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A medicalização da sexualidade. Foucault e Lantéri-Laura: história da medicina ou história da sexualidade?

The medicalisation of sexuality. Foucault and Lantéri Laura: a history of medicine or a history of sexuality?

Resumos

O livro de Lantéri-Laura, Leitura das perversões: história de sua apropriação médica, foi publicado em 1979, três anos depois do primeiro volume da História da sexualidade, de Michel Foucault. Os dois livros lidam com a história da sexualidade no século XIX, mas, curiosamente, Lantéri-Laura não cita Foucault. Uma leitura atenta de ambos os textos demonstra dois pontos: (1) enquanto Foucault estava preocupado com a relação entre sexualidade e verdade, poder e conhecimento, Lantéri-Laura trabalhou mais especificamente com perversões sexuais e o modo como a psiquiatria as redefiniu, ao retirá-las do campo da religião e da lei; (2) além disso, Foucault não elaborou uma análise crítica da psicanálise. Ao invés, usou o molde psicanalítico para construir o modelo do "aparato de sexualidade" baseado na linguagem. Por sua parte, Lantéri-Laura evidenciou o limitado distanciamento que Freud tinha das categorias sexológicas de seu tempo e do retorno, na psicanálise lacaniana, para categorias que eram ancoradas na moralidade social dominante do período. Por fim, onde Lantéri-Laura tentou objetificar a psicanálise e colocá-la numa perspectiva histórica e ideológica, Foucault estava ativamente inspirado pelo modelo psicanalítico e o utilizou na construção histórica e social da sexualidade.

Sexualidade; medicalização; M. Foucault


Lantéri-Laura's book, Reading perversion: a history of its medical appropriation was published in 1979, three years after Michel Foucault's first volume of The History of Sexuality. These two books deal with the history of sexuality in the 19th century, yet strangely Lantéri-Laura does not cite Foucault. A close reading of both texts demonstrates two points: (1) while Foucault was mainly concerned with the relationship between sexuality and truth, power and knowledge, Lantéri-Laura worked more specifically on sexual perversions and the way in which psychiatry redefined them by withdrawing them from the fields of religion and law; (2) moreover, Foucault did not undertake a critical analysis of psychoanalysis. Instead, he used the psychoanalytic model to construct the model of the "apparatus of sexuality" based on language. For his part, Lantéri-Laura provided evidence of the limited withdrawal of Freud on the sexological categories of his time and a return within lacanian psychoanalysis to categories that were anchored in the dominant social morality of the time. Finally, whereas Lantéri-Laura attempted to objectify psychoanalysis and to place it within a historical and ideological perspective, Foucault was in the end actively inspired by the psychoanalytical model and used it in social and historical construction of sexuality.

Sexuality; medicalisation; M. Foucault


TEMAS LIVRES

A medicalização da sexualidade. Foucault e Lantéri–Laura: história da medicina ou história da sexualidade?* * Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista L'évolution psychiatrique n. 70, p. 283–300, 2005. Tradução para língua portuguesa: Bruno Dallacort Zilli ( bdallacortzilli@yahoo.com) e Jane Araujo Russo ( jrusso@ims.uerj.br).

The medicalisation of sexuality. Foucault and Lantéri Laura: a history of medicine or a history of sexuality?

Alain Giami

Diretor de pesquisa no INSERM U 569, equipe "Sexualité, Société, Individu", França. Endereço eletrônico: alaingiami@laposte.net

RESUMO

O livro de Lantéri–Laura, Leitura das perversões: história de sua apropriação médica, foi publicado em 1979, três anos depois do primeiro volume da História da sexualidade, de Michel Foucault. Os dois livros lidam com a história da sexualidade no século XIX, mas, curiosamente, Lantéri–Laura não cita Foucault. Uma leitura atenta de ambos os textos demonstra dois pontos: (1) enquanto Foucault estava preocupado com a relação entre sexualidade e verdade, poder e conhecimento, Lantéri–Laura trabalhou mais especificamente com perversões sexuais e o modo como a psiquiatria as redefiniu, ao retirá–las do campo da religião e da lei; (2) além disso, Foucault não elaborou uma análise crítica da psicanálise. Ao invés, usou o molde psicanalítico para construir o modelo do "aparato de sexualidade" baseado na linguagem. Por sua parte, Lantéri–Laura evidenciou o limitado distanciamento que Freud tinha das categorias sexológicas de seu tempo e do retorno, na psicanálise lacaniana, para categorias que eram ancoradas na moralidade social dominante do período. Por fim, onde Lantéri–Laura tentou objetificar a psicanálise e colocá–la numa perspectiva histórica e ideológica, Foucault estava ativamente inspirado pelo modelo psicanalítico e o utilizou na construção histórica e social da sexualidade.

Palavras–chave: Sexualidade; medicalização; M. Foucault.

ABSTRACT

Lantéri–Laura's book, Reading perversion: a history of its medical appropriation was published in 1979, three years after Michel Foucault's first volume of The History of Sexuality. These two books deal with the history of sexuality in the 19th century, yet strangely Lantéri–Laura does not cite Foucault. A close reading of both texts demonstrates two points: (1) while Foucault was mainly concerned with the relationship between sexuality and truth, power and knowledge, Lantéri–Laura worked more specifically on sexual perversions and the way in which psychiatry redefined them by withdrawing them from the fields of religion and law; (2) moreover, Foucault did not undertake a critical analysis of psychoanalysis. Instead, he used the psychoanalytic model to construct the model of the "apparatus of sexuality" based on language. For his part, Lantéri–Laura provided evidence of the limited withdrawal of Freud on the sexological categories of his time and a return within lacanian psychoanalysis to categories that were anchored in the dominant social morality of the time. Finally, whereas Lantéri–Laura attempted to objectify psychoanalysis and to place it within a historical and ideological perspective, Foucault was in the end actively inspired by the psychoanalytical model and used it in social and historical construction of sexuality.

Key words: Sexuality; medicalisation; M. Foucault.

1. Introdução

Em meados dos anos 70, assistiu–se à publicação de algumas obras que colocavam o problema das relações entre medicina e sexualidade do ângulo da "medicalização" e da "apropriação médica". A célebre obra de Michel Foucault, A vontade de saber, concebida inicialmente como o primeiro volume de uma vasta História da sexualidade, foi publicada em 1976 (FOUCAULT, 2001b). A obra de Georges Lantéri–Laura, Leitura das perversões: história da apropriação médica, menos conhecida do grande público, foi publicada em 1979 (LANTÉRI–LAURA, 1994). De forma surpreendente para o leitor ingênuo, o texto de Michel Foucault não é jamais citado em referência no livro de Lantéri–Laura. Tendo em conta a repercussão dos trabalhos de Foucault sobre a sexualidade, e da característica rigorosa do trabalho de Lantéri–Laura, que cita muito precisamente as fontes utilizadas, a ausência de qualquer referência à obra de Foucault coloca uma questão. Esses dois autores trabalharam sobre materiais históricos em parte comuns, e sobretudo sobre a gênese e desenvolvimento da sexologia nos séculos XIX e XX, mas suas interpretações divergem em diferentes pontos. Em que medida a perspectiva adotada por Lantéri–Laura é incompatível com aquela desenvolvida anteriormente por Foucault para que ele nem mesmo a mencionasse?

Escolhemos sintetizar as teses elaboradas por cada um dos dois autores, aproveitando para apresentar em detalhe alguns dos materiais históricos sobre os quais eles trabalharam, a fim de melhor comparar suas respectivas abordagens, à luz das questões que trabalhamos atualmente, em referência à medicalização da sexualidade (GIAMI, 2000).

2. Michel Foucault: o dispositivo de sexualidade e a biopolítica

Os trabalhos de Michel Foucault sobre a sexualidade começaram com o curso sobre Os anormais, pronunciado no Collège de France em 1974 e 1975. Foucault deu seqüência à ruptura teórica efetuada no ano anterior, em seu curso sobre o Poder psiquiátrico, marcado pelo abandono de suas análises em termos de "núcleo representativo" e sua substituição pela referência ao "dispositivo de poder" (FOUCAULT, 2003). Lagrange nota que esse curso foi marcado, ainda, por um

"deslocamento das análises sobre 'a instituição asilar' para uma análise de seu 'exterior', de modo a colocar sua constituição e seu funcionamento numa tecnologia de poder característica da sociedade, e que os dispositivos de poder são precisamente o ponto a partir do qual se pode atribuir a formação das práticas discursivas" (FOUCAULT, 2003, p. 363).

É nesse contexto que Foucault aborda a questão da medicalização, tratando–a inicialmente a propósito do dispositivo de sexualidade. Em um segundo momento, durante o curso pronunciado em 1976, Em defesa da sociedade, Foucault (2002) aborda a questão da medicalização do ângulo do biopoder e da biopolítica.

Para Foucault, o processo de medicalização não é redutível à instituição médica nem à do asilo, e seu aparecimento se inscreve no desenvolvimento das "tecnologias de poder". Além disso, pode–se pensar que a abordagem foucaultiana da medicalização é indissociável de sua aplicação ao domínio da sexualidade. Artières e Silva seguem neste sentido, considerando que, para Foucault, a medicalização designa os processos singulares pelos quais uma sociedade em dado momento de sua história constitui um objeto, uma prática como próprios do domínio da medicina (o exemplo mais célebre sendo a sexualidade das crianças, mas o espaço urbano é um outro exemplo) (ARTIÈRES e SILVA, 2001).

No decorrer do curso Os anormais, Foucault utiliza o termo "sexualidade", em seu sentido comum, para descrever as práticas, relações e representações sexuais, e ao mesmo tempo para descrever o "dispositivo de sexualidade", antes de o definir mais precisamente em A vontade de saber, publicado no ano seguinte: "A história da sexualidade – isto é, daquilo que funcionou no século XIX como domínio da verdade específica – deve ser feita, antes de mais nada, do ponto de vista de uma história dos discursos" (FOUCAULT, 2001b, p. 67). Além disso, Foucault escreve:

"Vemos claramente: é o dispositivo de sexualidade que, em suas diferentes estratégias, instaura essa idéia 'do sexo' e o faz aparecer, sob as quatro grandes formas – da histeria, do onanismo, do fetichismo e do coito interrompido – como sendo submetido ao jogo do todo e da parte, do princípio e da falta, da ausência e da presença, do excesso e da deficiência, da função e do instinto, da finalidade e do sentido, do real e do prazer. Assim, formou–se pouco a pouco a armação de uma teoria geral do sexo" (FOUCAULT, 2001b, p. 144).

Em entrevista publicada em 1977, Foucault reconhece:

"esta questão tem sido a dificuldade central de meu livro; eu havia começado a escrevê–lo como uma história da maneira pela qual o sexo foi recoberto e travestido por essa espécie de fauna, por essa vegetação estranha que seria a sexualidade" (FOUCAULT, 1994, p. 234).

De modo estranho, a homossexualidade, cujo estudo e categorização desempenharam papel primordial na gênese da sexologia do século XIX, não é mencionada, nesse período, entre as figuras maiores que compõem o dispositivo de sexualidade.

Foucault desenvolve suas análises da medicalização a propósito da constituição da categoria de sexualidade nos séculos XVIII e XIX, e do lugar central que irá ocupar a sexualidade (sob a forma da masturbação) na determinação e no tratamento das anomalias psiquiátricas. Ele constrói uma teoria da medicalização (da sexualidade) a partir de uma série de linhas convergentes: a gênese religiosa do dispositivo de sexualidade, a constituição dos saberes psiquiátricos, a medicalização da família para exercer a vigilância da masturbação infantil e a biopolítica, como forma de organização política de regulação das populações. A construção do dispositivo de sexualidade é fundada, de forma geral, sobre o procedimento religioso da confissão, preliminar à "colocação do sexo em discurso".

2.1. A gênese religiosa do dispositivo de sexualidade

Foucault não constrói sua análise da medicalização da sexualidade como um prolongamento das medicinas sexuais que se desenvolveram ao longo da história ocidental (JACQUART e THOMASSET, 1985). Ele situa a gênese da medicalização da sexualidade numa aplicação progressiva da confissão–desvelamento (confession–aveu)1 1 Em português os termos aveu e confession têm o mesmo sentido. Reproduzimos aqui nota do tradutor para língua portuguesa da História da Sexualidade I: A vontade de saber, publicada na p. 58 da edição brasileira: "O autor emprega, em geral, dois termos, aveu e confession, que podem ser rigorosamente traduzidos em português por confissão. No texto os termos são quase sempre empregados como sinônimos, mas possuem conotações diferentes. No sentido geral que orienta essa parte, o termo aveu significa confissão, na acepção de 'declarar, dizer, admitir, atestar algo sobre si mesmo'. Nesse sentido, a confession seria mais uma das modalidades de aveu, a que é codificada na prática do sacramento cristão da penitência". , no ritual da pastoral cristã. A prática da confissão se inscreve numa história que Foucault retraça e que é pontuada por uma mudança de conteúdo da confissão–penitência em confissão–desvelamento (confession–aveu). Assim, entre os séculos XII e XVI, a confissão é totalmente enquadrada pelas normas jurídicas:

"Ora, essa filtragem das obrigações ou das infrações sexuais concerne quase inteiramente, quase exclusivamente, ao que poderíamos chamar de aspecto relacional da sexualidade. Os principais pecados contra o sexto mandamento se referem aos vínculos jurídicos entre as pessoas: o adultério, o incesto, o rapto. Eles se referem ao estatuto das pessoas, conforme sejam clérigos ou religiosos. Também se referem à forma do ato sexual entre elas: a sodomia. Eles se referem, é claro, a essas tais carícias que não levam ao ato sexual legítimo (grosso modo, a masturbação), mas que figuram no interior desses pecados como um deles, como sendo certa maneira de não consumar o ato sexual na sua forma legítima, isto é, na forma requerida no nível das relações com o parceiro. [...] A partir do século XVI, essa espécie de contexto [...] vai ser pouco a pouco extrapolada e submersa por uma tríplice transformação. [O confessor] deve primeiro interrogar sobre os 'pensamentos', para não ter de interrogar sobre os atos, caso estes não tenham sido cometidos (e, por conseguinte, para evitar revelar algo que o outro, o penitente, não sabe) [...]. Não é mais o aspecto relacional, mas o próprio corpo do penitente, são seus gestos, seus sentidos, seus prazeres, seus pensamentos, seus desejos, a intensidade e a natureza do que ele próprio sente [...]. O novo exame vai ser um percurso meticuloso do corpo, uma espécie de anatomia da volúpia. [...] Portanto a confissão não se desenrolará mais de acordo com essa ordem de importância, na infração das leis da relação, mas deverá seguir uma espécie de cartografia pecaminosa do corpo" (FOUCAULT, 2003, p. 234–237).

O dispositivo do discurso sobre a sexualidade se elabora apoiado, num primeiro momento, sobre a infração às normas jurídicas que regem as relações entre as pessoas, principalmente as fundadas sobre as leis do casamento (o dispositivo de aliança) e sobretudo os atos cometidos entre essas pessoas. A prática ditada pela pastoral cristã evoluirá em seguida para a exploração dos pensamentos e das sensações que afetam o penitente. Essa colocação em discurso constitui o que Foucault denomina uma tecnologia do poder:

"codificação clínica do fazer falar; postulado de uma causalidade geral e difusa do sexo sobre a saúde e as doenças; princípio de uma latência intrínseca à sexualidade (não sobre o que o sujeito quereria esconder voluntariamente mas sobre aquilo que ele esconde de si mesmo); método de interpretação: duplicar a revelação da confissão pelo deciframento daquilo que é dito. Aquele que escuta não será simplesmente o mestre do perdão, o juiz que condena ou absolve; ele será o mestre da verdade; medicalização dos efeitos da confissão: definição de uma morbidade própria ao sexual" (FOUCAULT, 2001b, p. 64–66).

"É a instauração no interior dos mecanismos religiosos desse imenso relato total da existência que constitui, a meu ver, de certo modo, o pano de fundo de todas as técnicas tanto de exame como de medicalização, a que vamos assistir em seguida" (FOUCAULT, 2001a, p. 233). O ritual da confissão cristã, levando em conta os atos e os pensamentos, constitui a base que irá permitir o desenvolvimento das tecnologias de poder próprias à medicalização. A sexualidade designa os fenômenos que entram previamente no registro da "carne cristã" e o "dispositivo de sexualidade" reside no procedimento de colocação em discurso e de reprodução do sexo, como instância de verdade. Não haveria, portanto, ruptura entre a abordagem e a construção religiosa da sexualidade e sua medicalização, mas uma continuidade no plano dos métodos de trabalho: a incitação e a interpretação da fala.

2.2. A constituição dos saberes médicos e psiquiátricos sobre a sexualidade

O dispositivo religioso da confissão não constitui o único fundamento do dispositivo de sexualidade. Foucault reconstrói toda uma "arqueologia" da medicina do sexo – pluridisciplinar, como se diria hoje em dia:

"Poder–se–iam citar outros focos que, a partir do século XVIII ou do século XIX, entraram em atividade para suscitar os discursos sobre o sexo. Inicialmente, a medicina, por intermédio das 'doenças dos nervos'; em seguida, a psiquiatria, quando começa a procurar – do lado da 'extravagância', depois do onanismo, mais tarde da insatisfação e das 'fraudes contra a procriação', a etiologia das doenças mentais e, sobretudo quando anexa ao seu domínio exclusivo, o conjunto das perversões sexuais. Também a justiça penal, que por muito tempo se ocupou da sexualidade, sobretudo sob a forma de crimes 'crapulosos' e antinaturais, mas que na metade do século XIX se abriu à jurisdição miúda dos pequenos atentados, dos ultrajes de pouca monta, das perversões sem importância. Enfim, todos esses controles sociais que se desenvolveram no final do século passado e filtram a sexualidade dos casais, dos pais e dos filhos, dos adolescentes perigosos e em perigo – tratando de proteger, separar e prevenir, assinalando perigos em toda parte, despertando as atenções, solicitando diagnósticos, acumulando relatórios, organizando terapêuticas; em torno do sexo eles irradiaram os discursos, intensificando a consciência de um perigo incessante que constitui, por sua vez, a incitação a se falar dele" (FOUCAULT, 2001b, p. 32–33).

Cada uma dessas disciplinas ou especialidades médicas já balizou o campo diversificado daquilo que constitui a gênese da sexualidade moderna. Foucault empreende uma classificação sistemática dos tipos de saberes médicos sobre a sexualidade, que ele vai distinguir em dois grupos: o somático e o psiquiátrico.

Na perspectiva somática, ou seja, a confissão dos atos, o dispositivo da medicalização vai–se aplicar inicialmente à questão da masturbação infantil, que consiste em fazer desta "a primeira forma de sexualidade a confessar"2 2 Outros historiadores da sexualidade, sobretudo Thomas Laqueur (2003), concordam com Michel Foucault, ao considerar que o interesse médico pela masturbação e a pedagogia de sua repressão aparecem por volta de 1710, com a publicação do livro de um autor mal–identificado: Onania ou o odioso pecado da autopolução e todas as suas temíveis conseqüências consideradas em ambos os sexos, com conselhos físicos e espirituais para aqueles que já se feriram por essa prática abominável. A publicação desse livro será seguida, em 1860, pela obra bem mais conhecida e difundida do médico Lausanne Tissot: Onanismo ou dissertação médica sobre os males produzidos pela masturbação. A primeira edição dessa obra foi publicada em latim, em 1858. Essas obras e a difusão de que são objeto testemunham o lançamento da campanha antimasturbatória que começa no início do século XVIII – ver Szasz, cuja primeira edição do livro Fabricação da loucura data de 1970 (traduzida em francês em 1976). Em entrevista realizada em 1975, Foucault reconhece que os trabalhos de Szazs, assim como os "antipsiquiatras" ingleses (D. Cooper e R. Laing), se desenvolveram na mesma época, em situação "de ignorância mútua" (FOUCAULT, 1994, p. 771, item 263; LAQUEUR, 2003). . Consiste, em seguida, em ver na masturbação o princípio etiológico, a causa principal senão única de todas as doenças que afetarão tanto a criança quanto o adulto. A investigação do médico incidirá menos sobre os sentimentos de culpabilidade que sobre o rastreamento das práticas:

"A sexualidade vai permitir explicar tudo o que, de outro modo, não é explicável. É também uma causalidade adicional, já que superpõe às causas visíveis, identificáveis no corpo, uma espécie de etiologia histórica, com responsabilidade do próprio doente por sua doença" (FOUCAULT, 2001a, p. 306).

A medicalização da masturbação se inscreve num processo de "somatização" da sexualidade: é o corpo e as condutas que aí se tornam o objeto da investigação e a conduta incorreta tem conseqüências somáticas graves. Essa investigação permanente sobre a sexualidade – ou antes, sobre a masturbação infantil – será efetuada pela família, que virá ocupar, assim, lugar central no processo de medicalização, entendido como "controle disciplinar".

Foucault distingue uma segunda dimensão como constitutiva dos saberes sobre a sexualidade: a psiquiatria. Ele situa a emergência da problematização psiquiátrica e sexológica da sexualidade em 1844, com a publicação do Psychopatia sexualis, de Heinrich Kaan (reconhecido como um dos primeiros sexólogos modernos), num movimento mais vasto e global que vai unificar o instinto sexual natural, opondo–o a seus desvios. Essa abordagem da sexualidade se caracteriza pela identificação de um instinto sexual que organiza o conjunto do comportamento, desde a masturbação até o comportamento sexual reprodutivo. Trata–se de uma teoria da sexualidade segundo a qual"a sexualidade humana se insere por seus mecanismos, por suas formas gerais, na história natural de uma sexualidade que se pode remontar até as plantas. A afirmação de um instinto sexual (nisus sexualis, diz o texto) é a manifestação, não se poderia dizer psíquica, mas simplesmente dinâmica, do funcionamento dos órgãos sexuais. Da mesma maneira que existe um sentimento, uma impressão, uma dinâmica da fome que corresponde aos aparelhos da nutrição, vai haver um instinto sexual, que corresponde ao funcionamento dos órgãos sexuais. É uma naturalização muito marcada da sexualidade humana e, ao mesmo tempo, seu princípio de generalização. Por esse instinto (o nisus sexualis que descreve Kaan), a cópula (ou seja, o ato sexual relacional heterossexual) é ao mesmo tempo natural e normal. Mas, além disso, o conjunto de "aberrações" do funcionamento normal do instinto sexual é devido à fantasia (phantasia), à imaginação mórbida: "É ela que cria prematuramente o desejo, ou que, melhor dizendo, animada por desejos prematuros, vai procurar os meios anexos, derivados, substitutivos de se satisfazer" (FOUCAULT, 2001a, p. 355–356).

A teoria psiquiátrica de Kaan, comentada por Foucault, se afasta, sob dois aspectos fundamentais, da teoria somática da masturbação. De um lado, ela elabora a idéia de uma sexualidade ou, antes, de uma atividade sexual normal fundada numa natureza e que tem por função a reprodução humana. Por outro lado, ela inclui "a imaginação" – dir–se–ia mais tarde o "psiquismo" – no funcionamento do instinto sexual normal e na gênese de suas aberrações, incluindo a masturbação. A sexualidade normal e seus desvios são então pensados conjuntamente, de acordo com o mesmo princípio de funcionamento. Neste sentido, ele trata efetivamente de uma teoria geral da sexualidade, associando o sexo e a sexualidade, o corpo e a imaginação, o funcionamento normal e seus desvios.

2.3. A família como instância central da medicalização

Foucault não atribui aos médicos o principal papel na colocação em prática da medicalização. Esta é definida, em primeiro lugar, como uma forma de vigilância dos comportamentos incorretos e patogênicos da criança, no seio da família, e essa vigilância é exercida pelos próprios pais.

"Foi valorizando a sexualidade da criança, mais exatamente a atividade masturbatória da criança, foi valorizando o corpo da criança em perigo sexual que se deu aos pais a diretriz imperativa de reduzir o grande espaço polimorfo e perigoso da gente da casa, e constituir com seus filhos, com sua progenitura, uma espécie de corpo único, ligado pela preocupação com a sexualidade infantil, pela preocupação com o auto–erotismo infantil e com a masturbação" (FOUCAULT, 2001a, p. 315).

O processo da medicalização consiste, assim, numa transformação da família em agente de vigilância e de controle disciplinar. Esse processo compreende as ações efetuadas no seio da família, ao mesmo tempo que o controle – médico – exercido do exterior sobre a família:

"no momento mesmo em que se encerra a família celular num espaço afetivo denso, investe–se essa família, em nome da doença, de uma racionalidade que a liga a uma tecnologia, a um poder e um saber médico externos. A nova família, a família substancial, a família afetiva e sexual é ao mesmo tempo uma família medicalizada" (FOUCAULT, 2001a, p. 317).

Contudo, a medicalização não vai ser a única forma de controle externo à qual a família é submetida. Os pais, os adultos são também considerados como portadores de um perigo sexual: os desejos e os comportamentos incestuosos a respeito de sua progenitura:

"Em compensação, no outro caso, a sexualidade, ou antes, a sexualização da família a partir do apetite incestuoso e perigoso dos pais ou dos mais velhos, essa sexualização em torno do incesto possível vindo de cima, vindo dos mais velhos, também chama um poder externo. [...] Mas, desta vez, não é em absoluto uma decisão de tipo médico: é de tipo judiciário" (FOUCAULT, 2001a, p. 345–346).

A medicalização aparece como um processo dotado de certa complexidade, colocando em ação os saberes médicos e psiquiátricos, as recomendações práticas e difundidas sobre a família, as disposições permanentes desenvolvidas com os pais e um controle exercido do exterior sobre a família.

2.4. A biopolítica

A noção de biopolítica é desenvolvida a partir do curso de 1976, Em defesa da sociedade. A introdução dessa noção constitui uma abertura da questão da medicalização ao conjunto da sociedade, de modo diverso do que pela difusão de um saber e pela instauração de práticas de vigilância e de tratamento visando ao controle disciplinar dos indivíduos. A noção de biopolítica aparece como coextensiva à de "população" e se inscreve numa passagem da reflexão de Foucault sobre a questão do Estado e do desenvolvimento do liberalismo econômico e político. Volta, assim, à questão do poder central, abandonada com a idéia da disseminação dos micropoderes que capilarizam o conjunto da sociedade e as relações entre os indivíduos. A biopolítica constitui a segunda vertente desse "poder sobre a vida", que será desenvolvido a partir da segunda parte do século XVIII:

"[ele] centrou–se no corpo–espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê–los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população" (FOUCAULT, 2001b, p. 131).

A biopolítica constitui uma espécie de poder positivo visando à produção social da vida, o direito "de 'fazer' viver e de 'deixar' morrer" (FOUCAULT, 2002, p. 287). Ela vai encarnar principais domínios da vida humana.

"São estes fenômenos que se começa a levar em conta no final do século XVIII e que trazem a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população" (FOUCAULT, 2002, p. 291).

Foucault coloca em evidência o lugar central ocupado pela sexualidade nas diferentes dimensões da medicalização, esta entendida como a instauração das novas formas de poder:

"Eu creio que, se a sexualidade foi importante, foi por uma porção de razões, [...]: de um lado, a sexualidade, enquanto comportamento exatamente corporal, depende de um controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância permanente (e os famosos controles, por exemplo da masturbação que foram exercidos sobre as crianças desde o fim do século XVIII até o século XX, e isto no meio familiar, no meio escolar etc., representam exatamente esse lado de controle disciplinar da sexualidade); e depois, por outro lado, sexualidade se insere e adquire efeito, por seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não mais ao corpo do indivíduo mas esse elemento, a essa unidade múltipla constituída pela população. A sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto, ela depende da disciplina, mas também depende da regulamentação. A extrema valorização médica da sexualidade no século XIX teve, assim creio, seu princípio nesta posição privilegiada da sexualidade entre organismo e população [...]" (FOUCAULT, 2002, p. 300).

Foucault propõe, ainda, uma concepção global da medicalização – aplicada à sexualidade que mobiliza um certo número de disciplinas médicas, dentre as quais a psiquiatria, a medicina legal, as medicinas somáticas e a saúde pública. Estabelece uma diferença conceitual entre o sexo vinculado ao registro da somatização e a sexualidade vinculada ao regime da colocação em discurso e da ligação ao psiquismo. Foucault faz, em última instância, explodir a gênese e o desenvolvimento da medicalização para fora do campo estrito da medicina. Por um lado, ele situa a base da medicalização nos desenvolvimentos históricos e na continuidade do ritual religioso da confissão–desvelamento (confession–aveu) marcada por um deslocamento de referência. De outro, ele desloca a implantação da medicalização para o seio da família, de uma família certamente "vigiada" pela instituição médica: desta forma, a medicalização da sociedade – e da sexualidade – se opera a partir do saber médico e fora da instituição médica, sob a forma de uma ramificação indefinida.

Contudo, a medicina não é a única instituição a exercer essa vigilância sobre os corpos e os indivíduos: a justiça penal participa dessa empreitada no âmbito de uma divisão do trabalho. Foucault identifica dois regimes de desenvolvimento da medicalização: o dispositivo de sexualidade, caracterizado pela vigilância exercida sobre os corpos dos indivíduos, e a biopolítica, que vai organizar a gestão das populações e sua relação com a vida e a morte. A dualidade do dispositivo permite, enfim, integrar as diferentes dimensões construídas pelos saberes da sexualidade: a sexualidade reprodutiva e seu foco conjugal, as perversões e os crimes sexuais. Esse dispositivo parece ainda excluir do campo da sexualidade a questão do erótico, que não é levada em conta por Foucault no dispositivo de medicalização, tal como ele se desenvolve a partir dos séculos XVIII e XIX. Foucault faz, assim, o impasse sobre as ars erotica ocidentais que constituem a literatura e a iconografia erótica.

3. Lantéri–Laura: a apropriação médica das perversões sexuais (uma História da Psiquiatria)

Lantéri–Laura se situa, inicialmente, do ponto de vista de uma história e de uma epistemologia crítica da medicina e da psiquiatria construída no interior do campo médico, que visa, por outro lado, a identificar os efeitos do contexto histórico, político e ideológico sobre a forma pela qual a medicina se interessou, em determinado momento de sua história, a partir de meados do século XIX, pela questão das perversões sexuais. Assim, o ponto de partida de Lantéri–Laura é diferente do de Foucault, na medida em que ele escolhe estudar um objeto bem delimitado – as perversões sexuais – e não a sexualidade em seu conjunto, que ele demonstra já estar construído em outros registros de conhecimento e de prática que não os da medicina, sobretudo pela justiça penal, "a ética social" e os bons costumes.

Além disso, Lantéri–Laura situa a origem de seu trabalho numa interrogação sobre a maneira como a teoria psicanalítica, enquanto teoria dominante – ou mesmo hegemônica durante os anos 70 na França (CASTEL, 1973) – vai abordar a questão das perversões sexuais. Trata–se de uma crítica dos fundamentos históricos da abordagem freudiana das perversões. Ele reconstitui a pré–história psiquiátrica das contribuições freudianas a uma teoria das perversões, assim como seus desenvolvimentos durante a evolução da teoria psicanalítica em Freud e certos psicanalistas posteriores, como Lacan, que são incluídos, integralmente, em uma história dos desenvolvimentos da psiquiatria.

"Tentamos, portanto, compreender desde quando e em que condições a medicina se tornou referência maior, quase única, no estudo das perversões, pois nem sempre foi assim, e não existe nenhuma necessidade a priori de que o seja. A inexistência de herdeiros das funções da religião, a eficácia medíocre do direito positivista, que peca por excesso ou por falta, e o prestígio das ciências no século XIX e da medicina entre as ciências explicam aquilo a que chamamos a apropriação médica das perversões" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 9).

3.1. A medicalização como forma de conhecimento ideológico

Inscrevendo–se numa perspectiva crítica inspirada em Althusser, Lantéri–Laura analisa as condições de produção do discurso médico sobre as perversões e distingue os elementos que dizem respeito ao desenvolvimento de um conhecimento científico e positivo das perversões daquilo que permanece fortemente inspirado e influenciado pelas opiniões dominantes do senso comum, e pelas categorias penais.

"O discurso científico tanto é conhecimento (verdadeiro ou presumidamente verdadeiro) dos fenômenos quanto conhecimento das opiniões (sociais) sobre esses mesmos fenômenos. Pretender interessar–se apenas pelo conhecimento dos fenômenos é adotar de antemão uma posição preconcebida sobre o conhecimento das opiniões, pois equivale a admitir, antes de qualquer exame, que as opiniões se reduzem a conhecimentos falaciosos e imperfeitos, destinados a desaparecer quando se mostra o conhecimento verdadeiro. Ora, a coisa não é bem assim. Se, em vez de nos interessarmos pelas perversões, abordássemos a tuberculose pulmonar, diríamos que seu estudo nada tem a ver com o das múltiplas opiniões do século XIX a seu respeito, pois, a partir do conhecimento exato das lesões cavernosas, das células–gigantes foliculares e do bacilo de Koch, instaurou–se um tipo de saber que é a verdade desses fenômenos, e não uma opinião cultural a mais a respeito deles: o estudo das opiniões continuaria a ser objeto legítimo de uma pesquisa histórica rigorosa, mas nada teria em comum com a pneumofisiologia, nem sequer na eventualidade de um mesmo tisiologista realizar os dois estudos. Em matéria de perversões, não podemos esquecer que é a doxa que delimita o campo dos fenômenos que a episteme irá tratar: a opinião vem indicar o campo dos comportamentos perversos, e o conhecimento, em relação a ele, permanece tributário da opinião, ainda que modifique, ao longo do trajeto, a extensão desse campo. Por isso é que, restringindo–nos vigilantemente às distinções necessárias, deveremos, ao mesmo tempo, elucidar um certo número de teorias psicopatológicas das perversões e compreender suas relações com as representações sociais que ajudam nossa cultura a se conformar com a existência das perversões e com a presença dos perversos" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 14).

O propósito é claro e direto: o discurso médico sobre as perversões sexuais obedece a uma determinação social e ideológica, na raiz de sua elaboração, ao mesmo tempo em que preenche funções sociais múltiplas, que excedem o campo da medicina e da psiquiatria. Em termos althusserianos, a medicina das perversões não realiza o "corte epistemológico" que pretendia ter efetuado, em relação ao campo religioso e jurídico e em relação à doxa. Lantéri–Laura desconstrói, assim, o mecanismo da constituição do pensamento médico a partir dos pré–julgamentos e pressuposições ditados pela "ética social".

O funcionamento do pensamento científico é completamente coerente e rigoroso; contudo, ele teria sido aplicado sobre os objetos ditados pelos princípios e uma lógica que lhes são exteriores e estranhos:

"Não poderíamos, salvo enceguecimento, esquecer que o modelo explicativo assim conservado, seja qual for o registro a que pertença, foi elaborado através da aplicação de um método patogênico extrínseco a um conjunto de condutas identificadas de antemão por motivos alheios a esse método e, na totalidade dos casos, por razões de ética social. Mesmo que o conhecimento nos parecesse perfeito, não poderíamos esquecer que ele foi adquirido a partir da observação de múltiplos casos identificados como perversões por razões que nada têm a ver com esse conhecimento, e que sempre acabam por se revelar culturais. Mesmo que o saber levasse a conservar critérios que, como a renegação ou o sexo cromossômico, não são sociológicos em si, persistiria o fato de que os fundamentos empíricos desse saber decorreram de uma amostragem realizada por motivos culturais. Uma outra escolha dos casos clínicos teria, sem dúvida, levado a um saber diferente, e as certezas comumente aceitas continuam a sê–lo enquanto nos eximimos de examinar suas origens clínicas: poucos, aliás, manifestam vontade de fazê–lo" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 137).

A função moralizadora exercida pela medicina sobre a sexualidade não é, portanto, fundada sobre princípios diferentes daqueles que são procedentes do senso comum. A medicalização das perversões não faria mais que fornecer as justificações médicas e científicas, permitindo estabelecer os novos tipos de controle e de sanções sobre certas condutas sexuais consideradas a priori como desviantes. Contudo, as coisas não são tão simples porque os médicos, como atores sociais, estão também engajados nos debates de sua época e as posições que eles assumem nesses debates vêm, por sua vez, orientar suas elaborações científicas e médicas.

Esta questão aparece de forma mais clara no estatuto atribuído à homossexualidade e os debates que aí serão desenvolvidos, a partir de meados do século XIX e ao longo de todo o século XX3 3 Os debates sobre o estatuto legal e médico da homossexualidade prosseguiram durante o século XX. Ver sobre esse ponto: Bayer (1981). . De maneira geral, Lantéri–Laura considera que a medicina e a psiquiatria desenvolvem saberes que são coerentes com os pensamentos médicos dominantes de sua época, mas que eles permanecem fundados sobre pressupostos sociais e ideológicos que lhes escapam. A apropriação médica das perversões sexuais seria em última análise redutível a uma aplicação da linguagem e da lógica médicas a objetos não–médicos e à sua transformação progressiva em objetos médicos, podendo ser tratados por procedimentos médicos. Porém, essa transformação em objetos médicos permaneceria incompleta.

3.2 Os diferentes modelos da medicalização das perversões

Na medida em que a medicina e a psiquiatria estavam em plena evolução durante o século XIX, evolução que se traduziu por uma elaboração sucessiva de modelos explicativos do funcionamento psíquico, mental e cerebral, assim como das condutas, Lantéri–Laura faz aparecer as oscilações, descontinuidades e rupturas do saber psiquiátrico sobre as perversões sexuais, entre o somático, o psíquico e a anátomo–fisiologia do sistema nervoso. A esse respeito, a distinção estabelecida por Arnold Davidson, um comentador americano de Michel Foucault, entre o "estilo de raciocínio anatômico", que diria respeito principalmente à medicalização da masturbação como conduta e como etiologia de toda uma série de perturbações somáticas, e o "estilo de raciocínio psiquiátrico", que rompe com a abordagem anatômica da sexualidade e que contribui para a emergência da sexualidade moderna com sua dimensão psíquica, não é suficiente para compreender as diferentes abordagens das perversões sexuais que se desenvolvem no interior do campo da psiquiatria (DAVIDSON, 1987). A história da psiquiatria não se situa exclusivamente ao lado do estilo de raciocínio psiquiátrico e permanece marcada pelas oscilações entre os modelos que atribuem uma autonomia à vida psíquica e aqueles que são fundados sobre a ancoragem do psiquismo na neurologia. Além disso, Lantéri–Laura difere de Foucault ao atribuir à homossexualidade uma posição central na constituição e na evolução das idéias psiquiátricas sobre a sexualidade e na gênese da sexologia.

3.2.1. Psiquiatrização versus penalização das condutas sexuais

Lantéri–Laura expõe a gênese da medicalização das perversões sexuais na França e na Alemanha de acordo com diferentes momentos teóricos. Em um primeiro momento, retoma autores como Esquirol ou Lunier, que consideraram os comportamentos criminais com conotação sexual (a violação de sepultura, incluindo a violação dos cadáveres, por exemplo) como uma forma de alienação mental grave. A preocupação da psiquiatria, em sua oposição ao juiz, é tratar uma doença para prevenir a recidiva, em vez de punir um criminoso. A medicalização das perversões incide então sobre as aberrações extremas e monstruosas do erótico, e as associa às formas graves de alienação mental. Uma parte da psiquiatrização das perversões sexuais visa, assim, a distinguir as perversões sexuais inaceitáveis pela ordem social e ressaltar a patologia mental mais severa daquelas que são mais aceitáveis pela ordem social, que ressaltariam muito mais a categoria do "ridículo" que aquela do "monstruoso", e que seriam associadas a formas mais ligeiras de patologia mental.

Sempre com a idéia de subtrair as "variedades" do comportamento sexual da influência das legislações repressivas, Lantéri–Laura lembra que os médicos alemães empreenderam a medicalização da homossexualidade em resposta e em oposição ao famoso parágrafo 175 do Código Penal alemão adotado em 1871 e que não seria abandonado até 1969. Eles se situam na linhagem do jurista alemão Karl Ulrichs, o primeiro a exprimir publicamente sua homossexualidade e a desenvolver uma argumentação segundo a qual a homossexualidade é natural (Kennedy, 1988). Ulrichs inventa então o termo uranismo para designar um modo particular de satisfação sexual, derivado de um dado natural, expresso pela metáfora da "alma de mulher num cérebro de homem", ou ao invés, do "cérebro de uma mulher no corpo de homem". Contudo, em todos os casos, em relação e em adequação com a natureza, e não contra ela. Ao mesmo tempo, em 1869, o psiquiatra Karl Westphal propõe o termo de "sentimentos sexuais contrários" para designar as pessoas atraídas pelas pessoas do mesmo sexo e que experimentam aquilo que é sexual de maneira contrária à média. A história reterá o termo "inversão sexual", que será retomado posteriormente por Krafft–Ebing e por Freud.

Tem–se, portanto, um primeiro momento durante o qual a homossexualidade começa a ser considerada como uma dimensão "natural" e fundada sobre a defasagem e a inadequação entre o invólucro corporal e o espírito. Assim, os primeiros sexólogos tentam fazer sair a homossexualidade da categoria jurídica de "contra a natureza", ressituando–a medicamente na ordem de uma variedade aceitável da natureza.

Essa primeira forma de medicalização das perversões visa a subtrair um conjunto de condutas relativamente díspares, como a necrofilia e a homossexualidade, da influência da justiça penal, nelas "encontrando" em certa medida uma determinação patológica.

3.2.2. Psicologização da sexualidade

Lantéri–Laura aborda em seguida como Albert Moll direciona a psiquiatrização da homossexualidade no sentido de uma psicologização global da sexualidade, e da homossexualidade em particular. Moll situa a origem do instinto genital na "ação do espírito" e refuta as teorias médicas da sexualidade ancoradas numa dinâmica somática.

"O que é perturbado na inversão do instinto genital é a ação do espírito sobre o sentido genital. Ora, todas as representações mentais que despertam o instinto genital agem como excitantes dos órgãos sexuais. Em seu estado normal, o sentido genital do homem é excitado pela representação mental da mulher; com o uranista, a excitação é provocada pela idéia do homem. Nele a influência das idéias sobre a inclinação sexual se encontra conseqüentemente desviada. Somos assim conduzidos a colocar a sede da inversão sexual no lugar onde as idéias despertam o instinto sexual, ou seja, de acordo com os dados modernos, no sistema nervoso central, e mais particularmente no cérebro" (MOLL, 1893, p. 225 apud LANTÉRI–LAURA, 1994).

3.2.3. A anatomofisiologia

A medicalização das perversões sexuais se inscreve, com a obra do psiquiatra francês Magnan, no campo da anatomofisiologia. Magnan propõe uma teoria das localizações cerebrais das estimulações das diferentes anomalias e perversões sexuais e do funcionamento normal da sexualidade.

"A sexualidade normal, para Magnan, corresponde a um funcionamento harmonioso e equilibrado das relações hierárquicas entre o arco reflexo espinhal e os centros corticais. Ele irá classificar as perversões e fornecer uma explicação neurofisiológica global, com um modelo simples e uma terminologia anatômica" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 49).

Lantéri–Laura nota, além disso, que Magnan inaugura a observação clínica da medicina sobre as perversões sexuais, tentando individualizar as particularidades do funcionamento das estruturas cerebrais e deslocando o interesse da medicina das condutas perversas para a estrutura patológica do paciente. A identificação das zonas cerebrais implicadas nas condutas sexuais constitui, assim, a "via real" de acesso à globalização do sujeito e a instauração de técnicas terapêuticas.

"As perversões sexuais puderam então ser compreendidas como condutas que permitiam atingir o orgasmo com um funcionamento neurofisiológico incomum e desarmônico: a ninfomania era uma perversão, não porque chocasse a decência, mas porque correspondia à prevalência do centro medular sacro, habitualmente subordinado aos centros superiores. Não havia nela bem nem mal, e sim uma natureza; essa natureza, ademais, não se definia por nenhuma teleologia, e por isso é que a reprodução nunca foi um critério no pensamento de Magnan; a ordem natural era a da hierarquia dos centros nervosos, demonstrada independentemente de qualquer preocupação com a moral ou com a finalidade biológica. Os perversos não o eram nem porque fizessem amor diferentemente da média das pessoas, nem porque suas condutas não levassem à fecundação, mas porque seus comportamentos correspondiam a uma desestruturação da ordem do sistema nervoso central. Havia uma raiz de sua pertinência ao domínio do patológico" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 55–56).

3.3. A dissociação entre a reprodução e o orgasmo

Lantéri–Laura recorda que o enraizamento do instinto sexual no "cérebro" e o estabelecimento do princípio da centralidade do psiquismo na sexualidade contribuíram para a dissociação das dimensões eróticas e reprodutivas da atividade sexual e a uma redistribuição do estatuto do normal e do patológico que lhes foram atribuídas na medicina do século XIX. O fato de atribuir a origem e a dinâmica do "instinto sexual" ao psiquismo contribuiu para abandonar a idéia de um ato sexual natural destinado exclusivamente à procriação. O abandono desta idéia se fará de modo progressivo, com a modificação do estatuto relativo dos diferentes aspectos da atividade sexual e de sua suposta etiologia. Lantéri–Laura lembra, em especial, que Krafft–Ebing, cuja obra Psychopathia sexualis (publicada pela primeira vez em 1886) serviu de fundamento às classificações das perversões sexuais em psiquiatria, permaneceu dominado pelas teorias da degenerescência e pela "moral burguesa". Krafft–Ebing distingue as perversões graves, sinal de uma doença mental que necessita de internamento, e aquelas que ressaltam as fantasias "ridículas". Lantéri–Laura apresenta um julgamento severo sobre este:

"Krafft – Ebing pôde, assim, delimitar o campo específico das perversões, graças ao inocente e pedantesco termo parestesias, nele abrigando todas as satisfações eróticas cujo objetivo não parecia ser a preservação da espécie, através de um raciocínio que levou a reconhecer que, em última análise, o próprio prazer é que talvez fosse perverso, ou pelo menos, viciado e depravado" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 39).

Em contrapartida, Lantéri–Laura se mostra muito menos crítico na interpretação que faz da teoria de Magnan. Este observa uma diversidade de condutas sexuais que podem conduzir ao orgasmo, continuando ao mesmo tempo a considerar as condutas definidas como perversas como expressão de uma perturbação neurofisiológica. Ele escreve:

"De fato, devemos observar que, na obra de Magnan, a sexualidade nunca foi reduzida à procriação, e que, ao ser definida em termos anatômicos e fisiológicos, ela pôde ter–lhe delimitado um campo em que a fecundação era apenas uma ocorrência entre outras, e onde o prazer não mais pertencia ao sagrado nem ao proibido" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 55).

Lantéri–Laura apresenta uma apreciação diferente sobre Moll, que se teria libertado de maneira bem mais radical da moral burguesa endossada por Krafft–Ebing, desenvolvendo uma explicação global e de tipo fundamental da sexualidade. Para Moll, a função principal da sexualidade reside na produção e na obtenção do orgasmo. Moll se fixa principalmente no estatuto da homossexualidade masculina:

"A sexualidade correspondia, primeiramente, à produção do orgasmo; os membros da espécie humana chegavam a este de diversas maneiras, e alguns só conseguiam fazê–lo com parceiros de sexo igual ao deles; somente quando sofriam com isso é que o terapeuta devia ocupar–se com o assunto, tendo, aliás, pouca probabilidade de êxito" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 36).

Em outro texto sobre a vida sexual da criança, que não é citado por Lantéri–Laura, Moll aparece como o primeiro médico a construir uma teoria das diferentes fases do orgasmo e a estabelecer uma distinção entre a maturidade das capacidades psicossexuais da criança e sua capacidade reprodutiva (MOLL, 1929). Desta forma Lantéri–Laura evidencia como, desenvolvidos a partir da medicalização da homossexualidade, a referência ao psiquismo (enquanto fonte do instinto sexual) e a atribuição de uma finalidade erótica à atividade sexual (como produção do orgasmo) permitem construir uma teoria geral da sexualidade que leva em conta o bem–estar e o sofrimento dos indivíduos como critério principal de intervenção psicoterapêutica.

4. Discussão

Como já havia observado o historiador Faure (1998, p. 53–68),

"o termo medicalização designa realidades múltiplas, remete a origens diferentes e suscita interpretações opostas. Bem mais que um objeto de consenso, a noção de medicalização é uma inesgotável fonte de debate entre os historiadores, o que faz sua riqueza, mas também sua ambigüidade".

A leitura em paralelo dos textos de Foucault e de Lantéri–Laura ilustra perfeitamente essa diversidade de interpretações da medicalização. Se Foucault emprega freqüente e repetidamente o termo medicalização, Lantéri–Laura o emprega bem menos e prefere a expressão "apropriação médica". A diferença na escolha de termos remete a uma diferença de construção do campo de análise. A noção de medicalização remete a uma problematização que excede o campo da medicina stricto sensu, e que faz pensar num processo de tipo centrífugo no qual as idéias, as práticas médicas e os valores médicos irradiariam o mundo social. Lantéri–Laura consagrou–se a um trabalho muito mais próximo de uma história da medicina e das influências ideológicas que guiaram a elaboração dos conceitos médicos e principalmente psiquiátricos, no que diz respeito às perversões sexuais. Ele representa um processo bem mais centrípeto da apropriação de domínios não–médicos no campo da medicina.

Além disso, tomando–se o termo sexualidade como ponto de referência, constatam–se ainda as diferenças entre os dois autores. De um lado, Foucault aborda a questão em termos de "dispositivo da sexualidade" e considera globalmente a sexualidade como uma dimensão central da relação com a verdade, relação que se opera através dos dispositivos de saber e de poder. A medicalização é considerada a dimensão principal da construção social e histórica da sexualidade, no momento de sua emergência no início do século XIX. Foucault construiu uma teoria sistemática que encara a medicalização da sexualidade como constitutiva da própria idéia de sexualidade (os saberes), de sua organização social (o poder) e dos conteúdos de sua experiência (a verdade); integrou diferentes dimensões que constituíram o campo da sexualidade (normal e patológica, reprodutiva e não–reprodutiva). Ele imaginou o processo da medicalização como difuso sobre o conjunto da sociedade e levado a efeito por instituições como a família, e estendeu a medicalização à biopolítica como forma de governo da vida. A sexualidade é concebida por Foucault como uma construção histórica e produto de um processo de medicalização.

Por outro lado, Lantéri–Laura elaborou uma história da apropriação médica das "perversões sexuais" na qual analisa as etapas e as dimensões da medicalização de um certo número de condutas sexuais, consideradas desviantes pelo direito penal e os bons costumes. Neste sentido, Lantéri–Laura não analisa a medicalização da sexualidade em seu conjunto, mas a medicalização das perversões sexuais. Lantéri–Laura destaca como esse processo está calcado tanto sobre as evoluções da psiquiatria e de seu papel no seio da sociedade do século XIX, quanto sobre a construção de teorias da sexualidade em geral, sobre as quais estão fundadas as teorias das perversões sexuais. Contrariamente a Foucault, Lantéri–Laura não propõe uma teoria geral da sexualidade e se dedica mais a estudar o aspecto particular que as perversões sexuais constituem, através de sua apropriação médica e reconstituindo suas principais etapas, através de uma história da psiquiatria (nela incluindo a psicanálise), desde o início do século XIX até meados do século XX.

Foucault e Lantéri–Laura não discutem a verdade nem a objetividade das teorias e dos saberes que eles analisam: Foucault retoma as abordagens "arqueológicas" e "genealógicas" desenvolvidas em seus trabalhos anteriores e visando a pôr em evidência as condições históricas que tornam possível o aparecimento dos enunciados, assim como os poderes que contribuíram para estabelecer o grau e a força de sua verdade.

Lantéri–Laura se situa numa perspectiva crítica de inspiração althusseriana, para evidenciar, de um lado, o impensado ideológico e os pressupostos culturais que escapam à consciência dos autores a partir dos quais as teorias médicas são elaboradas. Nesta perspectiva, a avaliação do grau de proximidade das teorias psiquiátricas das perversões sexuais com os bons costumes ambientes constitui o ponto de ancoragem de suas análises. Por outro lado, ele analisa a coerência das teorias em relação a seu contexto histórico – isto é, em outros termos, sua coerência lógica interna.

Onde Foucault escreve uma história da sexualidade mostrando como, a um dado momento dessa história, a medicina interveio na reinvenção do dispositivo de sexualidade, Lantéri–Laura escreve uma história da psiquiatria e da redefinição das condutas sexuais, já consideradas desviantes em outros registros, nos objetos médicos que são as perversões sexuais.

Finalmente, é na relação com a psicanálise que os dois autores diferem mais. Foucault parece excluir a psicanálise do campo de suas análises, esboçando ao mesmo tempo uma espécie de arqueologia da psicanálise que toma a forma de uma homenagem apoiada a Freud. Por um lado, ele relativiza a contribuição de Freud, ao afirmar que ele não inventou o "dispositivo de sexualidade" que teria sido "preparado há longa data" e, por outro, que:

"o bom gênio de Freud o tinha colocado num dos pontos decisivos marcados desde o século XVIII pelas estratégias de saber e poder, e que ele relançava assim com uma eficácia admirável, digna dos maiores espíritos e diretores de consciência da época clássica, a injunção secular de conhecer o sexo e colocá–lo em discurso" (FOUCAULT, 2001, p. 210).

Foucault considera várias vezes que Freud teria marcado uma virada no ocultamento e na ignorância/desconhecimento da sexualidade. Escrevendo que "num primeiro momento, aliás, a título de liberação do discurso e da escuta, Freud e Foucault fazem uma causa comum. O objeto parece o mesmo." (GAUCHET, 1994, pp. IX–LVIII), Marcel Gauchet esboçou a idéia de uma similitude de abordagens entre Freud e Foucault.

A tecnologia de poder descrita por Foucault se assemelha ao dispositivo psicanalítico a ponto de se confundir com ele, tanto do ponto de vista do procedimento clínico de colocação em discurso quanto das estratégias e finalidades interpretativas. Foucault faz a história do dispositivo religioso e médico da instauração do discurso do sexo e de sua interpretação, que ele afirma constituir "a arqueologia da psicanálise". Não é irrelevante que as últimas páginas da Vontade de saber sejam consagradas a uma recolocação em perspectiva de Freud no dispositivo de sexualidade.

Lantéri–Laura, que mantém sua análise no campo da história da medicina, recorda que Freud está bem situado no quadro da psiquiatria anterior a 1914 e que ele teria mostrado "muito menos crítica em relação aos seus precursores e seus contemporâneos do que geralmente se supõe" (LANTÉRI–LAURA, 1994, p. 61). Freud irá, assim, desenvolver a psicopatologia da vida sexual inscrevendo–se no quadro taxonômico e na descrição clínica efetuada de antemão por Krafft–Ebing e Ellis. Freud modifica profundamente a significação das perversões, livrando–as do estatuto de diversidade e de monstruosidade na qual elas foram envolvidas, para aproximá–las da sexualidade normal enquanto formas "incompletas" do desenvolvimento sexual. Lantéri–Laura recorda, com precisão, como Freud se inscreve nas categorizações existentes antes dele, no campo da psiquiatria, trazendo ao mesmo tempo uma forma de compreensão nova. Mostra–se muito mais crítico no que diz respeito à escola lacaniana e ao desenvolvimento da noção de "estrutura perversa" que regula de maneira simplista o problema da determinação das condutas perversas.

5. Epílogo

É impossível pronunciar–se atualmente sobre as razões que fizeram com que o debate entre Foucault e Lantéri–Laura não tivesse acontecido em suas vidas. Contudo, é mais surpreendente constatar que tal debate ainda não aconteceu e, mais amplamente, que um debate sobre a obra de Michel Foucault e suas contribuições a uma teoria da sexualidade também não teve lugar, no caso da História da loucura (GAUCHET, 1994).

Essa situação pode em parte ser explicada pela fraqueza das pesquisas em ciências humanas sobre a sexualidade na França e a ausência de desafios acadêmicos na matéria. O livro de Georges Lantéri–Laura constitui uma alavanca importante que permite abrir o debate sobre a história da sexualidade e de sua relação com a medicina, ao fazer aparecer as perspectivas de análise diferentes.

Outros autores, notadamente nos Estados Unidos, tais como John Gagnon (2004), desenvolveram uma obra que ajuda a objetivar as relações e os limites de Foucault e a dessacralizar sua obra. Tentamos entreabrir essa porta...

GAGNON, J. An interpretation of desire. Essays in the study of sexuality. Chicago: Chicago University Press, 2004 (edição brasileira: A interpretação do desejo. Ensaio sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro, Garamond, no prelo).

Recebido em 7/11/2005.

Aprovado em 2/12/2005.

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  • *
    Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista
    L'évolution psychiatrique n. 70, p. 283–300, 2005. Tradução para língua portuguesa: Bruno Dallacort Zilli (
    bdallacortzilli@yahoo.com) e Jane Araujo Russo (
  • 1
    Em português os termos
    aveu e
    confession têm o mesmo sentido. Reproduzimos aqui nota do tradutor para língua portuguesa da
    História da Sexualidade I: A vontade de saber, publicada na p. 58 da edição brasileira: "O autor emprega, em geral, dois termos,
    aveu e
    confession, que podem ser rigorosamente traduzidos em português por
    confissão. No texto os termos são quase sempre empregados como sinônimos, mas possuem conotações diferentes. No sentido geral que orienta essa parte, o termo
    aveu significa confissão, na acepção de 'declarar, dizer, admitir, atestar algo sobre si mesmo'. Nesse sentido, a
    confession seria mais uma das modalidades de
    aveu, a que é codificada na prática do sacramento cristão da penitência".
  • 2
    Outros historiadores da sexualidade, sobretudo Thomas Laqueur (2003), concordam com Michel Foucault, ao considerar que o interesse médico pela masturbação e a pedagogia de sua repressão aparecem por volta de 1710, com a publicação do livro de um autor mal–identificado:
    Onania ou o odioso pecado da autopolução e todas as suas temíveis conseqüências consideradas em ambos os sexos, com conselhos físicos e espirituais para aqueles que já se feriram por essa prática abominável. A publicação desse livro será seguida, em 1860, pela obra bem mais conhecida e difundida do médico Lausanne Tissot:
    Onanismo ou dissertação médica sobre os males produzidos pela masturbação. A primeira edição dessa obra foi publicada em latim, em 1858. Essas obras e a difusão de que são objeto testemunham o lançamento da campanha antimasturbatória que começa no início do século XVIII – ver Szasz, cuja primeira edição do livro
    Fabricação da loucura data de 1970 (traduzida em francês em 1976). Em entrevista realizada em 1975, Foucault reconhece que os trabalhos de Szazs, assim como os "antipsiquiatras" ingleses (D. Cooper e R. Laing), se desenvolveram na mesma época, em situação "de ignorância mútua" (FOUCAULT, 1994, p. 771, item 263; LAQUEUR, 2003).
  • 3
    Os debates sobre o estatuto legal e médico da homossexualidade prosseguiram durante o século XX. Ver sobre esse ponto: Bayer (1981).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      2005

    Histórico

    • Recebido
      07 Nov 2005
    • Aceito
      02 Dez 2005
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