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A saúde da Physis e a saúde do Dasein em Heidegger

Physis's health and Dasein's health according to Heidegger

Resumos

Ao investigar o significado do conceito de physis em Aristóteles, Heidegger parece defender a idéia de que o corpo físico guarda em si um poder espontâneo de cura, correspondendo à conhecida noção da natura medicatrix. Contudo, em suas exposições nos seminários de Zollikon, ele deixa claro que a saúde e a enfermidade são apenas modos existenciais do Dasein como ser-no-mundo. Por isso, o corpo, com sua fisiologia e sua patologia, estão sempre submetidos ao domínio da essência ex-tática do Dasein; o homem jamais é natureza, como pressupõe a ontologia cartesiana. O artigo realiza um confronto entre essas duas abordagens de Heidegger. Mostra também as conseqüências de três determinações da saúde que são as únicas coerentes com a ontologia fundamental de Heidegger: a enfermidade é uma privação ontológica; a saúde é a potencialidade de ser do Dasein em sua essência ex-tática; o estresse e a enfermidade relacionam-se com o círculo hermenêutico de interpelações e respostas que o Dasein mantém em seu vínculo essencial com o mundo.

Heidegger; saúde e natureza; analítica do Dasein; fenomenologia da saúde; filosofia da saúde


In his study about the meaning of the Aristotle's concept of physis, Heidegger seems to espouse the idea that human physical body keeps inside itself a spontaneous power of healing, that responds to the well-known notion of natura medicatrix. However, at the Zollikon seminars, he made clear that health and disease are nothing else than modes of Dasein's existential ways of being-in-the-world. Thus the body, its physiology and pathology are always submitted to the sway of the unfolding essence of Dasein; man never is nature as thinks the Cartesian ontology. This article carries through a confrontation between these two Heidegger's approaches to health. It also shows the consequences of three determinations of health in Heidegger's thought that are coherent with his fundamental ontology: a) disease is a an ontological privation; b) health is a potentiality of the being of Dasein in its unfolding essence; c) stress and disease relate to the hermeneutical circle of addresses and answers that Dasein upholds in its essential bond to the world.

Heidegger; health and nature; analytics of Dasein; phenomenology of health; philosophy of health


A saúde da Physis e a saúde do Dasein em Heidegger

Physis's health and Dasein's health according to Heidegger

Roberto Passos Nogueira

Médico; doutor em Saúde Coletiva, pesquisador no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e no Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília. Endereço eletrônico: roberto.nogueira@ipea.gov.br.

RESUMO

Ao investigar o significado do conceito de physis em Aristóteles, Heidegger parece defender a idéia de que o corpo físico guarda em si um poder espontâneo de cura, correspondendo à conhecida noção da natura medicatrix. Contudo, em suas exposições nos seminários de Zollikon, ele deixa claro que a saúde e a enfermidade são apenas modos existenciais do Dasein como ser–no–mundo. Por isso, o corpo, com sua fisiologia e sua patologia, estão sempre submetidos ao domínio da essência ex–tática do Dasein; o homem jamais é natureza, como pressupõe a ontologia cartesiana. O artigo realiza um confronto entre essas duas abordagens de Heidegger. Mostra também as conseqüências de três determinações da saúde que são as únicas coerentes com a ontologia fundamental de Heidegger: a enfermidade é uma privação ontológica; a saúde é a potencialidade de ser do Dasein em sua essência ex–tática; o estresse e a enfermidade relacionam–se com o círculo hermenêutico de interpelações e respostas que o Dasein mantém em seu vínculo essencial com o mundo.

Palavras–chave: Heidegger; saúde e natureza; analítica do Dasein; fenomenologia da saúde; filosofia da saúde.

ABSTRACT

In his study about the meaning of the Aristotle's concept of physis, Heidegger seems to espouse the idea that human physical body keeps inside itself a spontaneous power of healing, that responds to the well–known notion of natura medicatrix. However, at the Zollikon seminars, he made clear that health and disease are nothing else than modes of Dasein's existential ways of being–in–the–world. Thus the body, its physiology and pathology are always submitted to the sway of the unfolding essence of Dasein; man never is nature as thinks the Cartesian ontology. This article carries through a confrontation between these two Heidegger's approaches to health. It also shows the consequences of three determinations of health in Heidegger's thought that are coherent with his fundamental ontology: a) disease is a an ontological privation; b) health is a potentiality of the being of Dasein in its unfolding essence; c) stress and disease relate to the hermeneutical circle of addresses and answers that Dasein upholds in its essential bond to the world.

Key words: Heidegger; health and nature; analytics of Dasein; phenomenology of health; philosophy of health.

Introdução

Heidegger veio a se ocupar das questões da saúde e da enfermidade numa fase bastante tardia de sua vida, a partir de 1959. Nesse ano foi realizado o primeiro dos famosos seminários de Zollikon para profissionais da área de Saúde Mental, que se estenderam até 1969, sob a liderança do psiquiatra suíço Medard Boss. Não se pode dizer, contudo, que Heidegger tenha realizado um tratamento filosófico sistemático do assunto. Suas contribuições à interpretação fenomenológica da saúde mantiveram características fragmentárias e marginais, embora ele pareça ter tido o insight de que as análises das questões da saúde eram muito importantes para exercitar suas preocupações ontológicas costumeiras num domínio histórico–concreto da existência humana. De outro modo, não se justificaria sua dedicação e entusiasmo com esses seminários ao longo de um decênio. Por outro lado, a despeito do propósito didático de Heidegger, muitas das interpretações expostas nesses encontros revelam alto grau de complexidade filosófica, requerendo, para um entendimento correto, uma leitura cruzada com suas obras fundamentais, desde Ser e tempo (1927) até No caminho da linguagem (1959).

Os seminários de Zollikon significaram uma oportunidade valiosa para Heidegger poder abordar as enfermidades humanas em consonância com a analítica do Dasein e seus fundamentos ontológicos. Ele mesmo explica didaticamente que há dois tipos de fenômenos: o ôntico, que é perceptível, e o ontológico, que é não–perceptível. Mas o não–perceptível é a condição necessária para compreender o perceptível (HEIDEGGER, 2001b, p. 187). Suas discussões nesse campo levam–nos a concluir, por exemplo, que esquizofrenia é um fenômeno ôntico (analisado pela ciência da Psiquiatria), enquanto a saúde é um fenômeno ontológico.

O conceito de saúde, desde a Grécia Antiga, sempre preocupou os filósofos e os médicos que se interessavam por filosofia. Mas, em qualquer época, a compreensão e o diagnóstico das enfermidades foram sempre apoiados em algum tipo de ontologia, palavra que é sinônimo de metafísica. Embora os médicos de hoje não tenham consciência disso, sempre que dizem que alguém apresenta a enfermidade x ou y, estão recorrendo à concepção metafísica cartesiana, peculiar às ciências naturais modernas, que se fundamenta na distinção entre objeto e sujeito e na exigência de mensuração como critérios ontológicos para identificar os fenômenos ônticos.

É curioso constatar que o fundamento ontológico da biomedicina moderna não torna necessário que haja conceitos gerais de saúde e de enfermidade adotados amplamente. A biomedicina lida com a saúde do homem a partir de critérios de mensurabilidade. Para ela, tanto a saúde quanto a enfermidade são avaliadas de acordo com padrões de normalidade ou de anormalidade baseados nas pesquisas de variáveis clínicas, bioquímicas, radiográficas etc., de cada pessoa. São esses padrões que indicam se o paciente apresenta alguma entidade mórbida prontamente reconhecida como diabetes, hepatite, pneumonia etc.

Essa aparente falta de necessidade de definição das suas bases ontológicas é o trunfo maior da medicina moderna: ela sempre se diz científico–empírica e pode assim melhor combater as alternativas ditas "filosóficas" de interpretação da saúde. Mas, insiste Heidegger, não existe ciência sem uma ontologia definida, caso contrário, nada teria a dizer e a examinar de modo sistemático.

Em vários estudos, Heidegger dedicou–se a desvendar o conceito grego de physis como equivalente ao conceito de ser dos entes. É neste contexto, e mais precisamente, em sua interpretação do conceito de physis em Aristóteles, que Heidegger parece endossar o pressuposto de que a natureza é dotada de um poder espontâneo de cura (natura medicatrix), princípio que, como sabemos, foi muito caro aos médicos hipocráticos. Porém, nos seminários de Zollikon, ele nega que na interpretação da saúde do Dasein possa haver lugar para algo assim como uma saúde peculiar à physis, que seria a dimensão física da saúde, por mais que esse ainda seja o modo de entendimento dominante na medicina. Heidegger reafirma aí que saúde e a enfermidade são apenas modos de ser do Dasein.

A dimensão física da saúde esteve sempre presente nas doutrinas médicas desde os tempos da medicina hipocrática. Não é por acaso que, durante toda a Idade Média, os médicos internistas foram chamados de físicos, denominação que ainda se mantém no inglês physician. Sabemos que os médicos atualmente são formados com vistas a uma compreensão fisiológica da saúde e a uma compreensão fisiopatológica das enfermidades. Ademais, é comum falar de enfermidades físicas em oposição às enfermidades mentais. Nessas expressões se traduz a distinção ontológica cartesiana entre objeto e sujeito. Toda enfermidade física, em princípio, é considerada mensurável, enquanto que o mesmo não se pode dizer da enfermidade mental. Ainda assim, como Heidegger põe em evidência em relação ao pensamento de Freud, a psicologia moderna busca se ater ao paradigma causalista das ciências da natureza. Mas será que o homem é physis, é natureza, tanto em sua saúde quanto em suas enfermidades?

Nos seminários de Zollikon, Heidegger afasta a idéia de que se possa, com coerência teórica, dividir a medicina em duas esferas, dotadas de referenciais filosóficos distintos para a compreensão do homem e dos seus fenômenos de adoecimento, uma que cuida da saúde mental e outra que cuida da saúde corporal. A saúde física e a saúde mental devem ambas estar subsumidas à compreensão do ser do homem como ser–aí, ou seja, como Dasein, em seus modos de ser–no–mundo. Heidegger afirma que a essência do homem sempre se desdobra como potencialidade de responder a motivos de ação que o interpelam ou demandam uma resposta ao mundo. Portanto, o comportamento humano não pode ser analisado por referência a causas fisicamente determináveis e a supostos efeitos mensuráveis.

Para Heidegger, a liberdade é essencial ao homem em sua co–pertinência à clareira do ser, sem a qual seria impossível a compreensão dos entes em sua totalidade, algo que todos nós manifestamos em nosso cotidiano, embora sem dispormos, neste particular, de um entendimento ontológico explícito. Sendo assim, ainda que o homem possa ser examinado como natureza, que se submete a causas e a efeitos, como o faz a ciência moderna, deve–se ter em conta que disso resulta uma imagem que não faz jus ao que ele realmente é e que "atinja o homem como homem" (HEIDEGGER, 2001a, p. 54).

Assim, para sermos conseqüentes, quando aceitamos as teses centrais expostas nos seminários de Zollinkon, precisamos reafirmar o pressuposto de que a saúde humana é a própria essência ex–tática do Dasein. O homem em sua essência não é natureza. Fincado em sua liberdade, o homem é a potencialidade de ser–no–mundo, o que o torna distinto de uma pedra, de uma planta e mesmo dos animais.

Este artigo pretende explorar essa contraposição entre physis e Dasein no pensamento de Heidegger, na perspectiva de uma tarefa futura premente, que é o aprofundamento da compreensão ontológica e fenomenológica da saúde.

A physis e a arché da saúde

Heidegger trata da noção grega de physis em diversos de seus textos originais e seminários, a partir dos anos 1930, período que está associado com a virada pós–metafísica ou historicista (de seu pensamento e que encontra expressão plena na Introdução à metafísica (1935). Heidegger salienta nessa obra que a linguagem está sustenta no "é" (a cópula gramatical) como um dizer indicativo de uma compreensão pré–ontológica do ser, referida à totalidade dos entes com o qual o homem se defronta. O ser dos entes já está expresso na linguagem como um apanágio humano. Mas os filósofos, para falar com precisão filosófica do ser dos entes, costumam usar algumas delimitações que são formalizadas mediante um "e" ajuntado à palavra "ser". Assim, a metafísica vê–se obrigada a falar de "ser e vir a ser", "ser e aparecer", "ser e pensar", "ser e dever".

É em relação à análise do "ser e aparecer" que Heidegger explicita o conceito de physis. Esse conceito é entendido pelos gregos como a emergência dos entes, que é o desvelar–se dos entes para a visão clara do homem, desentranhando–se da sua ocultação. Physis é essa emergência dos entes para a presença, o que coincide com a compreensão da essência da verdade como aletheia, o desvelar de tudo o que é:

Para os gregos, a essência da verdade só é possível em unidade com a essência grega do ser como physis. Na força dessa singular e essencial relação entre physis e aletheia, os gregos diriam: o ente é verdadeiro na medida em que ele é. O verdadeiro como tal é o ente. Isto significa: o poder que se manifesta a si mesmo mantém–se em desvelamento (HEIDEGGER, 1959, p. 102).

Mais adiante, essa delimitação é ratificada de um modo a se converter na própria definição heideggeriana da physis:

Ser, no sentido de physis, é o poder que emerge. Em contraste com o tornar–se, é a permanência, a presença permanente. Em contraste com a aparência, é o aparecimento, a presença manifesta (HEIDEGGER, 1959, p. 125).1 1 Em Questões básicas da Filosofia, Heidegger reitera: "Constância, presença, forma e limite tudo isto, especialmente na simplicidade de suas relações recíprocas, pertence e determina aquilo que ressoa na palavra physis como a designação dos entes em seu modo de ser" (HEIDEGGER, 1992, p. 113).

Heidegger fala da physis sempre em conexão com outros conceitos gregos que se referem diretamente ao ser dos entes, não só aletheia, como também idea (sobretudo em Platão) e ousia (sobretudo em Aristóteles). Mas é evidente que o conceito grego de physis não abarca todos os entes que são e se manifestam no aparecimento. Uma casa ou uma mesa também são entes que se caracterizam por sua presença, forma e limite. Mas esses artefatos não integram a physis. Portanto, para os gregos, a physis também mantém um contraste com tudo aquilo que é produto humano, ou seja, com os entes que são produtos da téchne.

A contraposição entre physis e téchne é abordada detalhadamente no ensaio Sobre a essência e conceito de physis em Aristóteles, Física, B, 1 que faz parte da coletânea Marcos do caminho, publicada pela primeira vez em 1967. Não pretendo aqui rever cada passo da análise heideggeriana do pensamento de Aristóteles. Limito–me a destacar os pontos que têm relevância especial para a discussão atual, tendo em conta tanto a relação entre saúde e physis, quanto a relação entre téchne e medicina.

É bem sabido que os filósofos gregos sempre consideraram ser a medicina uma forma paradigmática de téchne; isto abre a discussão se a medicina é capaz de produzir a saúde como se fora um artefato. É esta temática que nos conduz a indicar que em Heidegger há uma simpatia pelo conceito de saúde como poder ou princípio da physis, que ele retira de Aristóteles.

Heidegger esclarece inicialmente que téchne não deve ser tomada como sinônimo de técnica, no sentido de metodologia e atos de produção, ou ainda, como sinônimo de arte, entendida como habilidade pessoal de produzir alguma coisa. Trata–se, antes, de uma forma de conhecimento, um saber–fazer em familiaridade com tudo o que fundamenta cada ato de produção, na busca de seu fim próprio (télos), que é chegar à forma (eidos) antevista do produto.

Pode–se perguntar, então, de que maneira a physis difere da téchne, já que ambas trazem os entes à presença e assim os mantém? A diferença está na forma como cada uma, physis e téchne, se relaciona com sua arché. Esta palavra costuma ser traduzida, de uma maneira muito abstrata, por "princípio". Heidegger adverte, contudo, que arché é não só a origem primordial do ente, mas também aquilo que o ordena e o mantém. Por isso, sublinha que arché abarca não só a noção de origem, o princípio de algo, como, igualmente, a noção de comando ou controle. Aqui há uma junção entre o originar e o ordenar. Nas palavras de Heidegger, a arché pode ser vista alternativamente como "uma ordenação originadora e uma ordenadora origem".

Deixando de lado toda a ampla análise desenvolvida por Heidegger em relação à questão do movimento (em sentido aristotélico, como phora), a diferença mencionada resume–se ao seguinte: os entes que são physis têm a arché em si próprios, enquanto os entes que provêm da téchne, ou seja, os artefatos, têm sua arché numa relação de externalidade. A arché dos artefatos encontra–se em quem os produz, de acordo com o télos (visão antecipada) que o artesão teve em vista. O vir à presença, próprio dos artefatos, não está vinculado a uma arché que lhe seja inerente, que lhes garanta sua origem e permanência, como se dá com a physis. Os artefatos têm sua arché num poder alheio, que lhe é acrescido externamente, a partir do ser do homem. Ao contrário, a physis origina–se, ordena–se e se mantém a si mesma e para si mesma.

Mas, quando um médico cura a si mesmo de uma enfermidade, essas duas formas de arché aparentemente se tornam indiferenciadas. Neste caso, parece que a téchne do médico é uma arché que lhe é inerente e que conduz seu corpo, como physis, na direção da saúde. Se o médico muda sua própria natureza corporal e se cura, a arché da téchne não vem de fora, mas está contida internamente nesse ente. Contudo, Aristóteles esclarece que neste caso as duas condições (o ser médico e a cura da enfermidade na physis) simplesmente estão coincidindo numa mesma pessoa, mas que o poder de curar, a arché da saúde, pertence sempre à physis, não é algo que tenha sido obtido externamente mediante a téchne do médico. A medicina jamais produz saúde diretamente, mas só pelas mudanças internas do corpo humano que estejam sustentadas na própria arché da physis.

Heidegger tece a esse respeito um amplo comentário sobre os limites da medicina e de suas tecnologias modernas, afirmando então:

A téchne pode apenas cooperar com a physis, pode mais ou menos apressar a cura; mas como téchne ela jamais pode substituir a physis e se tornar, em seu lugar, a arché da saúde como tal. Isso só poderia acontecer se a vida como tal pudesse ser um artefato tecnicamente produtível. Contudo, nesse momento não mais haveria tal coisa, a saúde, do mesmo modo que não mais haveria nascimento e morte (HEIDEGGER, 1998, p. 257).

A idéia de uma arché da physis que preside a cura as enfermidades é algo bastante familiar aos autores e praticantes da antiga medicina hipocrática. Um dos livros dos Prognósticos atribuídos a Hipócrates afirma expressamente: "a physis é o médico das doenças" (noúson phísies ietroí).2 2 Sobre as diversas opiniões expressas pelos autores hipocráticos a respeito da relação ou da cooperação entre medicina e physis, ver Edelstein (1987, p. 205–246). Tal idéia foi amplamente divulgada através da conhecida expressão latina natura medicatrix e veio a se constituir num dos pilares das múltiplas posições filosóficas "naturalistas" que ao longo dos séculos se opuseram ao ímpeto interventor da medicina e de seus praticantes, afirmando que a medicina, com seus recursos terapêuticos diversos, jamais pode ser tomada isoladamente como a razão da cura das enfermidades.

Diante desse pressuposto clássico sobre a relação entre a arché da physis e a saúde, o que se afigura estranho é que Heidegger o endosse por completo, não advertindo o leitor de que tal pressuposto pertence a uma outra ontologia que não é aquela que ele mesmo esposa desde Ser e tempo, com o firme intento de superar a metafísica da tradição. Acontece que na doutrina das virtudes curativas da physis, o homem está nivelado ao animal, porque o princípio da natura medicatrix pode ser adotado literalmente pela medicina veterinária, até porque muitas enfermidades são comuns aos homens e aos animais. Heidegger, sempre encantado com o pensamento grego nas suas raízes, inadvertidamente passa adiante uma interpretação naturalizadora do homem que é incompatível com sua ontologia fundamental, para a qual o homem jamais pode ser concebido essencialmente como um ser natural. É difícil aceitar esse nivelamento do homem ao animal através da saúde da physis, se, como será visto adiante, Heidegger afirma que todo adoecimento e toda manifestação corporal do homem vincula–se à essência ex–tática do Dasein e a seu comportamento singular como co–pertinente à clareira do ser.

O paradigma grego de cura pela arché da physis parece mesmo exercer uma forte fascinação sobre Heidegger. Numa das conversas com Boss, ele diz que se um paciente com malária toma o quinino sob ordem médica, o médico não é o agente causador da cura. Ele é apenas a ocasião ou o motivo para que esse medicamento elimine o protozoário, e que é o corpo do paciente que de fato o cura (HEIDEGGER, 2001a, p. 224). Nessa passagem, o princípio da natureza curadora retorna à cena, ao mesmo tempo em que Heidegger mais uma vez busca deixar claros os limites da tecnologia médica. Mas isto também está relacionado à posição crítica que manteve durante toda sua vida em relação aos poderes excessivos concedidos às tecnologias modernas, que reforçam o "olvido do ser". A medicina, com sua pretensão de brindar diretamente a cura e o bem–estar às pessoas, é apenas mais uma dessas tecnologias.

Historicamente tal compreensão do poder espontâneo de cura do corpo vem da antiga ontologia da physis assumida pelos médicos gregos, para quem a saúde é um equilíbrio de poder (isonomia) ou mistura apropriada (krasis) entre elementos ou humores do corpo, enquanto a enfermidade é o seu contrário, uma espécie de desequilíbrio ou desordem (diskrasia). A arché da physis pode realizar a reversão dessa condição de desordem porque dirige as forças da physis para a manutenção ou recuperação da ordem, já que, como diz Heidegger, ela é "uma ordenação originadora e uma ordenadora origem".

Mas os gregos sabiam bem que a saúde não pode ser reduzida a um jogo entre forças naturais do corpo. O próprio Aristóteles emitiu diversos comentários que transcendem essa perspectiva naturalista. Refiro–me em particular ao conceito de meson, que ele aplicou simultaneamente à ética e à medicina. Trata–se do imperativo de cada um escolher aquilo que está no meio, ou seja, o que é mediano entre o muito e o pouco, entre o exagero e a insuficiência, critério decisivo no caminho para chegar à felicidade e à manutenção da saúde:

O exercício tanto em excesso quanto deficiente destrói a força, e, do mesmo modo, o alimento ou a bebida que está acima ou abaixo de uma certa quantidade destrói a saúde, enquanto o que é proporcional simultaneamente produz, aumenta e preserva a saúde (Ética a Nicômaco, liv. 2, cap. 2).

Aristóteles, assim como os autores dos livros hipocráticos que trataram do regime para a saúde entendiam que essa justa medida associa de maneira definitiva a saúde a um dado comportamento do homem. A saúde é um comportamento fundado numa compreensão de si mesmo e do mundo, em que se busca alcançar uma proporção adequada, não como regra geral, mas de acordo com as condições de cada pessoa. Há aqui o esboço de outra ontologia da saúde em que esta não é vista como emergindo da tenacidade do próprio ser da physis.

Portanto, identificamos na própria ontologia de Aristóteles elementos essenciais que nos levam a interpretar a saúde num plano que transcende a physis. Por outro lado, deve ser lembrada aqui a seguinte asseveração de Heidegger nos seminários de Zollikon:

Não se pode subdividir o homem num âmbito que é natureza e outro mais central, que não é natureza. Como se poderão juntar duas coisas tão heterogêneas e deixá–las interagir? Antes, o chamado mais central não atingível de modo científico–natural deve perfazer também a essência do chamado âmbito periférico, por exemplo, o somático do homem, sem prejuízo de que se possa ainda observá–lo de modo científico–natural ou não (HEIDEGGER, 2001a, p. 54–5).

Por isso, a saúde da physis deve ser entendida como um mero fenômeno ôntico a ser observado a partir da invisibilidade da saúde do Dasein, que é o verdadeiro fenômeno ontológico. Sendo assim, não precisamos nos preocupar com o significado das citadas passagens da obra de Heidegger, em que ele concede destaque especial à "autonomia" da saúde da physis e a seu suposto poder de cura. O que devemos ter em mente é sua afirmação cabal de que no homem jamais se deve separar um âmbito periférico, que é natureza, de um âmbito central, que é Dasein.

Determinações heideggerianas para uma ontologia do Dasein na saúde

Nos seminários de Zollikon, boa parte das discussões prendeu–se à interpretação dos aspectos filosóficos da psicanálise e da doutrina freudiana, o que foi motivado pela composição profissional da audiência. Contudo, o interesse de Boss pelos fundamentos existenciais da medicina exigiu que Heidegger realizasse um estudo fenomenológico da saúde com bem maior amplitude. Desta tarefa Heidegger se desincumbiu em consonância com os pressupostos de sua ontologia do Dasein e com seu intento de repensar a tradição da metafísica a fim de poder superá–la.

No entanto, Heidegger não chegou a realizar uma análise sistemática dessa temática nos mesmos moldes de profundidade e completude com que abordou as questões da biologia e da zoologia em Os conceitos fundamentais da metafísica (HEIDEGGER, 2001c). Por isso, inúmeras lacunas interpretativas podem ser facilmente observadas nos textos dos seminários de Zollikon. Atualmente contamos apenas com um esboço de uma interpretação heideggeriana da saúde.

Assim, devemos nos ater a certas determinações ontológicas básicas que Heidegger enfatizou nas suas exposições em Zollikon. Embora tais determinações tenham sido explicitadas de forma não plenamente articuladas entre si, constituem preciosas indicações acerca de como devemos caminhar na investigação da saúde, da enfermidade e da cura como modos de ser do Dasein. Indico a seguir as três determinações que considero perfazer o fundamento da ontologia heideggeriana da saúde.

Em primeiro lugar, deve ser destacado o conceito de enfermidade como privação ontológica: "a doença é um fenômeno de privação" (HEIDEGGER, 2001a, p. 73). Heidegger insiste em que não se tome a doença como uma simples negação da saúde: não é o seu contrário de acordo com uma lógica dialética ou uma lógica formal; é um modo de existir que se evidencia como uma privação ontológica. O Dasein se mostra num modo de ser modificado ou perturbado, mas que, ainda assim, tem uma co–pertinência essencial com o modo de ser da saúde:

A doença não é a pura negação da condição psicossomática da saúde. O ser sadio, o estar bem, o encontrar–se bem, não está simplesmente ausente: está perturbado. A doença é um fenômeno de privação. Toda privação implica a co–pertinência essencial de alguma coisa que se privou de outra e que precisa desta outra coisa (HEIDEGGER, 2001a, p. 73).3 3 Tradução adaptada segundo a versão americana (HEIDEGGER, 2001b, p. 234). A tradução brasileira, infelizmente, padece de muitas incorreções e não logra se manter fiel às intricadas nuanças conceituais do pensamento de Heidegger. Por isso, nas citações que se seguem, recorro com freqüência à versão americana. A quem tiver interessado em aprofundar–se nesse assunto recomendo fortemente esta versão, que inclusive foi enriquecida por valiosas notas de esclarecimentos agregadas pelos dois tradutores, os professores Franz Mayr e Richard Askay.

Estar aberto para tudo o que está presente, diz Heidegger, é a característica fundamental do homem, que se dá por sua pertinência à clareira do ser. Mas onde a abertura impera pode também haver fechamento. Por exemplo, o portador de esquizofrenia é alguém que sofre da privação dessa característica humana de estar aberto e junto imediatamente ao que se faz presente. Mas, nessa situação de enfermidade, não se deve dizer que a abertura foi perdida; ela não desapareceu, foi apenas modificada para uma forma de ser diferente, que é a "pobreza de contato". Diz Heidegger que para entender o que seja o modo privativo de ser do homem na enfermidade precisamos ter uma "determinação suficiente" do que seja o estar com saúde, em contraste com seu modo de privação. Mas ele não forneceu um quadro interpretativo completo para decidir exatamente sobre esta e outras questões similares.

Os exemplos clássicos de privação que Heidegger cita são fornecidos pela história do pensamento metafísico a partir de Platão: a) o repouso é a privação do movimento; b) a sombra é a privação de luz. No repouso, falta movimento; na sombra, falta luz. Não creio, contudo, que esses dois exemplos ajudem o leitor a entender o que está em jogo na questão da enfermidade como privação da saúde, porque este último constitui um fenômeno infinitamente mais complexo e relacionado com a potencialidade de ser do Dasein, como será referido em seguida.

Contudo, há um resultado muito positivo desse passo preliminar de análise da saúde do Dasein. Como quer que se venha a interpretar fenomenologicamente a enfermidade, fica claro que Heidegger a considera um modo de ser geral e fundamental do Dasein. A privação da saúde deve ser estudada como um fenômeno ontológico e não apenas em suas modalidades ônticas. A análise da saúde coloca–se no mesmo plano filosófico em que foram desenvolvidos os "existenciais" que compõem a estrutura unitária do Dasein como ser–no–mundo, tal como estudados em Ser e tempo. Mas, por outro lado, haveria de se considerar a enfermidade em sua dinâmica ôntica: quais são os modos singulares e variáveis que adota na história do Dasein individual e na história mesma da humanidade? Para tanto, faz–se necessário desenvolver uma antropologia filosófica do normal e do patológico, ao mesmo tempo em que se elabora uma disciplina científica, correspondente a essa ontologia regional dos fenômenos da saúde (LoPARIC, 2002).

De qualquer maneira, o prosseguimento da interpretação fenomenológica dessas questões, nos planos ontológico e ôntico, teria que dar origem a redefinições conceituais que superassem não só a compreensão grega da saúde, como também os pressupostos cartesianos da medicina moderna. Saúde, enfermidade e cura são alguns dos conceitos que aguardam redefinição. Aqui novas palavras resultarão de um esforço de insight fenomenológico. Fica claro que a enfermidade precisará ser analisada como um comportamento do Dasein humano e jamais como um desequilíbrio da physis ou como uma causa bem definida e mensurável na intimidade dos tecidos, dos órgãos e na sua composição bioquímica.

Quero citar, neste contexto, um brilhante comentário de Medard Boss, que encontrou pleno endosso por parte de Heidegger:

A Medicina Psicossomática teria muito a ganhar se os médicos aprendessem a apropriar a experiência de que a totalidade da natureza corporal, até a última fibra nervosa, origina–se, desenvolve–se e se mantém contida nessa característica única, que não pode ser derivada de nada mais e que deve ser denominada de determinação da essência ex–tática do Dasein humano (HEIDEGGER, 2001b, p. 234).

A segunda determinação heideggeriana da saúde diz respeito à relação ontológica com a potencialidade de ser do Dasein. O modo de existir na saúde fundamenta–se na potencialidade de ser do Dasein como ser–no–mundo e jamais como um ego que tem um corpo relacionado com os "outros". Esta potencialidade, por sua vez, se fundamenta na abertura para todos os entes que vêm ao encontro do Dasein, em sua existência ec–stática na temporalidade. Abertura quer dizer a presteza do Dasein no modo de compreensão de si e dos entes como tais e em sua totalidade, estando também afinado (disposto) para que tal compreensão se dê. Segundo Heidegger, a abertura para a compreensão do ser dá–se como o dom que nos faz ser homem: só o somos porque, como seres que habitam a clareira do ser, compreendermos, graças à linguagem, o que é isto ou aquilo.

Buscando superar certas visões da história da metafísica, entende Heidegger que o Dasein humano não pode ser tomado nem como algo dado na presença (efetividade) nem como ser meramente possível de efetivação (possibilidade). O Dasein sempre se mostra, na cotidianidade do ser–no–mundo, como potencialidade de ser. Não é como uma matéria–prima, por exemplo, a madeira, cuja possibilidade de ser mesa se esgota quando a mesa é produzida. Em suas múltiplas atuações no plano ôntico, ou seja, em seu comportamento concreto, mantém–se sempre como potencialidade de ser, embora suas atuações possam, graças a isso, se tornar mais fáceis, diversificadas e complexas.

A potencialidade de ser do Dasein como ser–no–mundo deve ser tratada como uma unidade, mas pode ser distinguida em modos. O modo fundamental é a potencialidade de estar aberto e presente, unindo nesse estar presente as duas outras ec–stases temporais, passado e futuro. Contudo, Heidegger enfatiza bastante os modos da potencialidade de ser que se mostram nas situações particulares e históricas do Dasein. O que quer dizer situações históricas, neste caso? Heidegger responde:

Histórico é o modo e a maneira como me comporto diante daquilo que vem a meu encontro, diante do que é presente e do que já foi presente. Toda potencialidade para algo é uma determinada confrontação com o que foi, em vista daquilo que está vindo em minha direção e para o que estou resoluto (HEIDEGGER, 2001b, p. 159).

Desta maneira, a raiz da potencialidade humana de ser é a temporalidade. É o que vemos vir em nossa direção, a partir da perspectiva do futuro, pelo que tomamos conhecimento do que significam o passado e o presente. Heidegger menciona uma situação concreta para tornar mais clara a potencialidade de ser do Dasein:

O ser–no–mundo ex–stático tem sempre a característica da potencialidade de ser. Quando estou aqui sentado posso me levantar a qualquer momento e sair pela porta. Sou essa potencialidade de sair pela porta, mesmo se eu não a execute. Mas quando eu a executo e realmente saio pela porta, essa potencialidade de ser está ainda presente, exercendo sua presença e co–constituindo meu Dasein (HEIDEGGER, 2001b, p. 164).

Essa potencialidade ex–tática se prende à compreensão daquilo que agora faço neste recinto, como também daquilo que se encontra além da porta e também do que pretendo fazer ao sair pela porta. O sair pela porta em si também pode dizer algo; por exemplo, pode servir para mostrar meu desacordo com o que presenciei ou ouvi das pessoas presentes no recinto.

Continuarei com esse exemplo a fim de tentar esclarecer melhor a questão sobre a enfermidade como privação. Se estou paraplégico devido a uma enfermidade vascular ou neurológica, não posso caminhar e não conseguirei me levantar, caminhar e sair pela porta. Tenho a perfeita compreensão de onde e com quem estou e para onde quero ir, mas ainda assim não consigo caminhar por minha própria conta para alcançar a porta. O que aconteceu à minha potencialidade de me levantar e sair pela porta? Não se pode dizer que ela desapareceu. Ainda sou essa potencialidade, mas ela se me evidencia numa forma de privação. Perdi o acesso a essa potencialidade. Mas ao usar uma cadeira de roda, posso pelo menos parcialmente atuar de acordo essa potencialidade. A cadeira de roda é um instrumento de que lanço mão para acessar em parte essa potencialidade da qual fui privado devido a minha enfermidade.

Daí se conclui que o modo de privação peculiar ao Dasein nunca é auferido mediante a presença de um ente dado, ou seja, por uma "realidade" física bem identificada, como o faz a patologia médica moderna. A privação existencial da saúde refere–se sempre a um modo de ser potencial do Dasein. Tal privação se expressa numa peculiar linguagem de impotência, do seguinte modo: "não posso", "não posso mais", "não posso como os demais". Manifesta–se na cotidianidade como uma limitação na amplitude das realizações ônticas do "cuidado" (Sorge) que é o ser do Dasein, em seu exercício de estar–com (os outros) e das ocupações.

Essa interpretação está elaborada com base no que diz Heidegger na obra dos seminários de Zollikon, contudo quero sublinhar que o filósofo não estendeu sua análise até o ponto de deixar perfeitamente claro que toda privação da saúde se refere a um modo de potencialidade de ser do Dasein no mundo. Contudo, que a enfermidade deva ser assim entendida pode ser deduzido de várias passagens da obra, especialmente das referências à esquizofrenia e a sua peculiar falta ou pobreza de contato.

O Dasein é livre na plenitude de sua potencialidade de ser e em sua imprevisibilidade, já que nunca se sabe de antemão todas as atuações ("realizações") de que é capaz. Por isso, se de um lado a enfermidade restringe sua liberdade, por outro, aparece como motivo a que ele pode responder com sua habilidade de ser criador de mundo. Isto quer dizer que o Dasein pode atuar através de modos inéditos de potencialidade de ser–no–mundo, compensando ou mesmo superando sua privação. Nos meios de comunicação é grande a receptividade para esses modos que põem em ação uma criatividade compensatória, o que se observa não só em relação ao desempenho físico (e.g. as paraolimpíadas) como também ao desempenho intelectual (e. g. o caso bem conhecido de Stephen Hawking).

Entretanto, esses modos inéditos de potencialidade não abrem o caminho para a autenticidade do Dasein, mas apenas compensam suas deficiências do ponto de vista da cotidianidade decadente. O que é buscado é nada mais que uma adaptação aos requisitos que imperam na decadência. Mas, envolto na condição existencial das enfermidades, o Dasein também pode escolher–se a si mesmo, que é a escolha da autenticidade. Isto só é possível quando a privação de sua potencialidade de ser é tomada como motivo para dar–se tempo para si mesmo, para se ocupar consigo mesmo, permitindo que se angustie com seu próprio existir na perspectiva antecipadora da morte. Quem sabe, daí ele venha a se encontrar com seu momento de decisão, lançando–se a um projeto de autenticidade, no modo pessoal de ser, emergindo, portanto, do impessoal da decadência.4 4 Que o leitor compreenda que neste parágrafo estão contidas, em forma talvez indevidamente resumida, frases alusivas ao caminhar do Dasein para sua autenticidade, conforme a exaustiva análise contida em Ser e tempo (§ 46 a § 60).

Nos textos dos seminários de Zollikon, infelizmente Heidegger não chegou a abordar esses dois importantes pontos (o da potencialidade inédita e o da enfermidade como caminho para a autenticidade), mas ambos me parecem ser inteiramente compatíveis com seu pensamento.

Quero, por fim, ocupar–me com a terceira determinação heideggeriana da saúde, que se refere à interpretação do estresse. Segundo Heiddegger, o estresse vincula–se à faticidade do Dasein na cotidianidade, e deve ser remetido ao existencial que denomina de carga (Belastung). Esse existencial pode ser mais bem traduzido pela palavra fardo, para evitar associações indevidas com a idéia de carga usada nas ciências físicas e químicas.

Em situações históricas e individuais, o Dasein sempre se vê na contingência de responder a apelos ou interpelações de seu ser–no–mundo. O mundo sempre se dirige ao Dasein, interpelando–o e exigindo respostas. Esse encadeamento de demandas e respostas deve ser analisado como um círculo hermenêutico que se desenvolve como diálogo e confronto entre o Dasein e seu mundo, no momento presente que é sempre antecipador do futuro. Com tudo o que fala e expressa ao mundo, clara ou veladamente, com base em suas características ex–státicas, o Dasein responde de algum modo a essas interpelações. Isto é ontologicamente possível porque o Dasein é um ser aberto e não pode se furtar a seu destino de compreensão de tudo o que é no mundo. O Da do Dasein (em sua condição de ser lançado) se coloca sempre como aberto ao mundo. "As coisas e as pessoas" lhe falam e o que falam é compreendido em consonância com a afinação individual ("sentimentos") de cada um, como problemas e perturbações, ou seja, como estresse.

Daí que, nesse círculo hermenêutico de apelos e respostas, o homem tem um fardo para carregar: "a liberdade só pode ser encontrada onde há um fardo a ser carregado" (HEIDEGGER, 2001c, p. 182). A vida humana é impossível sem uma certa quantidade de estresse, diz Heidegger. Por outro lado, deve–se ter em vista que o estresse nunca é em si mesmo uma privação da potencialidade de ser do Dasein, mas, pelo contrário, contribui para a intensidade e diversidade dos modos de potencialidade. É o estresse que preserva a vida humana e a torna mais intensa e digna de ser vivida:

O ser humano não poderia viver sem esse ser interpelado. "Estresse" é algo que preserva a "vida" no sentido dessa necessidade de ser interpelado. Enquanto se pensa o ser humano como um Ego sem mundo, a necessidade do estresse para a vida não pode se tornar inteligível. Assim entendido, o carregar do fardo o estresse pertence à constituição essencial da existência humana (HEIDEGGER, 2001b, p. 137).

O fardo do estresse nos pesa de acordo com nossa disposição interna, ou na linguagem precisa de Ser e tempo, de acordo com a afinação em que nos encontramos no mundo.5 5 A versão brasileira infelizmente traduziu a expressiva palavra alemã Stimmung (afinação) por humor. Seguindo o espírito de um exemplo dado pelo próprio Heidegger, os ruídos que as crianças fazem na vizinhança de minha casa podem me perturbar bastante se eu não acolho o fato de que são nada mais que simples crianças. Se me lembrar das brincadeiras de minha infância ou da infância dos meus filhos, minha resposta talvez seja outra: posso até me sentir reconfortado com os ruídos. Os modos de ser do estresse estão relacionados à maneira como me afino para receber, acolher ou rebater as interpelações que o mundo dirige a mim. Aqui deve ser eliminada a idéia cientificista de que o estresse é o resultado de um estímulo que por si mesmo perturba alguém.

Mas pode–se perguntar: o que o estresse tem a ver com a saúde? Em primeiro lugar, cumpre lembrar que o estresse pode aparecer como "problemas de saúde" sob a forma de mal–estar, dores, indisposições, resfriados etc. Esses problemas mais ou menos perturbadores são componentes do fardo de cada um, às quais cabe bem a denominação de achaque, palavra de origem árabe.

Mas há outra idéia cientificista a descartar, a de que o estresse é causa das enfermidades propriamente ditas. Não há nunca um modo de ser do Dasein que se possa determinar como sendo causado, seja na saúde, seja na enfermidade. Como dito, o Dasein responde a motivos que devem ser entendidos como interpelações. Ora, não sendo causa, o motivo é apenas aquilo que nos move para um comportamento, para um determinado modo de ser. A resposta dada a uma interpelação é nada mais que um comportamento, ou, por outras palavras, é a atuação do Dasein de acordo com um modo de sua potencialidade de ser. O estresse e a enfermidade são modos diferentes de o Dasein responder a um motivo. Para esta análise, é preferível não falar de enfermidade, mas de padecimento, conforme sugerido por Nogueira (2006), para deixar claro que estamos voltados para uma outra ontologia que não a cartesiana. Com esta palavra está referida a privação de uma potencialidade de ser, em que o Dasein padece de uma falta, de uma carência.

Uma questão básica é a seguinte: o que interpela o Dasein e qual a resposta que dá a esta interpelação na cotidianidade? Considere–se a potencialidade de me levantar de uma posição deitada, caminhar e sair pela porta para responder a uma pessoa que me chamou num aposento que está além dessa porta. Ser chamado pelo meu nome é uma interpelação, alguém solicita minha presença. Isto é parte do estresse que mantém a vida e que, em algumas situações especiais, pode nos deixar profundamente irritados (sabe bem disso a mãe que vive a experiência de um filho que a chama repetida e insistentemente). Diante do chamamento, posso dar duas respostas: ir até lá onde se encontra a pessoa ou pedir para ela vir até onde me encontro. A primeira alternativa demanda mais esforço de minha parte. No entanto, se tenho um problema com minhas pernas e não posso caminhar, só resta a alternativa de que a pessoa venha a meu encontro. Não tenho como acessar o modo de potencialidade de ser pelo qual poderia sair caminhando. O mais certo é que ao me encontrar em tal condição de saúde ninguém me chame, porque sabe que não disponho da possibilidade de levantar e caminhar. Nessa mesma situação, se por acaso o ruído lá fora me incomoda e quero fechar a janela, não vou poder levantar para fechar a janela. Então, sou obrigado a pedir a alguém que o faça por mim.

O que isso tudo evidencia? Creio que essa situação ilustra três pressupostos teóricos importantes para a análise da dinâmica ôntico–existenciária da saúde:

a) A privação da potencialidade de ser no padecimento é equiparável a uma impossibilidade de dar resposta a um espectro mais ou menos amplo das interpelações que o mundo me dirige continuamente. Não é que eu me encontre surdo a essas demandas, porque continuo a entender o que significam. Mas, de certo modo, tornei–me mudo a elas. Não tenho o que dizer por minha própria conta, ou seja, diretamente através de meu comportamento, com base em potencialidades que antes exibia e agora se tornaram inacessíveis.

b) No padecimento o mundo me poupa em suas interpelações ou demandas. Meus filhos não me chamarão sem parar, mas virão à minha presença, se disso precisarem. O mundo me reconhece como privado de uma potencialidade e assim não irá se dirigir a mim com as demandas de sempre. Algo muda em relação ao fardo que tenho que carregar: o estresse excessivo pode ser aliviado. Mas isto implica outro peso, que é o vazio em relação às tarefas e diversões que antes me ocupavam e tornavam intensa minha vida.

c) Nessa condição privativa preciso sempre de ajuda. A dificuldade de manter o círculo hermenêutico que me liga ao mundo impõe a necessidade de ajuda. Minhas respostas devem ser agora amparadas em alguém (meu filho que vem a mim) ou em alguma coisa (eventualmente, uma cadeira de rodas para poder me locomover pela casa).

Esses três pressupostos indicam em conjunto que o modo de ser privativo da saúde, o padecimento, é acompanhado sempre de uma restrição da liberdade do Dasein. Diz Heidegger que a liberdade do homem é também o perigo maior que ele enfrenta, porque, nessa liberdade, que é sinônimo de potencialidade de ser, ele se mostra vulnerável e pode se perder a si mesmo:

O homem é essencialmente necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de se perder, de não conseguir lidar consigo. Este perigo é ligado à liberdade do homem. Toda a questão do ser–doente está ligada à imperfeição de sua essência. Toda doença é uma perda de liberdade, uma limitação da possibilidade de viver (HEIDEGGER, 2001a, p. 180).

Mas isto não deve ser entendido como uma necessidade de sempre contar com apoio de profissionais. Primariamente, o que é referido aqui é a ajuda humana de convivência no mundo, na qual o Dasein desde sempre se encontra, e só secundariamente diz respeito à ajuda profissional. O homem precisa de ajuda porque é sempre heterônomo em seu modo de ser–com–os–outros no mundo. O padecimento apenas torna mais ampla e diversificada essa necessidade de ajuda.

No padecimento dá–se a desestruturação da cotidianidade do Dasein, que lhe sobrevém pela dificuldade ou impossibilidade de assumir as ocupações e a convivência com outros, conforme as regras de repetição temporal características da mundanidade cotidiana. Isto pode significar, em termos prosaicos, algo assim: "não posso mais estar com meus amigos", "não posso me divertir ou trabalhar como fazia antes", "não posso fazer isto ou aquilo, sem precisar de ajuda".

Vejamos algumas situações:

– Estou tossindo muito e com febre; meu médico disse que é pneumonia e, por isto, estarei em casa pelo menos durante uma semana.

– Minha mãe faleceu, estou profundamente perturbado; não irei ao trabalho enquanto me sentir assim.

– Queimei seriamente minha mão; não poderei tocar piano durante um mês.

– Estou muito deprimido; vou tirar uma licença médica em meu trabalho.

Essas são expressões que correspondem à compreensão que o Dasein tem de si mesmo enquanto se encontra no modo da privação de sua potencialidade de ser. Note–se que motivos muito diferentes estão alinhados e que não nada há distinguindo o plano somático do plano psicológico quanto ao motivo que abre um padecimento. A perda da mãe não se diferencia da pneumonia.

O Dasein responde a motivos, mas sempre numa maneira que corresponde à sua liberdade essencial quer dizer, sempre de modo singular. Por isso, todo padecimento é um caminho de singularização, embora, na maioria das vezes, não desemboque num modo de autenticidade, mas apenas na recuperação de habilidades que permitirão ao Dasein seguir adiante na cotidianidade decadente.

Aqui surge uma pergunta clássica: quando podemos estar seguros de que de fato existe uma privação? Pode esse comportamento defectivo, o padecimento, resultar apenas de uma falta de coragem ou até mesmo de uma atitude oportunista?

Esse tipo de pergunta só faz sentido quando se raciocina com base em causas físicas ou mentais bem identificáveis e se busca fazer da saúde um padrão de moralidade para impor à humanidade, como tantas vezes aconteceu na história. O pressuposto que devemos adotar é outro: o da liberdade do Dasein. O padecimento pode ser, sim, uma espécie de "fraqueza moral"; pode ser, também, e muitas vezes o é, uma escolha do Dasein. Mas essa possibilidade não tem importância para uma análise existencial da saúde porque esta jamais insistirá na necessidade de identificar heróis para serem condecorados, nem vítimas de si mesmos para serem condenadas.

Recebido em: 30/01/2007.

Aprovado em: 18/09/2007.

  • EDELSTEIN, L. Ancient medicine Baltimore: Johns Hopkins University, 1987.
  • HEIDEGGER, M. An Introduction to metaphysics Yale: Yale University Press, 1959.
  • ______. Basic questions of Philosophy Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 1992.
  • ______. On the essence and concept of physis in Aristotle's physics. In: ______. Pathmarks., New York: Cambridge University Press, 1998.
  • ______. Seminários de Zollikon Petrópolis: Vozes, Petrópolis, 2001a.
  • ______. Ser e tempo Petrópolis: Vozes, 1989.
  • ______. The fundamental concepts of metaphysics: world, finitude, solitude. Bloomington: Indiana University Press, 2001c.
  • ______. Zollikon Seminars: Protocols/Conversations/Letters. Chicago: Northwestern University Press, 2001b.
  • LOPARIC, Z. Binswanger, leitor de Heiddeger: um equívoco produtivo? Natureza Humana, v. 4, n. 2, p. 383413, jul.dez. 2002.
  • NOGUEIRA, R. P. Para uma análise existencial da saúde Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 10, n. 20, p. 33345, juldez 2006.
  • 1
    Em
    Questões básicas da Filosofia, Heidegger reitera: "Constância, presença, forma e limite tudo isto, especialmente na simplicidade de suas relações recíprocas, pertence e determina aquilo que ressoa na palavra
    physis como a designação dos entes em seu modo de ser" (HEIDEGGER, 1992, p. 113).
  • 2
    Sobre as diversas opiniões expressas pelos autores hipocráticos a respeito da relação ou da cooperação entre medicina e
    physis, ver Edelstein (1987, p. 205–246).
  • 3
    Tradução adaptada segundo a versão americana (HEIDEGGER, 2001b, p. 234). A tradução brasileira, infelizmente, padece de muitas incorreções e não logra se manter fiel às intricadas nuanças conceituais do pensamento de Heidegger. Por isso, nas citações que se seguem, recorro com freqüência à versão americana. A quem tiver interessado em aprofundar–se nesse assunto recomendo fortemente esta versão, que inclusive foi enriquecida por valiosas notas de esclarecimentos agregadas pelos dois tradutores, os professores Franz Mayr e Richard Askay.
  • 4
    Que o leitor compreenda que neste parágrafo estão contidas, em forma talvez indevidamente resumida, frases alusivas ao caminhar do
    Dasein para sua autenticidade, conforme a exaustiva análise contida em
    Ser e tempo (§ 46 a § 60).
  • 5
    A versão brasileira infelizmente traduziu a expressiva palavra alemã
    Stimmung (afinação) por humor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      18 Set 2007
    • Recebido
      30 Jan 2007
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