Acessibilidade / Reportar erro

Physis e medicina

APRESENTAÇÃO

Physis e medicina

Kenneth Rochel de Camargo Jr.

A revolução no campo do conhecimento, que, ainda no Renascimento, demarca os primórdios da modemidade, não estendeu imediatamente seus efeitos ao cuidado da saúde. Galeno ainda manteve seu prestígio por quase dois séculos, confirmando sua posição como propositor do sistema médico de maior durabilidade da História do Ocidente. Mesmo com a falência do sistema galênico, que começou a se desenhar em meados do século XVIII, modalidades terapêuticas que incorporassem a nova lógica médica só iriam surgir, a rigor, no início do século XX, com Erlich e o Salvarsan1 1 Ver, entre outros, Sayd, J. Mediar, medicar, remediar: aspectos da terapêutica na medicina ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ. 1998 .

Ainda assim, a medicina que começava a se desenhar na passagem do século XVIII ao XIX foi, desde seu início, como já assinalava Foucault2 2 Foucault, M. O nascimento do hospital. In: Micr()física do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. , uma medicina dos indivíduos e da população. Legitimada como braço armado da revolução científica na saúde, o magister dixit da corporação médica impôs-se desde cedo como o delimitador de normas para a intervenção do Estado na saúde dos cidadãos. Boltanski3 3 Boltanski, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1984. , entre outros, já chamava a atenção, há quase trinta anos, para o caráter pervasivo da moderna medicina, sua face de intervenção em larga escala na socieda­ de em geral. A perspectiva da medicalização, já bastante abordada por vários autores, em especial em nosso meio, tem mostrado o alcance dessa intervenção na cultura e nas práticas cotidianas do indivíduo. Calcada em bases derivadas da biologia, alcança inegável eficácia em muitas frentes, ao mesmo tempo em que atrai críticas cada vez mais severas, quanto aos custos que gera, quanto à negação da subjetividade - até mesmo dos seus praticantes4 4 Clavreul. J. A ordem médica. São Paulo: Brasiliense, 1983. - e seus corolários iatrogênicos. Ao mesmo tempo, a desigualdade e extrema polarização sociais características do atual momento da história - a chamada "globalização"5 5 Ver, por exemplo. Castells, M. The rise of the network society. Massachussets: BJackwell, 1996. - mostram sua face também no que diz respeito à assistência à saúde - cara e tecnificada, para poucos; precária e massificada (e ainda assim, paradoxalmente, não raro inacessível), para muitos.

Para a Saúde Coletiva, a análise crítica da medicina representa um duplo desafio: epistemológico, dada a complexidade dos objetos envolvidos no estudo; e ético, uma vez que uma vertente de intervenção está presente com maior ou menor intensidade nessa área, quer mais explicitamente, como no caso das atividades de planejamento e administração em saúde, quer mais indiretamente, no caso das recomendações derivadas dos estudos epidemiológicos. Característica marcante deste desafio é a necessidade de uma abordagem que não se transforme numa paródia maniqueísta de pesquisa, em que a medicina e seus praticantes são demonizados, mas que também não se confunda com uma defesa corporativista estreita do status quo6 6 Um exemplo, a meu ver, é o artigo de apresentação de uma coletânea publicada pela Academia de Ciências de New York: Greenberg, G. Introductory remarks: medicine took an early flight. In: Gross, P. R., Levitt, N. E Lewis. M. W. (eds.). The fugiu from science and reason. New York: The New York Academy of Sciences, J 996, p. ix-xi. . O que proponho aqui, em síntese, ecoa o mote de Boaventura de Souza Santos7 7 Santos, B. S. Introdução li uma ciência pás-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. , a idéia de uma "aplicação edificante" do conhecimento científico, que mantenha a proverbial criança firmemente dentro da bacia ao jogar fora a água do banho - isto é, que se possa aproveitar na sua plenitude o acervo de conhecimentos produzidos sem torná-lo fonte de alienação, controle e sofrimento.

Em resposta a este desafio, um conjunto de artigos deste número de Physis aborda várias facetas da medicina como objeto de estudo. Por "medicina", nunca é demais lembrar, estamos abordando um conjunto com­ plexo de práticas, saberes e instituições com diferentes origens e trajetórias históricas, articulados de forma peculiar no presente eem áreas geográficas específicas. Assim, sob este termo tão abrangente abarcamos, pelo menos: uma profissão, a corporação que a exerce, as instituições de formação e exercício desta profissão e os conteúdos cognitivos ligados a esta prática. Já no que diz respeito a estes últimos, há ainda as inúmeras variações entre as disciplinas formalizadas da investigação, o saber consolidado dos manuais e o referencial da prática, instâncias usualmente mais independentes umas das outras do que se poderia supor numa primeira avaliação8 8 Ver, por exemplo, Camargo Jr., K. R. A Biomedicina. Physi.l' - Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 7, n. I, p. 45-68, 1997. .

No primeiro artigo, Jane Sayd e Martha Moreira tomam o ceticismo como fio condutor do exame, numa perspectiva histórica, da curiosa e por vezes paradoxal articulação entre várias instâncias de discurso médico, com atenção particular para a chamada Medicina Baseada em Evidências, que, no dizer das autoras, longe de ser de fato "um novo paradigma para a medicina", representa antes a atualização de um debate recorrente na his­ tória da medicina: aquele entre dogmatismo e ceticismo, racionalismo e empirismo.

No artigo seguinte, Paulo Gabriel Pinto, com base num estudo etnográfico, examina a formação médica, evidenciando, através do estudo da utilização dos recursos visuais nas práticas acadêmicas, como as relações estruturantes do campo médico são reproduzidas no ensino, mesmo na ausência de uma vontade consciente de operar essa reprodução.

Na seqüência, Gustavo Matta toma a descrição da criação de um híbrido, no sentido latouriano - o renal crônico - como mote para a discussões dos vários liames que formam a malha constitutiva do campo médico.

Encerrando este conjunto temático, Roseni Pinheiro e Kenneth Camargo apresentam uma discussão sobre a continuidade conceitual entre a medicina e o planejamento em saúde, demonstrando a conexão de ambos com um modelo de racionalidade característico da herança iluminista e o papel da tecnocracia estatal na sua manutenção.

Os demais artigos desta edição, ainda que não abordem especificamente a medicina como tema, partilham com os primeiros uma característica fun­ damental: a abordagem interdisciplinar e não-convencional de problemas teóricos complexos.

O artigo seguinte, de Liana Bastos, parte de Varela para produzir um diálogo entre a psicanálise e as ciências cognitivas, retomando a discussão do conceito de pulsão como estratégia de superação da recorrente antinomia "corpo / mente". Longe de estar restrita ao domínio da psicanálise, esta é uma questão fundamental para o campo da assistência à saúde.

Maria Andréa Loyola apresenta um panorama sobre a pesquisa em antropologia da sexualidade no Brasil, mostrando numa perspectiva histórica os principais autores e suas contribuições, ao mesmo tempo em que discute teoricamente os impasses e démarches da constituição desse campo em nosso país.

Ainda no tema da sexualidade, Márcia Arán usa o conceito de femini­ lidade como base para uma discussão sobre o tema da subjetivação em psicanálise, atualizando o debate nesse campo frente ao crescimento do conhecimento sobre a sexualidade humana nas últimas décadas. Também aqui, embora a abordagem privilegiada seja a da psicanálise, são óbvias as implicações da discussão para as pesquisas sobre sexualidade - tema que ganhou impulso recente face à emergência do HIV/AIDS, mas que sempre fez parte das reflexões sobre a saúde.

Encerrando esta edição de Physis, Marildo Menegat se apóia em Horkheimer e Adorno para uma discussão sobre a dimensão ética na mo­ demidade, apontando como a crise de valores do I1uminismo e a subseqüente degradação das relações sociais - a barbárie a que se refere já em seu título - é não apenas um "acidente de percurso", mas traço constitutivo do desenvolvimento do capitalismo. Como já foi citado anteriormente, a pers­ pectiva ética é também fundamental para o campo da Saúde Coletiva, e este artigo agrega mais elementos para o diálogo.

Rio de Janeiro, 30 de junho de 2000.

  • 1 Ver, entre outros, Sayd, J. Mediar, medicar, remediar: aspectos da terapêutica na medicina ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ. 1998
  • 2 Foucault, M. O nascimento do hospital. In: Micr()física do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
  • 3 Boltanski, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
  • 4 Clavreul. J. A ordem médica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
  • 5 Ver, por exemplo. Castells, M. The rise of the network society. Massachussets: BJackwell, 1996.
  • 6 Um exemplo, a meu ver, é o artigo de apresentação de uma coletânea publicada pela Academia de Ciências de New York: Greenberg, G. Introductory remarks: medicine took an early flight. In: Gross, P. R., Levitt, N. E Lewis. M. W. (eds.). The fugiu from science and reason. New York: The New York Academy of Sciences, J 996, p. ix-xi.
  • 7 Santos, B. S. Introdução li uma ciência pás-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
  • 8 Ver, por exemplo, Camargo Jr., K. R. A Biomedicina. Physi.l' - Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 7, n. I, p. 45-68, 1997.
  • 1
    Ver, entre outros, Sayd, J. Mediar, medicar, remediar: aspectos da terapêutica na medicina ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ. 1998
  • 2
    Foucault, M. O nascimento do hospital. In: Micr()física do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
  • 3
    Boltanski, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
  • 4
    Clavreul. J. A ordem médica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
  • 5
    Ver, por exemplo. Castells, M. The rise of the network society. Massachussets: BJackwell, 1996.
  • 6
    Um exemplo, a meu ver, é o artigo de apresentação de uma coletânea publicada pela Academia de Ciências de New York: Greenberg, G. Introductory remarks: medicine took an early flight. In: Gross, P. R., Levitt, N. E Lewis. M. W. (eds.). The fugiu from science and reason. New York: The New York Academy of Sciences, J 996, p. ix-xi.
  • 7
    Santos, B. S. Introdução li uma ciência pás-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
  • 8
    Ver, por exemplo, Camargo Jr., K. R. A Biomedicina. Physi.l' - Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 7, n. I, p. 45-68, 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2000
    PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: publicacoes@ims.uerj.br