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Conceitos de saúde/doença e a produção acadêmica

EDITORIAL

Conceitos de saúde/doença e a produção acadêmica

Kenneth Rochel de Camargo Jr.

O editorial deste número de Physis se divide em duas partes. A primeira, seguindo o modelo das últimas edições, apresenta uma visão geral da revista, iniciando, contudo, com uma observação, em primeira pessoa, do evento acadêmico que deu origem ao tema.

A segunda parte traz um comentário conjuntural sobre questões da produção acadêmica em Saúde Coletiva e sua avaliação, já levantadas no editorial do primeiro número do volume 15. Conforme já expressávamos na ocasião, entendemos que Physis, como revista de e para a Saúde Coletiva, não pode estar ausente de um debate com implicações tão amplas e profundas para o campo.

A partir deste ano estamos implementando uma política de expansão da Physis, a começar pelo número de edições, com três planejadas para 2007. Esperamos corresponder ao apoio de nossos leitores, e sobretudo dos autores, que cada vez mais nos honram ao escolher esta revista para publicar seus trabalhos, com nosso processo de crescimento com qualidade.

No olho do furacão

O tema desta edição de Physis é a discussão sobre a conceituação de saúde, uma das questões mais fundamentais para a própria existência do campo da Saúde Coletiva. Este é um debate mais antigo que o próprio campo, e continua sem que se divise seu fim. Evidentemente, isto não é um problema em si; a importância deste debate não está na sua solução, mas na produção crítica gerada por sua continuação, exemplarmente demonstrada no tema desta edição.

Os textos aqui reunidos têm sua origem num painel do 8° Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva/11° Congresso Mundial de Saúde Pública, realizado em agosto de 2006, no Rio de Janeiro, pela ABRASCO em parceria com a WFPHA (World Federation of Public Health Associations). O painel, com o curioso título de "Produção dos sentidos da e na saúde ou o que se quer dizer, afinal, isso cujo nome é saúde", foi proposto e organizado pelo GT de Comunicação e Saúde da ABRASCO, e os membros do painel, juntamente com seu coordenador, Fernando Lefevre (também editor do tema), são os autores dos artigos temáticos desta edição. O painel causou alguma comoção no congresso: previsto inicialmente para uma pequena sala, percebeu–se que à medida que se aproximava o horário do seu início a fila à porta não era compatível com o espaço disponível.

A RADIS relatou desta forma o episódio: "As discussões teóricas continuavam atraindo grandes massas, e na manhã do dia 25 elas protagonizaram animado tumulto. Marcado para a sala 2 do Pavilhão 4, o painel Produção dos sentidos da e na saúde atraiu mais gente do que a sala comportaria, e uma fila imensa se estendia por dezenas de metros. Irritadas, as pessoas exigiam: ' Auditório, auditório!' Funcionou. Cerca de 30 minutos depois, estavam todos alojados no segundo salão do auditório principal do Pavilhão 5." (RODRIGUES et al., 2006, p. 28).

Como testemunha ocular, meu único reparo seria ao uso da palavra irritadas; minha impressão é que o "clamor das massas", ainda que pedindo seriamente por um espaço compatível com o tamanho do público, era muito mais lúdico do que essa palavra dá a entender. De qualquer modo, o grande interesse pelo tema, tal como demonstrado nesse incidente, nos levou a tomá–lo como mote desta edição.

O artigo de Lefevre e Lefevre apresenta o tema a partir de uma visão dialética de um sistema produtivo de bens e serviços e os determinantes estruturais do processo saúde–doença. Segue–se o texto de Scliar, que traça um panorama histórico da produção de conceitos de saúde, contextualizada social, cultural, econômica e politicamente. Ayres, baseado em Habermas e Gadamer, ressalta os interesses práticos e instrumentais que se contrapõem à dupla tautologia das definições usuais de saúde e doença a partir da ausência de uma ou outra. Camargo Junior propõe a inversão das propostas que normalmente consideram problemática a ausência de uma definição de saúde, sugerindo que o estabelecimento de definições precisas do adoecer é pré–condição para a delimitação de intervenções sobre a saúde, evitando a superextensão medicalizadora das mesmas. Buss e Pellegrini Filho introduzem a discussão sobre os determinantes sociais de saúde, que em boa hora reintroduziu a dimensão político–social na epidemiologia contemporânea, reaproximando–a de suas origens históricas. Almeida Filho e Coutinho encerram o tema, propondo uma discussão do conceito de risco como aspecto fundamental do processo saúde–doença, a partir de uma discussão baseada na perspectiva da complexidade.

Na seção de temas livres, Mello e Erdmann discutem o cuidado bucal dos idosos, também se apoiando na perspectiva da complexidade. Segue–se o artigo de Rummler e Spínola, que analisam os processos de captação de dados nas pesquisas em Saúde Coletiva em nosso país, a partir da revisão sistemática de um considerável número de artigos. Por fim, temos Hübner e Franco descrevendo e analisando o modelo de cuidado desenvolvido no Programa Médico de Família, implantado pela prefeitura municipal de Niterói (RJ) em 1992.

Fechando esta edição, temos a resenha de Nunes, sobre Word as Scalpel: a History of Medical Sociology, de Samuel Bloom, e a de Faria e Paiva, sobre Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe, de Gilberto Hochmann e Diego Armus.

O impacto de um fator

Um artigo recente no British Medical Journal adverte para os problemas advindos da utilização crescente do fator de impacto (FI) calculado pelo ISI como pedra de toque das avaliações acadêmicas. Entre outros exemplos, o artigo cita que artigos resultantes de pesquisas laboratoriais são publicados em revistas com fatores de impacto geralmente maiores do que os oriundos de pesquisas clínicas, levando as universidades a seletivamente privilegiarem os primeiros artigos nas avaliações da pesquisa, o que por sua vez está causando uma redução no financiamento da investigação clínica (BROWN, 2007, p. 564).

Isto ecoa um alerta feito há mais de dez anos por Eugene Garfield, o inventor do fator de impacto, que dizia que "embora avaliações de periódicos sejam importantes, a avaliação do corpo docente é um exercício muito mais importante que afeta carreiras individuais. Números de impacto não deveriam ser utilizados como substitutos, a não ser em situações excepcionais." (GARFIELD, 1996, p. 413).

Entre nós, Carlos Coimbra, editor de um dos mais importantes periódicos de Saúde Coletiva brasileiros, os Cadernos de Saúde Pública, não apenas antecipava as críticas de Brown em artigo publicado pouco depois do de Garfield (COIMBRA, 1999), como realizava brilhante análise sobre as circunstâncias da produção acadêmica da Saúde Coletiva brasileira. Mais modestamente, o primeiro número do volume 15 de Physis (disponível pela SciELO), publicado em 2005, procurou contribuir para esse debate, com um tema voltado para a pesquisa no campo da Saúde Coletiva em nosso país, contando com colaboradores de todo o país na tarefa de analisar criticamente os modelos e processos de avaliação da pesquisa.

É com consternação que observamos que pouco mudou com relação ao apontado por todas essas vozes críticas em nosso meio; na área de Saúde Coletiva, o patamar superior da produção acadêmica de indivíduos e programas continua sendo determinado quase que exclusivamente por uma regra baseada apenas no fator de impacto (somente duas revistas nacionais da área, a Revista de Saúde Pública e os já citados Cadernos foram classificadas como Qualis Internacional A, independentemente do FI). Parece–nos que a comunidade de pesquisadores da área de Saúde Coletiva no Brasil deveria assumir maior protagonismo nessa discussão, sob risco de ser "ajustada" por forças externas à sua própria dinâmica, como nos famigerados "programas de ajuste" da dupla FMI/Banco Mundial.

A adoção recente de critérios que incorporam a publicação em livros é um passo encorajador nesse sentido, mas ainda resta muito a fazer para que se afaste o espectro do engessamento da produção de conhecimento. Mesmo este passo na direção correta, contudo, é comprometido pela imposição de limites artificiais a essa forma de publicação na produção total de um programa de pós–graduação. Isso penaliza em particular aqueles que têm importante expressão nas áreas de Ciências Sociais e Humanas ou de Planejamento, que têm nos livros seus veículos tradicionais de difusão.

Encerrando este rápido comentário, tomo emprestadas as palavras que Carlos Coimbra utilizou para encerrar seu artigo em 1999: "Afinal, como amplamente sabido, a pesquisa em saúde pública pode ter impactos sobre políticas, planejamento de estratégias de intervenção e de programas de saúde, ou sobre a organização de serviços, que de muito extrapolam a mera quantificação de referências/citações bibliográficas" (COIMBRA, 1999, p. 888).

Referências

BROWN, H. How impact factors changed medical publishing – and science. BMJ, v. 334, p. 561–564, 2007.

COIMBRA JUNIOR, C. E. A. Produção científica em saúde pública e as bases bibliográficas internacionais. Cad. Saúde Pública, v. 15, n. 4, p. 883–888, 1999.

GARFIELD, E. Fortnightly Review: How can impact factors be improved? BMJ, v. 313, p. 411–413, 1996.

RODRIGUES, B. C. et al. 8º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. RADIS, Rio de Janeiro, v. 50, p. 10–33, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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