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A construção social da pessoa e a psiquiatria: do alienismo à "nova psiquiatria"

The social construction of self and psychiatry: from alienism to the "new psychiatry"

La construction sociale de la personne et la psychiatrie: de l'aliénisme à la "nouvelle psychiatrie"

Resumos

O artigo trata das representações da psiquiatria a respeito da noção de Pessoa, procurando demonstrar, em particular, de que forma tais representações são expressão do valor Indivíduo e dos corolários da igualdade e da liberdade. Focaliza-se, neste sentido, o surgimento da primeira psiquiatria, alienista, e a reordenação, a partir da Segunda Guerra Mundial, de um novo conjunto de saberes e práticas terapêuticas aqui denominado de "nova psiquiatria". A partir de um estudo comparativo, argumenta-se sobre a tensão físico-moral constitutiva da construção social da Pessoa moderna em suas diferentes formas de atualização, e analisa-se as rupturas e continuida-des entre as idéias que fundamentam a psiquiatria alienista e a "nova psiquiatria".


In addressing psychiatry's representations of the notion of self, the article endeavors especially to show in what way these representations are an expression of the value individual and of the corollaries equality and freedom. In doing so, it focuses on the emergence of the first psychiatry [alienist] and on a reorganizing, as of World War II, of therapeutic know-ledge and practices, herein designated the new psychiatry. Drawing from a comparative study, the article discusses the physical-moral tension consti-tuent in the social construction of the modern self in its different forms of actualization and analyzes the breaks and continuities between the ideas underpinning alienist psychiatry and the new psychiatry.


Cet article traite des représentations de la notion de Personne propres à la psychiatrie. II tente notamment de démontrer qu'elles sont 1'expression de la valeur individu et des corollaires de 1'égalité et de la liberté. C'est pourquoi il met en évidence les premiers moments de la psychiatrie, en d'autres raots 1'époque de raliénisme, et 1'établissement, à partir de la Seconde Guerre Mondiale, d'un nouvel ensemble de savoirs et de pratiques thérapeutiques qui prendront ici le nom de "nouvelle psychiatrie". A partir d'une étude comparative, 1'auteur développe une argumentation sur la ten-sion physico-morale constitutive de la construction sociale de la Personne moderne à travers ses différentes formes d'action. II analyse en outre les ruptures et les continuités qui se sont manifestées au sein des idées fonoda-mentales de la psychiatrie et de la "nouvelle psychiatrie".


A construção social da pessoa e a psiquiatria: do alienismo à "nova psiquiatria"

The social construction of self and psychiatry: from alienism to the "new psychiatry"

La construction sociale de la personne et la psychiatrie: de l'aliénisme à la "nouvelle psychiatrie"

Ana Teresa A. Venancio

Socióloga, Mestre em Antropologia Social.

RESUMO

O artigo trata das representações da psiquiatria a respeito da noção de Pessoa, procurando demonstrar, em particular, de que forma tais representações são expressão do valor Indivíduo e dos corolários da igualdade e da liberdade. Focaliza-se, neste sentido, o surgimento da primeira psiquiatria, alienista, e a reordenação, a partir da Segunda Guerra Mundial, de um novo conjunto de saberes e práticas terapêuticas aqui denominado de "nova psiquiatria". A partir de um estudo comparativo, argumenta-se sobre a tensão físico-moral constitutiva da construção social da Pessoa moderna em suas diferentes formas de atualização, e analisa-se as rupturas e continuida-des entre as idéias que fundamentam a psiquiatria alienista e a "nova psiquiatria".

ABSTRACT

In addressing psychiatry's representations of the notion of self, the article endeavors especially to show in what way these representations are an expression of the value individual and of the corollaries equality and freedom. In doing so, it focuses on the emergence of the first psychiatry [alienist] and on a reorganizing, as of World War II, of therapeutic know-ledge and practices, herein designated the new psychiatry. Drawing from a comparative study, the article discusses the physical-moral tension consti-tuent in the social construction of the modern self in its different forms of actualization and analyzes the breaks and continuities between the ideas underpinning alienist psychiatry and the new psychiatry.

RESUME

Cet article traite des représentations de la notion de Personne propres à la psychiatrie. II tente notamment de démontrer qu'elles sont 1'expression de la valeur individu et des corollaires de 1'égalité et de la liberté. C'est pourquoi il met en évidence les premiers moments de la psychiatrie, en d'autres raots 1'époque de raliénisme, et 1'établissement, à partir de la Seconde Guerre Mondiale, d'un nouvel ensemble de savoirs et de pratiques thérapeutiques qui prendront ici le nom de "nouvelle psychiatrie". A partir d'une étude comparative, 1'auteur développe une argumentation sur la ten-sion physico-morale constitutive de la construction sociale de la Personne moderne à travers ses différentes formes d'action. II analyse en outre les ruptures et les continuités qui se sont manifestées au sein des idées fonoda-mentales de la psychiatrie et de la "nouvelle psychiatrie".

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1 Entendo por "nova psiquiatria" o conjunto de saberes e práticas psiquiátricas levado a efeito no contexto internacional, a partir da Segunda Guerra Mundial, e que vem se contrapondo a um modelo dito "tradicional" pela prevalência da idéia de saúde mental, em detrimento da de doença mental, e pela assunção de uma etiologia ao mesmo tempo individual e social a esse respeito. A locução "nova psiquiatria" é uma expressão do próprio campo psiquiátrico, datada, que aparece em J. Birman e J. F. Costa, "Organização de Instituições para uma Psiquiatria Comunitária", Relatórios e Resumos do 2o Congresso Brasileiro de Psicopatologia Infanto-Ju-venil, Rio de Janeiro, APPIA, 1976; e em F. Basaglia, A Psiquiatria Alternativa: Contra o Pessimismo da Razão o Otimismo da Prática, São Paulo, Ed. Debates, 1979. Minha opção pelo uso de aspas visa tanto relativizar as conotações positivas ou negativas que a expressão possa ter, quanto ressaltar a particular imprecisão e o dinamismo com que o adjetivo "novo" é utilizado em nossa cultura. Neste sentido, é notável que, atualmente, a chamada psiquiatria biológica, oposta ao ideário que denominei de "nova psiquiatria", também se autocaracterize como tal, em conseqüência das "inovações" teóricas e práticas que estaria trazendo para o campo psiquiátrico.

2 Cf. M. Mauss, M. "Uma Categoria do Espírito Humano: A Noção de Pessoa, a Noção do'Eu'", Sociologia e Antropologia, vol. 1, São Paulo, EDUSP, 1974, pp. 207-41.

3 Cf. L. Dumont, O Individualismo — Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1985. Como Louis Dumont, estarei diferenciando o indivíduo enquanto sujeito empírico, isto é, a amostra individual da espécie humana tal como a encontramos em toda e qualquer sociedade, e o sujeito moral, "ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social" (idem, p. 37). Para a elucidação dessa distinção usarei a forma indivíduo quando da acepção de seu primeiro significado e Indivíduo ou Valor-Indivíduo para o segundo sentido.

4 L. Dumont, O Individualismo....; L. Dumont, Homo Hierarchicus, Paris, Gallimará, 1966.

5 Cf. L. Dumont, "The Modern Conception of the Individual Notes on its Genesis and of Concomitant Institutions", Contributions to Indian Sociology, vol. VIII, 1965, pp. 13-61.

6 Cf. P. Ariès, História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Zahar Eds., 1978; M. Foucault, História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (10a ed.), Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1988; A. O. Hirschman, As Paixões e os Interesses, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; C.B.

MacPherson, A Teoria Política do Individualismo Possessivo: De Hobbes a Locke, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; G. Simmel, On Individuality and Social Forms, Chicago, The University of Chicago Press, 1971.

7 Cabe ressaltar que a mudança da concepção clássica da loucura para seu enquadramento pela emergência do saber psiquiátrico não foi imediata nem simples. A própria idéia de loucura na Idade Clássica já se diferenciava da concepção vigente na Idade Média, quando era vista como uma consciência dos poderes trágicos do mundo, representada nas ameaças da bestialidade e dos fins dos tempos, ou ainda uma desventura natural da Razão. O imaginário clássico sobre a loucura, por sua vez, a traria definitivamente para o campo da Razão, encarnada em homens concretos, presentes no mundo social — o díssipador, o homossexual, o mágico e muitos outros. Essa foi a época do "grande internamento" da loucura nos asilos, embora ela ainda não houvesse sido separada em sua especificidade. Cf. M. Foucault, História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1978.

8 Cf. G. Gusdorf, "L'Avènement de la Psychiatrie parmi les Sciences Humaines", Les Sciences de t'Homme Sont-Elles Sciences Humaines?, Paris, Faculté des Lettres de Strasbourg. 1967, pp. 157-82.

9 M. Foucault. "O Nascimento do Hospital", in Microfísica do Poder (5a ed.). Rio de Janeiro. Ed. Graal. 1985, p. 107.

10 G. Gusdorf. "L'Avènement...", p. 173.

11 Conforme demonstra Luiz Fernando Duarte, durante o século XVIII afirmou-se um novo quadro de representações, relacionado de forma complexa com os saberes médicos-psicológicos da época, que demarcava os fenômenos físico-morais que se acreditava pudessem acometer o homem. O autor designa este quadro como a "configuração do nervoso", provando que pela idéia de sistema nervoso se reordenou uma totalização individualizante do homem. Os nervos.

observados enquanto expressão da fisiealidade do indivíduo, assumiram de modo crescente uma significação monista, traduzindo as "perturbações" como resultantes de uma combinação entre o organismo e os modos e efeitos do comportamento do indivíduo. Cf. L. F. Duarte, Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor/CNPq, 1986.

12 J. Birman, A Psiquiatria como Discurso da Moralidade, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1978, p. 80.

13 Ibidem.

14 Cf. M. Gauchet e G. Swain, La Pratique de 1'Esprit Humain: l'Instituition Asilaire et la Révolution Démocratique, Paris, Gallimard, 1980.

15 Idem.

16 Idem. Cumpre destacar que estes autores estão discutindo com Foucault: ao trazerem a idéia de que o ideal do asilo era o de integrar o sujeito no mundo, contrapõem-se à idéia foucaultiana de que o asilo era o lugar da segregação, dada a oposição radical e mais geral que o ideário moderno estabeleceu entre Razão e Desrazão. No meu entender, embora priorizando enfoques diferentes, as duas explicações sobre o asilo não são excludentes. Idealizado para integrar os alienados no mundo, o asilo certamente passou a ser também expressão do espaço para a exclusão que estava sendo socialmente reconstruído. Neste sentido, os alienados passavam a ser incorporados como figuras sociais ao mundo, exatamente em suas margens.

17 Idem.

18 Dentre as diversas descrições e classificações realizadas nessa segunda metade do século XIX. a de Kraepelin pode ser considerada paradigmática: o Compêndio de Psiquiatria, publicado pela primeira vez em 1883, teve nove edições amplamente aumentadas até 1927.

19 Enquanto linhas de força, os enfoques físico e moral certamente não foram tão estanques como aqui exposto. As próprias experiências de Freud continham em sua base a tensão físico-moral. Entretanto, nos limites deste artigo não será possível aprofundar o modo complexo como essas duas dimensões coexistiram, ressaltando-se somente sua presença simultânea na constituição da psiquiatria, como demonstra, por exemplo, a análise de Luiz Fernando Duarte sobre as proposições de Krafft-Ebing. L. F. Duarte, "'A Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing, ou o Progresso Moral pela Ciência das Perversões", Jornal Brasileiro de Psiquiatria, vol. 38, nos2 e 3, 1989.

20 É interessante, porém, verificar que já à época da Primeira Guerra Mundial, dois médicos ingleses, que depois se tornaram eminentes antropólogos (Rivers e Seligman), se interessaram pelas possibilidades terapêuticas da psicanálise ao lidarem com neuroses traumáticas de guerra. Cf. L. F. Duarte, "Freud e a Imaginação Sociológica Moderna", in J. Birman, ed., Freud — 50 Anos Depois, Rio de Janeiro. Ed. Relume-Dumará, 1989.

21 O uso moderno da categoria de comunidade é um corolário complexo do ideário individualista. Segundo Viveiros de Castro e Benzaquen de Araújo. as considerações de Turner sobre a oposição communitas/estrutura pode ser comparada à distinção de Dumont entre universitas e societas. Ct". E. Viveiros de Castro e R. Benzaquen de Araújo. "Romeu e Julieta e a Origem do Estado" . in G. Velho. org.. Arte e Sociedade, Rio de Janeiro. Zahar. 1977. pp. 130-69: V. Turner. O Processo Ritual. Petrópolis. Vozes. 1974; L. Dumont. ''The Modern Conception...... op. cir. De acordo com a análise dos autores brasileiros, Turner privilegia uma distinção sincrónica cmre communiras e estrutura. afirmando que a primeira "dissolve a estrutura para pór em relevo indivíduos, não como seres moralmente autónomos (que comporiam a societas). e sim como membros de uma humanidade indiferenciada, quase-física. Por outro lado, Turner vai aproximar-se de Dumont ao mostrar, recentemente, como a liminaridade da communitas é tendência que. de domesticada nas sociedades tradicionais. passa a definir cerra concepção dominante de mundo na sociedade moderna. contaminando todo um conjunto de atividades e valores". Ct". E. Viveiros de Castro e R. Benzaquen de Araújo, "Romeu e Julieta ... " . op. cit., p. 135. nota 7. A referência a Turner diz respeito a V. Turner. Liminality. Play. Flow and Ritual: Optional and Obligatory Forms and Genres, s/I. Wenner-Green Foundation for Anthropological Research, 1974, mimeo.

22 Entre as poucas referências brasileiras descritivas do panorama internacional da "nova psiquiatria". uma explicação detalhada a esse respeito, assim como sobre os modelos institucionais então criados. pode ser encontrada em A. M. Pitta-Hoisel, A.M. Sobre uma Política de Saúde Mental, Tese de Mestrado. Departamento de Medicina Preventiva/Faculdade de Medicina/USP, 1984.

23 Sobre a Psiquiatria Democrática italiana, ver F. Basaglia, A Psiquiatria Alternativa: Contra o Pessimismo da Razão, o Otimismo da Prática, São Paulo, Ed. Brasil Debates, 1979; F. Basaglia. A Instituição Negada, Rio de Janeiro. Ed. Graal, 1985.

24 Sobre as concepções fundamentadoras da experiência inglesa, ver M. Jones, La Psiquiatria Social en la Práctica: La Idea de la Comunidad Terapêutica, Buenos Aires, Editorial Americale. 1970. No que se refere à experiência francesa, ver J. Oury, Psychiatrie et Psychothérapie Institutionelle, Paris, Payot, 1977; D. Roulot, Apresentação oral no I Encontro sobre Tratamento das Psicoses, São Paulo, Associação Franco Basaglia, 1989, mimeo.

  • 1 Entendo por "nova psiquiatria" o conjunto de saberes e práticas psiquiátricas levado a efeito no contexto internacional, a partir da Segunda Guerra Mundial, e que vem se contrapondo a um modelo dito "tradicional" pela prevalência da idéia de saúde mental, em detrimento da de doença mental, e pela assunção de uma etiologia ao mesmo tempo individual e social a esse respeito. A locução "nova psiquiatria" é uma expressão do próprio campo psiquiátrico, datada, que aparece em J. Birman e J. F. Costa, "Organização de Instituições para uma Psiquiatria Comunitária", Relatórios e Resumos do 2o Congresso Brasileiro de Psicopatologia Infanto-Ju-venil, Rio de Janeiro, APPIA, 1976; e em F. Basaglia, A Psiquiatria Alternativa: Contra o Pessimismo da Razão o Otimismo da Prática, São Paulo, Ed. Debates, 1979. Minha opção pelo uso de aspas visa tanto relativizar as conotações positivas ou negativas que a expressão possa ter, quanto ressaltar a particular imprecisão e o dinamismo com que o adjetivo "novo" é utilizado em nossa cultura. Neste sentido, é notável que, atualmente, a chamada psiquiatria biológica, oposta ao ideário que denominei de "nova psiquiatria", também se autocaracterize como tal, em conseqüência das "inovações" teóricas e práticas que estaria trazendo para o campo psiquiátrico. 2 Cf. M. Mauss, M. "Uma Categoria do Espírito Humano: A Noção de Pessoa, a Noção do'Eu'", Sociologia e Antropologia, vol. 1, São Paulo, EDUSP, 1974, pp. 207-41. 3 Cf. L. Dumont, O Individualismo Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1985. Como Louis Dumont, estarei diferenciando o indivíduo enquanto sujeito empírico, isto é, a amostra individual da espécie humana tal como a encontramos em toda e qualquer sociedade, e o sujeito moral, "ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social" (idem, p. 37). Para a elucidação dessa distinção usarei a forma indivíduo quando da acepção de seu primeiro significado e Indivíduo ou Valor-Indivíduo para o segundo sentido. 4 L. Dumont, O Individualismo....; L. Dumont, Homo Hierarchicus, Paris, Gallimará, 1966. 5 Cf. L. Dumont, "The Modern Conception of the Individual Notes on its Genesis and of Concomitant Institutions", Contributions to Indian Sociology, vol. VIII, 1965, pp. 13-61. 6 Cf. P. Ariès, História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Zahar Eds., 1978; M. Foucault, História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (10a ed.), Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1988; A. O. Hirschman, As Paixões e os Interesses, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; C.B. MacPherson, A Teoria Política do Individualismo Possessivo: De Hobbes a Locke, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; G. Simmel, On Individuality and Social Forms, Chicago, The University of Chicago Press, 1971. 7 Cabe ressaltar que a mudança da concepção clássica da loucura para seu enquadramento pela emergência do saber psiquiátrico não foi imediata nem simples. A própria idéia de loucura na Idade Clássica já se diferenciava da concepção vigente na Idade Média, quando era vista como uma consciência dos poderes trágicos do mundo, representada nas ameaças da bestialidade e dos fins dos tempos, ou ainda uma desventura natural da Razão. O imaginário clássico sobre a loucura, por sua vez, a traria definitivamente para o campo da Razão, encarnada em homens concretos, presentes no mundo social o díssipador, o homossexual, o mágico e muitos outros. Essa foi a época do "grande internamento" da loucura nos asilos, embora ela ainda não houvesse sido separada em sua especificidade. Cf. M. Foucault, História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1978. 8 Cf. G. Gusdorf, "L'Avènement de la Psychiatrie parmi les Sciences Humaines", Les Sciences de t'Homme Sont-Elles Sciences Humaines?, Paris, Faculté des Lettres de Strasbourg. 1967, pp. 157-82. 9 M. Foucault. "O Nascimento do Hospital", in Microfísica do Poder (5a ed.). Rio de Janeiro. Ed. Graal. 1985, p. 107.
  • 10 G. Gusdorf. "L'Avènement...", p. 173. 11 Conforme demonstra Luiz Fernando Duarte, durante o século XVIII afirmou-se um novo quadro de representações, relacionado de forma complexa com os saberes médicos-psicológicos da época, que demarcava os fenômenos físico-morais que se acreditava pudessem acometer o homem. O autor designa este quadro como a "configuração do nervoso", provando que pela idéia de sistema nervoso se reordenou uma totalização individualizante do homem. Os nervos. observados enquanto expressão da fisiealidade do indivíduo, assumiram de modo crescente uma significação monista, traduzindo as "perturbações" como resultantes de uma combinação entre o organismo e os modos e efeitos do comportamento do indivíduo. Cf. L. F. Duarte, Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor/CNPq, 1986. 12 J. Birman, A Psiquiatria como Discurso da Moralidade, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1978, p. 80.
  • 13 Ibidem. 14 Cf. M. Gauchet e G. Swain, La Pratique de 1'Esprit Humain: l'Instituition Asilaire et la Révolution Démocratique, Paris, Gallimard, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2011
  • Data do Fascículo
    1993
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