Acessibilidade / Reportar erro

O Instituto de Medicina Social e a luta pela reforma sanitária: contribuição à história do SUS

The Institute of Social Medicine and the health reform struggle: a contribution to the history of the Unified National Health System in Brazil

Resumos

O autor estuda o processo da reforma sanitária brasileira e suas relações com a produção de conhecimentos que influenciaram a aprovação do Sistema Único de Saúde, na Constituinte de 1988, e sua implementação na década de 90. O Movimento Sanitário incorporou conhecimentos desenvolvidos por pesquisadores de Saúde Coletiva e orientou práticas técnicas que serviram de base para a organização do SUS. O processo em curso na década de 90' resultou em novos conceitos relativos a Estado e Mercado, no campo da saúde. Foram configuradas novas questões que deverão influenciar a agenda de pesquisa em Saúde Coletiva, dando conta dos temas da eqüidade, da qualidade em saúde e da democratização do sistema brasileiro de saúde.

Reforma sanitária; eqüidade; qualidade em saúde; Sistema Único de Saúde; Estado e Mercado; pesquisa em saúde coletiva; medicina social


The author studies the Brazilian health reform process and its relationship to the production of knowledge that influenced the approval of the Unified National Health System (SUS) by the 1988 Brazilian Constitutional Congress and the System's implementation in the 1990s. The Health Movement incorporated knowledge developed by collective health researchers and oriented technical practices that served as the basis for organization of the SUS. The process under way in the 1990s led to new concepts of the state and market in the field of health. New questions were formulated that are expected to impact the collective health research agenda, dealing with the issues of equity, quality in health, and the democratization of the National Health System.

Health reform; equity; quality in health; Unified National Health System; state and market; collective health research; social medicine


TEMAS LIVRES

O Instituto de Medicina Social e a luta pela reforma sanitária: contribuição à história do SUS1 1 Este artigo foi elaborado para servir de documento-base numa palestra do autor, por ocasião dos 30 anos do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, no Instituto de Medicina Social da UERJ, pronunciada em 12 de agosto de 2004.

The Institute of Social Medicine and the health reform struggle: a contribution to the history of the Unified National Health System in Brazil

Hésio Cordeiro2 2 Diretor do curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá; ex-reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aposentado em 1996 como professor adjunto do IMS/UERJ. É Doutor em Medicina, área de concentração Medicina Preventiva, pela Universidade de São Paulo (USP), 1982. E-mail: hesio@estacio.br

RESUMO

O autor estuda o processo da reforma sanitária brasileira e suas relações com a produção de conhecimentos que influenciaram a aprovação do Sistema Único de Saúde, na Constituinte de 1988, e sua implementação na década de 90. O Movimento Sanitário incorporou conhecimentos desenvolvidos por pesquisadores de Saúde Coletiva e orientou práticas técnicas que serviram de base para a organização do SUS. O processo em curso na década de 90' resultou em novos conceitos relativos a Estado e Mercado, no campo da saúde. Foram configuradas novas questões que deverão influenciar a agenda de pesquisa em Saúde Coletiva, dando conta dos temas da eqüidade, da qualidade em saúde e da democratização do sistema brasileiro de saúde.

Palavras-chave: Reforma sanitária; eqüidade; qualidade em saúde; Sistema Único de Saúde; Estado e Mercado; pesquisa em saúde coletiva; medicina social.

ABSTRACT

The author studies the Brazilian health reform process and its relationship to the production of knowledge that influenced the approval of the Unified National Health System (SUS) by the 1988 Brazilian Constitutional Congress and the System's implementation in the 1990s. The Health Movement incorporated knowledge developed by collective health researchers and oriented technical practices that served as the basis for organization of the SUS. The process under way in the 1990s led to new concepts of the state and market in the field of health. New questions were formulated that are expected to impact the collective health research agenda, dealing with the issues of equity, quality in health, and the democratization of the National Health System.

Key words: Health reform; equity; quality in health; Unified National Health System; state and market; collective health research; social medicine.

O teórico está contido na prática.

A vontade já traz o teórico nela.

Hegel

1. Os Movimentos de Resistência

Sem a pretensão de querer fazer uma história e análise exaustivas do processo não linear de construção do Sistema Único de Saúde, vale a pena situar o papel do Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ, na confluência de vetores de forças que tiveram relevância na Reforma Sanitária.

Desde suas origens, no inicio da década de 70, foi explicitado que o campo denominado "Medicina Social" diferenciava o que, na época, se denominava Higiene (denominação da antiga unidade universitária) ou Saúde Pública, com a notável tradição dos sanitaristas, desde a Fundação Serviço Especial de Saúde Pública, em meados dos anos 40. A busca de alternativas que contemplassem uma articulação entre as ciências sociais, a Epidemiologia com ênfase na determinação social das doenças e as políticas de saúde tinha o mérito de buscar a superação entre os orientações funcionalistas das ciências do comportamento, as visões tecnocráticas de determinadas correntes do planejamento e da administração de saúde ou a determinação das doenças, como o resultado multivariável e anistórico de fatores biopsicossociais.

A partir da definição da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), do apoio da Fundação Kellogg e da Organização Panamericana de Saúde (OPS), mobilizaram-se as inteligências audazes de José Pelúcio Ferreira, Fabio Celso de Macedo Soares, Mario Chaves, Juan César Garcia, José Roberto Ferreira, Nelson Luis de Araújo Moraes e Carlos Gentile de Melo, além de um punhado de jovens professores-alunos, alguns retornando de jornadas na América Latina ou na Europa, outros se associando para desenvolver uma aliança entre as novas teorias da saúde e a praxis reformista do sistema de saúde.

Desde o início, o projeto do IMS, inspirado na teimosia e obstinação do prof. Américo Piquet Carneiro, pretendia reformar a teoria, sem se alijar da prática. O trabalho intelectual não se dissociaria das ações técnicas ou políticas.

Um conjunto de temas foi confluindo para linhas de pesquisa, nem sempre com finalidades teleológicas bem explícitas, pois os objetos foram demarcados pelo processos contraditórios do saber e do poder. Temas como instituições de saúde, ordem médica e norma familiar, processos normativos, práticas do saber popular e nova configuração das empresas médicas foram pavimentando os outros campos teóricos a serem desbravados. Novos interlocutores apontavam para os estudos socioeconômicos em saúde e para os estudos epidemiológicos e populacionais no âmbito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com Sergio Arouca e outros tantos pesquisadores, não sem um certo grau de disfarçada competição. A utopia de uma interdisciplinaridade que se traduziria em um trabalho coletivo, que resultasse na construção de diferentes paradigmas em medicina social, levaram a Rosen, Virchow, Jules Guérin, Willian Petty, Graunt, percorrendo depois Ganguillemn, Michel Foucault e Ivan Illich. No turbilhão de autores, discutidos no fim da tarde à beira de alguma birosca da moda, iam sendo urdidas idéias, projetos, soluções nem sempre exeqüíveis.

Os anos 70, mais especificamente 1974, colocaram em questão a organização do Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social (SINPAS) no Governo Geisel, que iniciou um processo de expansão da cobertura previdenciária. INAMPS, INPS, IAPAS, LBA, FUNABEM, DATAPREV são siglas das políticas sociais desse período. É de 24 de outubro de 1974 o protocolo firmado entre o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Previdência e Assistência (MPAS), que vai gerar o Convênio MEC-MPAS, estabelecendo novas bases para a relação entre Hospitais Universitários e a Previdência Social (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1985). A Lei nº 6.229, de 17 de julho de 1975, criou o Sistema Nacional de Saúde, inspirada numa visão sistêmica, ordenando e consolidando as mesmas funções, duplicações e superposições, que já mobilizavam o pensamento crítico das políticas de saúde.

A VI Conferência Nacional de Saúde buscou legitimar a concepção sistêmica na saúde, evitando reconhecer e estabelecer prioridades. O conflito fez-se presente durante a própria Conferência, na qual documento alternativo produzido com a colaboração de professores do Instituto de Medicina Social foi recolhido pelo Ministério da Saúde — que impediu sua divulgação —, pois só deveria existir um único documento, isto é, o do próprio ministério.

Da confluência entre a Academia e a praxis, entre as críticas ao complexo médico-empresarial e o exercício de propostas de descentralização e municipalização, brotavam rabiscos de alternativas que, muitas vezes, se traduziam em novos cursos, seminários, documentos, reuniões no Sindicato dos Médicos ou no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Um momento estratégico para a organização da Reforma Sanitária foi o 1º Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, com debate e aprovação do documento a Questão Democrática na Área da Saúde, apresentado pela diretoria nacional do CEBES, com base em trabalho elaborado por pesquisadores do Instituto de Medicina Social da UERJ (Hésio Cordeiro, José Luis Fiori e Reinaldo Guimarães), acrescido das principais reivindicações do setor, transformando-se em documento-base para as conclusões finais do encontro (CEBES, 1980).

Nesse documento fica patente a crítica ao regime autoritário e suas conseqüências na saúde:

"Política que substitui a voz da população pela sabedoria dos tecnocratas e pelas pressões dos diversos setores empresariais; política de saúde que acompanha em seu traçado as linhas gerais do posicionamento sócio-econômico do governo — privatizante, empresaria e concentrada em renda, marginalizando cerca de 70% da população dos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico (...) Política de saúde, enfim, que esquece as necessidades reais da população e se norteia exclusivamente pelos interesses da minoria constituída e confirmada pelos donos das empresas médicas e gestores da indústria da saúde em geral" (CEBES, 1980, p. 47).

O documento, aprovado no 1º Simpósio de Política Nacional de Saúde, em outubro de 1979, estabelece alguns princípios que seriam adotados pela Reforma Sanitária: 1) o direito à saúde como direito universal e inalienável; 2) o caráter intersetorial dos determinantes da saúde; 3) o papel do Estado no sentido de regular "para obstaculizar os efeitos mais nocivos das leis do mercado na área da saúde (CEBES, 1980); 4) descentralização, regionalização e hierarquização; 5) participação popular e controle democrático. Entre as medidas iniciais, destaca-se "criar o Sistema Único de Saúde". A proposta mencionava que o ponto fundamental era

"[...] negador de uma solução meramente administrativa ou 'estatizante'. Evita-se (...) uma participação de tipo centralizador tão cara ao espírito corporativo e tão apta a manipulações que cooptam um Estado fortemente centralizado e autoritário, como tem sido tradicionalmente o Estado brasileiro" (CEBES, 1980, p. 47).

Propunha-se uma rede nacional, regionalizada e descentralizada, com unidades básicas de caráter público para aplicação de medidas preventivas e atendimento de emergência, incluindo acidentes de trabalho, com médicos funcionários dos sistemas únicos e pessoal auxiliar, que deveria ser fortemente estimulado.

No mesmo número da Revista Saúde em Debate, outros documentos e artigos são bem ilustrativos da capacidade de articulação do que viria a se manifestar como Reforma Sanitária. O Núcleo do CEBES em Campinas publicava um documento sobre atenção primária à saúde. E Sonia Fleury Teixeira divulgava um trabalho, baseado na pesquisa realizada na Fiocruz, relativo ao complexo previdenciário da assistência médica (TEIXEIRA, 1980, p. 21-36).

A década de 80 seria demarcada pela crise fiscal do sistema previdenciário, pois a extensão do benefícios ocorrida no período anterior não havia sido contemplada pela definição legal de novos mecanismos de financiamento que viabilizassem o real acesso aos benefícios, principalmente das populações rurais e dos novos contingentes de assalariados urbanos (autônomos, empregados domésticos e setores informais). O debate sobre as medidas saneadoras envolviam a extinção da assistência médica do escopo dos benefícios previdenciários, com sua substituição pelo seguro saúde privado no molde chileno — o pagamento da assistência médica pelo segurado de acordo com faixas de renda, a eliminação de determinados benefícios, incluindo a aposentadoria por tempo de serviço com 35 anos de idade, entre outros.

O leque de alternativas para modificar a situação da crise na previdência social constituía-se de propostas que variavam desde modelos neoliberais privatizantes até maior peso da contribuição das empresas a partir do lucro ou do faturamento, passando por abolir privilégios do setor bancário.

Como ocorrera na história da previdência social, as soluções negociadas não apontaram para uma ou outra direção, apenas agravaram a penúria dos beneficiários, não alterando de forma estrutural as bases do financiamento previdenciário. A solução negociada não definiu uma nítida política de privatização dos serviços de saúde, nem propôs, com decisão, a hegemonia do serviço público.

Em que pesem os argumentos de que parte da crise era devida ao descontrole dos gastos com assistência médico-hospitalar, observava-se, desde 1980, a queda dos gastos médico-hospitalares. As despesas do INAMPS que, em 1976, corresponderam a 36% do orçamento da previdência, em 1982 atingiram apenas 20% do total. Os cortes mais imediatos, nas conjunturas de crise, ocorriam na assistência médica, em virtude de dispositivos legais, que impediam a eliminação de outros benefícios. A crise gerou procedimentos para racionalização e melhor controle dos pagamentos à rede contratada privada, como o desenvolvimento do Sistema de Assistência Médico-Hopitalar da Previdência Social (SAMHPS), com as autorizações de internação hospitalar, instrumento gerencial e de pagamento, cujos valores são definidos pelos valores médicos dos procedimentos definidos a priori, superando-se o sistema anterior. Baseada em atos médicos realizados em um dado paciente, gerava-se uma fatura — a Guia de Internação Hospitalar (GIH).

Passaram-se alguns anos de debate entre as entidades médicas e os hospitais que defendiam essa forma de pagamento, contrapondo-se ao que Carlos Gentile de Melo denominara de incontrolável fator de corrupção. As medidas racionalizadoras ficaram conhecidas como o Plano do CONASP, que adotou parâmetros de cobertura e concentração para a assistência hospitalar, ambulatorial, e procedimentos complementares de diagnóstico e tratamento, que passaram a ser adotados para a programação anual e para a análise da necessidade de expansão de serviços.

2. A Busca de Alternativas para a Democratização da Saúde

Alguns anos mais tarde, em dezembro de 1984, realizou-se novo Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, promovido pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, marcado pela tentativa de estabelecer um consenso entre o movimento sanitário e as entidades de representação dos empresários da saúde. Só houve acordo em um ponto: era necessário ampliar as dotações orçamentárias para a saúde.

Em janeiro de 1985, realizava-se a Reunião de Montes Claros, da qual participaram lideranças, que se apresentavam para debater propostas para o governo, o qual deveria encerrar o ciclo autoritário de presidentes da República com a candidatura Tancredo Neves. A Carta de Montes Claros, liderada por José de Saraiva Felipe, secretário municipal de Saúde à época, reafirmava os princípios e postulados de 1979, do simpósio realizado na Câmara dos Deputados. A partir de Montes Claros, sucedem-se reuniões para aprofundar e detalhar a futura operacionalização da proposta para a denominada Nova República, principalmente quanto ao processo de unificação Ministério da Saúde e INAMPS, e a passagem da Central de Medicamentos da Previdência Social para a Saúde.

Com a posse de José Sarney, em 15 de março de 1985, na Presidência da República, devido à doença e ao trágico falecimento de Tancredo Neves, assumiu o Ministério da Previdência e Assistência Social o ministro Waldir Pires, pessoa de notável trajetória política. O ministro manifestou, desde o início de sua gestão, grande sensibilidade para as propostas de reforma da saúde e do sistema de seguridade social. "A Previdência é viável" foi seu lema desde sempre. Na Saúde, José Saraiva Felipe foi nomeado para a Secretaria de Assistência Médica do MPAS e Henri Jouval Jr. assumia interinamente a presidência do INAMPS, até que se concluísse o processo de decisão a respeito do novo presidente do INAMPS.

O processo foi demorado, sendo concluído apenas em 22 de maio de 1985. Nesse intervalo, Waldir Pires colocou em prática ações de combate às fraudes, a proibição de práticas clientelísticas do Tratamento Fora de Domicílio (TFDE), que haviam implicado, no ano anterior, dispêndio do equivalente a 15% dos repasses para a totalidade das secretarias de Saúde, no programa das Ações Integradas de Saúde (AIS). Foi de Waldir Pires a decisão de iniciar a universalização da clientela do sistema de saúde, com a incorporação dos hospitais universitários ao atendimento de qualquer cidadão ou cidadã, sem exigência de vínculo ao sistema previdenciário (CORDEIRO, 1991, p. 43). A posse de Hesio Cordeiro na presidência do INAMPS e o conseqüente licenciamento das tarefas docentes e de pesquisa do Instituto de Medicina Social ocorreram em 22 de maio de 1985 (CORDEIRO, 1985).

As propostas gerenciais prioritárias da nova administração foram: 1) gestão colegiada, descentralizada e democrática, com delegação de maior autonomia em nível estadual e da efetiva participação das instâncias representativas da população; 2) elaboração de um orçamento que refletisse uma programação integrada e descentralizada, que viabilizasse uma cobertura assistencial planejada de acordo com as condições de saúde da população; 3) recuperação dos serviços públicos com privilégios de recursos, tanto em nível dos investimentos, quanto do custeio da rede; 4) melhoria da qualidade técnica da prestação dos serviços, buscando-se o controle da qualidade assistencial e a resolubilidade adequada a cada nível de atenção; e 5) uma contribuição efetiva na redistribuição interna da renda nacional, com desconcentração dos recursos destinados às regiões Sul e Sudeste (CORDEIRO, 1991 p. 63). A prioridade central foi a universalização do acesso aos serviços de saúde, iniciando-se a redução das desigualdades regionais e entre as populações urbana e rural. As Ações Integradas de Saúde (AIS) foram definidas como a estratégia de mudança para o setor.

No âmbito da Ciência e Tecnologia em Saúde, a influência das atividades do IMS foram marcantes, dado que, no ano anterior, fora realizado na UERJ um Seminário Internacional de Tecnologia em Saúde, co-patrocinado pela Organização Panamericana de Saúde, que enfatizara a avaliação tecnológica e a formação de uma rede de instituições acadêmicas e de serviços de saúde com tal propósito. No INAMPS, foi criada a Coordenadoria de Ciência e Tecnologia, com Roberto Magalhães e Ana Tereza da Silva Pereira, sendo que esta havia concluído o Mestrado em Medicina Social. Num projeto conjunto com a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), presidida por Fábio Celso de Macedo Soares e com Reinaldo Guimarães (IMS/UERJ), recém-nomeado para uma coordenadoria na FINEP, realizou-se a revisão do projeto de aquisição de equipamentos radiológicos e de imagem de convênio anteriormente firmado com a França, sendo estabelecido convênio de cooperação com a FINEP, COPPE/UFRJ e entidades representativas do setor privado produtor de equipamentos médicos (ABIMO e outras), para normatizar o uso, a aquisição e a manutenção de equipamentos e insumos médico-hospitalares.

Definiu-se uma política de implantação de centrais regionais de manutenção de equipamentos médico-hospitalares, buscando superar a situação, que evidenciava o fato de 40% dos equipamentos instalados nos hospitais e ambulatórios estarem fora de uso por falta de manutenção adequada. As ações não se restringiram à alopatia e ao âmbito das modernas Ciências Biomédicas: foram implantadas 15 unidades de homeopatia, iniciando-se a implantação da acupuntura, por médicos capacitados, apoiando-se projetos de fitoterapia, além de iniciativas para cuidados prioritários para os idosos. Obtiveram apoio alguns projetos de divulgação científica e de pesquisa no âmbito da Fundação Oswaldo Cruz/Escola Nacional de Saúde Pública e de outras instituições. Um inovador programa de capacitação e educação permanente foi iniciado, envolvendo os núcleos de saúde coletiva (NESC), que estavam em criação, além do suporte dado a departamentos de medicina preventiva e social.

Os passos decisivos para que se elaborassem os princípios e a prática da Reforma Sanitária foram dados na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília entre 17 e 21 de março de 1986, após conferências preparatórias efetuadas em todos os estados da Federação. Sob a presidência de Antônio Sergio da Silva Arouca (FIOCRUZ), a vice-presidência de Francisco Xavier Beduski (superintendente da SUCAM) e tendo como relator Guilherme Rodrigues da Silva (USP), debateram-se como temas: Saúde como Direito, Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e Financiamento do Setor. Participaram da Conferência mil delegados com direito a voto e cerca de 3 mil participantes, que constituíram 135 grupos de trabalho. O relatório final consagrou teses de debate acadêmico e político:

"[...] Em primeiro lugar, ficou evidente que as modificações necessárias ao setor saúde transcendem os limites de uma reforma administrativa e financeira, exigindo-se uma reformulação mais profunda, ampliando-se o próprio conceito de saúde e sua correspondente ação institucional, revendo-se a legislação no que diz respeito à promoção, proteção e recuperação da saúde, constituindo-se no que se costuma chamar de reforma sanitária" (BRASIL, 1986, p. 2-18).

A questão que talvez tenha mobilizado os participantes e delegados foi a natureza do novo sistema nacional de saúde: se estatizado ou não, de forma imediata ou progressiva. A proposta da estatização imediata foi recusada, havendo consenso sobre a necessidade de fortalecimento e expansão do setor público. Em qualquer situação, porém, ficou claro que a participação do setor privado deveria se dar sob o caráter de serviço público "concedido", sendo o contrato regido sob as normas do direito público. Em relação a esse tema, foi impressão da comissão de redação que a proposição" estatização da indústria farmacêutica", aprovada na assembléia final, conflita com esse posicionamento geral, por não ter sido objeto de uma discussão mais aprofundada.

Outro tema bastante polêmico foi relativo à separação da "Saúde" da "Previdência". O entendimento majoritário foi o de que a previdência social deveria se encarregar de ações próprias do "seguro social" (pensões, aposentadoria e demais benefícios) e a saúde estaria entregue em nível federal a um único órgão com características novas. O setor seria financiado por várias receitas, oriundas de impostos gerais e incidentes sobre produtos e atividades nocivas à saúde. Até que se formasse esse orçamento da saúde, a previdência social deveria destinar os recursos despendidos com o INAMPS para o novo órgão, retraindo-os paulativamente, na medida do crescimento de novas fontes.

A VIII Conferência Nacional de Saúde aprovava essa conquista social assegurada em nova Constituição, e para tanto seria necessário:

"garantir uma Assembléia Nacional Constituinte livre, soberana, democrática, popular e exclusiva; assegurar na Constituição, a todas as pessoas, condições fundamentais de uma existência mais digna, protegendo o acesso ao emprego, à educação, alimentação, remuneração justa e a propriedade da terra aos que a trabalham, assim como o direito à organização e o direito de greve". Aprovou-se a criação de um sistema único de saúde que efetivamente representasse a construção de um novo arcabouço institucional, separando-se totalmente a saúde da previdência e incorporando-os (possivelmente) ao orçamento global da União (BRASIL, 1986, p. 2-18).

Na própria Conferência, já se vislumbravam barreiras e dificuldades objetivas e subjetivas para a Reforma Sanitária. Foram aprovadas moções de que as AIS não deveriam adiar a implantação do SUS; o financiamento e a discussão da operacionalização ainda deveriam ser mais aprofundados, embora se recomendasse a constituição de um orçamento social que englobasse os recursos destinados às políticas sociais nos diversos ministérios e os dos diversos fundos sociais, cabendo, contudo, a organização de fundos únicos de saúde, nos três níveis da Federação. Propôs-se a criação de um grupo executivo da Reforma Sanitária, convocado pelo Ministério da Saúde — a Comissão Nacional da Reforma Sanitária.

Ao mesmo tempo, iniciou-se uma estratégia-ponte para a implantação do SUS, com a iniciativa, por sinal, questionada por segmentos do Movimento Sanitário e do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), de que o INAMPS transferiria seus hospitais, ambulatórios e superintendências regionais para o âmbito dos estados (secretarias estaduais de Saúde) e municípios (secretarias municipais de Saúde). O processo levava adiante as recomendações da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), para enfrentar o risco de um relativo imobilismo do Ministério da Saúde, que não abria seu orçamento aplicado nos estados e nos seus diversos programas, por conta da tradição verticalista da instituição.

Os debates e recomendações que se seguiram à VIII CNS contribuíram para três níveis de ação política e técnica da Reforma Sanitária: a luta pelo texto da saúde no capítulo da ordem social da Nova Constituição, os movimentos táticos e a mobilização da sociedade para a ampliação das bases sociais do Movimento Sanitário.

Paim defende a proposta de uma estratégia-ponte para a reorientação das políticas de saúde e para a reorganização dos serviços, enquanto se desenvolvessem trabalhos da Constituinte e da elaboração da legislação ordinária para o setor (PAIM, 1990). O argumento primordial era o da necessidade de conquistar apoios em favor de mudanças, a partir de ações administrativas e institucionais, que representassem melhorias objetivas na organização dos serviços e no atendimento à população. As estratégia intermediárias expressaram-se, até 1986, pelas Ações Integradas de Saúde e, a partir de 1987, pela substituição das AIS pelos sistemas descentralizados e unificados de saúde.

Ambos os projetos viriam a ser criticados pelos segmentos técnico-burocráticos que, desde 1985, defendiam a "unificação pelo alto" ou seja, a passagem imediata do INAMPS para o Ministério da Saúde. De acordo com PAIM (1990) esses segmentos teimavam em desconhecer, desqualificar ou subestimar a relevância da estratégia das AIS. Isto se refletiu no relatório final da VIII CNS, que incluía a advertência de que em nenhum momento a existência das AIS deveria ser utilizada como justificativa para protelar a implantação do Sistema Único de Saúde. Logo após, segundo o relator da Conferência, o Ministério da Saúde retomou sua política de campanhas, vertical e desintegrada, adotando medidas episódicas para combate à epidemia de dengue, que ameaçava várias capitais e cidades de médio porte do Sudeste e Nordeste.

As AIS foram expandidas, pela direção-geral do INAMPS, para cerca de 2.500 municípios, correspondente à área geográfica onde viviam cerca de 90% da população do país. Porém, a relação entre os gestores de saúde e prestadores de serviços se realizava pela compra e venda de serviços, esgotando o modelo institucional da AIS. Ao mesmo tempo em que se instalava a Comissão Nacional da Reforma Sanitária, iniciou-se a implantação do Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS), através de convênios com secretarias estaduais de Saúde, e destas com as municipais, estabelecendo-se um novo campo de debates acadêmico e político, que viria demarcar os passos e as controvérsias da Reforma Sanitária, sob os riscos da "inampização da saúde".

Os recursos definidos para cada estado pelo MPAS, em 1987, foram baseados na Programação Orçamentária Integrada (POI), elaborada durante o segundo semestre de 1986 pela Secretaria de Planejamento do INAMPS, e aprovada na Comissão Interministerial de Planejamento (CIPLAN). De forma integrada, os recursos de investimento e de custeio deveriam ser programados com metas aprovadas na base do sistema de saúde.

Ainda que os compromissos com a municipalização variassem de estado para estado, a maior dificuldade se encontrava na participação de órgãos do Ministério da Saúde para a alocação de seus recursos. Uma exposição de motivos realizada pelos ministros Rafael de Almeida Magalhães (MPAS) e Roberto Santos (MS) traçou as diretrizes para o SUDS (Exposição de Motivos nº 31, de 10/7/1987), somente institucionalizados pelo Decreto Presidencial nº 94.657, de 20/7/1989, portanto, após a aprovação e promulgação da Constituinte.

3. A Saúde na Nova Constituição

A implantação do Sistema Único de Saúde dependia da consolidação de seus fundamentos na nova Constituição Federal, aprovada e promulgada a 5 de outubro de 1988. Os princípios da saúde como direito de cidadania e incorporada ao conceito de seguridade social foram debatidos num processo do qual participaram ativamente pesquisadores, líderes sindicais, lideranças políticas, administradores de saúde. Controvérsias ainda hoje são objeto de indagações:

1) o conceito de seguridade social, envolvendo ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social. Ao incluir a saúde, superou-se o conceito tradicional de seguro social, que compreende apenas os direitos dos contribuintes diretos, enquanto a seguridade inclui contribuintes e não-contribuintes, estes cobertos pelas receitas tributárias e contribuições sociais de toda a sociedade;

2) o conceito de universalidade de cobertura, análogo ao reconhecimento do direito de todos à saúde. Alguns contrapõem o enfoque da direção dos recursos aos grupos sociais mais vulneráveis;

3) o princípio de que é dever do Estado garantir a saúde, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco e outros agravos que explicitam o reconhecimento da determinação social do processo saúde-doença. Os segmentos mais conservadores questionaram a abrangência do conceito. Contudo, não conseguiram eliminá-lo do texto constitucional;

4) as relações com o setor privado foram objeto de negociações conflitivas desde o início da Constituinte, em virtude de terem sido propostos: a relevância pública das ações e serviços de saúde, o caráter complementar da participação do setor privado no SUDS, a vedação da destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas sem fins lucrativos, assim como a participação de empresas e capitais estrangeiros na assistência à saúde, "salvo nos casos previstos em lei"; foi vedada, também, a comercialização da coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, tecidos e órgãos;

5) descentralização do SUS, com direção única em cada nível de governo, sem referência à municipalização; 6) o financiamento seria em parte realizado pela seguridade social, mediante recursos provenientes de contribuições sociais e de recursos dos orçamentos da União, estados e municípios, fixando-se um percentual de 30% do orçamento da seguridade, até que se aprovasse a Lei Orgânica da Saúde.

3.1. A Lei Orgânica da Saúde: novas lutas e novas alianças

Foi uma conjuntura que se caracterizou por recuos, composições entre as forças de pressão entre diversas correntes ideológicas, com desafios renovados à práxis do movimento sanitário, já fazendo prever os pontos fundamentais da teoria e prática do SUS.

A Comissão de Seguridade Social, Saúde e Família, da Câmara dos Deputados, foi o campo de debate dos projetos da Lei Orgânica da Saúde. Mais uma vez, os Ministérios da Saúde e da Previdência entraram em rota de colisão com anteprojetos distintos, encaminhados à Presidência da República de forma independente. As entidades de saúde e o Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília (UnB) elaboraram uma proposta coerente com os objetivos esperados da reforma sanitária, com o apoio da OPS / OMS e de instituições e pesquisadores em Saúde Coletiva. Os representantes das entidades privadas não chegaram a apresentar uma proposta completa da nova lei, mas sabiam nitidamente o que lhes interessava e que pontos poderiam ser negociados. A representação parlamentar foi, aos poucos, se alinhando aos projetos em debate. Na presidência da Comissão Parlamentar estava o deputado federal Raimundo Bezerra (PMDB-Ce) e, como relator, o deputado federal Geraldo Alkmin Fialho (PSDB-SP). O Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASSEMS) e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) eram os interlocutores dos setores públicos no cenário da saúde.

Uma vez mais, tal como ocorrera no passado, os pontos controversos da lei foram mediados pela presidência da República ou levados para novas negociações. O Ministério da Saúde, sob a gestão de Seiko Yzusuki, fizera novas tentativas para transferir o INAMPS para o Ministério da Saúde e extinguir os seus escritórios regionais por decreto presidencial, com base em consultas a juristas conduzidas pelo secretário-geral do Ministério da Saúde, Edmur Pastorello. Uma vez mais, as não-decisões do presidente Sarney viriam adiar a transferência, somente levada a cabo no início de 1990, às vésperas da posse do presidente Fernando Collor de Melo.

Os trabalhos da Comissão da Câmara dos Deputados sofreram interrupções e adiamentos da votação da legislação complementar da seguridade social. Refletiam uma tática dos parlamentares empenhados na campanha de Collor de Melo, para adiar a definição das leis orgânicas da saúde, dos benefícios previdenciários e da assistência social, o que representava adiar a prática do conceito de seguridade social.. Os pontos polêmicos da Lei Orgânica da Saúde foram:

1) a transferência do INAMPS para o MS e a extinção dos escritórios regionais. A transferência constava da Lei aprovada, sem extinguir os escritórios regionais;

2) a participação e controle sociais, com caráter deliberativo, foram vetados por Collor de Melo e reapresentados em novo projeto, negociado pelo Ministro da Saúde Alceni Guerra, que estabelecia dispositivos mais tênues;

3) as relações com o setor privado re-estabeleceram antigas polêmicas sobre o caráter complementar em relação ao SUS, dado que a Lei definira que as normas deveriam ser baseadas no direito público e que a saúde seria livre à iniciativa privada;

4) a descentralização era consensual na aparência: o setor privado pretendia que os contratos e convênios fossem firmados com o órgão central de gestão do SUS, nos moldes anteriores às AIS, enquanto os reformistas propunham que estes atos deveriam caber a estados e municípios; os técnicos do MS defendiam a preservação das funções de execução direta do MS como "centros de referência especializados", criando várias situações excepcionais; o nível estadual não se empenhava na clara definição das competências municipais, porém logrou-se manter o princípio geral da descentralização;

5) o Fundo Nacional de Saúde foi criado, mas sem estabelecer normas para os fundos estaduais e municipais, nem definir percentuais para a vinculação orçamentária; a transferência automática de recursos para estados e municípios foi aprovada na Câmara, vetada pelo presidente e re-estabelecida no outro projeto negociado, estabelecendo a obrigatoriedade da existência de fundos estaduais e municipais de saúde;

6) quanto aos recursos humanos, foi vetada pelo presidente da República a obrigatoriedade de planos de carreira em cada nível de governo, restabelecido após a negociação do novo projeto de lei, definindo que, em dois anos, os estados e municípios deveriam implementar planos de carreira, cargos e salários (CORDEIRO, 1991).

3.2. A regulação do SUS: Estado e Mercado nos anos 90

A implantação do Sistema Único de Saúde colocou novos desafios para a academia e os pesquisadores em Saúde Coletiva. Apresentaram-se novas questões, além dos temas político-ideológicos da reforma sanitária. Quais os mecanismos regulatórios que deveriam ser desenvolvidos e avaliados? Como desenvolver novas estratégias para o aprimoramento da qualidade dos cuidados e do impacto na saúde da população? Como estabelecer a coerência entre eqüidade e oferta de ações que incorporem os avanços da ciência e tecnologia? Qual o papel dos planos de seguros privados de saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no contexto da reforma sanitária e do SUS? Como formar e capacitar o pessoal de saúde para as necessidades do país e da sociedade? Eis aí um rol não exaustivo de itens para as agendas de pesquisa da saúde coletiva nas universidades.

O projeto de descentralização no período Collor de Melo representou uma estratégia de "municipalização tutelada", com grande poder normativo e de alocação de recursos pelo Governo Federal, ainda no modelo convenial de transferências financeiras, com critérios pouco transparentes, além do pagamento direto do MS/INAMPS, por procedimentos realizados, com igual tratamento para os serviços públicos e privados: todos seriam igualmente prestadores de serviços ao SUS. Alguns críticos do período identificam, como conseqüência, redução da capacidade de planejar e ordenar os serviços de alta complexidade pelos estados e de prestar cuidados nas regiões onde os municípios não estivessem organizados de forma suficiente para assumir as ações básicas de saúde e garantir a resolubilidade dos serviços.

A maior presença do movimento municipalista da saúde se evidencia no período 1992-1996, com as diretrizes do Grupo Especial de Descentralização do Ministério da Saúde. Em fins de 1992, são estabelecidas as transferências fundo a fundo entre as instâncias gestoras do SUS, mantendo-se, contudo, a dicotomia entre repasses para cuidados ambulatoriais e hospitalares, a partir de tetos orçamentários previamente definidos (LEVCOVITZ et al., 2001). É o período das NOB (normas operacionais básicas), que seguem um "furor normativo", gerando maior complexidade nas portarias, regulamentações e instruções normativas que se sucedem, com infindáveis negociações e pactos entre o Ministério da Saúde e os níveis de gestão.

Com a NOB 01/96, modificaram-se os critérios para alocação de recursos, buscando-se maior eqüidade para a atenção básica de saúde, com a transferência fundo a fundo automática para os municípios habilitados. Estabelece-se um valor per capita referente ao Piso de Atenção Básica (PAB), com uma parte fixa e outra variável, de acordo com a adesão do município à estratégia da Saúde da Família. Colocam-se, nesse momento, novas e antigas questões relativas à formação do pessoal de saúde, o que vai iluminar a agenda de pesquisa com prioridades relacionadas aos métodos, conteúdos programáticos e formas de avaliação e gestão.

A Saúde da Família volta a constituir ponto polêmico a desafiar as "academias". Surgem publicações e pesquisas centradas nas experiências locais e regionais de implantação e avaliação do modelo "estruturante" do SUS, capaz de superar as dicotomias entre prevenção e cura, entre cuidados básicos, promoção e assistência médico-hospitalar. Mantém-se e, até certo ponto, complexifica-se o processo de repasse de recursos carimbados para atendimentos ambulatoriais de média e alta complexidades, hospitalizações, incentivos e programas prioritários, através de convênios para ações verticais. Restitui-se o papel de planejamento para as secretarias estaduais de Saúde, com a implantação da Programação Pactuada Integrada (PPI) como instrumento de negociação entre os gestores do SUS, definindo-se metas, responsabilidades, sistemas de referências e tetos orçamentários.

Mais recentemente, as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS 01/2001 e NOAS 02/2002) estabeleceram normas para a regionalização, incorporação de tecnologias e resolubilidade de serviços de saúde.

De forma compartimentalizada, a Agência Nacional de Saúde Suplementar se propõe ao esforço de regular as operadoras de planos de saúde e estabelecer indicadores de qualidade e de proteção do consumidor e do cidadão. Há um novo interlocutor entre os pesquisadores de saúde coletiva a colocar itens sobre a qualidade, certificação, acreditação de instituições de saúde e utilização dos serviços. O próprio mercado de planos de saúde se inscreve dentro das prioridades de pesquisa para a década iniciada em 2000.

No horizonte dessa década, toma uma nova forma o denominado complexo médico-industrial da saúde (CORDEIRO, 1984), em decorrência das transformações da sociedade, das políticas de saúde e das relações entre Estado e Mercado. As próprias mudanças provocadas pela implantação do SUS e as concepções do federalismo brasileiro estabelecem uma nova agenda de pesquisa. Teoria e prática implicam novas questões. A utopia do SUS e da eqüidade são postas a cada momento, desafiadoramente.

4. Conclusões

A contribuição do IMS e das instituições de ensino e pesquisa em Saúde Coletiva para a produção de conhecimentos, formação de pessoal e exercício de práticas inovadoras voltadas para a qualidade e eqüidades das ações e serviços de saúde deverá ser pautada por temas e problemas tais como:

1) a compatibilizar os princípios constitucionais do SUS e a efetiva realização do direito à saúde com estratégias e ações cuja efetividade, eficácia e eficiência resultem da comprovação de evidências de métodos e critérios validados, inclusive na alocação de recursos;

2) elucidar e exercitar a eqüidade para a produção da saúde e oferta e o acesso aos serviços de saúde, considerando as políticas e as práticas intersetoriais, ou seja, lograr maior articulação entre as políticas públicas econômicas e sociais;

3) superar a dicotomia entre prevenção e cura, a partir de modelos de cuidados de saúde integrais e multiprofissionais, levando em conta que a estratégia da saúde da família é uma das possibilidades, não a exclusiva;

4) comprometer a formação geral dos profissionais da saúde, com a busca contínua e o aperfeiçoamento das competências e habilidades, em processos de educação permanente, orientados por avaliações e evidências científicas;

5) prosseguir nos esforços de aprimoramento da qualidade que fazem parte intrínseca das metodologias de acreditação e de certificação / recertificação em saúde;

6) reconsiderar as normas do SUS à luz das necessidades dos cidadãos e cidadãs, tornando-as ágeis e mais simples para evitar a hipertrofia tecnoburocrática de um Estado cuja relações sociais e técnicas se orientam pelo segredo e pela pouca transparência, além da fragmentação dos interesses dos grupos e classes sociais;

7) pesquisar os instrumentos de gestão compatíveis com maior controle social e participação que tenham significado e sejam compreensíveis para o cidadão;

8) contribuir para a elaboração de uma nova concepção e organização do Estado, que propiciem relações sociais e técnicas inclinadas a conduzir à eqüidade e democratização da saúde;

9) dar contribuição para elaborar um projeto de ciência e tecnologia em saúde, envolvendo a gestão, o uso de novos procedimentos, insumos e métodos baseados em evidências científicas e resultados;

10) comprometer-se com a superação de práticas que contrariem a bioética, sem se prender a valores discordantes com as tendências da ciência moderna.

Em resumo, o que proponho é que os pesquisadores devam pautar-se pelo pressuposto hegeliano de que "na facilidade que o espírito se dá por satisfeito pode-se medir a extensão daquilo que se está perdendo" (HEGEL apud KONDER, 2004, p. 2).

Recebido em: 03/09/2004.

Aprovado em: 17/11/2004.

  • BRASIL. Ministério da Saúde. VIII Conferência Nacional de Saúde. Relatório Final. Brasília: Ministério da Saúde, 1986.
  • CEBES. A questão democrática na saúde. Saúde em Debate, v. 9, p. 47-48, 1980.
  • CORDEIRO, H. O INAMPS na Nova Republica. Rio de Janeiro: MPAS/INAMPS, 22 maio 1985 (mimeo).
  • ________. Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ayuri, 1991.
  • KONDER, L. O cronista entrevista o obscuro Hegel. Jornal do Brasil, Caderno B, p. 2, 10 julho 2004.
  • LEVCOVITZ, E.; LIMA, L. D.; MACHADO, C.V. Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Ciência & Saúde Coletiva, v. 6, n. 2, p. 259-291, 2001.
  • PAIM. J A democratização da saúde e o SUDS o caso da Bahia. Saúde em Debate, v. 27, p. 5-11, 1990.
  • OLIVEIRA, J. A.; TEIXEIRA, S. M. F. (Im)Previdência Social: 60 anos de história da Previdência Social no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 246-248.
  • TEIXEIRA, S. M. F. Evolução e crise de uma política social. Saúde em Debate, v. p. 21-36, 1980.
  • 1
    Este artigo foi elaborado para servir de documento-base numa palestra do autor, por ocasião dos 30 anos do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, no Instituto de Medicina Social da UERJ, pronunciada em 12 de agosto de 2004.
  • 2
    Diretor do curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá; ex-reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aposentado em 1996 como professor adjunto do IMS/UERJ. É Doutor em Medicina, área de concentração Medicina Preventiva, pela Universidade de São Paulo (USP), 1982. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2004

    Histórico

    • Aceito
      17 Nov 2004
    • Recebido
      03 Set 2004
    PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: publicacoes@ims.uerj.br