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Terror e danação na Belém do Grão-Pará

RESENHAS E CRÍTICAS BIBLIOGRÁFICAS

Terror e danação na Belém do Grão–Pará

Flávio Leonel Abreu da Silveira

Professor adjunto no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Endereço eletrônico: flavio.leonel@terra.com.br

BELTRÃO, Jane Felipe.

Cólera: o flagelo da Belém do Grão–Pará.

Belém: Museu Parense Emílio Goeldi/UFPA, 2004.

1855. O mar revolto sacode violentamente a galera Deffensor. O turbilhonamento assustador das vagas põe em pânico uma tripulação fraca que padece de um mal que já ceifou a vida de alguns embarcados. A náusea, as fortes solturas e as dores no corpo mesclam–se à experiência cinestésica oriunda da agitação marítima. Os imigrantes portugueses que seguem para Belém do Grão–Pará sonham com um Novo Mundo, ainda que sofram maus–tratos do capitão do navio ou enfrentem as insalubres condições da embarcação — receptáculo de inúmeras pestilências, como nos lembra Corbin (1989). A imagem de um mundo repleto de prosperidade confunde–se com a tristeza perante a visão dos mortos, lançados ao mar em decorrência de uma moléstia atroz surgida ao longo da viagem.

1991. Maria, uma "dona de doente", traz à tona por intermédio de sua complexa narrativa algumas situações do passado. Seu esforço em rememorar certos acontecimentos estende os fios elásticos da memória que alcançam um tempo distante, vivido por seus familiares. A labuta da memória permite, assim, que Maria evoque um conjunto de imagens que oscilam entre a bestialização do humano e a terrificante degradação dos corpos que agonizam numa Belém de outrora. As imagens amedrontadoras de um tempo repleto de dores e sofrimentos da "gente pobre" pulsam na memória coletiva belemense, teimando em não se dissipar, posto que o mal paira novamente sobre as pessoas no período em que Maria conta a sua versão acerca de uma epidemia ocorrida no século XIX.

O que aproximaria uma viagem transoceânica nos Oitocentos à mulher pobre que narra as histórias que ouviu de sua avó, no limiar do novo século? Qual a relação entre a agonia experienciada pelos imigrantes portugueses em 1855 e a narrativa desesperada de Maria em 1991, quando zelava por um parente hospitalizado?

A antropóloga Jane Felipe Beltrão, em seu mergulho na densa história da cólera na Belém do Grão–Pará, analisa o "flagelo" da doença que dispersou terror entre as populações belemenses, na segunda metade do século XIX. Portanto, a autora, a partir de seu feeling etnográfico consegue realizar a tessitura de uma narrativa histórica que aproxima experiências temporais distantes, fazendo emergir as entranhas da estrutura social de Belém por intermédio de seu olhar sobre o surto de cólera. O visceral e o nauseante; a excrescência e o asco; a dor e a degradação humanas são reveladas pela sutileza de uma historiadora atenta ao universo político–sanitário de uma cidade atemorizada.

O livro Cólera. o flagelo da Belém do Grão–Pará está estruturado em cinco capítulos, cujo esboço sucinto se empreende a partir de agora. No primeiro capítulo, "Epidemia e sociedade: como fotografar o social via cólera", a autora apresenta por intermédio da metáfora fotográfica um panorama da cólera na Belém do Grão–Pará, através da historiografia e dos relatos de pessoas como Maria em 1991. O segundo capítulo, "Do Douro ao Amazonas: via galera Deffensor, chega a cólera", revela a entrada do mal na cidade e sua relação com Portugal. O terceiro capítulo, intitulado "Além do flagelo, a polêmica", aponta a querela entre os profissionais da biomedicina no tratamento da cólera, para desembocar no capítulo seguinte, "Saberes, vaidades e poderes", onde o tema apontado anteriormente se acirra em torno da chamada "sangria". O último capítulo do livro, "Resgatando identidades na Belém de outrora", encerra com a reflexão acerca dos dramas dos usos da água e dos sistemas de despejos na cidade, revelando as desigualdades sociais e o fato de que o "fantasma da cólera" continuou a rondar a cidade passados 40 anos do surto, retornando a assustar Belém na década de 90 do século XX.

A riqueza da pesquisa efetuada pela autora desse livro reside no diálogo que a antropóloga realiza com a historiadora, ambas dimensões consubstanciadas na Jane pesquisadora, mas, acima de tudo, na pessoa atenta à realidade sócio–histórica de sua cidade natal. O livro, por certo, resulta de sua tese de doutorado em História, mas deve muito à antropóloga cuja experiência etnográfica na cidade de Belém empreende os encaixes temporais que situam o universo cultural belemense numa perspectiva de duração.

A narrativa presente na obra revela uma cidade aterrorizada diante de um mal invisível, mas cujas conseqüências são visivelmente devastadoras e estigmatizantes das pessoas adoentadas. O infortúnio assola a porção pauperizada da sociedade belemense, imersa numa realidade de abandono, no que tange à presença de um sistema de saneamento urbano, que inexistia ou era extremamente precário em alguns setores da cidade.

Um contexto como esse aumentava a suscetibilidade à doença, pois as condições de vida na Belém do século XIX, pelo menos no que se refere aos pobres e escravos, eram as piores possíveis, visto que a cólera encontrava neles, preferencialmente, seu nicho de manifestação. O terror realiza–se, então, sob a forma de um mal que degrada e bestializa as pessoas: vômitos e defecações liquefeitas incontroláveis, rostos macilentos e esquálidos imersos em dor e descaso oferecem um quadro de mal–estar fétido e nauseabundo, revelando a degradação física e moral pela via do estigma e da segregação.

Jane Beltrão consegue remontar a trágica experiência da disseminação da doença no contexto da capital da província, oferecendo um rico panorama das tensões político–sociais vividas pela sociedade belemense, evidenciando, assim, a presença mórbida do mal entre "as gentes" pobres e "de cor" que viviam a precariedade das condições sanitárias da época. Portanto, tais pessoas eram suscetíveis à cólera porque imersas num contexto de hierarquias sociais, que as excluía de qualquer possibilidade higienizadora do meio urbano no qual viviam, nos moldes dos espaços ocupados pelas camadas abastadas. A cólera, na perspectiva da autora, escolhia suas vítimas, na medida em que eram os pobres que contraíam a doença — entre eles, escravos, caboclos, "tapuios" e estrangeiros recém–chegados a Belém.

A autora apresenta um quadro de intervenções médicas na Belém do Grão–Pará que instaurava novos espaços de poder — ou de biopoder, nos termos de Foucault (1999). Tais métodos definiam estratégias de ação e controle dos corpos do "outro" que estavam associadas a certas perspectivas médico–sanitaristas, pois buscavam, por um lado, a higienização dos lugares freqüentados pelas "gentes" das "classes ínfimas" e, por outro, o combate aos "leigos não–médicos" ou "profissionais de saúde popular" (curadores, benzedeiras, raizeiros, homeopatas, entre outros), versados nos "diversos saberes relativos às artes de curar".

Tais estratégias, no entanto, disseminavam temores entre os doentes acometidos pela epidemia, pois se os corpos degradados pelo mal serviam como reservatórios bacteriológicos, também representavam espaços simbólicos para as disputas entre correntes de pensamento da biomedicina. Assim, os corpos coléricos — prostrados e quase disformes, porque alterados pela degradação física e a dor das cãibras constantes –, sem "o controle sobre si mesmos", posto que não detinham sequer suas excrescências — imagens animalescas; figurações grotescas –, necessitavam da tutela dos doutos saberes que aspiravam extirpar o infortúnio da velha Belém.

Sangrar ou não sangrar o enfermo? Eis a questão que dividiu médicos e atormentou as pessoas acometidas pela doença. A sangria, enquanto método terapêutico, significava um tipo de intervenção que enfraquecia mais o doente ou o auxiliava na eliminação do mal? A homeopatia, menos agressiva, resolveria uma doença tão violenta como a cólera, que instaurava um processo doloroso e vexatório, dada a bestialização do humano?

Os corpos eram, assim, os topos de manifestação do mal onde um conjunto de saberes se debruçava. Portanto, era acerca dos métodos profiláticos e das intervenções médicas — dividindo alopatas e homeopatas — que se deflagrava um campo de combate entre os intelectuais da época, segundo jornais e periódicos da época analisados pela pesquisadora. Os médicos, dessa forma, perscrutavam os corpos fragilizados dos doentes, tentando compreender e resolver a infecção instalada, ao mesmo tempo em que debatiam sobre os melhores procedimentos a serem utilizados no tratamento dos coléricos.

A autora, para compreender o fenômeno "cólera" no contexto da Belém oitocentista, lança mão de um diálogo frutífero com os viajantes estrangeiros que passaram pela cidade naquele período. O olhar dos viajantes é um registro precioso do período, fornecendo dados importantes para a compreensão da vida urbana belemense, na segunda metade do século XIX. Associado ao valioso recurso dos relatos de viagem, Jane Beltrão utiliza fontes iconográficas para informar e ilustrar o texto, oferecendo ao leitor um conjunto de imagens sobre práticas culturais e profissionais presentes tanto na Belém da época como em Portugal.

O cenário da Belém descrita pela pesquisadora revela, assim, imagens do terror que apontam para a presença assustadora dos corpos moribundos caídos nas ruas, dos mortos insepultos cuja putrescência empestava os ares de uma cidade em pânico, ao mesmo tempo em que eram devorados pelos urubus. Sendo assim, nos cemitérios da cidade existiam dois dilemas: se superlotados, os corpos jaziam expostos ao tempo; se muito distantes do local da(s) morte(s), não poderiam albergar os mortos. Daí a possibilidade de enterrá–los em casa, nos terrenos e "rocinhas" do espaço urbano. Os escravos, se não morressem do mal eram de grande valia no sepultamento das gentes: força escrava, expropriada e desfalecida, que servia para manter a ordem sanitária de uma Belém acometida pela cólera.

Jane Felipe Beltrão, em seu belo livro, oferta um quadro rico acerca de um evento doloroso da história do norte brasileiro que, por certo, não se dissipou da memória coletiva belemense. A autora fornece um olhar sobre o passado que retoma a cólera como um problema de saúde pública, cujo espectro paira sobre uma população suscetível ao mal. A atualidade da pesquisa realizada pela autora reside no fato de que a experiência social da epidemia da cólera, vivida no passado pelos belemenses, ao deixar marcas profundas no contexto urbano, infelizmente, faz lembrar que a doença ainda representa um perigo do qual as populações pobres das grandes cidades brasileiras — ao experienciarem as mazelas da falta de saneamento básico — não estão imunes.

Referências

CORBIN, A. O território do vazio. A praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 2006
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