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Biopolítica e medicalização dos anormais

Biopolitics and medicalization of abnormal ones

Resumos

O artigo aborda a temática da medicalização dos sofrimentos e das anomalias comportamentais numa perspectiva histórica. Analisa a emergência de uma nova configuração epistemológica do saber psiquiátrico ocorrida na segunda metade do século XIX. Tomando como ponto de partida os estudos sobre biopolítica da população de Foucault e Agamben, as reflexões de Canguilhem sobre as fronteiras difusas da normalidade e o curso que Foucault dedica aos anormais, o artigo estuda o surgimento de uma psiquiatria ampliada relacionada ao não-patológico. São analisados os Anais de Higiene e Medicina Legal e os Anais Médico-Psicológicos, publicados na França entre os anos de 1857 e 1924, com o objetivo de compreender de que modo foi construída essa medicina das condutas e quais foram as estratégias biopolíticas defendidas pelos teóricos da degeneração.

Psiquiatria; medicalização; anormais; história; Foucault


This paper approaches the thematic of the medicalization of sufferings and behavioral anomalies from an historical perspective. It analyzes the emergency of a new epistemological configuration of psychiatric knowledge that emerged in the second half of the 19th Century. Taking as starting point the studies on biopolitics of the population of Michel Foucault and Giorgio Agamben, the inquires of Georges Canguilhem about the diffuse borders between the normal and the pathological, and the course that Foucault dedicates to Les anormaux, this paper studies the sprouting of an extended psychiatry related to the non pathological dimension. The Annales d´hygiéne publique et de médecine legal and Annales Médico-Psicologiques, published in France between years 1857 and 1924, are analyzed with the goal of understanding the way by which it was constructed this medicine of the behaviors and those biopolitical strategies defended by the theoreticians of the degeneration.

Psychiatry; medicalization; abnormal; history; Foucault


TEMAS LIVRES

Biopolítica e medicalização dos anormais

Biopolitics and medicalization of abnormal ones

Sandra Caponi

Doutora em Filosofia pela Unicamp; professora no Departamento de Saúde Pública da UFSC. Pesquisadora CNPq. Endereço eletrônico: sandracaponi@newsite.com.br

RESUMO

O artigo aborda a temática da medicalização dos sofrimentos e das anomalias comportamentais numa perspectiva histórica. Analisa a emergência de uma nova configuração epistemológica do saber psiquiátrico ocorrida na segunda metade do século XIX. Tomando como ponto de partida os estudos sobre biopolítica da população de Foucault e Agamben, as reflexões de Canguilhem sobre as fronteiras difusas da normalidade e o curso que Foucault dedica aos anormais, o artigo estuda o surgimento de uma psiquiatria ampliada relacionada ao não-patológico. São analisados os Anais de Higiene e Medicina Legal e os Anais Médico-Psicológicos, publicados na França entre os anos de 1857 e 1924, com o objetivo de compreender de que modo foi construída essa medicina das condutas e quais foram as estratégias biopolíticas defendidas pelos teóricos da degeneração.

Palavras-chave: Psiquiatria; medicalização; anormais; história; Foucault.

ABSTRACT

This paper approaches the thematic of the medicalization of sufferings and behavioral anomalies from an historical perspective. It analyzes the emergency of a new epistemological configuration of psychiatric knowledge that emerged in the second half of the 19th Century. Taking as starting point the studies on biopolitics of the population of Michel Foucault and Giorgio Agamben, the inquires of Georges Canguilhem about the diffuse borders between the normal and the pathological, and the course that Foucault dedicates to Les anormaux, this paper studies the sprouting of an extended psychiatry related to the non pathological dimension. The Annales d´hygiéne publique et de médecine legal and Annales Médico-Psicologiques, published in France between years 1857 and 1924, are analyzed with the goal of understanding the way by which it was constructed this medicine of the behaviors and those biopolitical strategies defended by the theoreticians of the degeneration.

Key words: Psychiatry; medicalization; abnormal; history; Foucault.

Introdução

Existe hoje certo consenso sobre as dificuldades implícitas na multiplicação e proliferação de novos diagnósticos psiquiátricos (CONRAD, 2007; HORWITZ, 2002; LANE, 2007). Essas classificações, relacionadas prioritariamente a comportamentos socialmente indesejados, permitem que quase todos os nossos sofrimentos e condutas sejam redefinidos em termos médicos. As fronteiras entre o normal e o patológico parecem ter-se tornado cada vez mais ambíguas, móveis e instáveis. A medicalização de condutas classificadas como anormais se estendeu a praticamente todos os domínios de nossa existência. Novos diagnósticos e novos transtornos surgem a cada dia, levando-nos a agrupar num mesmo espaço classificatório fenômenos tão diversos e heterogêneos como a esquizofrenia, a depressão, os transtornos de ansiedade e sono, as fobias e os mais variados e inimagináveis tipos de comportamento considerados indesejáveis.

Com a intenção de dar uma perspectiva histórica a essa medicalização dos sofrimentos e anomalias, este texto se propõe a analisar a emergência de uma nova configuração epistemológica do saber psiquiátrico ocorrida na segunda metade do século XIX. Nesse momento, a psiquiatria transformou-se num domínio de saber e de intervenção ao mesmo tempo intra e extra-asilar. Essa nova configuração epistemológica foi o que possibilitou a construção de uma psiquiatria ampliada, capaz de se referir tanto à alienação mental quanto às mais variadas condutas cotidianas. Surge então essa "medicina do não-patológico" (FOUCAULT, 1999) que, com algumas importantes diferenças, parece inalterada até hoje.

Como veremos, a partir de 1857 e ao longo dos séculos XIX e XX, apareceram novas estratégias de intervenção e de gestão biopolítica dos corpos e das populações diretamente vinculadas à teoria da degeneração proposta por Benedict August Morel (1857) em seu Traité dês Dégénérescences Physiques, Intellectuelles et Morales de l´Espèce Humaine. A partir desse momento, começa um novo modo de classificar os desvios e as anomalias e, consequentemente, um novo modo de intervenção sobre os indivíduos. Surge um novo espaço classificatório de doenças e anomalias que permitirá a proliferação, na segunda metade do século XIX, de um conjunto de doenças relacionadas a comportamentos.

Foucault dedicou o curso do Collège de France dos anos de 1974-1975 a analisar o surgimento dessa nova psiquiatria que se constrói e se articula em torno da figura dos anormais. Essa psiquiatria terá como referência privilegiada a oposição entre normalidade e desvio. Não seria possível analisar o discurso psiquiátrico relacionado aos anormais sem retomar o conceito de biopolítica da população e sem questionar as dificuldades implícitas na oposição normal/patológico.

O conceito de biopolítica, central para discutir as estratégias de intervenção dessa psiquiatria ampliada, será analisado aqui não somente a partir dos trabalhos de Michel Foucault (1976), mas também a partir das considerações de Giorgo Agamben (2002) sobre a vida nua, essa vida que as estratégias de biopoder consideram como não sendo digna de ser vivida. Por outro lado e na medida em que toda a teoria da degeneração se articula em torno dos conceitos de normalidade e desvio, deveremos retomar algumas considerações de Canguilhem relacionadas às fronteiras difusas da normalidade.

Para finalizar, iniciaremos uma análise dos Anais de Higiene e Medicina Legal e dos Anais Médico-Psicológicos publicados na França entre os anos de 1857 e 1924. Nesse período é possível observar a aparição de textos que se referem insistentemente à temática da degeneração. Eles permitem compreender de que modo foi construída essa medicina das condutas e quais foram as estratégias de intervenção defendidas pelos teóricos da degeneração.

A biopolítica da população

Lembremos que o conceito de biopolítica foi enunciado pela primeira vez numa conferência ministrada por Foucault em 1974 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Essa palestra foi publicada em 1977 com o nome de O Nascimento da Medicina Social (FOUCAULT, 1989, p. 79-99). O texto aponta um deslocamento significativo nas estratégias de poder:

o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. (FOUCAULT, 1989, p. 82).

Porém, é no quinto capitulo da Vontade de Saber que Foucault esclarece e aborda detidamente o conceito de biopoder por oposição ao direito de morte que caracterizaria o poder do soberano (MICHAUD, 2000, p. 16). Por fim, essa temática será retomada no curso do Collège de France dos anos de 1975 e 1976, dedicado à problemática da guerra de raças e às suas relações com o biopoder (FOUCAULT, 2004); no curso de 1977-78, Segurança, território e população (FOUCAULT, 2004), e no curso de 1978-79, dedicado ao Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2005).

Como afirma Didier Fassin (2003), as leituras contemporâneas do conceito de biopoder se limitaram a utilizar essa referência em diferentes contextos, sem ter feito uma abordagem teórica ou conceitual do mesmo, com exceção de dois autores provenientes da tradição filosófica, Agnes Heller (1994) e Giorgio Agamben (2002). "Não deixa de ser significativo que as duas obras que mais contribuíram para repensar esse conceito se inspiraram no trabalho de Hannah Arendt, que fundou, paralelamente a Foucault, uma teoria do governo referente à vida" (FASSIN, 2003, p. 177). Será na articulação entre o conceito foucaultiano de biopoder, a releitura de Agamben do mesmo e as preocupações de Arendt sobre a política e a vida que tentaremos nos situar para analisar a construção desse espaço heterogêneo de saber e de intervenção relacionado ao mundo dos anormais que começa na segunda metade do século XIX.

A biopolítica da população iniciada no século XVIII foi a estratégia que possibilitou que, pela primeira vez na história, o biológico ingressasse no registro da política (FOUCAULT, 1994). Foi a partir desse momento que o corpo e a vida passaram a se transformar em alvo privilegiado de saber e de intervenções corretivas. O sujeito, enquanto sujeito de direitos, passou a ocupar um segundo plano em relação à preocupação política por maximizar o vigor e a saúde das populações. "Deveríamos falar de biopolítica para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos possam entrar no domínio de cálculos explícitos e o que transforma o saber-poder num agente de transformação da vida humana" (FOUCAULT, 1978, p. 170). Os estudos e as estratégias eugênicas são o que melhor define as características dessa biopolítica da população que, ao mesmo tempo em que se propõe o melhoramento da raça e da espécie, parece precisar da construção de corpos sem direitos que se configuram como simples vida nua, vida que se mantém nas margens das relações de poder, vida que pode ser submetida e até aniquilada.

Uma característica do biopoder é a importância crescente da norma sobre a lei: a ideia de que é preciso definir e redefinir o normal em contraposição àquilo que lhe é oposto, a figura dos "anormais", considerados "exceção" à norma. Lembremos que, para Agamben (2002, p. 29), "a exceção se situa em posição simétrica em relação ao exemplo, com o qual forma sistema. Esta constitui um dos modos através dos quais um conjunto procura fundamentar e manter a própria coerência". Ela tem função estratégica, que é a de auxiliar na conformação da identidade de um grupo, pois

a relação de exceção é uma relação de

bando.

Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida, direito, interno e externo se confundem (AGAMBEN 2002, p. 36).

Lembremos que no espaço da biopolítica "o poder de morte aparece como complemento de um poder que se exerce positivamente sobre a vida, que procura administrá-la, aumentá-la, exercer sobre ela controles precisos e regulações gerais" (FOUCAULT, 1978, p. 165). Sabemos que, a partir do século XVIII, o poder de morte, próprio do poder monárquico, ficará subordinado à gestão calculada da vida que caracteriza os Estados modernos. É em nome da saúde de todos, da vitalidade da espécie, do controle das epidemias, que a biopolítica pode transformarse e conviver com sua contrafase secreta e obscura: a tanatopolítica (AGAMBEN, 2002, p. 162). Se o poder de morte permanece, se o estado de exceção se perpetua, é para garantir o melhoramento da vida e da saúde das populações e dos Estados.

Assim, para Foucault, o fato determinante para a construção das sociedades modernas é esse processo pelo qual a vida, isto é a vida nua, a vida natural que compartilhamos com os animais, passa a ser investida por cálculos explícitos e por estratégias de poder. Esse é o momento em que o biológico ingressa como elemento privilegiado no registro da política. É por oposição à concepção aristotélica de "homem" que Foucault pensa o exercício da biopolítica:

Por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão sua existência como ser vivo. (FOUCAULT, 1978, p. 184).

A grande novidade que se produz no mundo moderno, da qual falam tanto Foucault quanto Arendt e Agamben, é a identificação entre o vital e o político. No mesmo momento em que o homem moderno conquista os direitos que se pretendem universais, o domínio do vital entra em questão. A vida, o corpo, a saúde, as necessidades, a reprodução, que antes faziam parte da esfera pré-política, transformam-se nas questões políticas por excelência. As estatísticas contribuem para dotar esse processo de maior objetividade, multiplicando taxas de mortalidade e morbidade, taxas de natalidade e dados sobre a distribuição de epidemias e doenças. Surge assim um novo domínio de saber e de intervenção política que se refere exclusivamente ao espaço do vital e a seus fenômenos correlatos de natalidade, reprodução e morbimortalidade. Um domínio de intervenção referido direta e exclusivamente à corporeidade, à vida entendida como vida nua.

Mas falar da biopolítica da população implica aceitar um processo complexo que tem duas faces. Por um lado, o domínio do vital (natalidade, saúde, mortalidade e reprodução), que para os gregos era eminentemente privado, ingressará na esfera do social e, consequentemente, da política. Os direitos das mulheres, das crianças, dos trabalhadores, o reconhecimento dos direitos básicos à alimentação e à assistência, ainda que duramente conquistados, falam da positividade dessa biopolítica. Mas existe outra face, obscura, desse mesmo processo: as políticas higiênicas, psiquiátricas e eugênicas desenvolvidas no século XIX com o objetivo de melhorar a população e a raça classificaram uma série de condutas que, sob a categoria de anormalidade, podem começar a ser medicamente controladas.

A vida nua (AGAMBEN, 2002, p. 16) persiste nas margens da mesma sociedade que diz garantir os direitos humanos fundamentais e universais. Este é o paradoxo, assinalado por Arendt primeiro e por Agamben depois, da figura dos refugiados: "A concepção dos direitos do homem e do cidadão, baseada na suposta existência de um ser humano como tal, caiu em ruínas tão logo aqueles que a professavam encontraram-se pela primeira vez diante desse homem (o refugiado) que havia perdido toda e qualquer qualidade e relação específica, exceto o puro fato de ser humano" (ARENDT, apud AGAMBEN, 2002, p. 133). É preciso observar a funcionalidade estratégica dos biopoderes, que, com o objetivo do melhoramento dos corpos, das populações e das raças, reduz à vida nua esses indivíduos considerados como desvio da "normalidade".

As fronteiras difusas da normalidade

Como já foi dito, a característica que define o biopoder é a importância crescente da norma, a obsessão por demarcar fronteiras entre normalidade e desvio. O discurso jurídico se subordina, assim, ao privilégio quase absoluto concedido ao elemento biológico. As estatísticas, os programas de gestão para garantir uma descendência saudável, as estratégias demográficas, assim como as estratégias eugênicas, têm no corpo dos indivíduos e nas populações seu alvo privilegiado. Os corpos passam a estar sujeitos à gestão política, seja para seu melhoramento ou maximização, seja para sua supressão ou aniquilamento. Para que essa gestão seja possível, é necessário multiplicar as estatísticas de morbidade e mortalidade, registrar e comparar os dados e fatos, observar atentamente as características daqueles que podem ser considerados como sujeitos perigosos ou fora da norma.

Como afirma Michel Foucault, "o elemento que circula do disciplinar ao regulador, que se aplica ao corpo e às populações e que permite controlar, ao mesmo tempo, a ordem do corpo e os fatos de uma multiplicidade humana é a norma" (FOUCAULT, 1992, p. 181). Assim, será necessário analisar o conceito de norma para uma melhor compreensão do conceito de biopolítica, e para isso resulta indispensável lembrar algumas precisões que Canguilhem enuncia em O Normal e o Patológico.

O conceito de normalidade, tal como é utilizado pela medicina moderna, é inseparável daquilo que em determinado momento se reconhece como sendo a média ou frequência estatística de uma população. Aí começam a aparecer as dificuldades dessas tentativas de definir, em termos "científicos", normalidade e saúde. Se nos restringirmos aos valores que devem ser considerados normais para um determinado órgão, veremos que "não encontramos apenas um intervalo normal para cada função de um órgão: rigorosamente falando, encontramos um número infinito destes intervalos" (NORDENFELD, 2000, p. 60). Se nos referirmos ao código genético "normal", veremos que existem infinitos exemplos de variações e desvios, de "anomalias" que não podem ser, em absoluto, consideradas como de valor negativo ou patológicas.

A partir do momento em que se associa o conceito de saúde ao de normalidade, entendida como frequência estatística, toda e qualquer anomalia ficará inevitavelmente associada à patologia. Sendo assim, qualquer variação do tipo específico - esta é a definição que Canguilhem dá de anomalia - será considerada como uma variação biológica de valor negativo e, consequentemente, como algo que deve sofrer uma intervenção curativo-terapêutica.

Para Paul Rabinow (1999, p. 127), "Canguilhem deslanchou um ataque frontal àquele edifício da normalização tão essencial aos procedimentos da ciência e da medicina positivistas. É o sofrimento, e não as mediações normativas ou os desviospadrão, o que estabelece o estado de doença". Quando falamos de saúde, não podemos evitar as referências à dor ou ao prazer e, deste modo, estamos introduzindo, sutilmente, algo que escapa às medições, algo que Canguilhem chamou de corpo subjetivo. Se considerarmos esse elemento, não poderemos deixar de falar em primeira pessoa ali onde o discurso médico teima em falar em terceira pessoa.

Essa imprecisão que se refere às fronteiras estatísticas que separam vários indivíduos considerados simultaneamente é, em compensação, "perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo considerado sucessivamente" (CANGUILHEM, 1990, p. 145). Como Canguilhem insistirá, a distinção entre o normal e o patológico é algo muito diferente de uma simples variação quantitativa, como imaginaram Claude Bernard, Auguste Comte ou Emile Durkheim. Existe, pelo contrário, uma diferença qualitativa substancial entre um e outro estado que não pode ser reduzida a cálculos, médias ou constantes. "O patológico implica um sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada" (CANGUILHEM, 1990, p. 187).

Sabemos que o conceito de normal é duplo: de um lado, remete a médias estatísticas, constantes e tipos; de outro, é um conceito valorativo, que se refere àquilo que é considerado desejável em um determinado momento e em uma determinada sociedade, dizendo como uma função, processo ou conduta "deveria ser" (NORDENFELD, 2000, p. 64).

É por essa razão que o conceito de normalidade entendida como um valor não se opõe nem à doença nem à morte, mas somente à anormalidade e à monstruosidade. A anormalidade não é senão um fenômeno intermediário entre o médico (pois foge das médias estatísticas e, consequentemente, dos valores desejáveis) e o jurídico (pois foge do modo como um comportamento ou fato deveria ser). A anomalia está associada à diferença, à variabilidade de valor negativo, num sentido ao mesmo tempo vital e social. É aquilo que uma sociedade considera como jurídica e medicamente perigoso, o nocivo, aquilo que representa, ao mesmo tempo, desvio da média e ameaça às normas (CANGUILHEM, 1990, p. 204).

O conceito de norma é central para compreender as estratégias biopolíticas, desenvolvidas no século XIX, dedicadas ao amplo mundo dos "anormais" ou "degenerados". A ideia de degeneração remete a um processo de degradação patológica do tipo normal e primitivo da humanidade que é transmitido hereditariamente, provocando uma afecção de ordem física, intelectual e moral (CARTRON, 2000; CHRISTIAN, 1892). Nas palavras de Morel, "a degeneração refere-se a todo e qualquer desvio doentio (patológico, diríamos hoje) e hereditário do tipo normal da humanidade" (MOREL, 1857, p. 15).

Os anormais e a teoria da degeneração

A teoria da degeneração é solidária a essa duplicidade e ambiguidade que caracterizam os conceitos de norma e normalidade. A categoria "degeneração" refere-se a um duplo desvio: por um lado, desvio da frequência estatística desejada em relação a características físicas, tais como altura, peso, formato do rosto, das orelhas, etc. - os chamados estigmatas (CARTRON, 2000); por outro, desvio das normas ou valores que a sociedade europeia do século XIX considerava como invioláveis e universais. O estudo de Knecht sobre degeneração e criminalidade publicado em 1885 nos Anais Médico-Psicológicos explicita essa relação entre degeneração física do tipo médio e degeneração moral:

As observações referem-se a 1214 homens, dentre os quais aparece tudo o que é anormalidade de altura, conformação exterior do corpo, do crânio, do rosto, dos órgãos genitais, dos dedos, das orelhas, etc. 579 indivíduos, ou seja, 48 % do conjunto dos criminais, apresentam desvios do tipo normal, e, à falta de autópsias, pode-se concluir por indução que existem também numerosos desvios nos órgãos internos. (KNECHT, 1885, p. 513).

A partir da publicação do Tratado de Morel (1857), será configurado um novo modo de pensar as doenças mentais que inclui, junto com os delírios e as alucinações, um conjunto de comportamentos e de características físicas consideradas como desvio patológico da normalidade. É o início de uma nova representação das patologias que dará lugar a um conjunto de trabalhos e de estudos que se inscrevem dentro da chamada teoria da degeneração. Ian Hacking (2000) dirá que nesse momento surgirá um verdadeiro "programa de pesquisa" capaz de concentrar os esforços de médicos, higienistas, juristas e psiquiatras que compartilhavam uma mesma preocupação: a de definir a abrangência e os limites do conceito de degeneração. Foucault entende que: "a degeneração é a peça teórica maior que permite a medicalização do anormal. O degenerado é o anormal miticamente - ou, se vocês preferem, cientificamente - medicalizado" (FOUCAULT, 1999, p. 298).

Podemos verificar o alcance desse programa de pesquisa, pelo menos na França, observando o amplo espectro de doenças incluídas nessa categoria: desde as manias de perseguição, passando pelos exibicionismos e o alcoolismo, até a ninfomania ou a cleptomania, dentre outros muitos transtornos. Os Anais de Higiene e Medicina Legal e os Anais Médico-Psicológicos, que iniciam sua publicação em 1843, testemunham a importância concedida a essa problemática. A partir da década de 1860, observamos uma repetição quase obsessiva de artigos dedicados a esse tema, que se repetem ao longo de todo o século XIX e que, em alguns casos, chegam até 1924.

Assim, nos Anais de Higiene e Medicina Legal, periódico publicado entre os anos de 1829 e 1922, o primeiro texto dedicado à degeneração é um extenso comentário bibliográfico ao livro de Morel, que aparece na edição número 9 de 1858 (ANDRAL, 1858, p. 490). Nos números seguintes, reaparecem inúmeras referências a essa temática. A partir de 1860, irão se suceder diversos textos dedicados a diferentes temas vinculados com a degeneração. Destacamos alguns desses textos: na edição número 22 de 1864, aparece um artigo dedicado à pretendida degeneração da população francesa, onde o autor estabelece comparações com outros países da Europa (LEGOYT, 1864); as referências a alcoolismo e degeneração social são recorrentes, sendo particularmente significativo um artigo sobre a degeneração hereditária dos alcoólatras (LEGRAIN, 1895). A preocupação com a degeneração e a herança reaparece por referência a diversas doenças, como é o caso da sífilis (BROUARDEL, 1899) ou da epilepsia (BEAUSSART, 1912). Outros autores multiplicam as associações entre degeneração e os mais variados desvios, tais como as ideias persecutórias, a depressão melancólica, a debilidade mental congênita ou idiotismo.

No caso específico dos Anais Médico-Psicológicos, publicados na França entre 1843 e 1953, a preocupação com a temática da degeneração começa com um texto do próprio Morel, onde ele apresenta um informe sobre essa questão. O texto é um breve resumo das principais ideias desenvolvidas em seu livro (MOREL, 1857). Nesse periódico, os textos referidos à temática da degeneração se repetem com maior frequência (chegando a ser registradas mais de 350 ocorrências), e essa sucessão de textos estende-se até 1924. As associações são extremamente diversas e vão desde estudos dedicados à relação alcoolismo/degeneração até as mais variadas associações com comportamentos e síndromes. Dentre estes podemos destacar: distrofia sexual (KIRN, 1870); criminalidade (FERÉ, 1890); prostituição (LAURENT, 1899); neuroses, psicoses, delírio de autoacusação (OUDART, 1901); amnésia (COWLES, 1904); atos inconscientes, fugas e delírio de persecução (FILLASSIER, 1909); loucura maníaco-depressiva (HAMEL, 1911); suicídio (CLAVERIA, 1912); síndrome obsessivo-impulsiva, onde o autor relata o caso de um homem obcecado pela limpeza; até a publicação de uma história da ideia de degeneração em medicina mental (GENIL-PERRIN, 1914).

Nos Anais Médico-Psicológicos não aparecem somente relatos de indivíduos e famílias degenerados. Diversos escritos tratam da degeneração dos povos e raças, destacando-se alguns textos dedicados a analisar a degeneração intelectual do povo francês que se apresentam como uma contribuição à saúde mental dos povos (STARCK, 1871), utilizando como referência o famoso texto de Paul Broca (BROCA, 1867).

Algumas críticas também estão presentes nos Anais, mas são parciais, não questionam a validade da teoria da degeneração como um todo. Um exemplo é o artigo publicado no dia 29 de junho de 1896 com o nome de "Teoria da Degeneração" (ARNAUD, 1896). Trata-se de uma crítica bastante ambígua, que tenta resgatar a importância do trabalho de Morel e Magnan como teoria antropológica e patogênica, mas que se nega a aceitar que essa teoria possa ser transformada em um método de classificação de patologias. O autor pretende contradizer as teorias de Morel e Magnan que estabeleciam pormenorizadas articulações entre as diversas patologias de degeneração e fatores causais específicos, tais como alcoolismo, intoxicação, alimentação, exposição a condições de vida insalubres, dentre outros, estando todos estes vinculados a uma mesma causa geral: o fator hereditário. O autor afirma:

Considero essa teoria aplicável à patologia geral e não às que possuem caracteres especiais. Os mesmos estigmas físicos e psíquicos pertencem a todas as loucuras hereditárias em geral e não a uma sozinha. Essas são características comuns à grande família dos degenerados e não a uma espécie ou variedade particular. Minha opinião sobre a teoria da degeneração é que engloba, em um grande quadro, as formas mais variadas de loucura. Representa, para mim, um imenso oceano, sem limite e sem fundo, no qual devem desaparecer todas as variedades, todas as espécies, ainda as mais bem estabelecidas de enfermidade mental. (ARNAUD, 1896, s/p).

Temos assim um "oceano imenso" que abrange todas as enfermidades mentais e que permite situar em um mesmo espaço teórico e classificatório as alucinações, os delírios, o exibicionismo e a perseguição, entre outras patologias.

Outra crítica dirigida à teoria da degeneração aparece nos Anais Médico-Psicológicos de 1881, no artigo intitulado "As degenerações" (DALLY, 1881). Nesse texto, o autor volta, 25 anos mais tarde, à definição de degeneração proposta por Morel, que tinha sido aceita sem muitos questionamentos pelos seguidores de sua teoria, para propor uma nova definição. Entende por degeneração as "alterações orgânicas e funcionais, transmitidas hereditariamente, que levam à esterilidade" (DALLY, 1881, p. 243). Esta definição não foi imediatamente aceita, pois as evidências mostravam que a degeneração não levava necessariamente à esterilidade na quarta geração, como também acreditava Morel. Pelo contrário, o controle da natalidade e da descendência dos anormais era considerado como uma das principais formas de evitar a propagação dos degenerados.

No entanto, e ainda que apareçam algumas críticas pontuais, a maior parte dos textos relata casos e tipos diversos do que se denominava "loucura de degeneração". Como resultado desse programa de pesquisa, foi possível a ampliação do quadro nosológico relacionado a transtornos mentais. Pouco a pouco, entre os anos de 1857 e 1880, foram definidas e multiplicadas novas enfermidades que já não podiam ser reduzidas às clássicas formas de alienação reconhecidas pela psiquiatria clássica, pois, para a nova psiquiatria, o que resulta relevante não é saber se estamos ou não perante um caso de alienação mental, mas "o desvio que uma conduta representa em relação às regras de ordem, de conformidade, definidas sob um fundo de regularidade administrativa, de obrigações familiares ou de normatividade política e social" (FOUCAULT, 1999, p. 147).

A partir desse momento, a psiquiatria mudará radicalmente seu objeto de estudo, assim como mudará suas estratégias de intervenção. Seu interesse já não será restabelecer a saúde perdida, mas antecipar todo e qualquer tipo de anomalia: "Tudo o que é desordem, indisciplina, agitação, indocilidade, caráter reativo, falta de afeto, etc., tudo, daqui em diante, poderá ser psiquiatrizado" (FOUCAULT, 1999, p. 150).

Uma medicina do não-patológico

Já não se trata de curar, mas de antecipar, de prevenir. Para isso serão criadas estratégias de controle da sexualidade e da reprodução, estratégias que têm como alvo a grande família dos anormais. Desse modo, a psiquiatria se institui como defensora da ordem social. Pode-se afirmar que ela demanda para si um poder ainda maior que o dos juristas e dos higienistas: ela demanda a gestão da anormalidade. "Ela se arroga o papel de defesa generalizada da sociedade, ao mesmo tempo em que conquista o direito de ingerência na sexualidade familiar" (FOUCAULT, 1999, p. 299).

No momento em que a teoria da degeneração consolida-se como programa de pesquisa, a psiquiatria poderá estabelecer vínculos diretos entre um desvio de conduta e um estado anormal (herdado, mas definitivo) que reclama uma intervenção psiquiátrica. Então, já não será necessário restringir seu saber à procura de estratégias moralizadoras ou curativas para os alienados. "O que importa para essa nova psiquiatria é o comportamento, seus desvios e suas anomalias: ela toma como referência o desenvolvimento normativo" (FOUCAULT, 1999, p. 291). A partir da psiquiatria clássica, que já tinha conquistado um lugar na medicina como um saber capaz de analisar os sintomas, classificar a loucura, procurar pela etiologia e a terapêutica, será construída uma ciência das condutas desviadas sem que, para isso, seja necessário sair completamente do domínio da medicina.

Assim, essa longa série de pequenas condutas anormais, aberrantes, desviantes, que se sucedem nos Anais Médico-Psicológicos se transformará no eixo articulador da nova psiquiatria. Foucault define esse novo domínio de intervenção médica afirmando que "o que caracteriza essa nova psiquiatria é o poder dos médicos sobre o não-patológico" (FOUCAULT, 1999, p. 292). Para que pudesse ser criado esse discurso médico sobre as condutas, foi necessária essa reorganização do saber possibilitada pela teoria da degeneração, que permitiu um deslocamento das doenças às condutas, das patologias às anomalias, dos sintomas às síndromes.

Foucault dirá que existe uma longa dinastia dessas "síndromes de degeneração": inicialmente aparece a agorafobia, logo as claustrofobias; as doenças incendiárias surgem em 1867; a cleptomania é descrita pela primeira vez em 1879; os exibicionismos, em 1877; o masoquismo, em 1875; a homossexualidade é enunciada como síndrome, pela primeira vez, em 1870 nos arquivos de neurologia. Este somatório de desvios pode ser indefinidamente ampliado, podem ser sempre adicionadas novas condutas que reclamam intervenção psiquiátrica. Assim, perante um fato social como o surgimento de "ligas de vivisseção", Magnan descobrirá o que denomina "síndrome de antivivisseção" (FOUCAULT, 1999, p. 293).

Para compreender a teoria da degeneração, é preciso falar de um tipo particular de hereditariedade, uma herança não definida, onde toda e qualquer anomalia pode surgir e espalhar-se a partir de um sujeito que é identificado como degenerado ou anormal. "O estudo da hereditariedade, ou a localização da herança na origem das anormalidades, constitui essa 'metassomatização' que foi necessária para construir o edifício da degeneração" (FOUCAULT, 1999, p. 296). Os anormais não podem ser considerados como portadores de uma doença em particular, mas como sujeitos que antecipam um número ilimitado e indefinido de doenças possíveis em sua descendência.

Para Morel e seus seguidores, os anormais levam, inscrita em seus corpos, sua própria inviabilidade. "A hereditariedade é veículo de transmissão progressiva de toda forma de degeneração adquirida ao longo de quatro gerações, até a esterilidade dessa última" (SERPA, 2006). A partir das árvores genealógicas construídas para determinar a hereditariedade dos degenerados, a partir de uma preocupação centrada nas anomalias hereditárias, a psiquiatria delimitará um novo campo de ação e construirá novas estratégias de poder.

Com efeito, a partir do momento em que a psiquiatria adquire a possibilidade de relacionar qualquer desvio, irregularidade, retardo, a um estado de degeneração, dali em diante conquistará uma possibilidade de ingerência indefinida sobre os comportamentos humanos (FOUCAULT, 1999, p. 298).

Esse quadro de patologias estará associado a um modo de compreender a transmissão das doenças que se refere não somente à herança, mas também aos chamados estados patológicos.

O estado patológico é o objeto psiquiátrico privilegiado, é uma espécie de fundo causal permanente a partir do qual pode desenvolver-se um certo número de processos, de episódios, que podem, estes sim, ser definidos como doença. Dito de outro modo, é o solo anormal a partir do qual as doenças se produzem. (FOUCAULT, 1999, p. 294).

O estado não pode ser identificado ao conceito de predisposição. Enquanto a predisposição pode levar a um determinado tipo de doença e não a outra, enquanto ela delimita o espaço das doenças que poderão ocorrer, o estado patológico, ao mesmo tempo em que caracteriza um indivíduo como sendo anormal, possui uma fecundidade etiológica total. Um estado anormal pode produzir qualquer tipo de afecção, em qualquer momento e em qualquer ordem ou sequência, pode produzir tanto uma doença psíquica como uma física, pode provocar uma síndrome ou uma patologia. Assim, tudo o que pode ser patológico ou desviante, seja no comportamento ou no corpo, deve ter um substrato em um estado anormal que remete imediatamente à categoria de degeneração. Como afirma Foucault: "o estado anormal é a estrutura característica de um indivíduo que se deteve em um momento de seu desenvolvimento" (FOUCAULT, 1999, p. 295). Um estado anormal pode ser herdado ou adquirido pela influência nociva do meio, seja pelo ambiente (solo ou ar contaminado), seja pela ingestão de elementos tóxicos, como álcool ou drogas (como o ópio). Porém, ainda que o estado patológico seja adquirido, ele se transformará em parte essencial do corpo dos degenerados e será transmitido por herança aos descendentes (MOREL, 1857, p. 363).

Biopolítica e gestão das anomalias

O "estado anormal", a multiplicação de novas condutas consideradas patológicas e o caráter incurável dos degenerados transformaram essa psiquiatria ampliada em uma instância privilegiada de criação e articulação de biopolíticas da população. Essa biopolítica não tem o objetivo de curar ou de normalizar os desvios, seu objetivo prioritário é antecipar a emergência do perigo. Com essa finalidade, será construído um instrumento médico-político capaz de controlar a hereditariedade da grande família dos degenerados e, ao mesmo tempo, controlar as populações e raças consideradas perigosas: as estratégias higiênicas e eugênicas dos séculos XIX e XX.

O alvo prioritário dessas estratégias era o controle das famílias dos anormais. Para isso, tanto nos Anais de Higiene e Medicina Legal quantos nos Anais Médico-Psicológicos, foram publicados longos e exaustivos relatos de indivíduos considerados anormais, em artigos dedicados a reconstruir a genealogia dessa degeneração (BEAUSSART, 1912). Mas a preocupação com a herança patogênica não estava desvinculada das intervenções referentes aos espaços ou ao modo de vida das classes populares, consideradas como ameaça potencial de perigo médico e social. Ainda que a hereditariedade fosse considerada a primeira causa de degeneração, ela convivia com outro elemento causal ao qual se atribuía uma importância fundamental: o meio externo.

O meio externo mantinha uma relação estreita com a hereditariedade na série causal da degeneração. Isso foi possível porque a herança dos caracteres adquiridos, marca deixada pela teoria de Lamarck no naturalismo francês da época, não era posta em questão. (SERPA, 2006, s/p).

Desse modo, tanto os indivíduos anormais e suas famílias, quanto as classes populares ou as diversas raças consideradas como desvio do tipo originário, podiam passar a ser objeto de estratégias de controle mais ou menos semelhantes. Reforçou-se assim uma "tecnologia eugênica relacionada ao problema da hereditariedade, da purificação da raça e da correção do sistema instintivo dos homens" (FOUCAULT, 1999, p. 124).

Paralelamente aos estudos sobre etiologia, classificação e genealogia dos degenerados, instaurou-se um plano de regeneração dos indivíduos e da raça. Lembremos que Morel foi um fervoroso defensor do espírito higienista, por considerar que essas intervenções poderiam agir tanto sobre o meio, quanto sobre os corpos dos indivíduos. Em seu Tratado ele proporá um minucioso plano de higiene física e moral, para deter a crescente debilidade do povo, pois "o degenerado, não é somente incapaz de formar uma cadeia de transmissibilidade que leve ao progresso da humanidade, ele é um obstáculo para o progresso por ter um contato direto com a parte saudável da população" (MOREL, 1857, p. 6).

O degenerado era considerado, quase sem exceção, como um sujeito incurável. Logo, não será na terapêutica, mas sim na prevenção, que psiquiatras e higienistas concentrarão seus esforços. Por esta razão, a teoria da degeneração, "ao mesmo tempo, legitimou a eugenia de Gobineau e de seus herdeiros racistas e deixou como herança os controles de aptidão para o matrimônio, com a criação do certificado de saúde pré-nupcial" (CARTRON, 2000, p. 30).

Indivíduos e raças considerados degenerados foram pensados como obstáculo para o progresso da humanidade, como vidas que não podem ser maximizadas ou curadas. Vidas que devem ser excluídas e evitadas com o objetivo de proteger a sociedade de uma progressiva, mas segura, degradação.

A teoria da herança permitirá à psiquiatria da anormalidade transformar-se em uma tecnologia do matrimônio saudável e não-saudável, útil ou perigoso, benéfico ou danoso. De súbito, a psiquiatria centra-se no problema da reprodução. (FOUCAULT, 1999, p. 297).

A modo de conclusão

Assim, a biopolítica, modalidade de exercício do poder própria dos Estados modernos, no momento que garante a sobreposição entre vida e política, permite que, com um mesmo gesto, sejam definidas as populações que pertencem ao espaço da vida nua e aquelas que fazem parte da vida ativa, isto é, o tipo normal que deve ser cuidado, estimulado, multiplicado. Mas, para multiplicar a vida e o cuidado com os cidadãos, para garantir seus direitos, seu vigor e sua saúde, resultava legítimo aceitar a existência de dois mundos, o mundo dos direitos e o mundo das "exceções".

Ainda que se postulasse uma suposta esterilidade natural, foram calorosamente discutidas políticas eugênicas em relação aos criminosos e às raças. Assim, em um texto de 1914 que se propõe a traçar a história da ideia de degeneração, podemos observar a persistência dessas ideias eugênicas:

Chegamos, assim, ao tratamento da degeneração, tratamento essencialmente profilático e que objetiva, em sua forma extrema, a dessexualização e a esterilização de sujeitos reconhecidos como degenerados, medidas que são aplicadas fundamentalmente na América, e que não têm grande aceitação na França. (GENIL-PERRIN, 1914, s/p).

Como afirma Foucault, "a partir da noção de degeneração e da análise da hereditariedade surge um novo tipo de racismo que é diferente do racismo étnico. Um racismo contra o anormal, contra sujeitos que eram portadores de um estigma, de um defeito qualquer" (FOUCAULT, 1999, p. 299). Um racismo, enfim, que se define e legitima como sendo um meio de defesa da sociedade.

Como vimos, o objetivo dos estudos dedicados à degeneração não era terapêutico, mas administrativo: sua tarefa era a gestão dos corpos e das populações que constituíam a imensa família dos anormais. Isso significava um poder quase absoluto de gestão biopolítica, pois, a partir desse momento, a psiquiatria poderá abrir "como domínio de ingerência possível, como domínio de suas valorações sintomatológicas, o espaço completo de todas as condutas possíveis" (FOUCAULT, 1999, p. 148). Assim, em virtude da desaparição do privilégio que, até então, a psiquiatria concedia à loucura, veremos que "não existirá mais nada, finalmente, na conduta do homem que não possa, de um modo ou de outro, ser interrogado psiquiatricamente" (FOUCAULT, 1999, p. 148). Dito de outro modo, foi em virtude do processo de desalienação da psiquiatria, possibilitado pela expansão da teoria da degeneração, que toda e qualquer conduta passou a ser passível de intervenção médico-psiquiátrica.

A construção de uma teoria geral da degeneração, que começa com Morel e se mantém por mais de meio século, serve como quadro teórico, ao mesmo tempo em que serve como justificativa social e moral, para um conjunto de técnicas de referência, classificação e intervenção sobre os anormais. (FOUCAULT, 1999, p. 311).

Essa psiquiatria ampliada, essa medicalização das condutas, dos sofrimentos e dos desvios, que teve seu início no século XIX, parece ter persistido por muito mais que meio século. Parece não ter desaparecido completamente quando olhamos para a proliferação de patologias mentais ocorrida nos últimos 30 anos. Quiçá esse mesmo esquema explicativo, essa transformação epistemológica que permitiu que a psiquiatria expandisse seu espaço de intervenção para a quase totalidade dos comportamentos humanos, permita-nos compreender o marco histórico que, ainda hoje, legitima a medicalização do não-patológico.

Recebido em: 10/11/2008.

Aprovado em: 05/03/2009.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    2009

Histórico

  • Aceito
    05 Mar 2009
  • Recebido
    10 Nov 2008
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