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Apresentação: a clínica, entre saber e poder

APRESENTAÇÃO

A clínica, entre saber e poder

Joel Birman

Ser e poder

É curioso ressaltar como neste final de século o discurso da clencia adquire cada vez mais uma autoridade e um poder de um valor incontestável, com uma qualidade anteriormente inexistente. Deve-se reconhecer que esta autoridade atribuída e conquistada pelo campo científico consolidou­ se nos últimos trinta anos, não sendo, pois, um resultado da atualidade.

Poder-se-ia contestar esta afirmação, mesmo pela sua relativização, ao inscrevê-la apenas nos últimos trinta anos da tradição histórica do Ocidente. Com efeito, pode-se sempre dizer que desde o final do século XVllI a sociedade ocidental inseriu as práticas científicas numa posição destacada no campo social, na medida em que o Estado privilegiou progressivamente os seus investimentos, desde então, para serem alocados nos campos diversos da produção científica e tecnológica. Nada a questionar quanto a isto. Não é possível pensar no industrialismo e na sua revolução no século XIX sem considerar, em contrapartida, o desenvolvimento das ciências positivas e das tecnologias decorrentes, que transformaram integralmente a face das sociedades européia e norte-americana. Tudo isso representou o desaparecimento do lugar hegemônico ocupado pelo discurso filosófico e sua conseqüente substituição pelos discursos das diferentes ciências positivas, na aurora da modemidade, por um lado. Porém, implicou a emergência da dita sociedade moderna, que ocupou progressivamente o lugar das antigas formas tradicionais de sociabilidade, pelo outro.

Contudo, não obstante estas obviedades sobre as relações entre o discurso da ciência e a modernidade, uma diferença fundamental permanece no que concerne à atualidade. Mesmo sendo um trllísmo a constatação de que o privilégio do discurso da ciência na atualidade é o ápice de um processo cultural e político iniciado há cerca de dois séculos, existe uma particularidade na forma de inserção social da ciência na contemporaneidade que se deve sublinhar.

A que diferença estou me referindo especificamente? Numa sociedade democrática, como a que vivemos hoje como realidade concreta e como tendência virtual que perpassa quase todo o Ocidente, os enunciados científicos são formulados e representados como sendo os únicos enunciados que seriam absolutamente inquestionáveis. Isto porque como logos estariam acima das diferenças de perspectivas e de interesses dos diversos grupos sociais em confronto numa sociedade complexa.

É neste sentido, antes de mais nada, que a ciência é uma autoridade incontestável para nossos corações e mentes, já que se inscreve no registro da universalidade. Seria, pois, a única modalidade de discurso que pode enunciar teses sobre a natureza, o universo e a ordem humana, que estaria acima de qualquer suspeita. O discurso da ciência seria, enfim, incontestável.

Por isto mesmo, qualquer um dos jornais existentes hoje tem o seu caderno de ciência. Isto ocorre em âmbito nacional e internacional. Trata-se de um processo recente, caracterizando a nossa atualidade. A ciência se inscreve no circuito mediático, em que informa cotidianamente aos seus leitores sobre as únicas modalidades de enunciados supostamente inquestionáveis na sociedade contemporânea. Com isso, as descobertas científicas entram no espaço da polis, após terem passado pelo crivo da comunidade científica, que funciona como instância de legitimação dos enunciados científicos. A partir de então, enfim, estes enunciados passam a circular no espaço social, conferindo consistência aos argumentos políticos e sociais que neles se apóiam.

A tese enunciada por Foucault (1974) das relações entre saber e poder, formulada nos anos setenta, encontrou as suas condições concretas da possibilidade nesta condição da atualidade, que conferiu ao discurso científico uma nova autoridade. Em decorrência disso, uma nova genealogia do saber tomou-se possível, evidentemente. Porém, para tal, necessário foi uma outra posição de autoridade simbólica, isto é, universalista, atribuída ao discurso da ciência nas sociedades ocidentais avançadas.

Autoridade e Fazer

Poder-se-ia argumentar agora com uma outra objeção à formulação que estou encaminhando. Um interlocutor poderia considerar que tudo isso que foi dito faz sentido se forem consideradas as ditas ciências da natureza e não as humanas. As primeiras formulam enunciados universais, passando pelo teste do laboratório e da experimentação, enquanto as segundas ficam restritas ao relativismo das formulações hermenêuticas. Logo, as ciências da natureza enunciam formulações que oferecem autoridade, porque seus enunciados são universais, o que não seria o caso no que tange ao campo das ciências humanas.

Deve-se escutar devidamente esta objeção, pois ela tem um efetivo valor argumentativo. É claro que tudo que falamos anteriormente é válido, de maneira absoluta, para o campo das ciências da natureza, isto é, a dita ciência hard. Porém, as afirmações anteriores seriam discutíveis no que se refere às ciências humanas. Vale dizer, as ciências moles não conseguem formular enunciados universais, sendo passíveis de ideologização. Por isto mesmo, estas seriam capturadas pelo particularismo das visões de mundo de tal ou qual grupo social.

Se tudo isto é verídico, sem dúvida, deve-se evocar também que uma parcela significativa das ditas ciências humanas procuraram se pautar, desde sempre, pelos paradigmas teóricos e pelos procedimentos metodológicos das ciências da natureza para serem reconhecidas de fato e de direito como ciências. Na atualidade, o paradigma cognitivista visa oferecer ao campo das ciências humanas a mesma legitimidade teórica encontrada naquelas da natureza. Não se sabe se isso irá superar os impasses das ditas ciências humanas, historicamente circunscritas, mas o projeto teórico em causa pretende solucionar estes impasses.

Entretanto, tudo isto indica um outro desdobramento da relação entre o discurso da ciência e a questão da autoridade. Assim, além de ser uma autoridade em si mesmo, pelos universais que supostamente produz, o discurso da ciência faz autoridade. Nesta diferença e deslocamento entre ser e fazer algo de fundamental está em pauta. Com efeito, quando alguém hoje, qualquer agente social, quer dizer algo de irrefutável, ele fala sempre em nome da ciência. Com isto, aquele acredita que enuncia algo em nome da neutralidade axiológica da ciência e pode enunciar então afirmações universais. O discurso dos políticos, dos administradores e dos burocratas, sejam estes do Estado ou das empresas, é marcado por este estilo de enunciação, pelo qual a autoridade reconhecida no discurso da ciência confere poder e verdade a quem fala dele.

Neste deslocamento decisivo entre os registros do ser e do fazer, no que conceme aos enunciados científicos, se delineiam os horizontes do poder da clencia no campo social da atualidade. Isto porque ao se deslocarem do registro puro do laboratório e das provas científicas, os enunciados da ciência oferecem autoridade e poder a quem fala, criando uma aura de universalidade ao seu discurso.

Os universais e os particulares

É pela consideração deste lugar incontestável de poder atribuído à ciência na atualidade que se pôde entrever a importância deste novo número de Physis. É por este viés que se pôde avaliar devidamente o alcance das propostas teórica e política que estão sendo encaminhadas, no que se refere ao campo da saúde coletiva.

Isto porque, na totalidade dos artigos aqui publicados uma problemática se coloca no primeiro plano, na qual se opõe a universalidade do discurso da ciência e a particularidade da clínica. Com efeito, uma mesma tensão perpassa os trabalhos dos diferentes autores, nos quais se contrapõem, de maneira direta ou indireta, a universalidade dos discursos científicos no campo da saúde coletiva e a particularidade das práticas clínicas, sejam estas terapêuticas ou preventivas. Todos nós sabemos perfeitamente que existe um abismo significativo entre o que nos oferecem as novas racionalidades e tecnologias científicas, no campo da saúde, e as práticas clínicas sobre os doentes. Vale dizer, se os discursos das ciências da saúde aumentam em muito o nosso conhecimento sobre o universo da doença, de suas etiologias e de seus mecanismos, isso não resolve absolutamente aquilo que constituiu desde sempre as aflições dos enfermos, isto é, o terror destes em face do adoecimento e da morte. Este terror foi a condição de possibilidade para a constituição histórica e antropológica do campo da medicina, como saber e como prática clínica. E tais aflições continuam sempre em pé, não obstante a multiplicação das ferramentas conceituais e das novas tecnologias que possuímos atualmente para lidar com a finitude da existência e a contingência da dor.

Nesta perspectiva, pensar nas novas racionalidades médicas no final do século XX e sobre a biomedicina, é mergulhar diretamente no confronto crucial entre os universais das ciências da vida e os particularismos do ato de curar. Da mesma forma, os caminhos recentes abertos pelas tecnologias reprodutivas repõem integralmente esta condição. Esta reaparece, da mesma maneira, nas intervenções clínicas sobre os portadores do HIV e dos pacientes com AIOS. Além disto, a introdução do conceito de estilo de vida no discurso da epidemiologia é, talvez, a revelação mais eloqüente do que se dizia antes, já que pela mediação daquele conceito a epidemiologia se afasta de seus universais histórico e epistemológico - a população e a doença ­ e se aproxima dos particularismos relativistas dos discursos das ciências sociais. Com isto, o estilo de vida introduz uma nova leitura para a já clássica teoria do terreno, como condição da possibilidade para a experiência do enfermar, interpretada agora pelo viés das ciências sociais.

Porém, tudo isso indica ainda outros desdobramentos. Como se sabe, a globalização é o cenário econômico deste estágio atual da ciência, em que os registros do social e do político ficam secundarizados em face da hegemonia do discurso econômico. Este tem a pretensão da universalidade da ciência, almejando o valor de ser inquestionável como aquela. Porém, os enunciados da economia não têm a consistência teórica dos saberes experimentais, permeando aqueles por relativizações e particularismos. Conseqüentemente, os registros do social e do político, marcados pela temporalidade da história, retomam pela porta da cozinha, inevitavelmente. O banquete do economicismo triunfante é colocado então na berlinda. Vale dizer, os diferentes atores da cena social, como particularidades que são dos mais diversos recantos do planeta globalizado, vêm reclamar o seu lugar e expor os seus emblemas para que a gestão política do social seja possível.

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1997.

  • FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Cadernos da PUC-RJ, Rio de Janeiro, n. 16, 1974.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 1997
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