez. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000009.pdf
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
, p. 72). Assim, dominar transformações continuava requerendo conhecimentos básicos (leitura e escrita) fundamentais para o desenvolvimento das nações, pois havia “consenso sobre el rol de la educación como la clave del éxito económico” (Schiefelbein, Wolff & Schiefelbein, 1999Schiefelbein, E., Wolff, L., & Schiefelbein, P. (1999). El costo-efectividad de las políticas de educación primaria en América Latina: estudio basado en la opinión de expertos. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 49, 54-79. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000117881_spa
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, p. 54).

No entanto, para essas grandes mudanças esperadas, prevaleciam proposições de baixo custo. Nessa lógica, nem a preparação docente (intensamente tratada nos últimos anos de enunciações do Projeto Principal) foi poupada. Schiefelbein, Wolff & Schiefelbein (1999)Schiefelbein, E., Wolff, L., & Schiefelbein, P. (1999). El costo-efectividad de las políticas de educación primaria en América Latina: estudio basado en la opinión de expertos. Boletín: Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe, 49, 54-79. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000117881_spa
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, na mesma perspectiva de tratamento do fracasso escolar pelo viés economicista, concluíram que o aumento de salários docentes e os programas de formação tradicionais não deveriam ser implementados por serem medidas de alto custo. A prioridade seria promover intervenções com custos moderados (materiais didáticos e programas pré-escolares) e sem custos (seleção de melhores professores para o primeiro ano, por exemplo).

É nesse matiz que os diálogos em torno do fracasso escolar foram consolidados: sinônimo da falta de eficiência dos sistemas (pela perda de investimentos) e da baixa qualidade de um ensino, que não preparava de maneira coerente com as demandas do momento, o que requeria transformações pedagógicas, avaliando custos em meio à falta de recursos. Nesse contexto, e permitindo a costura desses fios por meio dos Boletins, a Unesco aparece, permitindo que enunciações sobre a necessidade de maiores investimentos para a “eliminação” dos altos índices de reprovados e “evadidos” fossem acompanhadas de apresentações a organismos internacionais solícitos em colaborar com a educação dos países latino-americanos e caribenhos. Assim, a centralidade assumida pelo insucesso escolar nos Boletins orientou, tacitamente, países endividados a buscar esses recursos em financiamentos com instituições que traziam, em seu bojo, pontos de vista também economicistas, além de concepções de alfabetização que supervalorizavam a dimensão circunscrita à aprendizagem de códigos e desconsideravam sua dimensão política.

Considerações finais

Refletir sobre a ambivalência dos discursos da Unesco pode parecer um assunto já reiterado e demasiadamente abordado. Contudo, no que se refere ao tratamento dado à alfabetização infantil na vigência do PPE (1980-2000), evidenciou-se como um tema oportuno e relevante pelo fato de não localizarmos estudos e pesquisas que se dedicaram a essa interface no momento de produção desse estudo. Com esse objetivo, mapeamos neste texto – que resultou de nossas análises compreensivas e responsivas dos textos dos Boletins, mediadas pela perspectiva bakhtiniana – as considerações destinadas ao ensino da leitura e da escrita, problematizando como a suposta neutralidade atribuída à Unesco garantiu a essas reflexões um específico direcionamento: a reiteração do fracasso escolar das crianças nas primeiras séries de escolarização básica como problema central da educação latino-americana e caribenha por impedir o sucesso individual dos sujeitos fracassados e das nações como um todo.

Tal ponto de vista sobre o fracasso escolar nos permitiu problematizar uma atuação da Unesco que divulga suas intenções em torno da disseminação de uma cultura da paz por meio do estabelecimento de uma “solidariedade intelectual e moral da humanidade” (Unesco, 2021). Sempre vinculando sua identidade a uma suposta neutralidade, a Unesco atua na busca de consensos, intercâmbios e multiplicação de informações. Seus encaminhamentos, porém, são passíveis de análises críticas quanto a essa suposta imparcialidade, na medida em que, no âmbito do PPE (1980-2000), os Boletins reafirmaram um problema insolúvel e que demandava altos investimentos paralelamente à necessidade de estabelecimentos de parcerias de colaboração que incluíam organismos financiadores.

Além disso, a aparente imparcialidade constituída a partir da configuração dos Boletins e da competência autoral de seus escritos foi elaborada concomitantemente à disseminação de determinados referenciais alfabetizadores que suprimiram a dimensão crítica da aprendizagem da leitura e da escrita e supervalorizaram uma ação eminentemente instrumental, restrita à codificação e à decodificação da língua.

Nessa trama, concordamos com Noma (2011, p. 106)Noma, A. K. (2011). História das políticas educacionais: o Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe. In M. L. N. de Azevedo & A. M. de B. Lara (Org.). Políticas para a educação: análises e apontamentos (p. 105-133). Eduem. https://gepeto.ced.ufsc.br/files/2015/03/capitulo-eneida.pdf
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, quando afirma que a Unesco agiu como “laboratório de ideias, de geração de consenso e fixação de padrões, agindo como um fórum central disseminador para a região latino-americana e caribenha de princípios e orientações gerais para a educação”. Com isso reiteramos nossas problematizações quanto à propaganda sobre a suposta neutralidade das ações da Unesco, apontando para a necessidade de avaliação das intenções desse organismo para a manutenção de tal identidade.

Os consensos sobre o PPE (1980-2000), incluindo seus objetivos, precisam ser compreendidos a partir desse contexto, que vincula educação e desenvolvimento, e desse lugar de autoria, organismo internacional alinhado a interesses de órgãos financiadores. Nesse fluxo, nossas contrapalavras (Bakhtin, 2006Bakhtin, M. (2006). Estética da criação verbal. Martins Fontes.) afirmam ancoragens economicistas que alinharam a educação à capacitação da população menos favorecida para o trabalho (o que permitiu ao mercado a prerrogativa de ditar os rumos das reformas educacionais) e falsos embasamentos que vincularam (e ainda vinculam) escolarização e desenvolvimento, rememorando-nos enunciações críticas sobre um hipotético poder redentor da educação e da alfabetização (Graff, 1995Graff, H. J. (1995). Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização. Artes Médicas.) conivente com interesses ideologicamente situados, portanto, parciais e, em nada, neutros.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Apoio: Parte da pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
  • 4
    A Oficina Regional de Educación para América Latina e o Caribe (Orealc), que assina junto com a Unesco a produção dos Boletins, constitui-se como um dos seus escritórios com clara função de implementar suas atividades regionais. Além do situado em Santiago, no Chile, outros estavam espalhados pelas regiões da África, dos Estados Árabes, da Ásia e do Pacífico, da Europa, da América do Norte, da América Latina e do Caribe. Além da Orealc, identificamos outros três escritórios regionais com referências direcionadas especificamente para a educação: um em Dakar (atuando na África), um em Beirute (atuando nos Estados Árabes) e outro em Bangkok (agindo na Ásia e no Pacífico).
  • 5
    Nossa fundamentação bakhtiniana compreende a ideologia a partir da ideia da polissemia das palavras, por isso difere dos conceitos marxista e althusseriano de ideologia. Compreendemos esse conceito a partir da ideia de enunciado proposta por Bakhtin e Volochínov (2010)Bakhtin, M., & Volochínov. (2010) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Hucitec., produto da interação verbal, ponte lançada entre os sujeitos e, também, arena em que se refletem e refratam diferentes posições de mundo.
  • 6
    Fazemos uso das aspas para essa palavra a fim de demarcar um discurso que precisa ser problematizado. Tradução dada por nós à expressão em espanhol deserción escolar (que, por meio do dicionário, remeteria ao termo “desistência”), o enunciado “evasão” produz sentidos que culpabilizam os sujeitos e que obscurecem o processo contínuo e progressivo de exclusão das crianças da escola. Assim, com as aspas, gostaríamos de delimitar “palavra alheia”, que não queremos tornar nossa, conceito no qual não queremos deixar nossa “assinatura”.
  • 7
    Um aspecto que precisamos ressaltar é que algumas temáticas perpassam outras, ou seja, atravessam os textos.
  • 8
    Vale registrar que há autores que desempenharam diferentes funções, vinculando-se a mais de uma instituição.
  • 9
    Incluímos nos cargos técnicos todos os autores ligados a qualquer instituição, pública ou privada, que destinava assessoria ou pareceres à educação dos países-membros do PPE (1980-2000). Acrescentamos também aqueles que participaram de diferentes projetos patrocinados por esses países e fundações de pesquisa.
  • 10
    A Tabela 1 foi elaborada a partir da leitura dos artigos dos Boletins. Embora um mesmo artigo dispensasse mais de um tratamento ao tema “fracasso escolar”, a Tabela 1 relata a maior ênfase evidenciada na leitura.

Referências

  • Anderson, P. (1995). Balanço do Neoliberalismo. In E. Sader & P. Gentili (Org.). Pós-Neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático (p. 9-23). Paz e Terra.
  • Aulete, C. (2009). Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa: de acordo com a nova ortografia Lexikon.
  • Bakhtin, M. (2006). Estética da criação verbal Martins Fontes.
  • Bakhtin, M., & Volochínov. (2010) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem Hucitec.
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Editor responsável: Ana Lúcia Guedes Pinto. https://orcid.org/0000-0002-0857-8187

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2022
  • Revisado
    25 Jul 2022
  • Aceito
    23 Set 2022
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