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Apresentação

APRESENTAÇÃO

O Corpo Despedaçado

Gustavo Bernardo Krause

At this time a slight sleep relieved me from the pain of reflection, which was disturbed by the approach of a beautiful child, who came running into the recess I had chosen, with all the sportiveness of infancy. Suddenly, as I gazed on him, an idea seized me, that this little creature was unprejudiced, and had lived too short a time to have imbibed a horror of deformity. If, therefore, I could seize him, and educate him as my companion and friend, I should not be so desolate in this peopled earth.

Urged by this impulse, I seized on the boy as he passed and drew him towards me. As soon as he beheld my form, he placed his hands before his eyes and uttered a shrill scream: I drew his hand forcibly from his face, and said, 'Child, what is the meaning of this? I do not intend to hurt you; listen to me.'

He struggled violently. 'Let me go,' he cried; 'monster! ugly wretch! you wish to eat me, and tear me to pieces- You are an ogre- Let me go, or I will tell my papa.'

'Boy, you will never see your father again; you must come with me.'

'Hideous monster! let me go. My papa is a Syndic - he is M.Frankenstein - he will punish you. You dare not keep me.'

'Frankenstein! you belong then to my enemy- to him towards whom I have sworn eternal revenge; you shall be my first victim.'

The child still struggled, and loaded me with epithets which carried despair to my heart; I grasped his throat to silence him, and in a moment he lay dead at my feet.

I gazed on my victim, and my heart swelled with exultation and hellish triumph: clapping my hands, I exclaimed, 'I, too, can create desolation; my enemy is not invulnerable; this death will carry despair to him, and a thousand other miseries shall torment and destroy him.'

Frankenstein, de Mary Shelley. Capítulo XVI

Nesse momento, um sono leve atenuou-me a dor das reflexões, mas foi perturbado pela aproximação de uma bela criança, que vinha correndo com toda a alegria de sua infância até o recanto onde eu estava. De súbito, ao contemplá-lo, ocorreu-me que aquela criaturinha não tinha preconceitos e que vivera muito pouco para ter desenvolvido a aversão à deformidade. Se eu pudesse, portanto, capturá-lo e educá-lo para ser meu companheiro e amigo, não haveria de me sentir tão só sobre aquela terra povoada.

Movido por esse impulso, agarrei o garoto quando ele passou e puxei-o para junto de mim. Logo que me viu, ele cobriu os olhos com as mãos e deu um grito estridente; eu tirei à força suas mãos de sobre o rosto e lhe disse:

— Menino, o que significa isto? Não tenho a intenção de machucá-lo; ouça-me.

Ele se debatia violentamente.

— Deixe-me ir — exclamou. — Monstro horroroso! Você quer me comer e me cortar em pedacinhos. Você é um ogre. Deixe-me ir, ou conto ao papai.

— Garoto, você jamais voltará a ver o seu pai; precisa vir comigo.

— Monstro horrível! Deixe-me ir. Meu pai trabalha para o governo, ele é M. Frankenstein e vai puni-lo. Não ouse me prender.

— Frankenstein! Você pertence à família de meu inimigo, aquele ao qual jurei vingança eterna! Será minha primeira vítima.

O menino se debatia e me cobria de injúrias que levavam o desespero a meu coração; apertei sua garganta para silenciá-lo, e um instante depois ele jazia morto aos meus pés.

Contemplei minha vítima; meu coração encheu-se de exultação e de diabólico triunfo. Batendo as palmas das mãos, exclamei:

— Também eu tenho o poder da destruição; meu inimigo não é invulnerável. Esta morte lhe trará desespero, e centenas de outros infortúnios hão de atormentá-lo e destruí-lo

Tradução: Adriana Lisboa

A criatura do Dr. Frankenstein, que mais tarde, no cinema, tomou para si o nome do seu criador, já no século XIX tematizava uma possibilidade de hybris da ciência e dos cientistas. Pedaços de corpos, tirados de cadáveres, formaram um corpo despedaçado no qual se inflamou a vida - uma vida de extrema solidão e, conseqüentemente, de ressentimento extremo.

No século XXI, transplantes, plásticas, órgãos artificiais, clonagens e outras maravilhas multiplicam tanto as intervenções no corpo humano quanto as trocas entre corpos vivos e mortos. A lógica dos hospitais e laboratórios, com todo o seu aparato absurdamente dispendioso, se espalha pela sociedade, informando e formando outros mecanismos e aparelhos de controle e de intervenção do corpo humano.

Como diz o comercial de um plano de saúde, estamos próximos de controlar, "definitivamente", a dor e o sofrimento? Ou a ânsia cartesiana de duvidar metodicamente de tudo - para tentar acabar, paradoxalmente, com todas as dúvidas - nos estaria deixando mais próximos de uma espécie reluzente de barbárie?

A resposta da ficção soa, muitas vezes, apocalíptica. Mas o Dr. Frankenstein realizou algumas experiências nos campos nazistas de concentração, enquanto o Grande Irmão de Orwell se tornou, o que talvez seja ainda mais assustador, um programa mundial de entretenimento televisivo. Parece caber à nossa reflexão acadêmica alternativas menos dramáticas, menos explosivas - se possível.

Foram convidados, para elaborar suas reflexões sobre esse tema, três pesquisadores: Rainer Guldin, da Università della Svizzera Italiana, de Lugano, Suíça; Paulo Sérgio Nolasco dos Santos, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; e Gustavo Bernardo Krause, do Instituto de Letras da UERJ.

Rainer Guldin, cuja língua materna é o alemão, como bom suíço pensa e escreve em pelo menos quatro idiomas. Escreveu em inglês o presente texto, especialmente para a Revista Physis. Em 2001, esteve na UERJ, ministrando um curso, no Doutorado em Literatura Comparada, sobre a filosofia da tradução. Ele nos traz o tema da fragmentação do corpo humano a partir da Europa, oferecendo-nos, além da sua reflexão, indicações bibliográficas importantes. A partir das reflexões contemporâneas que tratam o corpo como um texto ou um discurso, passando por Mikhail Bakhtin, Stefanie Wenner e Jacques Lacan, Guldin retorna a Empedocles e Plutarco para discutir os aspectos antropológicos e filosóficos, principalmente, das concepções que se vêm construindo sobre o corpo.

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos, a partir de bela epígrafe de Manoel de Barros - "com pedaços de mim eu monto um ser atônito" -, aproveita a circunstância de o Estado do Mato Grosso do Sul ser uma unidade nova na federação para discutir a constituição da sua identidade a partir da sua representação em textos diversos da literatura e da crítica cultural. O aporte bibliográfico que ele nos oferece é o dos Estudos Culturais em perspectiva decisivamente crítica, mostrando como a circulação dos signos culturais se dá enquanto agenciamento discursivo que ora reflete o objeto ora o mascara, uma vez que se refere a uma identidade desde o princípio esgarçada.

Gustavo Bernardo Krause, a partir do corpo despedaçado do personagem Joe, do livro e do filme Johnny got his gun, de Dalton Trumbo, estuda a fragmentação da História e da Ciência na Pós-História. O conceito de Pós-História, por sua vez, formulado por Vilém Flusser, entende que Auschwitz e Hiroshima, longe de serem acidentes de percurso da racionalidade ocidental, revelaram-se suas conseqüências lógicas e instituíram crise de representação tão intensa que alterou a noção de progresso e a identidade humana.

Como se vê, a criatura do Dr. Frankenstein, além de ter sido "construída" com pedaços de corpos mortos, mostra muitas faces - mas todas solitárias e ressentidas. Frankenstein é discurso, diz Guldin; Frankenstein é um ser atônito no interior de um país igualmente atônito, aponta Nolasco; Frankenstein, enfim, como o lemos, é o coronel-médico que mantém vivo, para suas experiências, um homem mutilado por uma destrutividade reforçada por aquela cientificidade.

G. B.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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