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O corpo como cultura e a cultura do corpo: uma explosão de significados

RESENHAS E CRÍTICAS BIBLIOGRÁFICAS

O corpo como cultura e a cultura do corpo: uma explosão de significados

Sonia Maria Giacomini1 1 Doutora em Sociologia pelo IUPERJ e professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia e Política, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

GOLDENBERG, Mirian et al. (Org.). Nu & Vestido:

dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca.

Rio de Janeiro: Record, 2002. 411 p.

Intitulada Nu & Vestido, a coletânea de artigos explicita já no título a natureza antropológica da incursão que apresenta ao leitor: o corpo visto como inesgotável fonte de símbolos, que é simultaneamente um patrimônio — provavelmente o primeiro e mais imediatamente sensível de cada ser humano —, mas também locus de produção e expressão de sentido. Os contrastes e diferenciações, como o que opõe o nu e o vestido, não somente se atualizam nas representações do corpo, mas também incidem sobre ele, replicando formas de distinção e/ou oposição postuladas entre natureza e cultura.

Os diferentes artigos têm em comum, como enfatiza a organizadora e autora que assina a apresentação, uma visão do corpo "como um fato social", isto é, como "uma construção cultural e não algo 'natural'" (p. 10). Apresentam também algumas peculiaridades que ultrapassam aquelas anunciadas no texto de apresentação da coletânea, que se referem às abordagens de análise. Uma delas diz respeito ao lugar específico que é conferido ao corpo na análise da cultura, aspecto que, embora anunciado como ponto de convergência no texto introdutório, recebe tratamento diverso nos vários artigos.

Outra variação de enfoque pode ser constatada na atenção ou compromisso com a caracterização do que seria uma "cultura carioca". Assim é que, na apresentação, num esboço de "etnografia do corpo carioca" em que é ressaltada a convivência "aparentemente tranqüila" entre "corpos bronzeados, musculosos, magros, altos" com "outros branquelos com estrias, celulites e barriguinhas indesejáveis", Goldenberg nos fala da diversidade de corpos existente na cidade do Rio de Janeiro, mas de uma diversidade que não parece fornecer obstáculos a que sejam reunidos numa categoria englobante, bem mais ampla: o "corpo carioca".

"Branco, moreno, mulato ou negro, nu e vestido, o corpo carioca provoca uma verdadeira explosão de significados, como queria Malinowski, revelando as especificidades da cultura da 'Cidade Maravilhosa'" (p. 7).

Instaura-se, assim, o corpo, senão como via de acesso ou chave privilegiada para a análise da cultura, ao menos como uma dimensão particularmente significativa do que seria a "cultura carioca". Mas o que explica a centralidade nessa "cultura"? Basicamente através da identificação da figura de Leila Diniz nos anos 60 / 70, que, solteira, com uma "barriga grávida, de biquíni, na praia de Ipanema", como que corporificando o comportamento transgressor, ofereceu "uma imagem concorrente da grávida tradicional, que escondia sua barriga" e passou a ser encarada como verdadeira encarnação do espírito da cidade:

"Ícone das décadas de 60 e 70, Leila Diniz permanece, até hoje, como símbolo da 'mulher carioca', que encarna, melhor do que ninguém, o 'espírito' da cidade: corpo seminu, praia, sol, carnaval, festa, juventude, liberdade, sexualidade, alegria, irreverência, descontração, humor, informalidade, criatividade, hedonismo" (p. 7).

Essas representações do Rio de Janeiro seriam em grande parte evocadas e materializadas por Leila Diniz; mas não exclusivamente. Ao lado de "suas mulheres esculturais", a imagem de lugar mais belo do mundo ostentada pela cidade se deve também à peculiaridade de "sua natureza que combina praias e morros" (p. 8). Na visão de Goldenberg, tais representações, em conjunto, "contribuem para fazer da cidade um espaço privilegiado para estudar o atual culto ao corpo" (p. 8).

Nesse ponto parece haver uma nítida mudança de foco: se inicialmente havia a preocupação em registrar a importância crucial do corpo na constituição da especificidade de um ethos carioca (com personagem tão enraizada simbólica e espacialmente na cidade que é transformada em ícone), agora trata-se, em certo sentido, de um outro olhar sobre o Rio de Janeiro, que passa a ser encarado como um lugar — entre outros — de expressão de um fenômeno muito mais geral: o culto ao corpo em grande escala, que se generaliza e adquire, a partir da segunda metade do século XIX, uma dimensão social inédita, quando se ingressa na era da sociedade de massas. Assim é que a organizadora da coletânea abruptamente muda de registro e traz, sem maiores advertências ou questionamentos, uma percepção que estaria como que consagrada pelo senso comum e à qual, ainda que timidamente, parece aderir.

"É comum a idéia de que a preocupação com a aparência e a juventude, que chega a ser uma obsessão nos dias de hoje, está cada vez mais disseminada em todas as classes, profissões e faixas etárias e que teria maior expressão aqui no Rio de Janeiro, em função de sua natureza e história" (p. 8).

Caso exemplar, expressivo, de um fenômeno geral, o Rio de Janeiro como que atualizaria com cores fortes e contornos marcados aquela que seria a "cultura do corpo" ou "cultura do narcisismo". Seriam, sobretudo, os segmentos das camadas médias da cidade aos quais — por suas ilusões e obsessões pela perfeição física, por seu esmagamento pela proliferação de imagens e por ideologias terapêuticas e, ainda, pelo consumismo — o termo narcisismo se aplicaria com maior propriedade.

No momento em que tantos e ricos estudos lançam luz sobre um mosaico de "culturas" que se engendram e reproduzem no complexo emaranhado da desigual sociedade urbana da metrópole do Rio de Janeiro, certamente seria possível interpelar o projeto de construir a "cultura carioca" a partir de um recorte tão exclusivista quanto o que circunscreve o espaço cultural da cidade, social e espacialmente, à classe média de Ipanema. Se, de fato, esta parece ser a representação da cidade que se extrai dos cadernos de lazer dos grandes jornais (Domingo e Programa, respectivamente, em O Globo e no Jornal do Brasil), não caberia à antropologia justamente questionar o silêncio que assim se impõe a tantos?

Isso, não obstante, é justamente na análise da cultura do corpo desse segmento social — as camadas médias da cidade — que Goldenberg nos oferece uma interessante contribuição, mostrando como corpo e moda, e o conjunto infindável de investimentos na aparência, são parte fundamental do estilo de vida. Cosméticos, maquiagem, cirurgia estética, dermatologistas, personal trainers, estilistas e profissionais da elegância permitem mobilizar recursos e operar expedientes para "estar em boa forma", ideal ardentemente perseguido. Como fica mais bem explicitado no artigo "A civilização das formas: o corpo como valor", que Goldenberg assina em co-autoria com Marcelo Ramos, e no qual são desenvolvidas algumas das idéias centrais da apresentação, a atenção é voltada para o que se poderia chamar de superdimensionamento do corpo e da aparência no processo de revelação de identidades. Em outros termos: o corpo estaria sendo apropriado por "muitos indivíduos ou grupos" como "meio de expressão (ou representação) do eu" (p. 21), fenômeno que, segundo os autores, é facilmente compreendido em "um contexto social e histórico particularmente instável e mutante, no qual os meios tradicionais de produção de identidade — a família, a religião, a política, o trabalho, entre outros — se encontram enfraquecidos" (p. 21).

O chamado "culto ao corpo", longe de servir como guia claro de orientação para os comportamentos de indivíduos ou grupos, geraria um paradoxo na "cultura de classe média". Embora mecanismo altamente eficiente de individualização, ao responsabilizar cada indivíduo por sua aparência, isto é, instaurando uma nova moralidade, a da "boa forma", referida à juventude, beleza e saúde e, conseqüentemente, acentuando particularismos ao fazer de cada indivíduo uma espécie de escrutinador de cada detalhe de seu corpo e aparência, não deixa de fazer coexistir, ao lado desses movimentos que promovem ou acirram uma espécie de autocentramento ou individualização, alguns outros imperativos, igualmente eficazes, porém opostos e contraditórios.

"Quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo. Se é bem verdade que o corpo se emancipou de muitas de suas antigas prisões sexuais, procriadoras ou indumentárias, atualmente encontra-se submetido a coerções estéticas mais imperativas e geradoras de ansiedade do que antigamente" (p. 9).

A existência de uma ampla gama de procedimentos, como os regimes de emagrecimento e de modelagem do corpo, a multiplicação e disseminação de intervenções estéticas cirúrgicas e cosméticas que "corrigem" narizes, seios e outras partes do corpo, testemunhariam "o poder normalizador dos modelos". Na "cultura do corpo" há como que um confronto ou embate entre dois ideais distintos: "um desejo maior de conformidade estética", de um lado, e "o ideal individualista e sua exigência de singularização dos sujeitos" (p. 9), de outro.

De toda forma, seja como lugar de singularização, seja como projeção de modelos idealizados, o corpo é caracterizado antes de mais nada com um valor nas camadas médias cariocas, o que torna fácil entender por que seja uma "natureza cultivada" (BOURDIEU, 1987), isto é, um corpo coberto por signos distintivos que, segundo os autores, sintetizariam simultaneamente três idéias:

"a de insígnia (ou emblema) do policial que cada um tem dentro de si para controlar, aprisionar e domesticar seu corpo para atingir a 'boa forma', a de grife (ou marca), símbolo de um pertencimento que distingue como superior aquele que o possui e a de prêmio (ou medalha) justamente merecido pelos que conseguiram alcançar, por intermédio de muito esforço e sacrifício, as formas físicas mais 'civilizadas'" (p. 39).

Em "Carioquice ou carioquidade? Ensaio etnográfico das imagens identitárias cariocas", Fabiano Gontijo discorre sobre a importância e o caráter ritual de algumas situações sociais — entre elas a praia, como lugar onde se conquista a "morenidade" valorizada no "corpo carioca", mas também o samba e o carnaval — para a formulação e reformulação das diversas identidades cariocas. No Rio de Janeiro, o corpo considerado são, comenta Gontijo, é um corpo moreno, mas não negro. Trata-se de um corpo que apresenta sinais do exercício físico regular, que se expõe à luz do sol: um corpo-diurno-funk, em oposição ao que seria o corpo-noturno-punk de São Paulo. É também um corpo distinto daquele de Salvador, que expressa a valorização da negritude, da pele negra da afro-brasilidade.

Ainda que sempre marcando eficazmente os corpos, a movimentação cultural em cada uma dessas cidades, vinculada a processos de fragmentação das identidades no bojo de conflitos entre globalização e localização, vem sendo diferentemente caracterizada ou interpretada. Enquanto que em Salvador, São Paulo ou muitas outras cidades brasileiras a localização cultural é acentuada, falando-se comumente numa baianidade nagô, numa paulicéia ou paraibada forrozeira, no que diz respeito ao Rio de Janeiro, ao contrário, nunca se teria tentado fazer alusão a uma suposta carioquice. Segundo Gontijo, a explicação para a caracterização especial e diferenciada do Rio de Janeiro deve ser encontrada naquilo que chama de um tipo de ideologia da carioquice — sutil e eficaz — permeando as formulações de grande parte dos cientistas e intelectuais brasileiros, que generaliza os traços cariocas para o resto do Brasil, isto é, os transformaria em traços culturais nacionais, formadores da identidade nacional brasileira. Dessa forma, os múltiplos elementos que compõem o repertório cultural da carioquidade, embora não sejam integral e exclusivamente cariocas, estão longe, no entanto, de poder ser generalizados e alçados a núcleo formador da identidade brasileira ou brasilidade.

O artigo do antropólogo Stéphane Malysse — "Em busca do (h)alteres-ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria carioca" — apresenta o olhar do estudioso europeu que vai construindo o que chama de corpo carioca ideal. O diálogo com Goldenberg e Ramos é bastante direto. Aqui também o autor se debruça sobre a cultura da classe média carioca, mas neste caso esmiuçando etnograficamente os rituais corporais nas academias e outros ambientes privilegiados, analisando as características, notadamente as visuais, da fórmula que, no contexto de um esvaziamento e enfraquecimento de outros referentes identitários, emergiria como fundamento das novas coletividades: a corpolatria.

Os ideais da corpolatria, as normas de consenso da chamada corporeidade modal e sua circulação são problematizados numa perspectiva que procura compreender os processos de transformação das imagens e sensibilidades que acompanham a emergência e valorização de um lugar como a academia — transformada em "uma grande usina de corpos" (p. 95). O investimento na aparência física através do body building revelaria não somente uma acentuada intencionalidade em controlar as informações transmitidas através da aparência, mas também que na sociedade brasileira a semiótica da aparência muscular teria suplantado em significado e importância, tanto econômica quanto socialmente, aquela da cor e a de gênero.

O contraste com o que seria o corpo europeu, ou melhor, francês, sugeriria, segundo o autor, algumas pistas para compreender os estreitos vínculos que na sociedade brasileira existem entre, de um lado, os usos do corpo associados à corpolatria e, de outro, a cordialidade como marca do Brasil, tal como definida na tradição sociológica brasileira por Freyre (1954) e Buarque de Hollanda (1995). Dessa forma, através do contraponto com o europeu, construído sob a égide da civilidade (ELIAS, 1973) e sob a qual se "apaga" o corpo, entre nós seria o corpo, até mais do que a própria língua, que funcionaria como poderoso vetor de cordialidade — cordialidade à flor da pele.

Também o trabalho de Cesar Sabino — "Anabolizantes: drogas de Apolo" — está voltado para a compreensão das novas formas de construção do corpo que estariam associadas a um ideal de beleza e saúde que erige a forma corporal como aspecto central das interações sociais. Com riqueza de detalhes etnográficos, o autor ressalta a importância crucial que o consumo de drogas anabolizantes apresenta na construção da identidade de grupos de freqüentadores de diferentes academias do Rio de Janeiro.

Em "No universo da beleza: notas de campo sobre cirurgia plástica no Rio de Janeiro", o antropólogo norte-americano Alexander Edmonds constrói sua análise tendo por pano de fundo as mudanças da atitude cultural com relação à beleza que teriam levado à aceitação pública generalizada da cirurgia cosmética. Orientado por uma fecunda perspectiva comparativa com a sociedade norte-americana, analisa as atitudes em relação à cirurgia plástica no Brasil, ressaltando a importância das classificações raciais/de cor e das classificações de gênero, no que considera ser nossa maneira específica de conceber a beleza. Nos Estados Unidos, as diferenças de aparências, quase sempre racializadas, remetem a um ideal multicultural em que tipos diferentes coexistem em igualdade; entre nós haveria uma hierarquia estética — branco, mulato, negro.

Tais diferenças indicariam que os caminhos percorridos nos dois países não foram os mesmos, não obstante o processo de "democratização" da beleza assistido na segunda metade do século XX, cá e lá, de que é amostra a elevação da cirurgia estética passada ao estatuto de legítimo direito. Assim, os dois países teriam trajetórias marcadas por algumas especificidades culturais: nos Estados Unidos haveria que considerar a "politização" da beleza; no Brasil, em lugar da politização, a beleza teria passado por um processo caracterizado como nacionalização.

Nesse processo, as idéias sobre a eugenia — "limpeza" higiênica, coletiva do povo / nação — são substituídas pelo chamado mito da democracia racial, que passa a ser aceito como nova base da identidade nacional, entronizando a figura do mestiço e reforçando a classificação racial de marca (NOGUEIRA, 1991), que teriam contribuído, tanto uma quanto outra, para tornar o próprio indivíduo — e não sua ascendência — o foco da classificação.

Em "O corpo da bruxa", de Andréa Osório, assim como no artigo de José Luiz Dutra, intitulado "Onde você comprou esta roupa tem para homem?: a construção de masculinidades nos mercados alternativos de moda", encontramos duas interessantes reflexões sobre gênero. O primeiro artigo tematiza as bruxas modernas que, adeptas da wicca ou bruxaria moderna, encontram um espaço privilegiado de construção identitária que permite inverter a atribuição tradicional de valores aos gêneros. O artigo de Dutra, além de se interrogar a respeito da relação do homem com a moda e encará-la como uma técnica corporal através da qual são produzidos e reproduzidos papéis de gênero, identifica e analisa a produção e reprodução de modelos de masculinidade no universo alternativo da moda, mostrando como, por meio das roupas, são estabelecidas e trocadas posições, lugares, estigmatizações e hierarquias.

Em "Corpo e classificação de cor numa praia carioca", de Patrícia Farias, são examinadas as práticas corporais mais freqüentes nas praias cariocas. Atenção especial é conferida à classificação racial no contexto da praia. Além de analisar as condutas e práticas corporais consideradas adequadas a homens e mulheres, investiga a importância e os diferentes significados da "morenidade" e suas relações com categorias que evocam idéias de brancura e de negritude, observando recorrente deslizamento entre "morenidade" e mestiçagem.

Em seu texto "Estética e política: relações entre 'raça', publicidade e produção da beleza no Brasil", que também integra a coletânea, Peter Fry analisa as relações entre mercado e a classificação racial, transportando o leitor a um território no qual, historicamente, o corpo e a aparência têm sido determinantes (NOGUEIRA, 1991).

Analisando os publicitários e as vozes do mercado — produtores, fornecedores e consumidores de bens e serviços voltados diretamente "a pessoas de pele mais escura e cabelo mais crespo" —, Peter Fry constata ter havido no Brasil, nos últimos dez anos, duas mudanças importantes: 1º) a atenção dos produtores e fornecedores de beleza física tem-se direcionado crescentemente em direção à "gente de cor"; 2º) as "pessoas de cor" comparecem em maior número na publicidade brasileira e vêm recebendo outros papéis que não os tradicionais e estereotipados papéis de "criadagem", assumindo, desta forma, o lugar de profissionais em geral e transformando-se em "quase cidadãos genéricos". Em decorrência, assistiu-se a uma explosão de produtos de uso pessoal especializados e, como seria de se esperar, também de anúncios publicitários, fenômeno que inclusive explicaria a existência e longevidade da "primeira bem-sucedida revista colorida mensal — Raça Brasil — voltada especialmente para as pessoas de cor" (p. 305).

Correndo o risco de descontentar os militantes que vêem na afirmação da identidade negra uma tarefa essencialmente ideológica, política ou cultural, Fry defende a idéia de que, sendo o mercado "o divulgador mais eficiente de conceitos e idéias no Brasil contemporâneo, [...] a longo prazo, a direção tomada pela publicidade será um fator poderosíssimo na definição da direção básica a ser tomada pelas relações raciais" (p. 305). Fry faz questão, no entanto, de se distanciar de visões simplistas e até certo ponto ingênuas, que vêem a relação entre produtores / publicitários e consumidores sob um prisma determinista. Encontra em Sahlins (1976) a pista ou inspiração teórica para interpretar o processo através do qual entram novos produtos no mercado, assumindo a idéia de que o capitalismo é "uma ordem cultural agindo de forma particular", sob cuja égide a relação entre produtores e consumidores estaria longe de ser linear e unívoca. Nem os consumidores são vítimas passivas dos produtores, nem os produtores apenas reagem aos desejos dos consumidores, pois, como salientou Sahlins:

"essa produção é organizada para explorar todas as possíveis diferenciações sociais através de uma motivada diferenciação de bens. Ela se desenvolve de acordo com uma lógica significativa do concreto, de significação das diferenças objetivas, desenvolvendo portanto signos apropriados para as distinções sociais emergentes [...] O produto que chega ao seu mercado de destino constitui uma objetivação de uma categoria social, e assim, ajuda a constituir esta última na sociedade: em contrapartida, a diferenciação da categoria aprofunda os recortes sociais dos sistemas de bens" (SAHLINS, 1976, p. 185 — grifo meu).

Dessa forma, observa Fry, o ingresso de modelos negros e o investimento em produtos de beleza voltados para negros não devem ser compreendidos como resposta a alguma demanda da classe média negra. Na interpretação de Fry, antes de ser uma resposta a algo anterior e já dado, esse processo participaria da própria constituição ou formação da classe média negra.

Outro e decisivo aspecto da relação entre "raça" e mercado merece especial destaque, como que confirmando a intuição do autor de que o tema das relações raciais no Brasil teria certamente muito a ganhar se expandido para além das vozes normalmente audíveis nos movimentos e nas ONGs. Trata-se da constatação de que os produtos destinados a pessoas de cor, que são na grande maioria voltados para o embelezamento e fenotipicamente especializados, teriam conseguido realizar com sucesso algo que os movimentos negros aspiram e que não conseguem fazer com igual eficácia, isto é, "convencer os brasileiros de que todos aqueles capazes de alegar alguma ascendência africana são negros" (p. 307).

Fazendo com que a própria aparência seja transformada em ícone da identidade negra, o sucesso dos produtos destinados a "pessoas de cor" é encarado também como o sucesso da taxonomia racial bipolar incansavelmente perseguida pelos militantes, pois estaria

"levando muita gente que, de outra forma, se consideraria morena, mulata, etc., a considerar-se também 'negra'. Enquanto isso, a publicidade de mercadorias e serviços genéricos inclui pessoas de cor como cidadãos comuns, projetando uma imagem de igualdade diante dos bens de consumo, ainda que não perante a lei" (p. 307).

Para finalizar, cabe fazer referência a uma última e importante questão levantada por Fry: uma tendência de produtores e anunciantes a projetar uma imagem do povo em que a diversidade entre os brasileiros emerge antes como fato estético que moral. O deslocamento do terreno moral para o estético, o esvaziamento moral da diferença, alvo de profundas críticas por parte de outros cientistas sociais2 2 Ver, por exemplo, Sodré (1999, p. 255), para quem a ênfase na beleza ou estética produz um "não-outro" que, ao contrário daquele "verdadeiro" construído pela comunidade e pelo segredo afro-brasileiro — o candomblé —, não se distingue do branco. , é saudado pelo autor como um verdadeiro avanço em direção a uma sociedade menos racista. Como antropólogo declaradamente adepto de "uma teoria não racista e não racialista que se desenvolveu desde Franz Boas" (p. 324), lembra que "o racismo é possível apenas quando se pauta uma relação entre formas corporais (a aparência) com qualidades (defeitos) de ordem moral e intelectual" (p. 324).

O conjunto da coletânea, seja pelas contribuições teóricas específicas, seja pela riqueza etnográfica, seja pelas polêmicas que necessariamente suscita, faz emergir temas e problemas inescapáveis para todos aqueles que, professores, pesquisadores, estudantes das Ciências Sociais, querem entender e problematizar o corpo na sociedade brasileira contemporânea. É um livro para ser lido e discutido.

Referências

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

ELIAS, N. La civilization des moeurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973.

FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

HOLLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. In: ______. Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, 1991.

SAHLINS, M. Culture and practical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1976.

SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1999.

  • 1
    Doutora em Sociologia pelo IUPERJ e professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia e Política, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
  • 2
    Ver, por exemplo, Sodré (1999, p. 255), para quem a ênfase na beleza ou estética produz um "não-outro" que, ao contrário daquele "verdadeiro" construído pela comunidade e pelo segredo afro-brasileiro — o candomblé —, não se distingue do branco.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2004
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